A transformação da filosofia em Jürgen Habermas: os papéis de reconstrução, interpretação e crítica – REPA (C-FA)

REPA, Luiz. A transformação da filosofia em Jürgen Habermas: os papéis de reconstrução, interpretação e crítica. São Paulo: Singular/Esfera Pública, 2008. Resenha de: MATTOS, Fernando Costa. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, n.15 Jan./Jun., 2010

A transformação da filosofia em Jürgen Habermas, de Luiz Repa, é um livro que anuncia no título o seu escopo mais geral: analisar as transformações por que passa, ao longo da obra de Habermas, a compreensão que este tem da filosofia. E o subtítulo, por seu turno – os papéis de reconstrução, interpretação e crítica –, indica desde logo as principais balizas desse caminho de transformação: essas três noções-chave, que se vão incorporando gradativamente ao conceito habermasiano, permitirão compreender o lugar da filosofia em seu pensamento, até pelo menos o final da década de 1990.

Com isso, Repa poderá chamar a atenção do leitor – e este é talvez um dos grandes méritos de seu livro – para a centralidade que a filosofia assume na obra do filósofo Habermas, tornando a princípio insustentáveis as acusações segundo as quais o “sociólogo” Habermas reduziria a filosofia a um mero apêndice das ciências sociais.1

Não há de ser fortuito, por sinal, que Luiz Repa inicie seu livro com uma citação d’ O discurso filosófico da modernidade em que Habermas se reporta à oposição kantiana entre os conceitos acadêmico e mundano de filosofia 2 : é um ótimo ponto de partida para quem quer explicar a posição filosófica habermasiana em termos propriamente filosóficos, extraídos daquele que seria, embora sem ter a consciência disso (segundo Habermas), o inaugurador do discurso filosófico da modernidade. A noção de “diagnóstico de época”, por exemplo, desde o princípio tão cara à teoria crítica, se deixaria explicar em associação com tal conceito mundano de filosofia, estando já em Kant, pois, a percepção da necessidade, colocada para todo filósofo autenticamente moderno (ou contemporâneo), de “filosofar” com os olhos voltados ao “mundo”, i.e. à sociedade humana em sua inscrição espácio-temporal. De outro lado, o conceito acadêmico de filosofia seguiria denotando a filosofia enquanto especialidade universitária, a qual pendeu cada vez mais, com o passar do tempo, a um estudo da história da filosofia que, embora rigoroso, tenderia a mostrar-se descompassado em relação ao momento presente.3

Essa menção inicial a Kant não tem por objetivo, evidentemente, o perfilamento de Habermas no pelotão dos filósofos modernos e contemporâneos, como se ele fosse apenas mais um sistema de pensamento. O que o impede de cair nessa armadilha é a outra filiação decisiva, mencionada por Luiz Repa na sequência: a tradição hegelo-marxista de crítica da ideologia, segundo a qual o papel da filosofia é essencialmente crítico, negativo, e não positivo.4 É certo que ela se pauta por um “interesse emancipatório” que já nos anos 1960 Habermas opunha aos interesses técnico (próprio das ciências da natureza) e prático (próprio das assim chamadas ciências do espírito), 5 mas esse, digamos, princípio regulativo só se deixa realizar na medida em que a filosofia se constitua por oposição aos discursos positivos que bloqueiam a possibilidade da emancipação.

Ao fazê-lo, porém – e aqui se mostra aquele que é, talvez, o grande paradoxo de toda filosofia após Hegel –, a filosofia não pode (como pareceu querer Adorno) ficar na mera negatividade: ela tem de construir, ou na verdade reconstruir, os padrões normativos racionais que, na realidade efetiva das transformações sociais, apresentaram-se associados à luta pela emancipação. Não é ao filósofo, nesse sentido, que cabe ditar, positiva e soberanamente (tal como faziam os filósofos clássicos), qual o caminho a seguir; é a própria sociedade quem deve indicá-lo, a partir de conflitos concretos em que os aspectos comunicativos da racionalidade buscam afirmar-se contra os meramente instrumentais.

Assim, a nova função do filósofo está ligada à capacidade de identificar, nessa reconstrução que faz da sociedade moderna, tanto os potenciais emancipatórios como os obstáculos que se apresentem à sua realização. Para identificá-los, contudo, ele necessita do instrumental teórico oferecido pelas ciências que, por meio de pesquisas empíricas, permitem tornar muito mais preciso aquele “olhar para o mundo” de que já o velho Kant nos falava e que, na tradução contemporânea, passou a denominar-se com frequência um “diagnóstico de época”. É por este viés, com efeito, que Luiz Repa nos permite compreender, com razoável clareza, a nada simples relação entre filosofia e ciência no pensamento habermasiano: o tal trabalho reconstrutivo que é agora exigido do filósofo passa tanto (1) pela identificação dos pressupostos normativos que, sob a forma de pretensões universalistas, constituem a base das lutas concretas pela emancipação (“reconstrução horizontal”) como (2) pela demonstração de como esses mesmos pressupostos puderam constituir-se sob condições empíricas (“reconstrução vertical”).

