Provas de liberdade: uma odisseia atlântica na era da emancipação – SCOTT et. al (VH)

SCOTT, Rebecca J; HÉBRARD, Jean M. JOSCELYNE, Vera. Provas de liberdade: uma odisseia atlântica na era da emancipação. Campinas: Editora da Unicamp, 2014. 296 p. DIÓRIO, Renata Romuldo. Provas de liberdade: uma odisseia atlântica na era da emancipação. Varia História. Belo Horizonte, v. 31, no. 57, Set./ Dez. 2015.  

Edouard Tinchant, um homem negro, “descendente de haitianos”, nascido em New Orleans, sul dos Estados Unidos, viveu na Antuérpia, onde foi fabricante e comerciante de tabaco. Em 1899, ele escreveu para Máximo Gomez, um dos líderes pela luta da independência cubana, para fazer um pedido. Tinchant pretendia usar o nome e o retrato do general Gomez como marca de seus melhores charutos. O pedido seria uma forma de reverenciar um defensor do antirracismo, causa que marcou a história dos seus antepassados e descentes.

A referida carta foi encontrada por Rebecca Scott e Jean Hébrard, no Arquivo Nacional de Cuba, e, a partir desta, esses pesquisadores iniciaram uma busca surpreendente por outras informações relativas à vida profissional e pessoal de Tinchant. Eles obtiveram dados sobre cinco gerações de uma família constituída pela união entre uma africana e um francês, Rosalie e Michel Vincent, e essa extensa pesquisa documental deu origem ao livro Provas de Liberdade: uma odisseia atlântica na era da emancipação.

As trajetórias de homens e mulheres de cinco gerações da família de Tinchant foram resgatadas com base em registros encontrados em arquivos. Estes documentam momentos de suas vidas em diferentes locais onde se instalaram, como Cuba, Estados Unidos (Luisiana), Haiti, Bélgica (Antuérpia) e França. As histórias são elucidadas a partir da análise de cartas de alforria, batismos, testamentos, contratos de casamento, recenseamentos, dentre outros. O pano de fundo são os acontecimentos políticos que perpassam a crise do escravismo e do colonialismo no Mundo Atlântico e as revoluções antirracistas e de cunho liberal do século XIX. As principais são a Revolução Haitiana, a Revolução Francesa de 1848, a Guerra Civil e a Reconstrução nos Estados Unidos.

Por meio dos estudos dessa família, o livro aborda questões relativas a tráfico, escravidão, liberdade e condições impostas aos descendentes de escravos nos séculos posteriores à emancipação e em contextos de guerras. As histórias dos membros dessa família convergem na luta por direitos, como a preservação da liberdade, a legitimidade das uniões conjugais e a garantia da cidadania. Na opinião de Rebecca Scott e Jean Hébrard, Rosalie e seus descendentes eram conscientes da importância dos documentos para a reivindicação de suas prerrogativas, e em função disso, procuravam os meios para que os registros fossem produzidos. Esse é o fio condutor de histórias vivenciadas pelas pessoas que possuíam laços consanguíneos em locais e momentos tão díspares.

O livro dialoga com trabalhos mais recentes que buscam uma narrativa de biografia. Nesse caso, trata-se de pequenas biografias desenvolvidas a partir das escolhas individuais dos descendentes de Rosalie, apresentadas em nove capítulos. São micro-histórias “em constante movimento”, como afirmam os autores. Partidas, chegadas e fixação em diferentes localidades denotam uma relação direta com condicionantes como legislação, hierarquia social e guerra.

Tráfico, escravidão e liberdade são elucidados pela trajetória de vida de Rosalie na segunda metade do século XVIII. Os principais mecanismos de administração da escravidão nos domínios franceses e espanhóis no Novo Mundo são relatados a partir das experiências dessa africana dentro de um contexto mais amplo em que estava inserida. São evidenciados os indícios da sua travessia pelo Atlântico, da Senegâmbia para Santo Domingo, Caribe, passando pelo período que viveu sob o regime da escravidão até a sua libertação.

No período da Revolução Haitiana Rosalie era denominada na documentação como Marie Françoise. Nessa ocasião, ela era liberta e possuía quatro filhos, fruto da relação conjugal com o francês Michel Vincent. Em uma tentativa de fuga para Cuba, a família foi separada, a filha, Elisabeth Vincent, foi levada para Nova Orleans, onde mais tarde casou-se com o carpinteiro Jacques Tinchant. Edouard, mencionado anteriormente, era um dos cinco filhos nascidos dessa união, nenhum deles se encontrou com a avó, Marie Françoise. Embora os Tinchant apresentassem uma confortável situação na Louisiana, a família partiu para a França em 1840. Pelo que consta nas fontes encontradas, o motivo teria sido a tentativa de escapar das severas leis que incidiam sobre homens negros e seus descendentes nos Estados Unidos daquela época.

A trajetória política de Edouard Tinchant merece destaque, pois ele foi diretor de uma escola de crianças libertas, veterano do exército da União na guerra civil e representante multirracial no sexto distrito de Nova Orleans. No entanto, foi na Antuérpia que ele teve uma espetacular ascensão econômica com a produção e venda de charutos finos. Seus negócios estenderam-se para Nova Orleans e também para o México, onde Joseph Tinchant, irmão de Edouard, representou o empreendimento. Eles transitaram entre a América do Norte e a Europa, deixando registros como empresários ou cidadãos respeitáveis. Em 1875, Joseph foi mencionado nos documentos como Don Joseph Tinchant, que, de acordo com as formas de tratamento local, indicava ser um cidadão do México.

Em 1937, Marie-José Tinchant, uma jovem de 21 anos que era neta de Joseph Tinchant, deu uma entrevista ao jornal londrino Daily Mail. A publicação mostra que, embora Marie-José fosse uma moça delicada, culta e filha de um próspero comerciante de charutos da Antuérpia, teve seu casamento anulado por causa da tez da sua pele. Mesmo fugindo e conseguindo realizar o casamento, ocorreram tentativas de anulação da união da parte dos pais do noivo, com base no preconceito racial. Anos depois ela é presa pelas forças nazistas de ocupação da Bélgica, supostamente por ser um membro do Movimento de Resistência durante a Segunda Guerra, e morre em um campo de concentração em 1945, na Ravensbrück, Alemanha.

Os momentos de vida elucidados no livro resultam de um levantamento exaustivo de fontes sobre os membros das famílias de descendentes da ex-escrava Rosalie, depois referida como Marie Françoise. As histórias são retratadas com acentuada tendência, por parte dos autores, em suposições de informações que não são captadas por meio dos documentos. De todo modo, isso em nada compromete o trabalho, tamanho o esforço em evidenciar como essas gerações fizeram uso desses papéis para legitimar seus direitos e superar restrições que os ligavam à escravidão. O livro nos mostra que quanto mais distante da condição escrava, maiores as chances de obter ascensão econômica, social e até mesmo política. Contudo, também deixa claro que em cada uma dessas conquistas havia uma luta constante em torno do combate ao racismo que assolou e ainda assola gerações até os nossos dias.

Por abarcar um período tão abrangente, marcado por tantas mudanças, o livro interessa aos especialistas da escravidão, do fim do colonialismo e dos conflitos antirracistas no Mundo Atlântico, mas também àqueles dedicados a debates mais contemporâneos acerca da luta contra o racismo

Renata Romuldo Diório – Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo. Pós-Doutoranda em História Social da Cultura. Universidade Federal de Minas Gerais. Rua Amador Catarino Jales, 105, Distrito de Padre Viegas, Mariana, MG, 35422-000, Brasil. [email protected].

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