Apagando o incêndio: A crise financeira e suas lições – BERNANKE et al (FSPI)

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Retrato de Ben Bernanke /en.wikipedia.org

BERNANKE S et al Apagando o incêndio Crise financeira

BERNANKE, Bem S.; GEITHNER, F. Timothy; PAULSON JÚNIOR, Henry M. Apagando o incêndio – A crise financeira e suas lições. Sdt. Todavia, 2020. Resenha de: CUCOLO, Eduardo. Bombeiros’ de 2008 viam, antes da pandemia, arsenal anticrise dos EUA queimado. Folha de São Paulo – Ilustrada. 10.jul.2020.

No momento em que o mundo está diante da maior recessão econômica desde o pós-guerra, diversos governos têm recorrido ao receituário criado a partir da crise de 2008 e 2009, batizada nos EUA de a Grande Recessão, para evitar que a atual pandemia leve o mundo a uma nova Grande Depressão.

A forma como três gestores da maior economia do planeta lidaram com a última grande crise econômica é o tema do livro “Apagando o Incêndio – A Crise Financeira e suas Lições” (“Firefighting”, em inglês), lançado no Brasil nesta semana pela editora Todavia.

A obra traz o relato do então presidente do Federal Reserve (Fed, o banco central dos EUA), Ben Bernanke, do secretário do Tesouro do governo George W. Bush Henry Paulson e de Timothy Geithner, presidente do Fed de Nova York na época da crise e sucessor de Paulson, na gestão Barack Obama.

O livro foi lançado nos EUA em abril do ano passado, quando a economia mundial dava sinais de desaceleração, mas estava longe da profunda recessão provocada pela pandemia do novo coronavírus.

Curiosamente, os autores afirmam que o país estava, em 2019, em uma posição de desvantagem em relação ao arsenal disponível para reanimar a economia no caso de uma nova crise. “Felizmente, antes da crise [de 2008], o arsenal keynesiano dos Estados Unidos estava razoavelmente bem abastecido. O Fed tinha muito espaço para reduzir as taxas de juros e buscar outras políticas monetárias expansionistas, enquanto o restante do governo tinha espaço orçamentário para empreender políticas fiscais expansionistas, como reduções de impostos e aumento de gastos.”

“Hoje, o arsenal keynesiano parece muito mais restrito, o que poderia ser uma desvantagem significativa numa crise séria”, afirmam.

Com a proposta de falar para o público leigo, a publicação faz um histórico de uma crise que, segundo os autores, foi inicialmente mais intensa que a Grande Depressão dos anos 1930, mas que foi debelada a partir do momento em que o governo dos EUA conseguiu deter o pânico e estabilizar o sistema financeiro.

Os três evitam o discurso de que foram os responsáveis por salvar o mundo do caos, ao destacarem frequentemente a importância de políticos democratas e republicanos terem se unido para “apoiar intervenções tremendamente impopulares, mas fundamentais”, como estatizar empresas quebradas e resgatar todo o sistema financeiro.

Dizem ainda que a reação à crise ficou marcada como uma ação para ajudar Wall Street no imaginário dos americanos, mas que “a única maneira de conter o dano econômico de um incêndio financeiro é apagá-lo, embora seja quase impossível fazer isso sem ajudar algumas das pessoas que o provocaram”. A opção, segundo os três, seria deixar que o país seguisse para uma longa recessão.

O livro é divido em cinco partes, seguindo a cronologia da crise, a começar pela raiz dos problemas: os novos produtos financeiros que ajudaram a aumentar os estragos causados pelo fim do boom do imobiliário nos EUA.

Para eles, tratou-se de um pânico financeiro clássico, uma corrida ao sistema financeiro desencadeada por uma crise de confiança nas hipotecas, alimentada pelo boom de crédito. Problemas que só puderam florescer graças à falta de regulação e a uma inovação —a securitização, mecanismo usado por Wall Street para fatiar e picar hipotecas a fim de transformá-las em produtos financeiros complexos que se tornaram onipresentes nas finanças modernas.

Os capítulos seguem as datas que marcam quatro períodos da crise: 9 de agosto de 2007, quando o BNP Paribas, maior banco da França, anunciou o congelamento dos saques de três fundos que detinham títulos garantidos por hipotecas subprime americanas; o colapso do Bear Stearns, em 14 de março de 2008; a quebra do Lehman Brothers, em 15 de setembro do mesmo ano (que os autores classificam como “O Inferno”); e a aprovação do programa que permitiu ao governo dos EUA comprar “ativos problemáticos” e iniciar o combate à crise. A recessão no país terminou em junho de 2009.

Em apenas um mês, a partir de setembro de 2008, ocorreram ainda a estatização das gigantes de hipotecas Fannie Mae e Freddie Mac, o colapso da corretora Merrill Lynch e o resgate da seguradora AIG para evitar uma falência ainda maior que a do Lehman.

Após uma rejeição inicial, que derrubou ainda mais os mercados, o Congresso americano aprovou um pacote de US$ 700 bilhões em apoio ao sistema financeiro. Isso tudo durante o período final de uma campanha presidencial.

“Ajudamos a formular a reação americana e internacional a uma conflagração que sufocou o crédito mundial, devastou as finanças globais e mergulhou a economia americana na recessão mais danosa desde as filas do pão e os cortiços dos anos 1930.”

O livro traz um anexo que explica a crise em gráficos e mostra em números como se deu a reação. Reação que garantiu mais de uma década de bonança à maior economia mundial. Nesse período, no entanto, os EUA não se preocuparam em restaurar o poder de fogo fiscal e monetário que poderia ajudar a enfrentar outra recessão.

