50 anos de feminismo – BLAY; AVELAR (REF)

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Eva Alterman Blay. Foto: Cecília Bastos/2018/USP Imagens. jornal.usp.br

BLAY e AVELAR 50 anos de feminismo FeminismoBLAY, Eva Alterman; AVELAR, Lúcia. 50 anos de feminismo: Argentina, Brasil e Chile: a construção das mulheres como atores políticos e democráticos. São Paulo: EUSP, Fapesp, 2017. Resenha de: ALEIXO, Mariah Torres. Argentina, Brasil, Chile entre feminismos e os direitos das mulheres. Revista de Estudos Feministas, Florianópolis, v.28 n.2 2020.

Em abril de 2017, a socióloga Eva Alterman Blay e a politóloga Lúcia Avelar publicaram1 a obra 50 anos de Feminismo: Argentina, Brasil, Chile: a construção das Mulheres como Atores Políticos e Democráticos. O livro é uma coletânea de artigos que transitam entre sociologia, ciência política, antropologia, demografia, comunicação e os ativismos feministas.

Embora o contexto político sul-americano recente indique retrocessos no que concerne às conquistas de direitos das mulheres, a publicação – ao fazer a genealogia e a problematização de mobilizações, conquistas e desafios feministas na Argentina, no Brasil e no Chile – mostra que há feminismo consolidado nesses países, induzindo pensar no caráter provisório de alguns recuos atuais. Nesse sentido, os feminismos, especialmente nesses países, não seguem um traçado evolutivo unilinear em direção ao progresso, mas seu percurso é espiralado, permeado de conquistas, derrotas e transformações.

Resultado da pesquisa “50 anos de Feminismo (1965-2015): Avanços e Desafios: Argentina, Brasil, Chile”, coordenada pelas organizadoras do volume e realizada no âmbito do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP), a escolha dos três países foi devido a algumas semelhanças fundamentais entre eles: (1) possuem movimentos feministas vigorosamente articulados, (2) enfrentaram ditaduras militares na segunda metade do século XX, e (3) em tempos recentes elegeram mulheres para o principal cargo do poder executivo.

O livro está dividido em três seções: “Parte 1: 50 anos de feminismo: uma trajetória histórica”; “Parte 2: Velhos e novos desafios dos feminismos” e “Parte 3: Breves cronologias dos movimentos feministas”, na qual são descritas as cronologias dos feminismos argentino, brasileiro e chileno.

O texto que abre a primeira parte é de autoria de José Eustáquio Diniz Alves, Suzana Marta Cavenaghi, Angelita Alves de Carvalho e Maira Covre Sussai Soares. Intitulado “Meio século de feminismo e o empoderamento das mulheres no contexto das transformações sociodemográficas do Brasil”, as autoras argumentam que as transições urbana e demográfica brasileiras influenciaram e foram influenciadas pelo feminismo, causando o que afirmam ser “uma revolução silenciosa” (José ALVES; Suzana CAVENAGHI; Angelita CARVALHO; Maira SOARES, 2017, p. 17), mas incompleta, porque a igualdade de gênero ainda não foi totalmente atingida no país. Essas transições urbana e demográfica não melhoraram as condições de vida das mulheres, como o fato de terem maior possibilidade de estudarem, de participarem da População Economicamente Ativa (PEA) e de terem assistência à saúde. Porém, ainda há, no país, pouca divisão das tarefas domésticas e de cuidados, baixa representação das mulheres na política e altos índices de mortes femininas violentas.

Na sequência, há o capítulo das pesquisadoras e ativistas argentinas Dora Barrancos e Nélida Archenti – “Feminismos e direitos das mulheres na Argentina: história e situação atual” – em que traçam uma breve trajetória e delineiam características gerais do feminismo no país, passando pelo início das mobilizações pelo sufrágio do começo do século XX até 1947, quando foi conquistado tal direito, passando pela segunda onda, temporalmente situado em meio à ditadura militar argentina. O fim da ditadura, em 1983, possibilitou a ampliação da organização das mulheres, especialmente em torno da luta contra a violência doméstica e pela maior participação política. Atualmente, elas identificam a prevalência do que denominaram “feminismo relacional” (Dora BARRANCOS; Nélida ARCHENTI, 2017, p. 62), que leva em consideração também dimensões de classe e etnia, e postulam que há a difusão de ideias relativas à igualdade de gênero no país, sem polêmica e confronto entre feministas “institucionais” e “autônomas”.

