A Queda de Roma e o Fim da Civilização – WARD-PERKINS (AN)

WARD-PERKINS, Bryan. A Queda de Roma e o Fim da Civilização. Tradução de Inês Castro. Lisboa: Alêtheia Editores, 2006. Resenha de: DEGAN, Alex. Anos 90, Porto Alegre, v. 17, n. 32, p. 321-326, dez. 2010.

Originalmente publicado em língua inglesa em 2005 (The Fall of Rome and the End of Civilization), a tradução portuguesa do polêmico livro do professor de Oxford Bryan Ward-Perkins deve ser recebida com grande entusiasmo, particularmente porque cresce entre os estudiosos brasileiros o interesse pelo período investigado no livro.

A contribuição de Ward-Perkins se dá na abordagem original e clara de um tema clássico entre historiadores: a queda do Império Romano. Questão polêmica e controversa, destacada desde o Renascimento com a noção de inclination desenvolvida pelo pensador italiano Flavio Biondo e que recebeu o tratamento clássico de Edward Gibbon em Decline and Fall of the Roman Empire, nunca abandonou o horizonte dos historiadores que se dedicaram a estudar a transição da civilização romana para o Medievo Europeu Ocidental. É neste riquíssimo debate que Ward-Perkins se insere, destacando as contribuições da documentação arqueológica com uma leitura voltada ao universo das trocas, produção e consumo de bens materiais nos anos finais do Império.

O livro pode ser dividido entre duas discussões contemporâneas sustentadas pela historiografia, ambas entrelaçadas. A primeira contenda se dá com o historiador canadense Walter Goffart (Barbarians and Romans), defensor de uma leitura mais integradora das relações entre romanos e germanos. Para Goffart, as várias populações germanas que habitavam as fronteiras ocidentais do Norte se beneficiaram de uma modificação na política militar romana, que deixou de repelir as invasões para construir um complexo sistema de acomodação destas levas migratórias germânicas. Segundo o historiador canadense, aos germanos foram concedidas benesses, como o direito de se fixarem em terras dentro dos limites do Império e a possibilidade de receberem parte da tributação destas áreas, em troca de uma aliança militar e de uma trégua. De ameaçadores invasores os germanos se converteram em sócios na defesa do Império.

A segunda interpretação do período com qual Ward-Perkins debate foi desenvolvida pelo historiador irlandês Peter Brown (The World of Late Antiquity). Brown, juntamente com o francês Henri- Irénée Marrou (Décadence Romaine ou Antiquité Tardive?), foi o grande divulgador da idéia de uma Antiguidade Tardia, solapando a tradicional periodização do Baixo Império e recusando a caracterização do período como uma síntese de decadência e confusão. Embora Brown não negue o desmonte institucional de uma ordem romana, sua atenção se volta ao universo cultural visto como profundamente criativo e original, caracterizado por um furioso debate religioso e intelectual embalado pelo Cristianismo. Assim, a antiga percepção de declínio foi substituída por uma visão positiva do período, claramente marcada por revoluções criativas nos campos da cultura, das artes e da religiosidade. Neste sentido, é importante notar a crescente aceitação da interpretação de Brown entre os medievalistas franceses contemporâneos, militantes de uma periodização mais alargada e colorida da Idade Média. Tal periodização defendida por Jacques Le Goff (Pour un long Moyen Âge), investe numa antropologia histórica que dialogando com o conceito braudeliano de “longa duração” joga luzes nos estudos das lentas transformações nos hábitos, costumes, estruturas e representações culturais do Ocidente Medieval, formulando-se uma “Longa Idade Média” nascida da Antiguidade Tardia e esgotada no século XIX, fruto das convulsões revolucionárias e da Revolução Industrial.

A tese defendida por Bryan Ward-Perkins não enveredou exclusivamente pelos domínios de uma História Social da Cultura. Pelo contrário, sua concepção da civilização romana e da sua extensão é muito material, o que torna seu livro interessante por considerar questões que hoje não estão entre as mais populares na historiografia.