Proféticos, os autores dizem que, “quando a próxima crise ou até mesmo uma recessão comum ocorrer, os formuladores de políticas terão muito mais dificuldade, tanto do ponto de vista político quanto econômico, para repetir a reação vigorosa de uma década atrás”.

 

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Contra os filhos – MERUANE (REF)

MERUANE, Lina. Contra os filhos. Vidal, Paloma. São Paulo: Todavia, 2018. Resenha de ÁVILA, Alana Aragão. Armadilhas da culpabilização materna. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v.28 n.2 2020.

Abordar a maternidade e o instinto materno enquanto construções sociais permanece sendo tarefa árdua. Desde Simone de Beauvoir ([1949] 2016), passando por Elizabeth Badinter (1985) até Silvia Alexim Nunes (2000) e Lurdes Fidalgo (2003), a discussão sobre esses temas é recebida de forma controversa na arena quase sacralizada da construção da feminilidade pela via do papel materno. Propondo uma discussão atualizada não apenas sobre a maternidade em suas diversas formas e práticas, mas também sobre seus efeitos produtivos, Lina Meruane entrou para a miríade de autoras que desafiaram as convenções em torno do tema.

O mais recente livro de Lina Meruane a chegar no mercado brasileiro leva a provocação para além do título. Contra os filhos se propõe a ser um ensaio que discute o local privilegiado em que os filhos foram colocados na atualidade. Meruane revisita o “ideal do dever-ser-da-mulher” (Lina MERUANE, 2018, p. 17) e anuncia que esse imaginário está tomando novas formas, a saber, “sua encarnação contemporânea agita os pés entre fraldas e berra sem descanso junto a nós” (MERUANE, 2018, p. 17). Leia Mais

O palácio da memória – DIMEO (Topoi)

DiMEO, Nate. O palácio da memória. Galindo, Caetano W.. 1. edição. São Paulo: Todavia, 2017. 256 pp. Resenha de: SANTOS. O palácio da memória, ou: da arte de contar histórias. Topoi v.20 n.41 Rio de Janeiro May/Aug. 2019.

O palácio da memória, de Nate DiMeo (Todavia, 2017), pode ser descrito como uma obra de caráter transdisciplinar, no âmbito acadêmico-escolar – como leitura obrigatória em aulas relacionadas à História e/ou ao Ensino de História, bem como à escrita ou processos de escrita, tanto no ensino superior como na educação básica – e para além dele – como uma leitura não obrigatória, selecionada sem uma finalidade pedagógica específica.

O fato de se enquadrar de modo peculiar nesses dois espaços formativos que muitas vezes parecem tão distantes um do outro (o acadêmico-escolar, com suas normas e saberes sistematizados, e o do cotidiano, que não estabelece uma rotina tão rígida e apresenta outra relação com os saberes, na sua transmissão e recepção) possibilita ao livro de DiMeo algo que poucas obras conseguem: articular o saber histórico formal com o saber histórico do dia a dia.

Seja para amantes da História ou de histórias, O palácio da memória traz registros históricos contundentes, utilizando uma narrativa autoral que faz da leitura uma experiência no mínimo singular e recomendável.

Nate DiMeo, natural de Providence, em Rhode Island, nos Estados Unidos, é um ex-músico que trabalhou como repórter de rádio por mais de dez décadas, segundo relata Fernanda Ezabella (2017), que realizou uma entrevista com o autor antes de a obra chegar às livrarias brasileiras.1 Nessa entrevista ele explica seu interesse por temas relacionados ao século XIX, ou, mais especificamente, aos anos entre 1880 e 1920, período em que “a vida moderna estava sendo inventada”, como afirma.

É diante do excesso de informação de nossa cultura contemporânea – descrito desde a primeira metade do século passado por Walter Benjamin,2 salientado por Ítalo Calvino3 na metade da década de 1980 e também por Georges Balandier4 no final daquela época – que DiMeo encontra seus personagens e constrói (ou tenta reconstruir, a partir da perspectiva histórica) suas histórias. Diante desse excesso algo sempre surge lhe chamando a atenção, fazendo-o voltar posteriormente para checar a veracidade e pesquisar em museus e arquivos de jornais, para em seguida pensar sobre a forma de contar mais uma de suas histórias.

O que impressiona em seu trabalho, realizado desde 2008, quando estreou o podcast “The Memory Palace”,5 é a sua capacidade de contar histórias e de demonstrar suas potencialidades, bem como a força dessa prática por vezes tão esquecida em nossa era digital-informativa, em que muitas vezes a multiplicidade midiática retira nosso tempo de reflexão sobre determinado conteúdo, nos privando da “riqueza de significados possíveis”, como expressou Ítalo Calvino, pois a superabundância de imagens e de informações muitas vezes “se dissolve imediatamente como os sonhos que não deixam traços na memória”.6

Mas é da adversidade que conseguimos enxergar e criar alternativas, como analisa Marcelo Yuka.7 Nesse sentido, Nate utiliza desse excesso de informação para pegar aquilo que lhe toca e trabalhar em cima do que foi selecionado com a prudência e o cuidado de um historiador de ofício, dando o seu devido tempo e atenção. Desse modo, ele consegue deixar muitos traços das memórias que narra em nossas mentes-corpos – uma vez que estes são elementos indissociáveis de nossa percepção sensorial do mundo -, nos atingindo física e emocionalmente diante de seus relatos.

