Fear & Memory in the Brazilian Army & Society – SMALLMAN (RBH)

SMALLMAN, Shawn C. Fear & Memory in the Brazilian Army & Society. Chapel Hill & London: University of North Carolina Press, 2002, 265p. Resenha de: IZECKSOHN, Vitor. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.25, n.50, july/dec. 2005.

A influência do exército na política brasileira se estende da segunda metade do século XIX até o início da década de 1980. A abrangência das intervenções militares esteve sujeita a debates intermináveis, a maioria dos quais procurou explicar as causas do golpe militar de 1964 e os 21 anos de ditadura que se seguiram por meio dos conflitos do final do período monárquico, especialmente a chamada “Questão Militar”. Para isso muitas vezes procurou-se encontrar as raízes da intervenção militar, que foram identificadas em aspectos particulares da vida da instituição, destacando-se aí os estudos sobre a formação educacional dos oficiais e as pesquisas sobre suas alianças com os aliados civis, em geral aqueles incompatibilizados com a democracia.

Os arranjos internos e informais que moldaram boa parte do comportamento dos oficiais não constituíram um tema central para os historiadores da instituição. O livro em questão tenta preencher essa lacuna. Fear & Memory in the Brazilian Army & Society, do historiador norte-americano Shawn C. Smallman, baseia-se na utilização de fontes manuscritas inéditas e em entrevistas com militares de facções diferentes, buscando enfatizar o papel desempenhado pelas estruturas informais que moldaram ambos: o comportamento político do exército e a versão institucional de sua história. O autor define essas estruturas como “as regras não escritas, organizações, convicções e crenças que moldam o poder sem sanção oficial ou recursos governamentais” (p.5).

Smallman analisa a gênese e a consolidação das estruturas informais durante o período de 1889 a 1954. Partindo de uma posição secundária durante a maior parte do período monárquico, o exército pôde derrubar o regime e proclamar uma República em nome da ordem e do progresso. Apesar do seu papel proativo no golpe de 1889, faltou ao exército, durante décadas, um programa claro para unificar facções diferentes em torno de algumas demandas básicas. Essa debilidade institucional tornou a luta para manter o controle hierárquico sobre os soldados, suboficiais e oficiais rebeldes uma tarefa muito mais violenta e personalizada do que normalmente se supõe. De fato, na falta de uma ideologia militar consistente, influências externas, divergências pessoais e divisões políticas constantemente debilitaram a realização dos procedimentos formais, sujeitando o exército à instabilidade. Smallman argumenta que, em resposta a essa vulnerabilidade, aqueles que ocuparam o topo da hierarquia constantemente empregaram a violência, a tortura e o suborno para controlar a instituição.

Os procedimentos que possibilitaram à hierarquia forjar sua própria versão da memória institucional do exército devem muito ao medo e à prática do esquecimento. Muitos episódios de violência, assim como acusações de corrupção, foram apagados da história oficial. Outros episódios, como a revolta de 1935, foram convenientemente manipulados para justificar os meios brutais de punição das facções derrotadas. Outros ainda, como a repressão sistemática aos membros da facção nacionalista, desapareceram dos registros.

O livro contesta a visão de um exército unido e coeso, deixando clara também a extensão de preconceito racial no interior da instituição. De acordo com Smallman, desde a década de 1920, foram poucas as oportunidades para a ascensão de suboficiais, um caminho que contrasta com a situação dos primeiros anos da República. Além disso, negros, judeus e outras minorias foram sistematicamente discriminados nas seleções para o oficialato. As evidências apresentadas vão contra o discurso histórico/institucional que vê o exército como um oásis para as boas relações entre brasileiros de todas as classes, cores e credos.