Como arqueólogo e historiador econômico, Ward-Perkins entende que a experiência romana conferiu unidades política e econômica às sociedades que habitavam o Império. Neste sentido, seu livro observa os processos de integração e acomodação promovidos pelo Império e a perda destas unidades com a derrocada da ordem mantida por Roma.

Em sua interpretação, a ação política de Roma produziu, em larga escala, uma economia integrada pelo Estado. Talvez seja esta a maior contribuição interpretativa e documental do texto de Ward- Perkins: seu Império Romano se caracteriza pela grandiosidade qualitativa e quantitativa das trocas materiais. Como arqueólogo, observou o colossal volume de peças de cerâmicas de uso quotidiano produzidas, consumidas e descartadas durante o Império Romano.

Vai além, notando que este consumo transbordou a “casca mediterrânea”, se consolidando em regiões como a distante Britânia, que também produziu e consumiu cerâmica banal, mas de alta qualidade.

Em outras palavras, a grande estabilidade produzida pela Pax Romana se encontrava na economia, que aproveitou os benefícios de uma ordem imperial para atingir um nível sofisticado e especializado na produção, circulação e consumo. Antes de tudo, o Império Romano consolidou uma espécie de civilização do conforto que disseminou e vulgarizou o consumo de louças para uso diário, ânforas preenchidas com vinho e azeite, moedas, tijolos e telhas.

Com uma visão altamente modernizante da economia antiga, Ward- Perkins assinalou que a estabilidade romana promoveu o auge desta sofisticada cultura material.

Bryan Ward-Perkins entende que a destruição provocada pelas guerras contra os germanos desestruturou de forma tão profunda a ordem romana que esfacelou as unidades política e econômica do Império, impossibilitando a sociedade de se recompor. Ao contrário de Walter Goffart, que insiste em uma leitura voltada ao longo processo de acomodação e integração entre germanos e romanos, Ward-Perkins demonstrou que este encontro se deu em torno de ciclos de violência sofridos por ambos os lados. Por mais que a longa convivência entre romanos e germanos tenha levado à integração, não podemos deixar de notar a violência deste processo.

Não adotando uma leitura simplista do momento, que insiste no contraponto entre selvagens bárbaros e angustiados romanos, Ward- Perkins revelou como a documentação escrita e material registrou um longo fracionamento do equilíbrio político e militar romano, importando as agruras dos limites do Império para seu interior.

Esta fragmentação política, seguida do caos militar, liquidou a unidade econômica e, progressivamente, detonou a sofisticação e a especialização da cultura material, dando lugar a uma simplicidade muito maior. A sociedade romana, acostumada com um conforto e com um padrão de consumo, não conseguiu se recuperar das destruições dos germanos e da perda de sua unidade. Neste sentido, concordamos com Bryan Ward-Perkins quando este afirma que uma civilização antiga, marcada pela sofisticação econômica, entrou em colapso e submergiu.

Ainda atento ao sofisticado patamar da economia romana antiga, Ward-Perkins refl etiu também sobre a difusão da cultura escrita, denominada como Literacia, registrando suas várias dimensões com especial atenção aos usos populares. A diferença com Peter Brown aqui se torna evidente. O historiador irlandês conferiu muita energia a esta questão, apontando para uma pujante e original produção literária embalada pelo Cristianismo. Ward-Perkins não discorda totalmente de Brown, mas aponta que as análises do irlandês registraram muito mais o que ocorreu entre as aristocracias políticas e religiosas do Baixo Império, com grande destaque aos documentos da porção Oriental de Roma, exatamente aquela que sofreu menos com as destruições germânicas.