Se Georges Balandier (1999) ressaltava sobre o processo de banalização e de sobrecarga do imaginário social por meio da constante repetição de imagens e informações sem uma orientação crítica de seus usos, temos em O palácio da memória uma experiência muito diferente. Experiência, a propósito do ato de narrar, de contar histórias surpreendentes, que Walter Benjamim afirmava, em 1936, ser uma arte em vias de extinção.8 Segundo o filósofo alemão:

São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente. É cada vez mais frequente que, quando o desejo de ouvir uma história é manifestado, o embaraço se generalize. É como se estivéssemos sendo privados de uma faculdade que nos parecia totalmente segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências.9

Essa crise no ato de contar histórias, de intercambiar experiências significativas, é justificada por Benjamin ao afirmar que os fatos reportados em sua época, vindos de todas as partes do mundo, não favoreciam a narrativa – a experiência da narrativa -, pois vinham impregnados de explicações sem a necessidade da escuta atenta e sensível, do processo de efetuar relações e de refletir sobre o ocorrido; em contrapartida, isso favorecia o excesso de informação, que ainda hoje é um dos temas mais abordados por pesquisadores em diferentes áreas e campos do saber, como História, Educação, Sociologia, Comunicação, Mídia, Filosofia, Cinema, entre outros.

E por que a leitura de O palácio da memória é uma experiência narrativa diferenciada? Justamente porque Nate DiMeo consegue manifestar nosso desejo de ler/ouvir histórias, servindo como antídoto a todo o excedente informativo que permeia nossos dispositivos móveis e nossas vidas. Não obstante, ele demonstra que a História, deveras considerada um peso sem significado aparente na vida de muitos jovens estudantes, pode sim ser mais atrativa e carregada dos mais diversos significados.

Este é outro grande mérito desse artista estadunidense, de nos instigar -professores/formadores da educação básica ou do ensino superior – a rever nossos métodos e nossas próprias práticas pedagógicas, a ponto de podermos utilizar O palácio da memória em nossas aulas como um ponto de partida, um meio para elaborar novas possibilidades de ensino, de envolver nossos alunos com os conteúdos curriculares prescritos institucionalmente.

Não há outro meio de se conhecer mais a História e seus acontecimentos se não mergulhando naquilo que ela tem a nos oferecer. DiMeo faz isso, ele mergulha nas histórias que nos conta de modo a se aproximar das práticas relativas aos historiadores que atuam no campo da História Oral, contribuindo nesse terreno do “estudo da subjetividade e das representações do passado tomados como dados objetivos, capazes de incidir (de agir, portanto), sobre a realidade e sobre nosso entendimento do passado”, como sintetiza Verena Alberti10 a respeito dessa metodologia e abordagem historiográfica.

Essa aproximação com a História Oral está presente ao longo de toda obra, quando Nate toma como protagonistas de muitas de suas histórias sujeitos/personagens “comuns”, de “carne e osso” como todos nós, que não fazem parte daquela História seletiva e oficial – ou por muito tempo oficializada – que costumamos aprender nos bancos escolares, mas que, de acordo com Lucília Delgado,11 “anônima ou publicamente deixam sua marca, visível ou invisível, no tempo em que vivem, no cotidiano de seus paí ses e também na história da humanidade”.

Há também algumas grandes figuras conhecidas da História, sobretudo da história estadunidense, onde se passam as narrativas; mas nem por isso perdem seu valor, pois, quando contextualizados com a história social e coletiva da humanidade, conseguimos identificar sua importância e até mesmo relacionar a equivalentes de nossa própria esfera sociocultural.

Alguns desses nomes são de indivíduos que se consagraram em seus respectivos campos de atuação. Todavia, não se busca enaltecer e divinizar, nem tampouco condenar e demonizar tais sujeitos. Suas histórias são transcritas a partir de um contexto histórico-cultural maior, no qual o que importa, no fim das contas, não é reconhecer aqueles considerados e tratados como protagonistas, e sim ter consciência de que a história contada, por si só, teve (e, de certa maneira, continua tendo) uma relevância suficientemente expressiva em determinado tempo e espaço onde elas aconteceram – na verdade para além disso, uma vez que muitas delas cruzaram oceanos e continentes, inscrevendo-se na narrativa da história humana.

O palácio da memória está estruturado em 50 breves narrativas que abordam desde as desventuras de Samuel Finley Breese Morse – que, após perder a esposa e sequer conseguir estar presente ao seu funeral, “passou os quarenta e cinco anos seguintes inventando o telégrafo. […] E desenvolvendo o código Morse” (Distância, p. 9-10), na tentativa de que mais ninguém passasse por aquilo que ele viveu -, ao dia em que muitos nova-iorquinos quase enlouqueceram quando em uma manhã de novembro de 1874 uma alarmante notícia – inventada e publicada pelo jornal New York Herald – trouxe à tona muitos “monstros imaginários”, dando uma lição “que vale a pena recordar de vez em quando” (Enlouquecidos, p. 245-248), sobretudo diante de uma época em que as fake news estão ganhando cada vez mais destaque.

Entre as duas histórias, há muitas outras que emocionam, que chocam, que nos atingem de modo peculiar, nos fazendo pensar sobre o ocorrido ou sobre situações semelhantes que aconteceram também em tempos remotos e em outros lugares, distintos daquele que DiMeo descreve, ou que aconteceram recentemente; ou que acontecem ainda hoje, perto de nós, às vezes conosco, nessa sociedade em que muitos governos gostam de se autoproclamar democráticos, ainda que a democracia seja conhecida por poucos e distante de muitos.

