O Brasil e a URSS na Guerra Fria. A Política Externa Independente na imprensa gaúcha / Charles S. M. Domingos

As últimas décadas do século XX foram palco de grandes transformações estruturais vividas com intensidade pela humanidade. Último século do milênio que também findava, ele ficou marcado por diferentes interpretações historiográficas. Para alguns, constituiu-se num longo período (ARRIGHI, 1996), para outros em um tempo mais curto (HOBSBAWM, 1995). Em sua primeira metade, foi cenário das maiores guerras e atrocidades, já a sua segunda metade foi orientada pelas diretrizes de uma Guerra Fria que produziu fatos com conseqüências muito mais quentes.

O debate historiográfico sobre a demarcação temporal desta Guerra Fria também é extenso e ainda fértil. Boa parte desse material acessível a um público amplo apresenta o ponto de vista ocidental e norte-americano como preponderante. O professor Paulo Vizentini apresentou uma visão diferenciada ao abordar o tema a partir do desafio imposto pelo sistema socialista à ordem capitalista (VIZENTINI, 2004). O trabalho de Charles Sidarta Machado Domingos: “O Brasil e a URSS na Guerra Fria: a Política Externa Independente na imprensa gaúcha” apresenta um enfoque das relações brasileiras com a então URSS a partir da análise da visão da imprensa gaúcha do período sobre um ponto específico: a Política Externa Independente (PEI).

Este livro é produto da dissertação desenvolvida pelo autor no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e defendida em 2009. Esta obra se insere nos marcos da história política, que logrou se dissociar do estigma de execução de uma análise superficial, para galgar, com a terceira geração dos Annales, um status historiográfico mais respeitado. René Rémond destaca a impossibilidade de abordar o político como algo isolado, pois este fator não possui margens, comunicando-se com os outros domínios e campos historiográficos (RÉMOND, 2003: 444). Pensar estes diferentes domínios conectados ao político também implica pensar a atuação do historiador e suas implicações políticas dentro do seu lugar social.

É dentro deste marco da história política que o autor retorna aos anos em que o país estava “irreconhecivelmente inteligente” para mostrar como este novo vocabulário também podia ser percebido no âmbito da práxis. Na década de 1960, a PEI colocou-se sob uma nova orientação nos governos Jânio Quadros e João Goulart, sendo alvo de crítica dos setores conservadores e de defesa pelos progressistas. Este enfoque ainda é pouco explorado na historiografia do período, haja vista que o tema das Reformas de Base é o que ganha maior destaque. Em relação à PEI, e, mais especificamente, ao reatamento das relações diplomáticas com a URSS, o autor destaca que no âmbito da imprensa escrita, os jornais O Globo e O Estado de São Paulo se colocaram contra esta política. Já o Jornal do Brasil e o Correio da Manhã eram favoráveis. Para realizar uma análise diferenciada, o autor foca seu olhar para a imprensa gaúcha, deslocando o olhar do centro do país. Na esfera acadêmica, os trabalhos desenvolvidos até o momento sobre a PEI tiveram outro enfoque. José Honório Rodrigues abordou-a no tempo presente do acontecimento, publicando em formato de artigos em jornais e que foi, posteriormente, sistematizado no estudo intitulado Uma política externa própria e independente, editado em 1965 (RODRIGUES, 1965). Tânia Quinaneiro, no seu trabalho realizado na década de 1980, enfocou a questão cubana, dado seu papel catalisador para a realidade política latino-americana (QUINTANEIRO, 1988). Paulo Vizentini, no seu trabalho de doutorado, preferiu investigar a Operação Pan-americana, que se constituiu na gênese da PEI, inovando em sua abordagem ao inserir o estudo da PEI dentro do contexto do surgimento do Terceiro Mundo (VIZENTINI, 1995).