Na leitura proposta por Bryan interessa mais observar os padrões de consumo material e de conhecimento da escrita entre as classes médias e baixas do que se ater aos documentos produzidos pelas aristocracias. Mesmo quando ele pensa a existência de uma cultura escrita em suas várias dimensões, sua preocupação se volta aos padrões disseminados de consumo desta Literacia. Sem desprezar a impressionante literatura produzida no período, sobretudo entre os membros da Igreja, Ward-Perkins observou que usos populares da escrita, como os recibos de impostos encontrados no Egito, os grafites em paredes de cidades e os rabiscos em cerâmicas, progressivamente se extinguiram após a perda da unidade romana. A cultura escrita não desapareceu do Ocidente pós-romano, mas perdeu seu uso corriqueiro, elementar e banal que gozava no Império.

Novamente a importância das unidades política e econômica da experiência romana foi analisada. A unidade política permitiu uma enorme organização burocrática do exército em todas as áreas do mundo romano. A escrita era o suporte que permitia a circulação de tropas, de mercadorias e estratégias. Mais que um instrumento de debate teológico e filosófico restrito à elite, tinha seu uso consagrado enquanto ferramenta de logística. A própria sofisticação econômica defendida pelo autor utilizou de noções elementares de escrita como fundamentos de sua organização, registrando a ação fiscal e administrativa do Estado, como também técnica e comercial dos centros produtores de cerâmica. Tais usos populares da escrita, segundo o arqueólogo inglês, desapareceram no Ocidente pós-romano.

Por fim, sem medo de utilizar termos controversos, como “declínio”, “crise” e “civilização”, mas preocupado em defini-los com precisão, Ward-Perkins se afastou das armadilhas morais que estes termos sugerem e traçou uma análise bastante dinâmica do Ocidente pós-romano. Ao contrário das interpretações postuladas por Goffart e Brown, de grande sucesso entre historiadores franceses, estadunidenses e brasileiros, Bryan conferiu destaque a todas as complicações, desafios e dificuldades do período. Seus séculos pós-romanos experimentaram um agudo declínio na sofisticação e prosperidade econômicas, repercutindo em todas as sociedades que compunham o mosaico imperial romano. Aceitar isto não significa ler o período como um momento maldito e negativo da história da Europa Ocidental, mas reconhecer suas contradições e impasses mais profundos. Em sua interpretação, o maior equívoco dos entusiastas da Antiguidade Tardia se encontra exatamente neste ponto: ao amortizar e suavizar os impactos que os choques entre romanos e germanos produziram na antiga ordem imperial, as perdas sofridas e as originais respostas produzidas pela sociedade pós-romana acabam por perder parte significativa de seu brilho. Reconhecer que o século V assistiu uma profunda crise econômica, política e militar, provocada pela violenta tomada de poder e de muita riqueza pelos germanos não é o mesmo que aprisionar o período em uma espécie de Index Librorum Prohibitorum histórico.

Alex DeganProfessor Assistente da Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Mestre em História Econômica e doutorando em História Social pela Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected] Avenida Dr. Odilon Fernades, n.420, Apto 501, Bloco B Uberaba – MG. CEP: 38017-030.

The Fall of Rome and the end of civilization | Bryan Ward-Perkins

O Império Romano caiu? A pergunta, feita para uma pessoa educada que não fosse ligada à área de História, receberia, hoje, um inequívoco “sim”, talvez mesmo um “mas é claro!”. Não apenas isso, mas a queda do Império Romano teria nítidas implicações catastróficas: seria a vitória do barbarismo sobre a civilização, que lançaria um mundo inteiro em uma Idade das Trevas.

