O ódio como política: A reinvenção das direitas no Brasil | Esther Solano Gallego

Ester Solano Imagem Nocaute
Ester Solano | Imagem: Nocaute

No dia 8 de outubro de 2018, entre o primeiro e o segundo turnos da eleição presidencial brasileira, a editora Boitempo liberou gratuitamente o e-book O ódio como política: A reinvenção das direitas no Brasil, organizado pela socióloga Esther Solano Gallego, com o objetivo e “ajudar a compreender” como havíamos chegado à situação na qual o retrógrado Jair Bolsonaro estava à frente nas pesquisas e com grandes chances de vencer a eleição. Às vésperas de um novo certame, em junho de 2022, as preocupações com as ameaças (algumas delas já concretizadas) à democracia brasileira, as teses, as propostas de resistência ao “fascismo” comunicadas naquele livro permanecem na “ordem do dia”. Por essa razão, revisitaos a obra tantas vezes resenhada para reavivar as suas assertivas.

O odio como politicaOs 22 autores que compõem o projeto são, em maioria, professores universitários brasileiros das áreas das ciências humanas e sociais, ativistas e cartunistas e um religioso identificados com o campo progressista. Todos contribuem para o cumprimento da meta do livro, descrita por Gallego: “aprofundar-se nas complexas dinâmicas das direitas desde diversos pontos de vista e análises”. Se quisermos de fato lutar contra as direitas, continua a organizadora, “com frequência antidemocráticas e retrógradas, devemos primeiro observar, escutar, enxergar a realidade e entendê-la para depois combatê-la. Não sabemos tudo. Aprendamos juntos.” (p.8). [i]

Para iniciar o aprendizado, compreendamos que as “direitas” às quais o título da obra se refere são plurais na terminologia. Os autores a tratam como “conservadorismo radical”, “direita”, “direita radical”, “extrema direita”, “grupos de direita”, “nova direita” e “novas direitas”. Abordadas, em sua maioria, como lideranças políticas, partidos políticos, movimentos e instituições da sociedade civil, as direitas nascem nos anos 80, a partir da reorganização “das classes dominantes”, representadas em várias instituições de pesquisa e financiamento (think thanks), como também das ameaças sofridas por essas classes médias em suas “oportunidades”, da conjunção de identidades e da conjuntura propiciada pelas redes sociais e internet, já nos anos 2000/2010.

Alguns autores destacam o caráter militante desses grupos (ao contrário do caráter financiado desses grupos), o transbordamento dessa militância para além dos partidos, alcançando editoras, movimentos e grande mídia, marcando a sensibilidades de jovens da periferia que passaram literalmente da esperança dos anos de crescimento econômico à indignação com a indiferença do Estado em termos de segurança e oportunidades, por exemplo. Outros ainda ressaltam as consequências que essas direitas de orientação militarizadas trouxeram à vida dos negros, dos pobres, das mulheres e das pessoas GLBTI. A “democracia, os direitos humanos, ao Estado laico e à diversidade humana”, segundo um desses autores, foram as principais vítimas dos fundamentalismos e extremismos advindos das novas direitas.

O diagnóstico está presente na maioria dos textos, enquanto as declarações propositivas são minoritárias. Como sair dessa situação? Em geral, estudar, denunciar, protestar são as medidas. Apenas um se engaja em solução radical: transformar “as condições socioeconômicas que lhe fornecem a base material” (p.35).

No que diz respeito ao espírito deste dossiê de Crítica Historiográfica, vale destacar as ideologias atribuídas às novas direitas brasileiras. Se hoje, autores divergem nos critérios de classificá-las e nos termos empregados para as designações, imaginem há quatro anos. Os autores agrupam os mesmos étimos de modo diferente, embora na maioria das combinações o libertarianismo esteja presente: “libertarianismo” (ultraliberalismo), “fundamentalismo religioso” (antiaborto, homofobia) e “anticomunismo”; “libertarianismo”, “monetarismo” (Chicago) e “neoliberalismo” (Áustria); “libertarianismo”, “conservadorismo” e “reacionarismo”; “libertarianismo”, “fundamentalismo religioso” e “anticomunismo”; “fundamentalismo religioso cristão” e “extremismo religioso cristão” (que ganham a forma de “protofascismo”).

Autores também significam as palavras de modo diferente e até divergente. Eles afirmam que os “conservadores” são os mais aguerridos combatentes da (falsa) “ideologia de gênero”; que o “conservadorismo radical” (mapeado nas redes sociais) divide brasileiros em “pessoas de bem” e “vagabundos”, ou seja, denunciam esse segundo tipo como humanos de comportamento desviante, resultantes de uma educação equivocada e do culto aos direitos humanos, que corrompem a inocência das crianças, cujo líder é Lula e os instrumentos são movimentos sociais, sindicatos e Supremo Tribunal Federal. Eles afirmam, por fim, que a ideologia das novas direitas pode ser sintetizada na ameaça do “inimigo interno”, sobrevivente do Discurso de Segurança Nacional dos tempos da ditadura, na reação ao estado de bem-estar social (neoconservadorismo) e na implantação de políticas de “austeridade” (neoliberalismo).