As fontes utilizadas por Charles Domingos constituem-se majoritariamente na imprensa escrita do período estudado. A principal fonte primária, o periódico Correio do Povo, um dos jornais de maior destaque do Estado do Rio Grande do Sul, teve sua história marcada por uma propagada neutralidade jornalística. O autor problematiza este fato correlacionando-o com a sua reflexão sobre o uso da imprensa escrita pelo historiador, bem como seu cuidado metodológico necessário na análise desta fonte. Na época estudada, este periódico possuía o formato Standard, e os assuntos relacionados à política internacional eram apresentados na capa do jornal. Na contracapa é que se concentravam os fatos referentes à política interna brasileira, e, neste lugar, eram noticiados os fatos relacionados à PEI. Charles Domingos também faz uso de outras seções produzidas pelo jornal, das matérias enviadas pelas agências de notícias e pelas interpretações assinadas. Também compõe o seu cabedal de fontes uma série de documentos diplomáticos pesquisados em arquivos do Rio de Janeiro (Arquivo San Tiago Dantas, Arquivo Nacional) e de Porto Alegre (Anais da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul e Centro Brasileiro de Documentação e Estudos da Bacia do Prata). Somado a tudo isso, há a utilização de uma vasta bibliografia (mais de 100 livros, teses, dissertações e artigos) que cobrem qualitativamente o período estudado.

O primeiro capítulo do livro, “Populismo e nacionalismo”, discute um tema polêmico e que ainda produz intensos debates: o conceito de populismo. Questionando a operacionalidade do conceito e destacando seu caráter polissêmico, o autor apresenta seu histórico como categoria explicativa, inserido dentro do marco temporal do período democrático de 1945 a 1964. Também destaca a construção do conceito conforme diversos interesses ao longo desse período, principalmente por aqueles que se opunham ao trabalhismo. Atrelado ao conceito de populismo está o estudo do nacionalismo, entendido pelo autor dentro de uma análise histórica, tal como proposta por Eric Hobsbawm, e que, portanto, apresenta transformações ao longo do tempo (HOBSBAWM, 2002). Para Charles Domingos, este constitui o conceito norteador e ideal para o estudo da PEI:

Entendemos ser a partir dele que melhor se explica a relevância da Política Externa Independente para o período estudado. Mesmo com graus variáveis, o nacionalismo – juntamente com a idéia do desenvolvimento – é a tônica dos governos Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros e João Goulart, estando presente inclusive nos momentos de transição entre a morte do presidente Vargas e a posse do presidente Kubitschek (DOMINGOS, 2010: 65).

Tendo sua gênese no século XVIII, com o início do capitalismo, o fenômeno do nacionalismo atravessou três séculos sofrendo adaptações e incorporações. Inicialmente, seu caráter estava atrelado ao pertencimento da cidadania. No século XIX, o nacionalismo veste as égides do liberalismo em voga. Entretanto, é no período entre-guerras que ele encontra seu apogeu, seja encarnado nos corpos da direita ou da esquerda. No contexto brasileiro, é a partir dos anos 1950 que seu emprego começa a ser feito por intelectuais e políticos. O IBESP (Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política), a publicação Cadernos de nosso tempo e o ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) são exemplos de instituições e publicações sobre o tema. Configura-se como uma primeira fase do nacionalismo brasileiro o período de 1952 a 1956. A segunda fase compreende o período do nacional-desenvolvimentismo.

Para tanto, trabalharemos, nesse momento, com o conceito de nacional-desenvolvimentismo. Buscaremos opiniões diversas das de Angela de Castro Gomes e Pedro Cezar Dutra Fonseca, por entendermos que se faz necessário aproximar-se da perspectiva que norteava a sociedade brasileira na segunda metade da década de 1950. A razão disso é que a Política Externa Independente foi gestada e desenvolvida por homens que tinham também no nacional-desenvolvimentismo um de seus horizontes (DOMINGOS, 2010: 77).