Provavelmente, essa pessoa educada acabaria por se surpreender ao saber de um dos momentos historiográficos mais significativos das últimas décadas do século XX, a “revolução da Antiguidade Tardia”, detonada pela obra do historiador irlandês Peter Brown, que abandonou totalmente a “visão negra” do colapso da civilização romana durante o século V (o termo “Antiguidade Tardia” designa, grosso modo, um período histórico que vai de c. 250 até c. 800). Para Brown e seus seguidores, que operam em âmbito quase que exclusivamente anglo-saxão, a Antiguidade Tardia não é uma “Idade das Trevas”, mas sim uma época de novos, interessantes e criativos começos – do cristianismo, do judaísmo rabínico, do islamismo, do Império Bizantino, do reino dos Francos, da historiografia eclesiástica.

A nossa pessoa educada surpreenderia- se ainda mais com o trabalho de outros historiadores, como o canadense Walter Goffart. André Piganiol, historiador francês, escreveria, pouco depois da Segunda Guerra Mundial, sobre a queda do Império Romano: “A civilização romana não morreu de forma natural. Foi assassinada” (p. 173). Goffart, em 1980: “o que nós chamamos de „queda do Império Romano‟ foi um experimento imaginativo que saiu um pouco dos eixos‟ (p. 9). Dito de outra forma: os invasores e conquistadores de Roma não foram assassinos de uma civilização, mas – tirando um ou outro episódio lamentável – foram cooptados pelo sistema imperial romano, que preservaram na medida do possível.

Ninguém discute a importância do fenômeno historiográfico da Antiguidade Tardia, nem a competência de Peter Brown. Mas a ótica proposta por ele para a interpretação deste período pode ser questionada, e assim o é, embora apenas em um período recente tais críticas sejam mais evidentes – e tais críticas acabam por revelar um certo mal-estar de alguns historiadores que participaram de tal movimento, sob uma certa ótica (no entanto, cabe ressaltar que a obra de Goffart não recebeu a aceitação que a de Brown teve).

Um marco tão bom quanto qualquer outro para designar o momento em que o “paradigma da Antiguidade Tardia” foi questionado de maneira decisiva é o lançamento do premiado livro de Bryan Ward-Perkins em 2005: “A Queda de Roma e o fim da civilização”, que será tema da presente resenha.

Ward-Perkins é um arqueólogo, especializado na história urbana da Itália a partir do século IV até a ascensão de Carlos Magno. Crescendo em Roma (seu pai, John Ward-Perkins, também arqueólogo, era diretor da Escola Britânica de Roma), observava os impressionantes feitos técnicos da civilização imperial, feitos que seriam impossíveis de ser imitados por séculos a fio, graças a uma ruptura econômica e social brutal. Ele é, segundo suas próprias palavras, “alguém que está convencido que a vinda dos povos germânicos foi deveras desagradável para a população romana, e que os efeitos a longo prazo da dissolução do Império foram dramáticos” (p. 10.). Neste livro, ele pretende comprovar a justeza de sua visão.

O livro se divide em duas partes: na primeira (composta por três capítulos), “a queda de Roma”, o autor elabora uma pequena história narrativa das invasões bárbaras (Por “bárbaros”, designa-se aqui os povos germânicos, sem conotação de valor). dos séculos IV e V; na segunda (composta por quatro), “o fim de uma civilização”, Ward-Perkins elenca evidências materiais para comprovar o terremoto econômico e social que o fim político do Império Romano causou.

De certa forma, na primeira parte o autor viaja por mares já navegados – aliás, navegados à exaustão, como ele não deixa de ressaltar, mencionando a lista, elaborada por A. Demandt em 1984, de 210 motivos para a queda do Império Romano propostos através dos séculos (aliás, divertidíssima: entre os motivos, encontram-se “invasões bárbaras” e “declínio econômico”, mas também “feminismo”, “capitalismo”, “comunismo”, “prostituição” e “neurose cultural”). Na verdade, Ward-Perkins pouco traz de inovador aqui. A equivalência material dos exércitos germânicos e romanos, a série de guerras civis que enfraqueceu, de maneira decisiva, o Império Romano do Ocidente, as invasões bárbaras, a resistência e sobrevivência do Império Romano do Oriente, as revoltas camponesas ocorridas no norte da Gália no começo do século V: todos são temas de pesquisa bastante recorrentes, e que foram tratados de maneira mais extensa e aprofundada em outros contextos.