No que diz respeito especificamente ao lugar do direito, três textos se destacam. Dois deles tratam de direitos de grupos determinados e um da ação do poder judiciário. Em “Precisamos falar da ‘direita jurídica’”, Rubens Casara denuncia o “populismo jurídico” e o “ativismo jurídico” como ameaças à democracia, assim como os operadores do direito que interpretam as leis ao modo conservador e neoliberal, ou seja, que concebem o poder judiciário como “um mero homologador das expectativas do mercado” ou “instrumento de controle tanto dos pobres […] quanto das pessoas identificadas como inimigos políticos do projeto neoliberal” (p.92)

Precisamos falar da direita juridica Imagem UOLCULT

Precisamos falar da direita jurídica | Imagem: UOL/CULT

Dos dois que tratam de grupos, o primeiro descreve ações dos fundamentalistas aos “direitos LGBTI” na Constituinte de 1988 (orientação sexual) e no parlamento, de 2006 a 2015 (anti-homofobia, união estável de pessoas do mesmo sexo e identidade de gênero). “Moralidades e direitos LGBTI nos anos 2010”, de Lucas Bulgarelli, põe formalmente os direitos LGBTI e os direitos humanos em posições separadas, ambos combatidos pelos conservadores. O segundo texto – “Feminismo: um caminho longo à frente”, de Stephanie Ribeiro –, denuncia a negação do “direito ao aborto seguro e legal” (de modo direto pela direita e indireto pela esquerda) e a vertente feminista de orientação “liberal”. Segundo a autora, trata-se de “um feminismo sem comprometimento com outras mulheres […] ou que não precisa ter um posicionamento político […] pautado em ascensão individual e não em rompimento com estruturas opressoras” (p.133)

Apesar dos esclarecimentos, das denúncias e alertas, a coletânea não está isenta de afirmações controversas e/ou usos equivocados de conceitos. Duas delas chamam a atenção pelo primarismo: a inclusão do conservadorismo (uma macro ideologia) em pé de igualdade com o neoliberalismo, por exemplo, a afirmação de que a defesa do estado de direito é uma “reivindicação conservadora” que serve ao capital. Outras não menos inquietantes são: a admissão da existência de “neoliberais de esquerda”; a declaração de que o Ministério Público foi partícipe de todos os golpes de Estado; que o neoliberalismo” e a “nova direita” são ideais antagônicos; e que a esquerda liberal e neoliberalismo progressista são ideais sinônimos.

Usos equívocos que merecem a atenção do leitor são a tomada do fundamentalismo como fundamentalismo religioso, a definição de extremismo como uso de violência, sem a respectiva definição de violência; e o emprego de “feminismo liberal” com o sentido de feminismo neoliberal.

O grande termo ausente, porém, é o “ódio”, que está no título do livro e na apresentação da editora. Ele aparece (antifeminista e pró segurança pública) tangencialmente como o par oposto da esperança (orçamento participativo e bolsa família) entre os jovens pobres de Porto Alegre, o ódio às minorias, disparado pelas “classes dominantes” (FHCC), o discurso de ódio experimentado pelos pobres, diante da falta de “dignidade” resultante da crise econômica (F), o ódio ao pensamento livre disparado pelos reacionários contra os professores pelo ESP (FP), demonstrando que não é sentimento de esquerda ou de direita (contraditando, de certo modo, o que sugere a designação da obra).

As ausências e as situações controversas, ao contrário de borrarem a obra, somente reforçam a importância da sua leitura. Para profissionais do direito, principalmente, o livro pode auxiliar na mudança de sensibilidade dos apartidários e imparciais “operadores” para as causas das mulheres e da população LGBTQIA+. Para os professores de História, o livro serve duplamente: como testemunhos dos anos quentes do golpe e da campanha eleitoral de 2018 e como roteiro de para a ação, seja no planejamento da formação continuada, seja na orientação da ação no interior da escola. Aliás, os objetivos anunciados pela organizadora (e cumpridos com sobras) são em si mesmos pragmáticos e beneméritos: “observar, escutar, enxergar a realidade e entendê-la para depois combatê-la.” (p.9).

Sumário de O ódio como política: A reinvenção das direitas no Brasil

Prólogo | Gregório Duvivier

Apresentação | Esther Solano Gallego

  • A reemergência da direita brasileira | Luis Felipe Miguel
  • Neoconservadorismo e liberalismo | Silvio Luiz de Almeida
  • A nova direita e a normalização do nazismo e do fascismo | Carapanã
  • As classes dominantes e a nova direita no Brasil contemporâneo | Flávio Henrique Calheiros Casimiro
  • O boom das novas direitas brasileiras: financiamento ou militância? | Camila Rocha
  • Da esperança ao ódio: a juventude periférica bolsonarista | Rosana Pinheiro-Machado e Lucia Mury Scalco
  • Periferia e conservadorismo | Ferréz
  • A produção do inimigo e a insistência do Brasil violento e de exceção | Edson Teles
  • Precisamos falar da “direita jurídica” | Rubens Casara
  • O discurso econômico da austeridade e os interesses velados | Pedro Rossi e Esther Dweck
  • Antipetismo e conservadorismo no Facebook | Márcio Moretto Ribeiro
  • Fundamentalismo e extremismo não esgotam experiência do sagrado nas religiões, Henrique Vieira
  • Moralidades, direitas e direitos LGBTI nos anos 2010 | Lucas Bulgarelli
  • Feminismo: um caminho longo à frente | Stephanie Ribeiro
  • O discurso reacionário de defesa de uma “escola sem partido” | Fernando Penna
  • Sobre os autores
  • Charges

Resenhista

Lucas MirandaLucas Miranda Pinheiro é Doutor em História (UNESP/Franca), professor do Departamento de Relações Internacionais (DRI) e do Mestrado Profissional em Ensino de História (ProfHistória) da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Entre outros trabalhos, publicou (em coautoria) Perspectivas e Debates em Segurança, Defesa e Relações Internacionais e Relações Internacionais: Olhares Cruzados. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/6576943412041943; Orcid: https://orcid.org/0000-0002-4821-0168; E-mail: [email protected].