Dentre alguns desses casos, que podem se relacionar de uma forma ou de outra, podemos trazer como exemplo o caso dos meninos de 9 anos que morriam simplesmente por serem crianças e por efetuarem um trabalho perigoso demais (Nipper, p. 17-18). De Minik Wallace, um inuíte de 7 anos de idade que vivia em um pequeno vilarejo na Groenlândia e viu o pai e outros conterrâneos morrerem quando saíram pela primeira vez de seu lugar de origem, convencidos por homens brancos a partirem para a cidade de Nova York, onde foram apresentados como artefatos e atração exótica, e que seriam estudados por cientistas do Museu de História Natural. Após a morte do pai, ele quis realizar um enterro conforme as tradições de sua cultura, descobrindo anos depois que fizera uma cerimônia sagrada inuíte para um saco de pedras, pois o corpo do pai havia sido mantido no museu, onde cientistas o dissecaram, fizeram estudos com o cérebro e deixaram os ossos em exposição (Algumas palavras para os responsáveis, p. 44-47). Das cobaias utilizadas durante o período da corrida espacial entre os Estados Unidos e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (Cobaias, p. 103-105). De James Powell e sua mãe, bem como de Odessa Bradford, de Perfecto Bandalan, de Eugene Williams, de Robert Bandy e de outros afro-americanos ou imigrantes esquecidos (Esquecemos, p. 120-122). Da coragem de amar de Charlie Zulu e Anita Corsini (Zulu Charlie Romeu, p. 150-155). Da trágica história de Lucy Bakewell (Um pintor na paisagem, p. 173-181). Do filhote de leão capturado no deserto da Núbia para ser transformado numa das mais conhecidas imagens do cinema – ainda que a imagem não descreva as situações pelas quais ele teve que passar (Vulgo: Leo, p. 198-202). Do simbolismo para a comunidade LGBT do White Horse, o mais antigo bar gay dos Estados Unidos (Um cavalo branco, p. 206-210). Das 77 pessoas que se tornaram mais de 8 mil, numa jornada de 500 quilômetros, na busca dos trabalhadores do campo pelo direito de se organizarem em sindicatos para que pudessem exigir dignidade humana (Peregrinar, p. 233-237). Entre tantas outras…

São histórias inspiradoras que nos levam a rever o momento presente por outra perspectiva, a repensar certos conceitos e a valorizar as potencialidades contidas nas ações humanas, sejam elas realizadas por grandes nomes ou por desconhecidos/as, pessoas que se inscrevem na e escrevem a História, tanto quanto aqueles a quem os livros oficiais mais costumam demarcar como os nomes a serem lembrados (ou, como muitas vezes acontece, decorados) para a realização de uma prova, para a escrita de uma redação ou para a encenação de uma peça teatral escolar.

Nesse contexto, O palácio da memória insere-se como uma importante e necessária ferramenta educativa, ao desmistificar acontecimentos históricos e ao contribuir, no âmbito historiográfico, a dar “inteligibilidade ao vivido e ao narrado”, como destaca Carla Rodeghero.12

O principal ponto de ligação do trabalho de Nate DiMeo com a História Oral se dá por ele trabalhar com memórias, o que Alessandro Portelli13 destaca – neste trabalho entre a História Oral e a Memória – como um “campo de possibilidades compartilhadas, reais ou imaginárias” (1996, p. 72), ajudando-nos a compreender cada fragmento (cada pessoa, cada ação) desse mosaico que compõe a sociedade humana.

“Dizem que a memória pode ser um parque de diversões estranho e tortuoso, cheio de viagens em montanha-russa e salas de espelhos deformadores”, recorda o cineasta Michael Moore.14 Nesse parque de diversões que ilustra a memória, a força narrativa presente nos casos que DiMeo menciona nos prende na leitura do livro (ou na audição dos podcasts) de modo bastante satisfatório; como se ganhássemos as entradas para uma diversão previamente garantida – diversão que não se traduz somente em entretenimento, mas que faz pensar para além do habitual, promovendo reflexão.

Destarte, esse é o tipo de obra que eu recomendaria para os historiadores de ofício, profissionais, acadêmicos e para aqueles que não são, porém apreciam uma boa narrativa literária e gostam de ler/ouvir histórias. “Tudo que dizemos tem um ‘antes’ e um ‘depois’ – uma ‘margem’ na qual outras pessoas podem escrever”, acentuou Stuart Hall.15 Essa margem é onde Nate se ancora, utilizando-a com esmero.

Gostaria de finalizar este texto destacando duas questões: primeiro, parabenizar a editora Todavia pela publicação. Olhando em perspectiva, do ponto de vista qualitativo e deixando de lado os dados referentes ao número de exemplares vendidos – que no mercado editorial muitas vezes equivale a dizer se a obra foi ou está sendo um sucesso ou um fracasso -, posso afirmar que essa foi uma aposta significativa, pois permite que diferentes indivíduos (historiadores em formação, profissionais e leigos da área) reconheçam o valor contido nas histórias e no ato de narrar, na experiência que ela possibilita, naquele que talvez seja, como descreve Caetano W. Galindo ao final do livro, “o maior de todos os mecanismos de geração de empatia, de interesse, de comunidade e compaixão. Histórias. Narrativas” (p. 252).

Em segundo lugar, e não menos importante, convém destacar o trabalho de Caetano W. Galindo, responsável por traduzir a obra direto do áudio e apresentar o trabalho aos editores da Todavia. Até o momento, ela está em sua primeira edição impressa em nível mundial – nem em seu país de origem ela foi publicada, pois segundo DiMeo, na entrevista a Fernanda Ezabella mencionada no início do texto, os editores que lhe procuram têm interesse em um livro temático, enquanto ele prefere o formato curto de suas histórias, como faz em seu podcast.