Em “Como as mulheres se construíram como agentes políticas e democráticas: o caso brasileiro”, Eva Alterman Blay explica as divergências entre marxismo e feminismo nos partidos de esquerda no país, num determinado período histórico. Expõe as articulações das mulheres durante a ditadura militar em prol do fim da violência contra as mulheres e, também, pela democratização. Afirma que, atualmente, há plena relação entre feminismo e política no Brasil, embora ainda seja necessário avançar em muitas frentes, além de combater retrocessos conservadores. Por sua vez, a antropóloga e militante feminista Eliana Largo Vera, em “50 anos de feminismo no Chile texto e contexto”, também faz uma espécie de percurso feminista no país até os dias atuais. Semelhante à Argentina e ao Brasil, no Chile o movimento feminista se articulou fortemente durante a ditadura militar e o fim do período trouxe divergências entre as “feministas autônomas” e as “institucionais” (Eliana LARGO VERA, 2017, p. 113). Na análise que elabora sobre a atualidade, a autora aponta para a diversificação dos feminismos chilenos, juntamente à defesa dos direitos humanos das mulheres.

A “Parte 2: Velhos e novos desafios dos feminismos” inicia com o capítulo “Relações sociais de gênero nas cooperativas de reciclagem”, da socióloga Paula Yone Stroh, no qual discute sobre a categoria laboral catadores de materiais recicláveis – que, segundo explica, desponta no início dos anos 2000, com a criação do Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR). No bojo do movimento começam a surgir as mulheres catadoras como uma nova identidade política. Conforme analisa, essas mulheres não se colocam como explicitamente feministas, mas suas reivindicações renderam a realização de dois encontros nacionais, que anunciam a realização do I Congresso Nacional das Catadoras, em médio prazo, segundo a autora, mas ainda sem data prevista para ser realizado; e de parcerias institucionais.

Em “Coalizões queer: aborto, feminismo e dissidências sexuais de 1990 a 2005 em Buenos Aires”, a jornalista e ativista Mabel Bellucci narra a luta pela legalização do aborto no país desde seu início, na década de 1980, até o lançamento da Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e Gratuito, em 2005. Atualmente, essa demanda envolve o direito de escolha das mulheres sobre a maternidade, mas também questionamentos sobre as formas de reprodução humana e à heterossexualidade obrigatória. Por sua vez, o texto da militante e socióloga Sandra Palestro Contreras, “Feminismos no Chile: traços de ontem e de hoje”, faz um apanhado da rota feminista no país, desde a conquista ao direito à educação e ao voto em fins do século XIX até meados do século XX, passando pelo governo de Salvador Allende, atravessando o pós-ditadura e as diferentes estratégias feministas de atuação até chegar nos desafios atuais, em cujo momento as diferenças entre as mulheres se impõem como questão sobre a qual se deve refletir e agir.

A obra continua com o texto da socióloga Flávia Rios, “A cidadania imaginada pelas mulheres afro-brasileiras: da ditadura militar à democracia”, no qual explica que é no contexto ditatorial que críticas às representações dominantes sobre homens e mulheres negras – que os e as colocavam em posições de subalternidade – ganham força, impulsionadas pelo ativismo político da população negra nos feminismos e nas lutas antirracistas. A polêmica sobre quais seriam as pautas gerais e as reivindicações específicas, própria daquele período, não favorecia a discussão das dimensões de gênero, classe e raça, que atravessava e ainda atravessa as vivências de mulheres em sua heterogeneidade. Porém, com a redemocratização, as mulheres negras passaram a se organizar em coletivos menos institucionalizados, com o apoio das estruturas dos movimentos negro e feminista. Nesse contexto, foram criadas importantes organizações não governamentais (ONGs) de mulheres negras e que atuam até hoje, de maneira que, atualmente, é notável a participação das mulheres negras no feminismo de Estado, sobretudo com os conceitos de interseccionalidade e transversalidade.

Em “Como as mulheres se representam na política? Os casos de Argentina e Brasil”, das politólogas Lúcia Avelar e Patrícia Rangel, há a comparação entre os dois países quanto à representação política feminina parlamentar e extraparlamentar. Ambos obtiveram ampliação dos direitos das mulheres, porém, conseguidas de maneiras diferentes. No caso brasileiro, a representação e a participação extraparlamentar, na forma de advocacy, é o que tem garantido as mudanças institucionais que asseguraram os direitos das mulheres. Já na Argentina, os direitos das mulheres são avalizados pelo parlamento, sendo a representação e a participação extraparlamentar pequena, se comparada ao Brasil. Assim, as brasileiras, que acabam sendo responsáveis pela garantia dos direitos das mulheres em função do déficit de representação no parlamento, são as mais institucionalizadas, enquanto que o feminismo argentino possui caráter menos formal e socialmente mais difundido.