 


Para citar esta resenha

GALLEGO, Esther Solano. O ódio como política: A reinvenção das direitas no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2018. 133p. Resenha de: PINHEIRO, Lucas Miranda. Bolsonarismo à direita? Crítica Historiográfica. Natal,.2, n. esp. (Novas Direitas em discussão), ago. 2022. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/um-elemento-ausente-resenha-de-o-odio-como-politica-a-reinvencao-das-direitas-no-brasil-organizado-por-esther-solano-gallego/>.

Science and society in Latin America: peripheral modernities | Pablo Kreimer

La preocupación central de Science and society in Latin America: peripheral modernities , el último libro de Pablo Kreimer (2019) , es el estudio de las particularidades de los procesos de producción y uso del conocimiento científico y tecnológico en América Latina como región periférica. El texto es una síntesis, una rendición de cuentas, de 25 años de investigación en el campo de la sociología política e histórica de la ciencia.

Primero, el autor comparte confesiones y anécdotas personales como acertada excusa para pasar revista, en América Latina, a algunos de los tópicos más importantes de los estudios sociales de la ciencia y la tecnología – o campo Ciencia, Tecnología y Sociedad (CTS). A partir de su encuentro con Jean-Jacques Salomon, su director de tesis doctoral y un cómplice en sus preocupaciones políticas, estudia el rol de las políticas de ciencia y tecnología (PCT) en el desarrollo de la región. Lo también anecdótico es que para muchos de los recién llegados al campo CTS en América Latina las preocupaciones políticas y el estudio de las PCT han sido un punto de paso obligatorio o una suerte de rito de iniciación. Luego, bajo la inspiración de Latour y Woolgar (1979) , inicia un segundo gran momento de trabajo. El autor pasó por varios laboratorios de biología molecular de Francia, Londres y Argentina para observar cómo los científicos producen conocimiento. Es decir, para trabajar “a lo Latour”. Años después llega a un tercer encuentro crucial. Kreimer, bajo la inspiración de Hebe Vessuri, pionera del campo CTS en la región, inicia sus investigaciones sobre ciencia periférica. Leia Mais

Sonhos da periferia: inteligência argentina e mecenato privado – MICELI (Topoi)

MICELI, Sergio. Sonhos da periferia: inteligência argentina e mecenato privado. 1. ed.. São Paulo: Todavia, 2018. 184p.p. Resenha de: TEDESCO, Alexandra. Do retrocesso ao sonho. Topoi v.20 n.40 Rio de Janeiro Jan./Apr. 2019.

Obedecendo às escolhas teóricas da obra, não se pode acusar o leitor de contrariar o autor ao vincular a publicação do livro Sonhos da periferia (2018) a um projeto mais amplo, que perpassa a trajetória intelectual do sociólogo Sergio Miceli e que, como argumentaremos, parece, em seus termos, se constituir como mais um lance de um robusto projeto existencial, capaz de dotar de sentido heurístico as escolhas de recorte e as operações de enquadramento que organizam o livro. O ponto de vista que aqui se assume está construído a partir de um repertório conceitual afinado com o do autor, o que permite que o argumento do livro, bem como a investida que a publicação representa num campo específico – a saber, aquele da sociologia dos intelectuais e da história intelectual que tanto impulso ganhou nos estudos latino-americanos das últimas décadas a partir da circulação dos aportes de Pierre Bourdieu -, sejam cotejadas de modo simultâneo. Busca-se, com isso, apreciar o livro a partir de um procedimento análogo ao que o autor direciona a seus objetos, objetivando, desse modo, que essa resenha crítica contribua para destacar o caráter frutífero das considerações de ordem teórica e metodológica que perpassam a obra publicada pelo sociólogo e professor titular de sociologia na Universidade de São Paulo, Sergio Miceli.

O livro está dividido em três partes. Além da introdução constam um capítulo sobre as vanguardas argentinas e brasileiras sob prisma comparativo, um artigo sobre a revista Sur e, finalmente, um capítulo dedicado às trajetórias de Alfonsina Storini e Horacio Quiroga. Esta resenha acompanhará os argumentos na ordem de sua exposição, no intuito de dar prioridade às operações de enquadramento e às escolhas de recorte que parecem costurar o ordenamento dos temas, fornecendo assim os subsídios para um balanço final.

Na introdução, Miceli explicita que a escolha do recorte, a década de 1920, se justifica pelo fato de que nesse contexto coincide, em Brasil e Argentina, a emergência de vanguardas literárias imbricadas em regimes oligárquicos de fachada democrática: no caso brasileiro, a aliança que ficou conhecida como república do café com leite, sob predomínio paulista e, no caso argentino, os áureos tempos de Marcelo de Alvear. Especialmente no caso argentino, observa Miceli, os anos 1930 assistem a um processo de crise e de mudança na morfologia da inteligência, contexto que reforça o predomínio de um mercado intelectual fundamentado em relações pessoais de mecenato e legitimação endógena. Em oposição, pois, ao caso brasileiro, no qual análogo estado crítico levou a um regime de cooptação dos intelectuais (aspecto já proficuamente abordado por Miceli, diga-se de passagem, no compêndio publicado em 2001, Intelectuais à brasileira). Essa distinção entre os dois países – a predominância do mecenato privado na Argentina e o regime de engajamento nos cargos públicos no Brasil – perpassa todo o argumento do livro, e é enriquecida, no argumento de Miceli, a partir de outros traços diferenciais, a saber, o estatuto mais internacional (e internacionalizável) do idioma espanhol em relação ao português e, tangencialmente, indicativos como o diferente grau de abertura aos protagonismos femininos: a empreitada de Victoria Ocampo, por exemplo, não tem paralelo brasileiro, nem mesmo tomando em conta a contingente trajetória de Patrícia Galvão. A Sur, aliás, revista de Ocampo, já se erige, nesse momento do texto, como plataforma privilegiada de observação das tensões que Miceli se propõe a perscrutar, não pela sua muito celebrada sofisticação estética mas, ao contrário, pelo que a revista – principalmente a partir da observação da morfologia e da sociabilidade de seus membros fixos – revela da formação daquele campo intelectual. Desse modo, concentrando-se na passagem dos anos 1920 aos anos 1930, Miceli pretende capturar o momento de germinação de um interlúdio que compreende, em seus termos, o estouro da vanguarda martinfierrista e a decantação da reforma literária protagonizada por Sur. A bibliografia prolífica em torno da revista, sustenta Miceli, não incidiu de modo sistemático num aspecto constitutivo da revista, a saber, a materialidade das eleições dos índices, do projeto gráfico, do tamanho das seções, das propagandas de vultosos bens de consumo, da existência de memoriais, enfim, de toda uma sorte de pontos de observação que podem ser acionados na composição de uma análise que leva em conta aspectos como perfil de renda e de gosto dos leitores, pontos fundamentais para sustentar a aposta de Miceli de que toda disposição intelectual retém as marcas das condições nas quais se formou. A continuidade projetiva do livro é o arremedo da introdução, e dá o tom da argumentação subsequente. Em seus termos, “as vanguardas em retrocesso se transmutaram em quadros intelectuais cosmopolitas” (p. 17).