Nate DiMeo, esse colecionador de memórias,16 vai encontrando novos fatos e personagens históricos para continuar compondo seu palácio da memória, compartilhando conosco os feitos de pessoas extraordinárias em tempos conturbados. Até o momento, o último podcast, o do episódio 144, foi publicado no dia 21 de junho de 2019. Se considerarmos que Nate continua realizando seu trabalho e que a edição da obra impressa reúne 50 de suas histórias, ainda há um bom número de casos a serem trabalhados e, quem sabe, publicados em edições futuras. Que as portas do palácio se mantenham abertas para nós!

1 EZABELLA, Fernanda. Ex-repórter de rádio, Nate Dimeo cria podcast que vai virar livro no Brasil. Folha, Los Angeles, 30 de julho de 2017. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/serafina/2017/08/1904465-ex-reporter-de-radio-nate-dimeo-cria-podcast-que-vai-virar-livro-no-brasil.shtml. Acesso em: abril 2018.

2 BENJAMIN, WalterMagia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 2012. (Obras Escolhidas, v. 1)

3 CALVINO, ItaloSeis propostas para o próximo milênio: lições americanas. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

4 BALANDIER, GeorgesO dédalo: para finalizar o século XX. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.

5Que pode ser conferido em: http://thememorypalace.us/.

6 CALVINO, ItaloSeis propostas para o próximo milênio: lições americanas. op. cit. p. 73.

7 YUKA, Marcelo. Sua relação especial com o corpo. TEDxSudeste, 30 out. 2010. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=WLlN_Xf4CFk. Acesso em: abril 2018.

8É importante situar que o contexto histórico em que Benjamin escreve sobre experiência é o do perío do entre guerras (Primeira e Segunda Guerra Mundial), quando os soldados voltavam dos campos de batalhas sem conseguir narrar sobre o que acontecera, afetando-os de modo permanente.

9 BENJAMIN, WalterMagia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura, op. cit., p. 213.

10 ALBERTI, Verena. O lugar da história oral: o fascínio do vivido e as possibilidades de pesquisa. In: ALBERTI, Verena. Ouvir contar: textos em história oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004. p. 13-43. p. 10.

11 DELGADO, Lucília de Almeida Neves. Memória e história: multiplicidade e singularidade na construção do documento oral. Cadernos CERU, série 2, n. 12, p. 23-30, 2001. p. 24. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/ceru/article/view/75083/78649. Acesso em: março 2018.

12 RODEGHERO, Carla Simone. História oral e história recente do Brasil: desafios para a pesquisa e para o ensino. In: RODEGHERO, Carla Simone; GRINBERG, Lúcia; FROTSCHER, Méri (Orgs.). História oral e práticas educacionais. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2016. p. 61-84. p. 80.

13 PORTELLI, Alessandro. A filosofia e os fatos. Narração, interpretação e significado nas memórias e nas fontes orais. Tempo, Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, p. 59-72, 1996.

14 MOORE, MichaelAdoro problemas: histórias da minha vida. São Paulo: Lua de Papel, 2011.

15 HALL, StuartA identidade cultural na pós-modernidade. 10. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005. p. 41.

16Como a revista Piauí o retratou na edição 129, de junho de 2017, na seção Vozes da América.

Referências

ALBERTI, Verena. O lugar da história oral: o fascínio do vivido e as possibilidades de pesquisa. In: ALBERTI, Verena. Ouvir contar: textos em história oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004. p. 13-43. [ Links ]

BALANDIER, Georges. O dédalo: para finalizar o século XX. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. [ Links ]

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 2012. (Obras Escolhidas, v. 1) [ Links ]

CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. [ Links ]

DELGADO, Lucília de Almeida Neves. Memória e história: multiplicidade e singularidade na construção do documento oral. Cadernos CERU, série 2, n. 12, p. 23-30, 2001. p. 24. Disponível em: Disponível em: https://www.revistas.usp.br/ceru/article/view/75083/78649 . Acesso em: março 2018. [ Links ]

DIMEO, Nate. O palácio da memória. Tradução de Caetano W. Galindo. 1. edição. São Paulo: Todavia, 2017. 256 p. [ Links ]

EZABELLA, Fernanda. Ex-repórter de rádio, Nate Dimeo cria podcast que vai virar livro no Brasil. Folha, Los Angeles, 30 de julho de 2017. Disponível em: Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/serafina/2017/08/1904465-exreporter-de-radio-nate-dimeo-cria-podcastque-vai-virar-livro-no-brasil.shtml . Acesso em: abril 2018. [ Links ]

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MOORE, Michael. Adoro problemas: histórias da minha vida. São Paulo: Lua de Papel, 2011. [ Links ]

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RODEGHERO, Carla Simone. História oral e história recente do Brasil: desafios para a pesquisa e para o ensino. In: RODEGHERO, Carla Simone; GRINBERG, Lúcia; FROTSCHER, Méri (Orgs.). História oral e práticas educacionais. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2016. p. 61-84. p. 80. [ Links ]

YUKA, Marcelo. Sua relação especial com o corpo. TEDxSudeste, 30 out. 2010. Disponível em: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=WLlN_Xf4CFk . Acesso em: abril 2018. [ Links ]

José Douglas Alves dos Santos – Doutorando da Universidade Federal de Santa Catarina/Centro de Ciências da Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação, Florianópolis/SC – Brasil. E-mail: [email protected]. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7263-4657.

Sonhos da periferia: inteligência argentina e mecenato privado – MICELI (Topoi)

MICELI, Sergio. Sonhos da periferia: inteligência argentina e mecenato privado. 1. ed.. São Paulo: Todavia, 2018. 184p.p. Resenha de: TEDESCO, Alexandra. Do retrocesso ao sonho. Topoi v.20 n.40 Rio de Janeiro Jan./Apr. 2019.

