O legado educacional do século XX no Brasil – SAVIANI (C)

SAVIANI, Dermeval et al. O legado educacional do século XX no Brasil. Campinas: Autores Associados, 2004. Resenha de: TORRES, Eli Narciso da Silva Conjectura, Caxias do Sul, v. 15, n. 3, Set/Dez, 2010.

O livro O legado educacional do século XX no Brasil, assim como O legado educacional do século XIX, é o resultado de pesquisas das Professoras Jane Soares de Almeida, Doutora em História e Filosofia da Educação pela USP/SP, Rosa Fátima de Souza, Doutora em Educação pela USP/ SP e Vera Teresa Valdemarin, Doutora em História e Filosofia da Educação pela USP/SP, reunidas em torno do pensamento do Professor Dermeval Saviani (Unicamp). Os textos são fundamentais para a compreensão de aspectos da historiografia da educação brasileira. No entanto, no livro anterior, ocorreu um maior distanciamento do objeto em decorrência do fato de as autoras estarem analisando o século XIX, ou seja, localizando-se no fim do século XX. Enquanto em O legado educacional do século XX, o recuo não ocorre da mesma forma, pois a análise acontece enquanto os fatos são construídos historicamente, e os pesquisadores não veem com clareza a herança que estaria sendo transferida para o século XXI.

O primeiro capítulo “O legado educacional do ‘longo século XX’ brasileiro”, Saviani classifica o século XX como longo, pois o observa a partir de 1890, desdobrando-o até o início do século XXI. Saviani procura delinear os meandros políticos e sociais que propiciaram a materialização e a ampliação do sistema educacional brasileiro, principalmente as transformações sociais ocorridas a partir do fim do século XIX. Saviani aponta, principalmente, à abolição da escravatura no Brasil, à transição império/república, ao ideário de Estado laico, à cientifização a partir da influência positivista, ao fortalecimento do setor  industrial, além de à ampliação e urbanização de centros urbanos, o que favoreceu a formação de novas classes sociais. Nesse contexto, ocorre o lançamento de O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, no qual os escolanovistas partiam do pressuposto de que a educação é função essencialmente pública, laica e obrigatória. Porém, a influência estadunidense na formação do processo educacional brasileiro potencializou ainda mais as disparidades sociais.

Enquanto o segundo capítulo da obra, intitulado: “Mulheres na educação: missão, vocação e destino?: a feminização do magistério ao longo do século XX”, Almeida descreve a condição da mulher a partir da perspectiva de gênero, ou seja, mulheres como grupo social inseridas em uma sociedade hegemonicamente masculina. Outra especificidade é o fato de trabalhar a temática sob a perspectiva foucaultiana, utilizando-se de expressões como: “normalização da instrução feminina”, “vigilância do corpo” e “controle da feminilização”. Nesse bojo, a autora aponta às condições, pelas quais as mulheres brasileiras foram submetidas, perpassando desde a repressão sexual até a delimitação dos espaços públicos, respaldadas pela doutrinação religiosa imposta pela Igreja para alcançarem algumas condescendências, entre elas o magistério. Porém, se manteve o vínculo imaginário entre a função da professora e a maternidade, dessa forma, a mulher poderia continuar desempenhando sua função social predeterminada.

O terceiro capítulo, “Lições da Escola Primária”, é caracterizado pela reflexão de Souza acerca da constituição e estruturação dos grupos escolares, que se tornaram a representação da nova organização da escola primária, além de influenciar muitos intelectuais na maneira de compreender a escola durante o século XX. Seu projeto sociocultural estendeu-se até o advento da escola de Ensino Fundamental.

Ela reportava a uma clara concepção de ensino; educar pressupunha um compromisso com a formação integral da criança que ia muito além da simples transmissão de conhecimentos úteis dados pela instrução e implicava essencialmente a formação do caráter mediante a aprendizagem da disciplina social – obediência, asseio, ordem, pontualidade, amor ao trabalho, honestidade, respeito às autoridades, virtudes morais e valores cívico-patrióticos necessários à formação do espírito de nacionalidade. (SOUZA, 2004, p. 127).

Em o legado do século XX, no quarto capítulo intitulado “Os sentidos da experiência: professores, alunos e método de ensino”, Valdemarin converge e aprofunda o debate em torno de questões metodológicas, sobretudo, quando indica processos de substituição do método intuitivo – visão platônica dos sentidos sensoriais, símbolo da racionalização educacional, a partir do qual o aluno precisa chegar ao mundo inteligível para se aproximar do saber real. Pela concepção do pragmatismo deweyano, que observa e aprecia o empirismo cotidiano, desconsidera a dicotomia “realidade escolar e mundo baseado na experiência”, pois Dewey apresenta o conceito de experiência reflexiva para desencadear novas práticas pedagógicas e, consequentemente, aguçar a produção de novos conhecimentos dos alunos. O método deweyano de ensino observa as práticas educacionais, situando-o em um modelo de sociedade democrática e consolidada sob bases econômicas capitalistas.

O legado educacional do século XX no Brasil é uma importante contribuição desses pesquisadores à historiografia educacional brasileira. Além de sugerir diversos questionamentos oportunos acerca da constituição e consolidação dos modelos pedagógicos adotados no Brasil, revela as condições materiais e os agentes históricos que proporcionaram tal realização, os processos de “democratização da escola pública”, a promoção de um projeto cultural de racionalização da escola primária, de transformações da realidade profissional dos professores, homens/ mulheres, igualmente humanos, com desigualdades socioculturais e a introdução de novos métodos de ensino e aprendizagem do aluno e profissionalização do docente. Contribui, assim, para uma melhor compreensão de temas educacionais atuais, incoerências e avanços praticados no sistema de ensino da sociedade brasileira.

Referências

SAVIANI, Dermeval et al. O legado educacional do século XX no Brasil. Campinas: Autores Associados, 2004. 224 p.

Eli Narciso da Silva Torres – Cientista Social. Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Bolsista da Capes. E-mail: [email protected]

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