O primeiro capítulo, “A vanguarda argentina na década de 1920”, apresenta-se como resultado de um esforço que se pretende um compêndio de traços estruturais do campo literário argentino no período em questão, a partir da situação periférica que a Argentina ocupava na Republica Mundial das Letras. Esse é, aliás, o primeiro dos objetos aos quais Miceli se dedica em sua tarefa comparativa, na medida em que a relação de Brasil e Argentina com as ex- -metrópoles se apresenta distinta não apenas em grau mas, sobretudo, em efeito no campo – a escolha do título do livro já está, a essa altura, plenamente consonante com as escolhas teóricas do autor. O fato de que, na Argentina, a ausência de iniciativa pública em matéria de cultura tenha sido resiliente chama atenção como dado constitutivo da predominância do mecenato privado, que amplia sua influência conforme a literatura argentina vai reforçando seu intercâmbio internacional. Tal situação é confrontada com o contraexemplo brasileiro, no qual, destaca Miceli, além de não ser possível falar em uma relação sólida com os modernistas portugueses, a estabilidade do funcionalismo público fornecera, aos brasileiros, um estatuto precocemente profissional em relação ao país vizinho.

O caso do Brasil, funcionando enquanto ponto comparativo, ajuda a perceber, na sequência do argumento, que o funcionamento do nascente campo intelectual argentino esteve permeado por fissuras e tensões muito específicas. A questão da imigração, por exemplo, e sua incidência nas discussões sobre o idioma nacional, a partir das quais as posições intelectuais pareciam responder ao chamado de “preservar o que enxergavam como o tesouro do espanhol castiço passou a fazer as vezes de custódia das prerrogativas sociais cuja continuidade parecia em risco” (p. 28), bem como as clássicas fissuras de classe, como aquela explicitada pela sociabilidade de Boedo e Florida, compõem o argumento de Miceli. Tudo se passa como se os brasileiros se tivessem deixado contaminar menos pela vida pública do que os argentinos pelas relações que os cercavam, emoldurando um quadro em que “em ambos os países, o campo intelectual foi sendo modelado por forças sociais de elite cujas bases de sustentação material e simbólica estavam desigualmente sediadas na esfera estatal e no setor privado” (p. 37).

Após esse estudo comparado, o segundo capítulo, que retoma alguns pontos do livro de 2012, Vanguardas em retrocesso, intitula-se sugestivamente “A inteligência estrangeirada de Sur”. Se é ponto pacífico que poucas instituições culturais receberam tantos olhares acadêmicos como a revista dirigida por Victoria Ocampo, não é menos recorrente que as posições de revisão se enfrentem com uma espiral de filiações de prestígio e de recusas ideológicas. Miceli não deixa de situar sua posição, momento em que, inclusive, sua opção pela originalidade que a sociologia dos intelectuais pode aportar a temas canônicos da historiografia e da crítica literária se faz mais proeminente. Nesse sentido, apesar da vasta literatura, salienta Miceli, “posições tão antagônicas por vezes silenciam a respeito de feições sociais, políticas e intelectuais dos patronos das revistas, das quais preferem se esquivar” (p. 38). Apartado, pois, das acusações de que a Sur era um reflexo superestrutural da oligarquia agropecuária e, ao mesmo tempo, da tradição laudatória que a julga a partir de seu próprio cânone, a saber, o gosto bom e belo, Miceli pretende inserir-se na senda aberta por autores como Tulio H. Donghi e John King, a partir das quais a revista se torna objeto de análise social, não somente estético. Nesse sentido, a sociabilidade do círculo íntimo de Ocampo, suas relações familiares, seus gostos e preferências presumidas, todos esses dados ajudam a observar que, para além das adesões refletidas dos membros e do reivindicado apoliticismo da revista, opera um senso prático e um conjunto de posições que garantem a inteligibilidade social do empreendimento.

A narrativa de Miceli é pródiga em acompanhar o amadurecimento de uma tensão que levará ao descrédito da Sur frente à opinião pública nos anos que se seguem à caída de Perón, após 1955, mas que já está posta a partir dos primeiros anos da década de 1940. O efeito que os fascismos europeus causam nas revistas irmãs do empreendimento de Ocampo, a Nouvelle Revue Français e a Revista de Occidente – de Ortega y Gasset – constrangem a Sur a rever sua posição de ostentatória neutralidade. Num espaço de meses, pontua Miceli, relações sólidas da revista, como o próprio Ortega e Drieu de la Rochelle, passam a criticar a postura “ambígua” de Sur frente ao acirramento das tensões no velho continente, momento em que a “neutralidade” deixava de parecer uma opção viável. Politicamente, sugere Miceli, a revista fez o jogo das forças conservadoras enquanto, culturalmente, deu impulso inédito e vigoroso ao mercado editorial. Essa posição de hegemonia das consagrações culturais relacionava-se, para o autor, com uma opção constante na trajetória da revista, a saber, a transmutação das lutas sociais em dilemas civilizatórios, aos quais os intelectuais vinculados à Sur respondiam, a rigor, num tom abertamente espiritualista e impressionista, como se acompanha, sobretudo, a partir dos textos de Eduardo Mallea.