Obedecendo às escolhas teóricas da obra, não se pode acusar o leitor de contrariar o autor ao vincular a publicação do livro Sonhos da periferia (2018) a um projeto mais amplo, que perpassa a trajetória intelectual do sociólogo Sergio Miceli e que, como argumentaremos, parece, em seus termos, se constituir como mais um lance de um robusto projeto existencial, capaz de dotar de sentido heurístico as escolhas de recorte e as operações de enquadramento que organizam o livro. O ponto de vista que aqui se assume está construído a partir de um repertório conceitual afinado com o do autor, o que permite que o argumento do livro, bem como a investida que a publicação representa num campo específico – a saber, aquele da sociologia dos intelectuais e da história intelectual que tanto impulso ganhou nos estudos latino-americanos das últimas décadas a partir da circulação dos aportes de Pierre Bourdieu -, sejam cotejadas de modo simultâneo. Busca-se, com isso, apreciar o livro a partir de um procedimento análogo ao que o autor direciona a seus objetos, objetivando, desse modo, que essa resenha crítica contribua para destacar o caráter frutífero das considerações de ordem teórica e metodológica que perpassam a obra publicada pelo sociólogo e professor titular de sociologia na Universidade de São Paulo, Sergio Miceli.

O livro está dividido em três partes. Além da introdução constam um capítulo sobre as vanguardas argentinas e brasileiras sob prisma comparativo, um artigo sobre a revista Sur e, finalmente, um capítulo dedicado às trajetórias de Alfonsina Storini e Horacio Quiroga. Esta resenha acompanhará os argumentos na ordem de sua exposição, no intuito de dar prioridade às operações de enquadramento e às escolhas de recorte que parecem costurar o ordenamento dos temas, fornecendo assim os subsídios para um balanço final.

Na introdução, Miceli explicita que a escolha do recorte, a década de 1920, se justifica pelo fato de que nesse contexto coincide, em Brasil e Argentina, a emergência de vanguardas literárias imbricadas em regimes oligárquicos de fachada democrática: no caso brasileiro, a aliança que ficou conhecida como república do café com leite, sob predomínio paulista e, no caso argentino, os áureos tempos de Marcelo de Alvear. Especialmente no caso argentino, observa Miceli, os anos 1930 assistem a um processo de crise e de mudança na morfologia da inteligência, contexto que reforça o predomínio de um mercado intelectual fundamentado em relações pessoais de mecenato e legitimação endógena. Em oposição, pois, ao caso brasileiro, no qual análogo estado crítico levou a um regime de cooptação dos intelectuais (aspecto já proficuamente abordado por Miceli, diga-se de passagem, no compêndio publicado em 2001, Intelectuais à brasileira). Essa distinção entre os dois países – a predominância do mecenato privado na Argentina e o regime de engajamento nos cargos públicos no Brasil – perpassa todo o argumento do livro, e é enriquecida, no argumento de Miceli, a partir de outros traços diferenciais, a saber, o estatuto mais internacional (e internacionalizável) do idioma espanhol em relação ao português e, tangencialmente, indicativos como o diferente grau de abertura aos protagonismos femininos: a empreitada de Victoria Ocampo, por exemplo, não tem paralelo brasileiro, nem mesmo tomando em conta a contingente trajetória de Patrícia Galvão. A Sur, aliás, revista de Ocampo, já se erige, nesse momento do texto, como plataforma privilegiada de observação das tensões que Miceli se propõe a perscrutar, não pela sua muito celebrada sofisticação estética mas, ao contrário, pelo que a revista – principalmente a partir da observação da morfologia e da sociabilidade de seus membros fixos – revela da formação daquele campo intelectual. Desse modo, concentrando-se na passagem dos anos 1920 aos anos 1930, Miceli pretende capturar o momento de germinação de um interlúdio que compreende, em seus termos, o estouro da vanguarda martinfierrista e a decantação da reforma literária protagonizada por Sur. A bibliografia prolífica em torno da revista, sustenta Miceli, não incidiu de modo sistemático num aspecto constitutivo da revista, a saber, a materialidade das eleições dos índices, do projeto gráfico, do tamanho das seções, das propagandas de vultosos bens de consumo, da existência de memoriais, enfim, de toda uma sorte de pontos de observação que podem ser acionados na composição de uma análise que leva em conta aspectos como perfil de renda e de gosto dos leitores, pontos fundamentais para sustentar a aposta de Miceli de que toda disposição intelectual retém as marcas das condições nas quais se formou. A continuidade projetiva do livro é o arremedo da introdução, e dá o tom da argumentação subsequente. Em seus termos, “as vanguardas em retrocesso se transmutaram em quadros intelectuais cosmopolitas” (p. 17).

O primeiro capítulo, “A vanguarda argentina na década de 1920”, apresenta-se como resultado de um esforço que se pretende um compêndio de traços estruturais do campo literário argentino no período em questão, a partir da situação periférica que a Argentina ocupava na Republica Mundial das Letras. Esse é, aliás, o primeiro dos objetos aos quais Miceli se dedica em sua tarefa comparativa, na medida em que a relação de Brasil e Argentina com as ex- -metrópoles se apresenta distinta não apenas em grau mas, sobretudo, em efeito no campo – a escolha do título do livro já está, a essa altura, plenamente consonante com as escolhas teóricas do autor. O fato de que, na Argentina, a ausência de iniciativa pública em matéria de cultura tenha sido resiliente chama atenção como dado constitutivo da predominância do mecenato privado, que amplia sua influência conforme a literatura argentina vai reforçando seu intercâmbio internacional. Tal situação é confrontada com o contraexemplo brasileiro, no qual, destaca Miceli, além de não ser possível falar em uma relação sólida com os modernistas portugueses, a estabilidade do funcionalismo público fornecera, aos brasileiros, um estatuto precocemente profissional em relação ao país vizinho.