Nas palavras do próprio autor,

com a idéia de uma divisão de trabalho ‘não exclusivista’ entre filosofia e ciência, as reconstruções vertical e horizontal se implicam, de modo que, para a filosofia, resulta a possibilidade de se apoiar em estudos empíricos para o estabelecimento de suas pretensões de validade. Ou seja, articula-se uma concepção falibilista para as reconstruções filosóficas, a qual é contraposta a toda ideia de fundamentação última.6

De certo modo, estão dados aí os dois aspectos mais gerais do desafio teórico colocado para Habermas e, por extensão, para Luiz Repa na reconstrução do percurso trilhado pelo filósofo: a possibilidade de um apoio na empiria e o distanciamento das fundamentações últimas. São essas duas exigências, com efeito, que pautam tanto o diálogo de Habermas com seus críticos como as transformações conceituais com que ele responde a essas críticas: deixando de lado uma compreensão da filosofia como crítica da ideologia e da ciência – vista então como ideológica, na esteira da tradição marxista frankfurtiana 7 –, Habermas se verá forçado a ampliar a sua concepção de racionalidade, nos anos 1970, para dar conta dos potenciais emancipatórios que, segundo permitiam notar as ciências sociais de base empírica, estariam contidos no interior da própria evolução do sistema capitalista, da ciência e da técnica 8 – uma carência de seu pensamento para que críticos como Bubner haviam apontado.9 Em seguida, a presença de elementos ainda muito fortes, do ponto de vista da fundamentação filosófica, no interior da compreensão nascente de uma racionalidade – elementos como a “comunidade ideal de fala”, duramente criticada por Wellmer –, acabaria por conduzir Habermas a mitigar ao máximo os “elementos horizontais” de sua filosofia, falando de um “transcendental fraco” para contrapor-se a Karl-Otto Apel.10 E a sensível dificuldade de efetivar tal mitigação, por seu turno, acabaria por levá-lo a sofisticar ao máximo aquela relação entre as reconstruções horizontal e vertical dos pressupostos normativos da linguagem – linguagem cujo protagonismo, em função da influência da filosofia analítica, iria acentuar-se cada vez mais.

É na reconstituição desses deslocamentos habermasianos, assim, que Luiz Repa constrói o seu próprio percurso, alinhando os capítulos do livro aos sucessivos períodos e temas por que passou a compreensão habermasiana da filosofia e de sua relação com a ciência.11 Da “filosofia como crítica da ciência” (capítulo 1) à “filosofia como interpretação mediadora” (capítulo 4), passando por “um conceito complexo de racionalidade” (capítulo 2) e pela “filosofia como ciência reconstrutiva” (capítulo 3), somos levados a acompanhar e, em razoável medida, a compreender tanto as referidas transformações como a permanência de certos ideais metodológicos e o gradativo estabelecimento – basicamente, dos anos 1960 aos 80 – de uma posição a eles mais conforme: deixando para trás toda pretensão veritativa de um discurso filosófico positivo, quiçá capaz de fundamentar os pressupostos teóricos extraídos da linguagem por meio da reconstrução vertical, Habermas passaria a enfatizar o caráter falibilista de seu próprio discurso reconstrutivo, o qual buscaria equilibrar-se sempre entre os pontos de vista descritivo e normativo com vistas à elaboração de uma compreensão efetivamente crítica das sociedades modernas, pluralistas e pósindustriais.12

De certo modo, é essa a resposta tardia de Habermas à grande dificuldade da filosofia desde meados do século XIX (“somos contemporâneos dos jovens hegelianos”, diz ele na resposta a Henrich 13 ): entre o dogmatismo subjetivista com que ainda Kant, segundo ele, pretenderia acessar se não o mundo, pelo menos as estruturas últimas do sujeito transcendental, e o relativismo antirracionalista que sobretudo a partir de Nietzsche identificaria toda racionalidade à dominação, o transcendentalismo falibilista de sua filosofia reconstrutiva, maximamente ancorado nos movimentos sociais, de um lado (as tendências emancipatórias inscritas na própria efetividade), e nas pesquisas empíricas, de outro (as contribuições decisivas das ciências sociais ao novo discurso filosófico), permitiria resolver em nova chave o velho desafio kantiano de sair do dogmatismo sem cair no ceticismo (absoluto). Afinal, seria possível falar em pressupostos normativos sem conservar os fardos metafísicos da filosofia da subjetividade, e sem ceder inteiramente o terreno aos positivistas dogmáticos que, desconfiados de todo e qualquer pressuposto não verificável, enterrariam de vez as esperanças da filosofia.14