Sociabilidade fundamentada na antiguidade de seu prestígio, aponta Miceli, a Sur é também o espaço privilegiado de consolidação de um cânone, Jorge Luis Borges, a quem Miceli dedica as páginas mais ácidas de sua análise. O autor destaca que, em consonância com o caráter sempre arredio de Borges às críticas dos “especialistas” e à sua postura de juiz sentencioso, a crítica sempre foi imensamente generosa com o escritor. Não por acaso, nesse sentido, “a brigada de comparsas combatia ‘o exercício ilegal da crítica’, a saber, as incursões de acento sociológico, desacatos à ortodoxia dos magistrados do belo” (p. 77). A posição de Borges nas relações de seu tempo, bem como os influxos da crise internacional, são observados, no argumento de Miceli, a partir da própria prosa borgeana, atentando para uma cumplicidade de habitus que se expressa nas narrativas. Alguns efeitos de erudição, como pequenas alusões em francês, por exemplo, contribuem para evidenciar o argumento de Miceli a respeito da relação que Borges mantinha com seus discípulos, entre eles Mallea: “enquanto os artilheiros da brigada destroçam as investidas materialistas do sociologismo, o sumo sacerdote ensaia o esboço da ontologia que lastreia os artifícios literários” (p. 85). A ontologia de Sur, a metafísica de Borges: eficientes modos de negar a temporalização histórica e as análises de cunho social que sua aceitação certamente permite. Em epílogo contrastivo, lemos que esse mesmo Borges, patrono do autodidatismo cultivado dos dândis portenhos, cozinhado em caldo europeu, não encontra análogo brasileiro, o que justifica sua escolha exemplar.

O terceiro e último capítulo pode parecer, num olhar apressado, destoar do tema dos dois anteriores. “Sexo, voz e abismo”, no entanto, não apenas corrobora as teses de Miceli quanto ao hermetismo do círculo de Sur como, positivamente, ajuda a compreender essas redes da década de 1930 como um espectro constitutivo de trajetórias possíveis. Alfonsina Storini e Horácio Quiroga aparecem, em tom dramático, “prensados entre o rechaço movido pelos líderes da vanguarda martinfierrista e a adulação concedida pelos periódicos de ampla tiragem” (p. 97). As duas trajetórias, marcadas por tragédias pessoais e pela resistência profissional que encontraram de parte do grupo das vanguardas e, depois, da própria Sur, são analisadas no marco de uma relação tensional entre a condição biográfica marginal dos dois autores e sua ampla inserção nos projetos mais avançados da indústria cultural de então. Miceli nos apresenta duas trajetórias polivalentes, distantes do tom blasé com o qual seus contemporâneos de Sur criticavam a cultura de massa. Obra e vida de Storini e Quiroga aparecem, ao contrário, perpassadas pela indústria cultural. Assim, o melancólico Quiroga e a provocativa Alfonsina, reabilitados pelas críticas dos anos 1980 e 1990, recuperam o lugar da marginalidade morfológica que é, em termos analíticos, o contraponto necessário das posições de Sur. Para capturar essa tensão, Miceli recorre às fotografias públicas de Quiroga e Alfonsina, recurso que o permite capturar os trejeitos, a sociabilidade e a inserção de suas figuras, tão menos documentadas que as do círculo de Victoria Ocampo, cujas fotografias com grandes nomes do jet set intelectual internacional são, desde muito, célebres.

Chama a atenção, no entremeio da prosa sofisticada de Miceli, o recurso à uma estratégia analítica que, mais que uma sub-reptícia tomada de posição teórica, apresenta-se de modo sumamente honesto ao leitor: a revisão de objetos muito revisitados não é gratuita, mas obedece a um propósito que, se não pode, evidentemente, aparecer aqui como “estratégia oculta” ou mesmo como teodiceia subversiva, certamente pode ser apresentada como uma alternativa à história das ideias que, costumeiramente, é laudatória em relação à figuras simbólicas tão potentes como a Sur. A aposta na morfologia do campo, nas relações de parentesco e antiguidade do prestígio, entre outras, ajuda a pensar as distintas relações que esses intelectuais mantiveram com a indústria cultural e com as demandas de seu tempo enquanto variações de uma disputa mais robusta que envolvia não apenas um ethos, mas uma visão de mundo e, assim, uma aposta normativa sobre ele. Percebe-se, por exemplo, que a prosa sempre robusta de Miceli incide criticamente em Borges e se suaviza quando se trata de pensar o caso dos outsiders Alfonsina e Quiroga. Não compreendendo essa oscilação como uma escolha somente afetiva do autor, mas como um componente de seu argumento, tudo se passa como se a análise de cariz sociológico fosse capaz de restituir, pelo descortinamento que opera, o lugar das figuras menores, obscurecidas por uma tradição que costumava creditar o sucesso ao gênio e vice-versa, sem atentar-se para as inflexões sociais das posições ou, num extremo oposto, associando de modo irrefletido uma tomada de posição teórica a uma adesão ideológica manifesta. A sociologia aparece aqui, como antes aparecia em Bourdieu, como esporte de combate: trata-se de propor uma narrativa menos complacente com a dos sonhos estéticos da vanguarda.

