Teoria da História (v. 4) Acordes historiográficos: uma nova proposta para a teoria da história | José D’Assunção Barros

BARROS, José d’Assunção. Teoria da História, vol. IV. Acordes historiográficos: uma nova proposta para a teoria da história. Petrópolis: Vozes, 2011, 447p. Resenha de: MARQUES, Juliana Bastos. Anos 90, Porto Alegre, v. 19, n. 35, p. 485-489, jul. 2012.

Paul McCartney, reconhecido como um dos compositores populares mais prolíficos e talentosos do mundo contemporâneo, costuma citar com frequência que nunca quis aprender teoria musical, para que o conhecimento formal não o prejudicasse ao compor.

Essa “ingenuidade teórica” também constitui mais em benefício do que em um eventual empecilho para o leitor na compreensão do texto do professor José d’Assunção Barros, em sua ousada proposta de empregar a teoria musical para construir uma metáfora de compreensão da historiografia.

O volume aqui resenhado faz parte de uma série dedicada à apresentação e discussão de temas fundamentais sobre Teoria da História, sendo precedido por um primeiro volume que trata de conceitos mais abstratos e gerais, além de dois outros com uma análise da história da historiografia a partir do seu estabelecimento como disciplina profissional no século XIX. Ainda não publicados, mas já anunciados, seguem outros dois volumes sobre as tendências mais recentes formuladas no séc. XX. Nesse sentido, o volume IV mostra-se como um interlúdio (a alusão ao termo é intencional) dentro da proposta da coleção, retomando a apresentação de alguns autores já analisados em outros volumes (Ranke, Marx, Benjamin) e introduzindo capítulos relativos ao pensamento de Droysen, Weber, Ricoeur e Koselleck. A proposta é utilizar a metáfora do acorde musical para classificar e explicar as infl uências intelectuais durante a carreira acadêmica dos autores citados, o que se apresenta também como uma proposta geral para eventuais estudos seguintes com outros autores que pensam o fazer historiográfico (como se vê, não necessariamente historiadores). Coloca-se para avaliação, portanto, uma questão primordial: se e como a metáfora funciona e o quanto é útil para o que se propõe.

O autor explica, no primeiro capítulo, de forma simples, os conceitos que utiliza e o desconhecimento prévio de teoria musical por parte do leitor não deverá trazer grandes dilemas para a compreensão da metáfora. Logo de início, explica-se o que é um acorde musical: “[…] um conjunto de notas musicais que soam juntas e assim produzem uma sonoridade compósita” (p. 15). Assim, classificar um autor dentro da proposta significa traçar essas “notas” que comporiam o acorde, que podem ser tanto correntes teóricas específicas que formariam sua identidade teórica e/ou historiográfica (por exemplo, a Hermenêutica em Ricoeur), como também infl uências pessoais (a religiosidade em Droysen) ou técnicas metodológicas (o “comparativismo” em Max Weber). O único autor dentre os analisados que parece se encaixar mais diretamente na compilação de um acorde que o defina é Ranke, que Barros classifica como “monódico”, por causa da constância das infl uências nele detectáveis durante toda a sua vida – assim, o acorde de Ranke seria constituído pelas “notas” Historicismo ou crítica documental como “nota fundamental”, estilo, Fichte, religiosidade e nacionalismo (o idealismo hegeliano apresentar-se-ia como uma “antinota”, termo cuja correspondência musical me escapa). Todos os outros autores, em maior ou menor grau, têm complexidades classificatórias tais que parece impossível construir apenas um único acorde que os abarque, dilema que Barros resolve com o fato de que diferentes acordes consonantes entre si podem ser construídos no tempo de acordo com as mudanças inerentes às trajetórias intelectuais analisadas.

O texto não procura uma rigidez classificatória, como pode parecer à primeira vista, mas o resultado disso nos diferentes capítulos é irregular. As análises de Ricoeur e Koselleck, talvez não por coincidência os autores mais recentes, beneficiam-se de uma atenção maior às ideias originais dos próprios autores, em especial no segundo caso. Dado que o texto de Barros é deliberadamente claro e fl uente (como ele anuncia no primeiro livro), tais capítulos servem como introduções bastante úteis a questões tais como o embate hermenêutico entre a subjetividade e a objetividade em Ricoeur, ou as refl exões sobre o tempo e o progresso em Koselleck – por vezes, o texto lembra claramente o formato de uma aula.