O caso do Brasil, funcionando enquanto ponto comparativo, ajuda a perceber, na sequência do argumento, que o funcionamento do nascente campo intelectual argentino esteve permeado por fissuras e tensões muito específicas. A questão da imigração, por exemplo, e sua incidência nas discussões sobre o idioma nacional, a partir das quais as posições intelectuais pareciam responder ao chamado de “preservar o que enxergavam como o tesouro do espanhol castiço passou a fazer as vezes de custódia das prerrogativas sociais cuja continuidade parecia em risco” (p. 28), bem como as clássicas fissuras de classe, como aquela explicitada pela sociabilidade de Boedo e Florida, compõem o argumento de Miceli. Tudo se passa como se os brasileiros se tivessem deixado contaminar menos pela vida pública do que os argentinos pelas relações que os cercavam, emoldurando um quadro em que “em ambos os países, o campo intelectual foi sendo modelado por forças sociais de elite cujas bases de sustentação material e simbólica estavam desigualmente sediadas na esfera estatal e no setor privado” (p. 37).

Após esse estudo comparado, o segundo capítulo, que retoma alguns pontos do livro de 2012, Vanguardas em retrocesso, intitula-se sugestivamente “A inteligência estrangeirada de Sur”. Se é ponto pacífico que poucas instituições culturais receberam tantos olhares acadêmicos como a revista dirigida por Victoria Ocampo, não é menos recorrente que as posições de revisão se enfrentem com uma espiral de filiações de prestígio e de recusas ideológicas. Miceli não deixa de situar sua posição, momento em que, inclusive, sua opção pela originalidade que a sociologia dos intelectuais pode aportar a temas canônicos da historiografia e da crítica literária se faz mais proeminente. Nesse sentido, apesar da vasta literatura, salienta Miceli, “posições tão antagônicas por vezes silenciam a respeito de feições sociais, políticas e intelectuais dos patronos das revistas, das quais preferem se esquivar” (p. 38). Apartado, pois, das acusações de que a Sur era um reflexo superestrutural da oligarquia agropecuária e, ao mesmo tempo, da tradição laudatória que a julga a partir de seu próprio cânone, a saber, o gosto bom e belo, Miceli pretende inserir-se na senda aberta por autores como Tulio H. Donghi e John King, a partir das quais a revista se torna objeto de análise social, não somente estético. Nesse sentido, a sociabilidade do círculo íntimo de Ocampo, suas relações familiares, seus gostos e preferências presumidas, todos esses dados ajudam a observar que, para além das adesões refletidas dos membros e do reivindicado apoliticismo da revista, opera um senso prático e um conjunto de posições que garantem a inteligibilidade social do empreendimento.

A narrativa de Miceli é pródiga em acompanhar o amadurecimento de uma tensão que levará ao descrédito da Sur frente à opinião pública nos anos que se seguem à caída de Perón, após 1955, mas que já está posta a partir dos primeiros anos da década de 1940. O efeito que os fascismos europeus causam nas revistas irmãs do empreendimento de Ocampo, a Nouvelle Revue Français e a Revista de Occidente – de Ortega y Gasset – constrangem a Sur a rever sua posição de ostentatória neutralidade. Num espaço de meses, pontua Miceli, relações sólidas da revista, como o próprio Ortega e Drieu de la Rochelle, passam a criticar a postura “ambígua” de Sur frente ao acirramento das tensões no velho continente, momento em que a “neutralidade” deixava de parecer uma opção viável. Politicamente, sugere Miceli, a revista fez o jogo das forças conservadoras enquanto, culturalmente, deu impulso inédito e vigoroso ao mercado editorial. Essa posição de hegemonia das consagrações culturais relacionava-se, para o autor, com uma opção constante na trajetória da revista, a saber, a transmutação das lutas sociais em dilemas civilizatórios, aos quais os intelectuais vinculados à Sur respondiam, a rigor, num tom abertamente espiritualista e impressionista, como se acompanha, sobretudo, a partir dos textos de Eduardo Mallea.

Sociabilidade fundamentada na antiguidade de seu prestígio, aponta Miceli, a Sur é também o espaço privilegiado de consolidação de um cânone, Jorge Luis Borges, a quem Miceli dedica as páginas mais ácidas de sua análise. O autor destaca que, em consonância com o caráter sempre arredio de Borges às críticas dos “especialistas” e à sua postura de juiz sentencioso, a crítica sempre foi imensamente generosa com o escritor. Não por acaso, nesse sentido, “a brigada de comparsas combatia ‘o exercício ilegal da crítica’, a saber, as incursões de acento sociológico, desacatos à ortodoxia dos magistrados do belo” (p. 77). A posição de Borges nas relações de seu tempo, bem como os influxos da crise internacional, são observados, no argumento de Miceli, a partir da própria prosa borgeana, atentando para uma cumplicidade de habitus que se expressa nas narrativas. Alguns efeitos de erudição, como pequenas alusões em francês, por exemplo, contribuem para evidenciar o argumento de Miceli a respeito da relação que Borges mantinha com seus discípulos, entre eles Mallea: “enquanto os artilheiros da brigada destroçam as investidas materialistas do sociologismo, o sumo sacerdote ensaia o esboço da ontologia que lastreia os artifícios literários” (p. 85). A ontologia de Sur, a metafísica de Borges: eficientes modos de negar a temporalização histórica e as análises de cunho social que sua aceitação certamente permite. Em epílogo contrastivo, lemos que esse mesmo Borges, patrono do autodidatismo cultivado dos dândis portenhos, cozinhado em caldo europeu, não encontra análogo brasileiro, o que justifica sua escolha exemplar.