Entrar em contato com o livro de Miceli é, por todo o exposto até aqui, abrir-se para um repertório criativo e inovador de análises que procuram, a partir de luz nova, observar fenômenos consagrados de história intelectual. Para além do rigor documental e da prosa erudita do sociólogo, nesse sentido, a aposta comparativa e a análise de trajetórias contribuem para alocar o livro, sem ressalvas nesse momento, num movimento de renovação que é, sintomaticamente, protagonizado por historiadores e sociólogos argentinos como Alejandro Blanco e Carlos Altamirano. Em certo momento da análise de Sur e dos vínculos societários por ela organizados, Miceli aponta que “para desconcerto dos estetas, o anúncio de pianos de cauda é tão revelador quanto a peroração patrioteira de Mallea ou os artifícios literários de Borges” (p. 14). Ilustrando a tese a partir de seu próprio texto, Miceli nos fornece uma chave de leitura interessante para a dedicatória que inaugura o livro, dirigida aos hermanos Alejandro Blanco, Adrián Gorelik, Carlos Altamirano e Jorge Myers: interlocutores de seu projeto intelectual e colaboradores da aproximação comparativa em termos latino-americanos. Desse modo, a opção pela linguagem marcadamente sociológica, o tom combativo de algumas considerações e, principalmente, essa retumbante vinculação que abre o livro, nos parecem tão reveladores quanto a análise minuciosa da documentação e o rigor analítico do autor, dimensões polifônicas que tornam o livro indispensável para qualquer um que esteja interessado, e aberto, aos temas mais candentes da história intelectual latino-americana e, ao mesmo tempo, à sua interface de colaboração disciplinar.

Referências

MICELI, Sergio . Sonhos da periferia: inteligência argentina e mecenato privado. 1. ed. São Paulo: Todavia, 2018, 184p. [ Links ]

Alexandra Tedesco – Doutora pela Universidade Estadual de Campinas/Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Departamento de História, Programa de Pós-graduação em História, Campinas/SP – Brasil. E-mail: [email protected].

Cuidado com os poetas ! Literatura e periferia na cidade de São Paulo – TENNINA (A-EN)

TENNINA, L. Cuidado com os poetas ! Literatura e periferia na cidade de São Paulo. Tradução de Ary Pimentel. Porto Alegre: Zouk, 2018. 315p. ¡Cuidado con los poetas! Literatura y periferia en la ciudad de São Paulo. Rosario: Beatriz Viterbo, 2017, 363 p.. Resenha de: PIMENTEL, Ary. Por uma ressignificação da poesia e do lugar do poeta. Alea, Rio de Janeiro, v.21 n.1, jan./apr. 2019.

Certa vez um rapper de São Paulo reescreveu um clássico da MPB, deslocando o lugar de enunciação do discurso para as periferias de São Paulo. E, então, a letra de “Cálice” ganhou uns versos assim:

Os saraus tiveram que invadir os botecos

Pois biblioteca não era lugar de poesia

Biblioteca tinha que ter silêncio,

E uma gente que se acha assim muito sabida

Na letra do rap “Subirusdoistiozin” (segunda faixa do CD Nó na orelha), Criolo, o mesmo autor que antropofagizou e atualizou a poesia de protesto do cantautor Chico Buarque, voltaria a falar de uma cena cultural que, quase imperceptivelmente para os diferentes âmbitos do mundo letrado, começava a tomar conta de certos territórios da cidade:

As criança daqui ‘tão de HK

Leva no sarau, salva essa alma aí

Poucos, muito poucos, na verdade, umas poucas pesquisadoras atentaram para essa produção “fora do retrato” que despontava nas margens do cânone e nas margens da cidade. A um pequeno grupo no qual se destacam Érica Peçanha, Regina Dalcastagnè, Ingrid Hopke e Rafaella Fernandez – as quais por diferentes motivos haviam se aproximado da cena que gestava uma nova literatura nas periferias de São Paulo nos primeiros anos do século XXI -, veio a se somar o nome da argentina Lucía Tennina. Em Cuidado com os poetas! Literatura e periferia na cidade de São Paulo, a professora de Literatura Brasileira na Universidade de Buenos Aires traz para o leitor a possibilidade de um mergulho profundo na produção literária brasileira do presente e o faz com um olhar no qual se reúnem o perto e o longe, no intenso processo de construção de uma terceira dimensão que poderíamos chamar de “entre-lugar” da crítica. E dizer isso não é dizer pouco, se lembramos de Pierre Bourdieu que, em Homo academicus, já assinalava que os dois grandes problemas do discurso científico são o excesso de distância e o excesso de proximidade. Conforme Bourdieu, existe um certo repertório que não se pode acessar (ou saber) a menos que o sujeito consiga fazer parte do universo abordado. Mas é justamente a condição de “fazer parte de…” que implica uma inescapável proximidade onde reside tudo aquilo que não se pode ou não se quer saber. É isso. A escrita exige proximidade. Mas também distância. De fato, um lugar que reúna as duas condições anteriores.

Resultado de uma longa experiência de imersão na periferia e de profundas reflexões teóricas que se desenvolveram ao longo de anos e de várias publicações sobre o tema, este livro de Lucía Tennina traz os rigorosos estudos comparatistas de quem começou a estruturar seu discurso de dentro do próprio circuito de saraus que se organizam nos botecos das quebradas paulistanas depois de 2001.