Para o eventual historiador que também conheça teoria musical, no entanto, a metáfora parece incompleta, às vezes afl itiva no que lhe falta. Um acorde musical jamais existe sozinho, sendo apenas a expressão mais sucinta da harmonia determinada dentro de uma tonalidade (dó maior, mi bemol menor, assim por diante), quando não ao menos em relação a uma pauta e clave que o localize sonoramente. O acorde de, digamos, fá maior, é definido primariamente como o conjunto da tônica (nota principal, o próprio fá maior) e as notas que soam harmonicamente mais próximas a ela dentro da série harmônica, no caso a terceira e a quinta a partir da tônica dentro da escala, portanto lá e dó. A rigor, qualquer outra nota poderá fazer parte do acorde dentro da tonalidade de fá maior, considerada sua relação harmônica com a nota principal. Sendo assim, é possível notar que a lógica fundamental de um acorde é a própria relação entre as notas (os intervalos entre a tônica e quaisquer outras notas que o acorde forme), determinada pela tonalidade como um conjunto – isso sem mencionar outras formas musicais que não o sistema tonal, também possíveis. Ora, essa complexidade está ausente da metáfora de Barros, que usa o acorde apenas como um empilhamento de “notas” em cima de uma nota fundamental (nunca chamada de tônica no texto), sem relacioná-las entre si e à suposta tonalidade que as constitui.

Por exemplo, se supomos que a tônica de Max Weber seja o Historicismo (p. 131) – aliás, por que a tônica de um autor não pode ser o próprio autor? Ou o autor seria a tonalidade como um todo? –, qual seria a relação (tecnicamente falando, o “intervalo”) da tônica com as “notas” filosofia neokantiana (sua “nota de topo”, termo que também me escapa: seria uma sétima maior ou simplesmente a nota mais aguda?), ou com o já citado “comparativismo”? Uma forte quinta justa ou uma sutil sexta maior? Para a teoria musical, essas diferenças são absolutamente determinantes quando se constrói um acorde. Como a “tríade temática fundamental” da política, economia e religiosidade de Weber poderiam se constituir em uma só “nota” (p. 140)? E os “harmônicos ocultos” de Marx e Nietzsche, como se relacionam com o acorde? Não seria o caso de se estabelecer uma sequência harmônica dos acordes de autores em constante mudança como Ricoeur ou Foucault, como em um coral de Bach, ou também uma eventual melodia das obras do autor também seria expressiva dentro da metáfora? A própria ideia de melodia parece quase desimportante dentro do conjunto da metáfora, até que surge, no capítulo sobre Koselleck, quando Barros propõe que o “[…] devir histórico (ou a sensibilidade humana diante desse devir) apresenta na verdade uma natureza musical, impulsionando-se a partir de melodias que se entrelaçam e que se contraponteiam, umas convergindo com outras, outras em relação de divergência” (p. 294). A melodia significaria então o movimento histórico humano no meio de onde se tocam os acordes de cada pensador? É uma pena que Barros não desenvolva essa ideia em todo o texto, pois ela me parece rica em possibilidades, bastante coerente e de uma poesia encantadora.

Acredito que o autor esteja plenamente consciente dessas questões, dado que também tem sólida formação musical. Minha impressão sobre qual seria o motivo dessas relações fundamentais não serem explicitadas na metáfora é que requereriam um trabalho exponencialmente mais complexo e demandariam um conhecimento musical bem mais avançado do leitor para compreender todas as relações harmônicas realmente embutidas na metáfora do acorde musical. Nesse sentido, entendo a proposta de Barros até mesmo como um convite, ainda que não explicitado, para que essas nuan ces musicais sejam futuramente analisadas, por historiadores ou por músicos. Embora a princípio isso pareça um esforço de classificação direto demais, a teoria musical comporta, nos dias de hoje, uma liberdade muito maior de relações sonoras do que a harmonia tradicional de Bach, assim como é evidente que não se pode classificar as influências e a trajetória intelectual de um determinado autor dentro da história do pensamento histórico também em rígidos paradigmas ou etiquetas.

Sendo assim, o livro tem o mérito de ultrapassar em muito seu caráter didático, que em si já é bastante louvável, dada a clareza da explicação providenciada pelo autor sobre as trajetórias intelectuais dos autores analisados. Como um trabalho experimental, no entanto, é o primeiro passo de muitos a serem dados no sentido da interdisciplinaridade profunda que é sim possível entre História e Música, pois são ambas realizações eminentemente humanas que se constroem no tempo e têm historicidades ligadas a influências e a regras, transcendendo-as em busca de ordenações originais para representar o mundo.

Juliana Bastos MarquesProfessora Adjunta. UNIRIO (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro). Pós-Doutorado em História pela USP (Universidade de São Paulo). Email: [email protected]. Endereço: Rua Dr. Júlio Otoni, 278 fundos. Bairro Santa Teresa. Rio de Janeiro/RJ. CEP 20241-400.