Outro ponto polêmico tratado pelo livro é a caracterização de relações pessoais como o recurso fundamental para a construção de alianças e a formação de grupos políticos. Este aspecto é particularmente bem delineado na descrição do processo em que a hierarquia passou de uma posição estatista, calcada na defesa do papel proativo do Estado na atividade econômica, para um posicionamento mais internacionalista no decorrer da década de 1940, no rescaldo da aliança militar com os Estados Unidos (capítulos 3 e 4). Partindo de uma pesquisa minuciosa em fontes primárias, ancorada a uma síntese bem feita da literatura, Smallman demonstra que o pragmatismo e as alianças pessoais foram geralmente muito mais essenciais à formação de facções que a identificação ideológica ou um sistema de convicções. De fato, os oficiais do exército eram menos dependentes das conexões políticas externas que os civis trabalhando em posições estatais, mas esta situação, por si só, não constituiu um antídoto contra um nível alto de clientelismo endógeno. Nem o exército foi uma instituição total, isto é, fechada em si mesma e dotada de uma mentalidade inteiramente independente do contexto externo, nem os seus procedimentos funcionais conseguiram ser inteiramente burocratizados.

O ponto central do livro é o destaque dado ao papel da corrupção no estabelecimento de vínculos pessoais entre os altos escalões da hierarquia, a alta burocracia e os interesses empresariais. A corrupção militar sempre foi tolerada pelas elites civis, na medida em que era vista como uma fraqueza que poderia ser funcional para a subordinação do exército. Porém, a ascensão de oficiais para posições estratégicas nos empreendimentos estatais aumentou a escala da corrupção, reforçando as ligações entre esses oficiais e setores da comunidade empresarial. A instituição de tribunais especiais e o uso habitual da coação, freqüentemente imobilizaram qualquer tentativa de investigação, tornando a corrupção uma atividade segura para os oficiais que estavam no topo da carreira. Neste aspecto particular, o livro poderia ter discutido um pouco mais as relações entre as facções militares e os partidos políticos estabelecidos durante o regime de 1946. Isto teria permitido um melhor delineamento entre a corrupção propriamente dita e o acesso a posições de poder na estrutura estatal, especialmente a presidência e as diretorias de autarquias. Talvez não fosse o propósito do autor vincular esses aspectos às estruturas externas, mas o exército não se encontrava num vácuo e um pouco mais de debate sobre as conexões não prejudicaria sua argumentação, mesmo que o objetivo continuasse sendo o de manter o foco nos condicionamentos internos e na coesão do grupo. Mais atenção para a política nacional teria reforçado os aspectos informais particulares da instituição durante esses anos cruciais, contrariando tendências tradicionais que minimizam a importância da experiência democrática de 1946. Qual foi o papel da politização das facções nas disputas internas entre os nacionalistas e internacionalistas? Como esses oficiais percebiam o seu papel como coadjuvantes nas disputas político-partidárias da época? A simples redução da competição às polaridades da guerra fria não é capaz de dar conta da extrema complexidade política do período, da qual a corporação não se encontrava alheia.

Fear & Memory fornece uma descrição detalhada sobre as motivações dos oficiais do exército durante a segunda metade do século XX. A arqueologia das estruturas informais presta especial atenção para as reordenações internas no intuito de explicar a ação militar, mostrando que a amnésia coletiva permaneceu como a política oficial do exército durante anos. O trabalho localiza os sinais de descontentamento do exército na Guerra do Paraguai, analisando a política da instituição ao longo do processo que desembocou no envolvimento com a modernização autoritária e com o anticomunismo feroz das décadas de 1940 e 1950. Nessa perspectiva, a violência sistematicamente empregada contra os civis durante a longa ditadura 1964-1985 teria sido primeiramente gestada no interior da própria instituição, através de uma ação de contenção sistemática dos soldados e dos dissidentes. Vale perguntar se a pesquisa precisaria descer a um passado tão distante quando seu foco estava concentrado nos anos 40. A ênfase na longa duração nem sempre é compatível com a análise da estrutura de alianças pessoais e do oportunismo individual, enfatizados pelo autor, e acaba reproduzindo a tendência tradicional de buscar as origens da crise na Questão Militar.

Apesar destas ressalvas, o livro apresenta perspectivas novas para o estudo de muitos aspectos internos da instituição, mostrando que a complexidade dos eventos pode ser deslocada muitas vezes para as paixões e motivações pessoais, sinalizando para a importância do desígnio humano na análise dos obstáculos que esse setor da burocracia estatal estabeleceu para impedir o exercício pleno da democracia.

Vitor Izecksohn – Universidade Federal do Rio de Janeiro — UFRJ.

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