Contudo, a primeira parte é necessária, posto que, na segunda parte, Ward-Perkins trata dos resultados da queda política do Império Romano no Ocidente, que para ele são catastróficos. O tom aqui passa a ser marcadamente polêmico: “Atualmente, está profundamente fora de moda afirmar que qualquer coisa parecida a uma ‘crise’ ou ‘declínio’ ocorreu no final do Império Romano, que dirá dizer que uma ‘civilização’ entrou em colapso e seguiu-se uma ‘idade das trevas’. A nova ortodoxia é que o mundo romano, tanto no Oriente quanto no Ocidente, foi lentamente transformado, de uma forma essencialmente indolor” (p. 87).

Para se contrapor a esta ortodoxia, Ward-Perkins apresenta um rico conjunto de fontes materiais do período, que iluminam cantos inesperados da sociedade romana. O principal conjunto de fontes com que Ward-Perkins trabalha é a cerâmica, por uma razão bastante pragmática: os potes sobrevivem em grande quantidade, relativamente intactos, e mesmo fragmentos podem apresentar uma quantidade de dados que permitem ao estudioso chegar a conclusões bastante sofisticadas sobre a sociedade que criou tal artefato.

Comparando a cerâmica da Inglaterra romana com a da Inglaterra anglo-saxã (admitidamente um caso extremo, tendo em vista que tal província se situava na periferia do mundo econômico romano, centrado no Mediterrâneo), o resultado é bastante surpreendente: a cerâmica romana é de alta qualidade, estandardizada, produzida em enorme quantidade (quantidade essa que só vai ser superada no final da Idade Média), tendo centros produtores em todas as provinciais imperiais e, principalmente, mesmo o mais miserável camponês tinha acesso a estes potes. No começo do século sete, um pequeno lorde anglo-saxão foi enterrado em Sutton Hoo, em meio a todas as suas riquezas. O conjunto é bastante extraordinário, mas um achado é bastante banal, tanto que pouco atrai atenção: uma garrafa de cerâmica, de alta qualidade, importada do continente. A simples existência dessa garrafa traz duas implicações bastante graves: 1) Uma cerâmica de alta qualidade, artigo comum na época romana, tornara-se um artefato tão precioso que acompanhava o seu dono para o túmulo; 2) A Inglaterra anglo-saxã não possuía um centro de produção de cerâmica sofisticada no século VII.

Tal colapso econômico pode ser medido, segundo o autor, não apenas pelo impacto sofrido pelos homens, mas – de forma tão divertida quanto significativa – pelas consequências enfrentadas pelas vacas. O colapso econômico na Inglaterra, derivado do colapso político, também causou prejuízos para a população bovina da província. A partir de ossos de vaca encontrados em sítios da Inglaterra pré-romana, romana e pós-romana, Ward-Perkins verifica que as vacas do primeiro período tinham uma altura média de 1,15 m, do segundo de 1,20 m e do terceiro 1,12 m; o que aconteceu depois da queda do Império Romano, ao menos na Inglaterra, não foi uma mera recessão, mas uma verdadeira regressão a um estado econômico mais precário até do que o existente antes da conquista romana.