Entremos aos poucos nesse mundo-tecido-tessitura tão rico, para desfrutar mais da caminhada. A melhor abordagem do objeto encontrada por Lucía Tennina é aquela construída a partir do dispositivo da distância e da proximidade: o olhar estrangeiro, o olhar de quem se aproxima aos poucos, rondando poetas e poemas, para provar, a partir do contato cotidiano com o ambiente dos saraus, diferentes tentativas de intervenção no debate crítico da literatura marginal da periferia. Inevitável é lembrar de um poema que aparece em 21 gramas, terceiro livro de Marcio Vidal Marinho (2016), um dos frequentadores assíduos do Sarau da Cooperifa. O poema “Álvaro de Campos foi à Cooperifa” bem poderia vertebrar o primeiro capítulo de Cuidado com os poetas! Nesse momento do livro, a pesquisadora argentina aprecia o cenário e nos conduz pela cena poética da periferia, destacando os aspectos que marcaram a formação do circuito de saraus nas quebradas paulistanas. E o faz com os mesmos olhos dessa figuração poética de Álvaro de Campos, olhos (aparentemente) desarmados e (profundamente) apaixonados de quem vem de longe, de quem não está, mas que, ao mesmo tempo, é claro que está em seu ambiente quando penetra nesse Sarau da Cooperativa Cultural da Periferia (Cooperifa), um movimento cultural que em outubro de 2018 completou 17 anos de atividades poéticas no bar do Zé Batidão, situado no bairro de Piraporinha, Zona Sul de São Paulo:

Chegou cedo e viu o bar vazio […]

Relutara em vir

Quando soube que era na periferia. […]

19h30

Algumas pessoas começam a chegar […]

O local é um bar típico de favela

Pela fama achou que seria mais bonito,

Pinturas desgastadas, mesas grudadas.

As paredes que vão de encontro à rua

Não existem, são grades, como se fosse uma jaula.

Próximo ao balcão, uma estante de livros

Que se amontoam sem nenhuma ordem. […]

Quando dá por si, não há mais lugares vazios,

O bar está inteiramente ocupado.

Pessoas de todos os tipos […]

Uma pessoa vai ao microfone

Agradece a presença de todos

E relata que todos são bem vindos. […]

Chama um grito de ordem

Todos o acompanham:

Povo lindo, povo inteligente, é tudo nosso,

Uh, Cooperifa! Uh, Cooperifa! Uh, Cooperifa! (MARINHO, 2016, p. 70-72)

No cenário dominante de uma literatura que tem cor, gênero, CEP e um capital cultural longamente acumulado nos âmbitos da cidade letrada, Lucía Tennina lança seu olhar para sujeitos que, oriundos do mundo do trabalho e moradores da periferia, passam semanalmente por esse e por inúmeros outros microfones dos novos saraus organizados nos bares das periferias: Akins Kintê, Alisson da Paz, Binho Padial, Dugueto Shabazz, Fernando Ferrari, Fuzzil, Luan Luando, Marco Pezão, Michel Yakini, Jairo Periafricania, Renan Inquérito, Rodrigo Ciríaco, Serginho Poeta, Sérgio Vaz, Seu Lourival, Zinho Trindade e tantos outros. Trata-se de uma verdadeira tribo que, dispersa pela cidade, povoa o circuito literário marginal da periferia, trazendo novos posicionamentos de sujeitos através da literatura e propiciando um olhar rico sobre os deslocamentos e negociações desse objeto radicalmente plural estudado nos dois primeiros capítulos do livro: os saraus de poesia da periferia de São Paulo.

A crítica acertou na descrição do fenômeno periférico, destacando uma produção que traduz a potência dos novos atores do campo cultural, mas não exime a cena de conflitos e contradições. Apesar da grande quantidade de trabalhos sobre a cultura das periferias, poucos foram os textos que apontaram os problemas derivados do machismo e da misoginia nesse cenário das quebradas, e menos ainda os que se interessaram em reconstruir a presença e o lugar das mulheres nessa nova dimensão do campo literário. Diante disso, cabe enfatizar a importância do terceiro capítulo do livro intitulado “As poetas da periferia: imaginários, coletivos, produções e encenações”. Nessas páginas, Lucía Tennina focaliza o fenômeno da chegada das mulheres aos bares da periferia e, discutindo as estratégias e os modos de produção das “minas”, proporciona uma nova compreensão do lugar diferenciado da mulher no processo de empoderamento dos sujeitos nesse grande quilombo cultural das quebradas paulistanas.

Podemos mesmo dizer que outro mérito de Lucía Tennina é produzir um segundo deslocamento dentro de um tema que já é inovador, trazendo para o centro dos estudos da literatura marginal da periferia a experiência do subalterno dos subalternos. A proposta lança luz sobre a situação específica das poetas num mundo literário que emergia nas periferias e já prenunciava, nesse mal-estar identificado por Tennina, o surgimento de um novo circuito poético que se distanciaria dos saraus de poesia, assumindo características próprias e potencializando as performances e dicções das poetas. O protagonismo feminino foi construído, portanto, em uma outra cena, diferente da anterior, porque, no espaço dos saraus, seu papel era o de “musas” e não o de poetas, ficando o silenciamento oculto sob o disfarce da admiração de sua beleza, o que era também uma forma de apagamento da diferença.

Essa questão transcendia a cena na medida em que implicava valores e imaginários há muito reproduzidos pelos que tentaram, por séculos, disciplinar e se apropriar do corpo feminino. Nesse sentido, o livro amplia seu alcance descritivo-histórico, o que torna mais complexa a mirada para o mundo dos saraus da periferia, tendo em vista que esse olhar permite repensar as lutas das mulheres em diferentes contextos sociais ou culturais nos quais elas foram o Outro do Outro, conforme assinala Lucía Tennina, antecipando-se a um dos subtítulos de O que é lugar de fala?, de Djamila Ribeiro. Nessa medida, a leitura nos envolve no debate sobre a história da representação e da autorrepresentação das mulheres em geral e das mulheres negras e de origem nordestina em particular. Não restam dúvidas quanto ao papel que nessas disputas tiveram nomes como Elizandra Souza e Dinha (Maria Nilda de Carvalho Mota), com publicações marcantes como Águas da cabaça (Edição do Autor, 2012) e De passagem mas não a passeio (Global, 2008). Se o surgimento dos três números especiais da revista Caros Amigos e a organização do Sarau da Cooperifa foram determinantes para que pudesse emergir um novo sujeito nas margens da literatura, as vozes de Elizandra e Dinha seriam precursoras de uma nova geração que se expressaria a partir do seu lugar de fala, elemento central para a emergência de outra cena ainda muito incipiente no final da primeira década do século XXI, a dos campeonatos de poesia falada ou Poetry Slam.