Por fim, a terceira fase constitui-se no nacional-reformismo, que se inicia do final dos anos 1950. Seu amadurecimento reordena seus fatos constitutivos, rompendo com a fase anterior destacada.

O segundo capítulo, intitulado “Antecedentes e expectativas”, realiza uma reconstrução histórica das relações do Brasil com a Rússia, recuando no século XVIII. Também apresenta uma importante contextualização da principal fonte utilizada na obra: o periódico Correio do Povo. A partir deste ponto o autor correlaciona a história do jornal com suas relações com os governos da União e do Estado do Rio Grande do Sul.

O terceiro capítulo, “O reatamento das relações diplomáticas”, transfere a visão macro para um aporte mais detalhado sobre o dia do reatamento das relações entre o Brasil e a URSS, bem como de suas repercussões políticas. Esta análise detalhada é realizada através das páginas do jornal Correio do Povo, onde o autor destaca o caráter pedagógico da atuação da imprensa. Neste ponto, Charles Domingos desenvolve um detalhado estudo e uma ampla análise da repercussão do discurso de San Tiago Dantas na Assembléia do Rio Grande do Sul, cotejando a fonte jornalística com os Anais da casa legislativa, apontando o porquê de supressões e ausências nas páginas do jornal. A percepção das posições políticas oficiais, bem como a repercussão em diversos setores da sociedade, como a Igreja Católica, e inclusive em outros países também aparecem através desta leitura.

O quarto capítulo, “De volta a Província”, restabelece o olhar macro para averiguar as repercussões do reatamento após a sua ocorrência. Neste ponto, são analisadas as posições e leituras dos colaboradores do jornal, além de políticos e do governador Leonel de Moura Brizola, que aproveitava o espaço para realizar uma crítica à oposição do seu governo.

Desse modo, o enfoque da obra recai sobre a percepção do posicionamento dos setores políticos, no que tange ao reatamento das relações com a URSS, a partir da imprensa escrita da época. A partir desta lente, o autor objetiva perceber como a política externa interferiu na política interna. Esta leitura é realizada alternando abordagens macros e escalas reduzidas, destacando através destes aspectos um rico olhar sobre um importante período brasileiro.

Referências

ARRIGHI, Giovanni. O longo século XX: dinheiro, poder e as origens de nosso tempo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.

DOMINGOS, Charles Sidarta Machado. O Brasil e a URSS na Guerra Fria: a Política Externa Independente na imprensa gaucha. Porto Alegre: Suliani Letra & Vida.

HOBSBAWM, Eric. A Era dos Extremos: o breve século XX. 1914-1991. São Paulo: Companhia das letras, 1995.

____________, Eric. Nações e nacionalismo desde 1780. 3ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.

QUINTANEIRO, Tânia. Cuba e Brasil: da revolução ao golpe (1959-1964): uma interpretação sobre a política externa independente. Belo Horizonte: UFMG, 1988.

RÉMOND, René. Do político. In: RÉMOND, René. Por uma história política. 2ª ed. Rio de Janeiro: FGV, 2003, p. 444.

RODRIGUES, José Honório. Uma política externa própria e independente. In: Política Externa Independente. A Crise do pan-americanismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965.

VIZENTINI, Paulo Fagundes. A Guerra Fria: o desafio socialista à ordem americana. Porto Alegre: Leitura XXI, 2004.

__________, Paulo Gilberto Fagundes. Relações internacionais e desenvolvimento: o nacionalismo e a Política Externa Independente. Petrópolis: Vozes, 1995

Rafael Hansen Quinsani – Mestre em História pela UFRGS. E-mail: [email protected].


DOMINGOS, Charles Sidarta Machado. O Brasil e a URSS na Guerra Fria. A Política Externa Independente na imprensa gaúcha. Porto Alegre: Letra & Vida, 2010, 223p. Resenha de: QUINSANI, Rafael Hansen. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.17, p.107-111, ago./dez., 2010. Acessar publicação original. [IF].