Culturalmente, o impacto não foi menor. A antiga Catedral de São Pedro de Roma, erguida no séc. IV, tinha mais de 10.000 metros quadrados de área; no século VI, a S. Agnese fuori-le-mura tinha apenas 2.500 metros quadrados (Deus possuía acomodamentos notavelmente mais espartanos depois do fim do Império Romano do Ocidente). Diversos objetos encontrados em vários sítios arqueológicos demonstram, juntamente com os inúmeros grafites de Pompéia – amiúde pornográficos – que a população romana era, em grande parte, alfabetizada; pedras de catapulta recuperadas em Perugia, local de um cerco na época das guerras civis de Augusto e Marco Antônio, são repletas de mensagens curtas elaboradas por várias mãos, na esperança de não apenas esmagar a cabeça dos oponentes, como também desmoralizá-los. O exemplo mais pornográfico, citado por Ward-Perkins, é de um onde está escrito “Lúcio Antônio [líder da guarnição de Perugia], seu careca, e Fúlvia [esposa de Marco Antônio e presente no cerco], mostrem-nos seus traseiros” (p. 158). Esta atitude implica que um número significativo de soldados, e não apenas Lucio Antônio e Fúlvia, eram capazes de ler tal educada missiva, e que o conhecimento da escrita era suficientemente difundido na sociedade romana que acabava se tornando banal. Comparar-se-á tal situação com a educação no século VI: a maioria dos soberanos dos primórdios da Idade Média, incluindo o próprio Carlos Magno, eram totalmente iletrados, que se dirá do grosso da população (p. 166-167).

Vacas esfomeadas, soberanos analfabetos, apetrechos miseráveis, igrejas apertadas: tal compêndio de evidências permite a Ward-Perkins afirmar, tranqüilamente, que o final do Império Romano trouxe consigo o final de uma civilização, tal qual Ward-Perkins concebe o termo, isto é, “sociedades complexas e o que elas produzem (p. 167.)”.

Segue-se um capítulo de discussão historiográfica, na qual Ward-Perkins dialoga com a escola da Antiguidade Tardia. Ward-Perkins constata as duas principais características desta escola: uma nítida preferência pela abordagem do oriente do mundo romano (incluindo-se aí o Império Persa e as sociedades do Cáucaso e da Arábia) e uma preocupação central com o fato religioso da sociedade. Embora o autor veja importantes conquistas provindas desse movimento, ele manifesta uma preocupação que tal foco acabe distorcendo a visão que temos da sociedade romana nos séculos IV-VI de uma forma semelhante à que acabava impondo um declínio econômico às províncias orientais do Império, mas com sinal trocado: agora, o período seria de um crescimento social e cultural em todas as regiões imperiais, o que não é o caso. Da mesma forma, ele manifesta uma preocupação com os rumos que a historiografia da Antiguidade Tardia acaba tomando: no recente Guia da Antiguidade Tardia, Ward-Perkins procurou, em vão, por um verbete sobre o “prefeito pretoriano”, o mais alto posto civil do Império Romano nesse período, mas não achou nada entre “pornografia” e “reza (prayer, no original)”.

Ward-Perkins conclui seu livro defendendo o direito do historiador de usar termos difíceis, como “civilização” e “declínio” – cabe lembrar aqui que os historiadores brasileiros que estudam esse período não precisam fazer uma defesa desse direito: Norma Musco Mendes escreveu uma obra intitulada “Sistema político do Império Romano do Ocidente: um modelo de colapso”. O autor levanta a hipótese que a não-utilização do termo “declínio” seja por um receio de acabar realizando um julgamento moral, mas é possível fazer a objeção de que a palavra “declínio” não necessariamente implica uma opinião quase que metafísica acerca de uma dada sociedade (coisa que não acontece com o termo “decadência”).

Com essa obra, Ward-Perkins realizou algo muito importante: desafiando uma nova ortodoxia acadêmica, abre novos caminhos de pesquisa e faz rever conceitos arraigados no ambiente universitário. Tão polêmico quanto valioso, é uma obra-prima.

Gabriel Requia Gabbardo – Mestrando em História da UFRGS. E-mail: [email protected].


WARD-PERKINS, Bryan. The Fall of Rome and the end of civilization. Oxford: Oxford University Press, 2005. Resenha de: GABBARDO, Gabriel Requia. Aedos. Porto Alegre, v.2, n.5, p. 141- 145, jul. / dez., 2009.

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