No último texto da seção, “A questão do aborto e as eleições de 2010”, a comunicóloga e cientista social Fátima Pacheco Jordão e a cientista social Paula Cabrini mostram, por meio da análise de dados quantitativos sobre as eleições presidenciais de 2010 no Brasil, que a posição pública dos candidatos à presidência sobre o aborto não foi determinante para a escolha dos/as eleitores/as, ao contrário do que se poderia supor, considerando o tom daquela campanha eleitoral. A partir desse dado, as autoras argumentam que as feministas brasileiras perderam importante timing para dialogar amplamente sobre pauta tão cara às mulheres. Elas sugerem que, ao invés de priorizar o apoio à candidata Dilma Rousseff, parte do movimento feminista que abdicou da reivindicação pelo direito ao aborto naquele momento, poderia ter aproveitado o cenário favorável e, assim, ter suscitado publicamente a questão.

Por fim, a terceira parte do livro traz a descrição das cronologias dos feminismos argentino, brasileiro e chileno, possibilitando a sistematização de diversas informações dos textos das seções anteriores. Na sequência, há uma o currículo detalhado dos/as autores/as da obra, corroborando seu caráter interdisciplinar e colocando em evidência, também, a interlocução dos/as autores/as com diversos ativismos feministas.

Num olhar pouco atento, é possível criticar o livro organizado por Blay e Avelar, por sugerir que o feminismo seja lido como sinônimo de direitos das mulheres. Nesse sentido, é conhecida a formulação de Judith Butler (2003) de que o feminismo, ao se organizar em torno do sujeito político mulher, acabou por excluir aquelas e aqueles que não se encaixam na definição de mulher hegemônica, isto é, as mulheres de cor, as trans, entre outras. A autora propõe que a organização política feminista seja feita por afinidade de pautas e não exclusivamente por meio da identidade, mas reconhece que é desse modo que o poder funciona e que não se pode abdicar totalmente dele.

O volume mostra a emergência dos feminismos nesses países, ainda como questão de mulheres e, também, a forma com que esses feminismos lidaram com a necessária transformação de suas práticas, pensamentos e com a realização de alianças com setores sociais diversos. Se ainda se fala em direitos da mulher, no singular, nos três países, é porque muitos ainda não foram garantidos e porque a política tradicional – aquela que formula leis e políticas públicas – ainda impõe uma identidade una e pretensamente estável para conferir direitos. Cabe às pesquisadoras, aos pesquisadores e ativistas a tarefa de pensar e agir para que todas as dimensões da cidadania possam ser garantidas, e é nesse sentido que a leitura da obra se impõe e contribui para o debate.

Referências

ALVES, José Eustáquio Diniz; CAVENAGHI, Suzana Marta; CARVALHO, Angelita Alves de; SOARES, Maira Covre Sussai. “Meio Século de feminismo e o empoderamento das mulheres no contexto das transformações sociodemográficas do Brasil”. In: BLAY, Eva Alterman ; AVELAR, Lúcia (Orgs.). 50 anos de feminismo: Argentina, Brasil e Chile: a construção das mulheres como atores políticos e democráticos. São Paulo: EDUSP, 2017. p. 15-54. [ Links ]

BARRANCOS, Dora; ARCHENTI, Nélida. “Feminismos e direitos das mulheres na Argentina: história e situação atual.” In: BLAY, Eva Alterman ; AVELAR, Lúcia (Orgs.). 50 anos de feminismo: Argentina, Brasil e Chile: a construção das mulheres como atores políticos e democráticos. São Paulo: EDUSP, 2017. p. 55-64. [ Links ]

BUTLER, Judith. Problemas de Gênero. Feminismo e subversão da identidade. Trad. de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. [ Links ]

LARGO VERA, Eliana. “50 anos de feminismo no Chile: texto e contexto.” In: BLAY, Eva Alterman; AVELAR, Lúcia (Orgs.). 50 anos de feminismo: Argentina, Brasil e Chile: a construção das mulheres como atores políticos e democráticos. São Paulo: EDUSP, 2017. p. 99-135 [ Links ]

1 Além de serem as organizadoras do livro, Eva Alterman Blay é autora do capítulo “Como as mulheres se construíram como agentes políticas e democráticas: o caso brasileiro” e Lúcia Avelar é autora, juntamente com Patrícia Rangel, do capítulo “Como as mulheres se representam na política? Os casos de Argentina e Brasil”, sobre os quais tratarei mais adiante.

Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista: ALEIXO, Mariah Torres. “Argentina, Brasil, Chile entre feminismos e os direitos das mulheres”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 28, n. 2, e60428, 2020.

Financiamento: O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001

Mariah Torres Aleixo ([email protected]) – É doutoranda em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGAS/UFRGS) e tem mestrado em Direitos Humanos pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Pará (PPGD/UFPA).

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