A saída é engenhosa, e o livro de Luiz Repa, bastante persuasivo. Não obstante, há questões que parecem teimar em persistir. Que o seu falibilismo, por exemplo, guarde estreito parentesco com a solução dada por Kant às idéias da razão e ao juízo reflexionante, é algo que o próprio Habermas não hesitaria em admitir. Ora! A depender da leitura que fizermos de Kant, contudo – enfatizando os elementos regulativos em detrimento dos constitutivos –, pode ser que a diferença se torne tão pequena que sejamos levados a questionar o alcance dessa aparente revolução copernicana a que Habermas, inspirado no modelo kuhniano de história da ciência, dá o pomposo nome de uma “mudança de paradigma”.15

É também discutível, nesse mesmo sentido, se a nova metafísica pretendida por Kant – e que, como se sabe, está longe de resumir-se à analítica transcendental – encaixa-se no conceito de metafísica que Habermas acredita ter sido ultrapassado no “pensamento pós-metafísico”.16 Se tivermos em vista as reflexões de Kant nos Prolegômenos, por exemplo, em que ele se põe a considerar o que será da metafísica no futuro, salta aos olhos o caráter meramente problemático e hipotético – leia-se falibilista – de uma série das ideias que serão centrais a esse novo saber. Note-se que também aqui não se trata de questionar a engenhosidade da solução habermasiana, mas apenas o seu grau de novidade e transformação paradigmática: a depender de como interpretemos o conceito de metafísica no cenário pós-kantiano, o que Habermas faz é radicalizar a problematicidade que desde o princípio marca esse conceito.17

Isso, de qualquer modo, se estiver correto o peso dado por Luiz Repa à filosofia, por meio dos conceitos de reconstrução, interpretação e crítica, no interior do pensamento de Habermas.

Pois caso se reduzisse esse peso, como querem alguns, haveria o risco nada pequeno, apontado também por Dieter Henrich, de a filosofia ver-se engolida pelas ciências sociais empíricas e contaminada pelo positivismo destas últimas. Mas neste ponto parece acertada a insistência de Repa em assinalar a “dependência recíproca” em que Habermas enxerga as relações entre a filosofia e as ciências:

Quanto mais houver uma cooperação feliz entre ciência e filosofia, tanto mais poderemos, na esfera do discurso teórico, ter razões para aceitar – ainda que por enquanto – propostas teóricas fortemente universalistas. O que surge não é, entretanto, uma dependência da filosofia em relação à ciência, mas uma “dependência recíproca”, uma vez que as ciências reconstrutivas de tipo experimental (…) precisam, por sua vez, das abordagens reconstrutivas filosóficas como uma espécie de medida de processos evolutivos.18

Resta saber, naturalmente, se de fato funcionam assim, em regime de “cooperação feliz”, as relações entre as ciências e a sua “ex-mãe”. Antes disso, porém, é preciso entender melhor o modo como o próprio Habermas as enxerga. E o livro de Luiz Repa, quanto a isso, nos indica certamente um bom caminho.

Notas

1.Entre tais acusações, valeria destacar aquela que é feita por Dieter Henrich no artigo “O que é metafísica? O que é modernidade? Doze teses contra Jürgen Habermas”. in: Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, n. 14, p 83-117, jul.-dez,.2009.

  1. REPA, L. A transformação da filosofia em Jürgen Habermas: os papéis de reconstrução, interpretação e crítica. São Paulo: Singular/Esfera Pública, 2008, p. 13.

3 Idem, ibidem.

4 Idem, p. 15.

5 Idem, p. 14.

6.Idem, p. 17.

  1. Idem, pp. 76 e ss.
  2. Idem, pp. 85 e ss.
  3. Idem, p. 71 (nota 151).

10.Idem, p. 166 e ss.

11 Cf. idem, p. 229.

12 Idem, p. 175.

13 HABERMAS, J. “Retorno à metafísica – uma recensão”. In: _____. Pensamento pós-metafísico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002 (2ª.ed.), p. 269.

14 REPA, L.A transformação da filosofia em Jürgen Habermas: os papéis de reconstrução, interpretação e crítica, p. 217 e ss.

  1. É o que faz Dieter Henrich em “O que é metafísica? O que é modernidade”?”. Henrich, D. “O que é metafísica? O que é modernidade?”. In: Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, n. 14, p. 101-3.
  2. Cf. HABERMAS, J.Pensamento pós-metafísico, p. 14-5.
  3. Cf. =ies, C. Der Sinn der Sinnfrage. Metaphysische Reflexionen auf kantianischer Grundlage. Munique: Alber, 2008, pp. 58-65.
  4. REPA, L. A transformação da filosofia em Jürgen Habermas: os papéis de reconstrução, interpretação e crítica, p. 177

Fernando Costa Mattos – Doutor em filosofia pela USP, desenvolve atualmente pesquisa de pós-doutorado, com bolsa da FAPESP, junto ao Núcleo Direito e Democracia do CEBRAP.

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