No quarto e último capítulo, o livro aborda uma série de questões não trabalhadas anteriormente, passando, quase que em um livro à parte, a abordar os casos específicos de Ferréz e Alessandro Buzo, narradores que conseguiram ser lidos e reconhecidos fora das fronteiras do território. Uma das questões centrais que Cuidado com os poetas! enfrenta nesse capítulo é a de quais seriam as negociações necessárias aos subalternizados para construir um lugar no campo literário e como, a partir de uma nova rede de relações, se dá o ativamento de certas estratégias a fim de dominar uma posição de autor. Esse capítulo procura respostas para estas perguntas. Para além das diferenças entre os dois nomes, sobressaem as operações agenciadas por cada um deles para construir o que Tennina chama de “lugar de autor”. Para isso, a autora guia o leitor através de um percurso pela vida de Ferréz e Buzo no qual ficam aparentes as respectivas estratégias de construção da figura do escritor. Transcendendo aquilo que Feréz sinaliza na introdução da edição Tusquets de Capão pecado, onde propõe as páginas de seu primeiro romance como uma vestimenta de palavras que lhe dá um lugar de autor, os dois mobilizam diferentes recursos, operações e procedimentos para conquistar um lugar no campo cultural, indo da criação de um nome artístico (Ferréz) à manutenção de um blog no qual se registram as leituras que vão gradativamente formando a imagem pública do escritor (Buzo).

Narradores como Ferréz ou Buzo, poetas como os da Cooperifa ou os que integram os demais saraus de poesia das quebradas paulistanas transformam de dentro as instituições que definem a consagração e o pertencimento ao campo literário, lutando para trazer o protagonismo para a periferia. Esses escritores já não estão falando só entre eles. Trata-se da formação de redes complexas, às quais são incorporados os grupos mais jovens formados por sujeitos oriundos de outros lugares da cultura. O que está em jogo é o que a gente entende como arte, como literatura ou como poesia.

Assim, os conceitos estéticos são reestruturados sob nova forma e a partir de novas regras, constituindo uma esfera formada para além das normas e capitais convencionais. O livro de Tennina aporta um novo lugar de mirada para a poesia. E, a partir desse olhar que conduz o nosso, conseguimos nos dar conta do brotar de uma nova produção e de uma cena cultural centrada no papel da “poesia” e na figura do “poeta”, as quais contribuem de modo muito particular para a ressignificação desses vocábulos.

Sergio Vaz, criador da Cooperifa, insiste em que “a periferia é um país”. O que faz Lucía Tennina é uma bela, profunda e necessária cartografia da literatura desse novo país.

Assim, essa jovem professora argentina oferece uma contribuição fundamental para a crítica literária brasileira. Ler a obra de Lucía Tennina é poder viver intensamente a cena pulsante da literatura marginal da periferia. Nesse sentido, não seria excessivo afirmar que ela consegue escrever o livro que pretendia, uma obra potente que nos impacta e transforma o olhar que nós brasileiros lançamos para as culturas das nossas periferias.

Esperamos a publicação de mais textos como esse, que lança uma nova luz sobre o desenvolvimento de nossa primavera periférica.

Referências

MARINHO, M.V. 21 gramas. Rio de Janeiro: Ibis Libris, 2016. [ Links ]

Ary Pimentel. Professor de Literaturas Hispano-Americanas no Departamento de Letras Neolatinas da Faculdade de Letras (UFRJ). Mestre (1995) e Doutor (2001) em Literatura Comparada pela UFRJ e realizou estágios de Pós-doutorado no PACC (Programa Avançado de Cultura Contemporânea) – UFRJ, em 2016, e na Universidad de Buenos Aires, em 2017. E-mail: [email protected]

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500 anos de Periferia – Uma contribuição ao estudo da política internacional | Samuel Pinheiiro Guimarães

Colônia e metrópole, terceiro mundo e primeiro mundo, países subdesenvolvidos e desenvolvidos, Sul e Norte. A estrutura moderna da comunidade internacional de Estados foi sempre caracterizada por ser hierárquica, ainda que o topo dessa estrutura fosse ocupado, ao longo dos últimos séculos, por potências com características distintas, mas com uma semelhança essencial: o poder de organizar o mundo de acordo com seus interesses. Resgatando o debate quanto aos aspectos que condicionam o sistema internacional, o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, em sua obra 500 Anos de Periferia – Uma contribuição ao estudo da política internacional, analisa a condição periférica do Brasil no atual sistema internacional, apontando os caminhos para a superação dessa realidade que já dura 500 anos.

De fato, o objetivo de Guimarães é desenvolver uma interpretação pragmática dos fenômenos que orientam as relações internacionais e como esses movimentos impactam nos grandes Estados periféricos, nem sempre beneficiados pelo processo de globalização. Entre as características desses Estados, o autor destaca a fragilidade político-econômica e a estreita vinculação com um único centro como razões para que seja realizada uma análise do sistema internacional a partir do ponto de vista periférico. A idéia é de que a marginalização desses países será crescente se não enfrentarem os desafios da nova ordem, como a concentração de poder econômico, político e militar. Leia Mais