O terceiro e último capítulo pode parecer, num olhar apressado, destoar do tema dos dois anteriores. “Sexo, voz e abismo”, no entanto, não apenas corrobora as teses de Miceli quanto ao hermetismo do círculo de Sur como, positivamente, ajuda a compreender essas redes da década de 1930 como um espectro constitutivo de trajetórias possíveis. Alfonsina Storini e Horácio Quiroga aparecem, em tom dramático, “prensados entre o rechaço movido pelos líderes da vanguarda martinfierrista e a adulação concedida pelos periódicos de ampla tiragem” (p. 97). As duas trajetórias, marcadas por tragédias pessoais e pela resistência profissional que encontraram de parte do grupo das vanguardas e, depois, da própria Sur, são analisadas no marco de uma relação tensional entre a condição biográfica marginal dos dois autores e sua ampla inserção nos projetos mais avançados da indústria cultural de então. Miceli nos apresenta duas trajetórias polivalentes, distantes do tom blasé com o qual seus contemporâneos de Sur criticavam a cultura de massa. Obra e vida de Storini e Quiroga aparecem, ao contrário, perpassadas pela indústria cultural. Assim, o melancólico Quiroga e a provocativa Alfonsina, reabilitados pelas críticas dos anos 1980 e 1990, recuperam o lugar da marginalidade morfológica que é, em termos analíticos, o contraponto necessário das posições de Sur. Para capturar essa tensão, Miceli recorre às fotografias públicas de Quiroga e Alfonsina, recurso que o permite capturar os trejeitos, a sociabilidade e a inserção de suas figuras, tão menos documentadas que as do círculo de Victoria Ocampo, cujas fotografias com grandes nomes do jet set intelectual internacional são, desde muito, célebres.

Chama a atenção, no entremeio da prosa sofisticada de Miceli, o recurso à uma estratégia analítica que, mais que uma sub-reptícia tomada de posição teórica, apresenta-se de modo sumamente honesto ao leitor: a revisão de objetos muito revisitados não é gratuita, mas obedece a um propósito que, se não pode, evidentemente, aparecer aqui como “estratégia oculta” ou mesmo como teodiceia subversiva, certamente pode ser apresentada como uma alternativa à história das ideias que, costumeiramente, é laudatória em relação à figuras simbólicas tão potentes como a Sur. A aposta na morfologia do campo, nas relações de parentesco e antiguidade do prestígio, entre outras, ajuda a pensar as distintas relações que esses intelectuais mantiveram com a indústria cultural e com as demandas de seu tempo enquanto variações de uma disputa mais robusta que envolvia não apenas um ethos, mas uma visão de mundo e, assim, uma aposta normativa sobre ele. Percebe-se, por exemplo, que a prosa sempre robusta de Miceli incide criticamente em Borges e se suaviza quando se trata de pensar o caso dos outsiders Alfonsina e Quiroga. Não compreendendo essa oscilação como uma escolha somente afetiva do autor, mas como um componente de seu argumento, tudo se passa como se a análise de cariz sociológico fosse capaz de restituir, pelo descortinamento que opera, o lugar das figuras menores, obscurecidas por uma tradição que costumava creditar o sucesso ao gênio e vice-versa, sem atentar-se para as inflexões sociais das posições ou, num extremo oposto, associando de modo irrefletido uma tomada de posição teórica a uma adesão ideológica manifesta. A sociologia aparece aqui, como antes aparecia em Bourdieu, como esporte de combate: trata-se de propor uma narrativa menos complacente com a dos sonhos estéticos da vanguarda.

Entrar em contato com o livro de Miceli é, por todo o exposto até aqui, abrir-se para um repertório criativo e inovador de análises que procuram, a partir de luz nova, observar fenômenos consagrados de história intelectual. Para além do rigor documental e da prosa erudita do sociólogo, nesse sentido, a aposta comparativa e a análise de trajetórias contribuem para alocar o livro, sem ressalvas nesse momento, num movimento de renovação que é, sintomaticamente, protagonizado por historiadores e sociólogos argentinos como Alejandro Blanco e Carlos Altamirano. Em certo momento da análise de Sur e dos vínculos societários por ela organizados, Miceli aponta que “para desconcerto dos estetas, o anúncio de pianos de cauda é tão revelador quanto a peroração patrioteira de Mallea ou os artifícios literários de Borges” (p. 14). Ilustrando a tese a partir de seu próprio texto, Miceli nos fornece uma chave de leitura interessante para a dedicatória que inaugura o livro, dirigida aos hermanos Alejandro Blanco, Adrián Gorelik, Carlos Altamirano e Jorge Myers: interlocutores de seu projeto intelectual e colaboradores da aproximação comparativa em termos latino-americanos. Desse modo, a opção pela linguagem marcadamente sociológica, o tom combativo de algumas considerações e, principalmente, essa retumbante vinculação que abre o livro, nos parecem tão reveladores quanto a análise minuciosa da documentação e o rigor analítico do autor, dimensões polifônicas que tornam o livro indispensável para qualquer um que esteja interessado, e aberto, aos temas mais candentes da história intelectual latino-americana e, ao mesmo tempo, à sua interface de colaboração disciplinar.

Referências

MICELI, Sergio . Sonhos da periferia: inteligência argentina e mecenato privado. 1. ed. São Paulo: Todavia, 2018, 184p. [ Links ]

Alexandra Tedesco – Doutora pela Universidade Estadual de Campinas/Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Departamento de História, Programa de Pós-graduação em História, Campinas/SP – Brasil. E-mail: [email protected].