Uma editora italiana na América Latina – SCARZANELLA (Topoi)

SCARZANELLA, Eugenia. Uma editora italiana na América Latina: o Grupo Abril (décadas de 1940 a 1970). Campinas: Editora da Unicamp, 2016. Resenha de: NASCIMENTO, Aline de Jesus. A família Civita e a imprensa na América Latina. Topoi v.21 n.43 Rio de Janeiro Jan./Apr. 2020.

Escrever acerca da trajetória dos fundadores até a consolidação da Abril é tarefa que exige fôlego. Em meados do século XX, os seus criadores remodelaram os nichos editoriais na América Latina, principalmente no que tange ao caso brasileiro. Além do tradicional almanaque e das mais diversas coleções de fascículos, os produtos foram diversificados em vários suportes impressos não se limitando apenas às revistas, destinadas aos mais diversos públicos. A Abril segmentou o mercado de impressos e levou às bancas o mais variado tipo de revistas, que iam do esporte à moda, do gerenciamento e decoração da casa à informação semanal, enfim, uma diversidade de conteúdos que acabavam por agradar diferentes leitores e interesses, o que permitiu à empresa construir um verdadeiro império no campo editorial e tornar as bancas de jornais locais de informação e entretenimento. Uma empresa com tal renome não passaria impune aos historiadores, há uma gama de trabalhos acadêmicos acerca das principais revistas produzidas pela empresa, cada qual com sua metodologia.

O livro da professora de História da Universidade de Bolonha, Eugenia ­Scarzanella, seguiu uma linha interessante ao se basear na trajetória dos italianos pertencentes à família Civita na segunda metade do século XX. Especialista em América Latina, o livro representa sua primeira investida na empresa Abril. Sem deixar de entrelaçar as publicações da editora com o contexto político vigente, Scarzanella esmiuçou, com maestria, uma análise que levou em conta a experiência da Abril na Argentina, no ­Brasil e no México. Portanto, apesar da editora Abril constituir-se objeto comumente pesquisado, a autora contribui para as relações internacionais de um empreendimento que não afetou apenas o campo econômico, mas também o cultural. Dessa maneira, o título da obra por si já fornece indícios do que o leitor irá encontrar ao se debruçar no texto: a experiência de uma editora italiana na América Latina.

Cabe destacar dois pontos: a data de lançamento da tradução em português foi oportuna, visto que o atual cenário da editora não é mais promissor como o das décadas anteriores; a edição brasileira foi publicada pela Editora Unicamp, renomada por disseminar grandes títulos na área acadêmica.

Além do obstáculo da escassez de estudos que contemplem a trajetória da editora nos três países, outro desafio da pesquisa concerne às fontes. A fragmentação de documentos da editora Abril, que se encontram espalhados em diferentes bibliotecas e arquivos históricos, elencados na apresentação do livro, exigiu o empenho da pesquisadora não apenas na recolha, mas também no estabelecimento de uma linha de raciocínio diante de tantas frações. Também, a ausência de indícios fez com que Scarzanella levantasse diversas fontes para cobrir possíveis brechas na história. As fontes orais foram contribuições relevantes para o trabalho da historiadora. Além de compartilharem lembranças dos membros da família Civita, os testemunhos dos funcionários da empresa forneceram informações que não puderam ser acessadas nos escassos documentos oficiais.

A obra privilegia os primeiros anos da editora na Argentina, ao evidenciar como ocorreu a investida da empresa e quais foram as obras de mais destaque naquele país. A questão das relações étnicas e de como os italianos ocuparam espaço desse empreendimento na Argentina foi delineado pela autora e representa um novo olhar acerca da empresa. O livro, desse modo, contribui para novas perspectivas acerca dessa grande empresa que não se limitou apenas a um espaço geográfico.

O Brasil aparece como pano de fundo, quando a Abril constituiu-se numa empresa autônoma, mas que soube se apropriar de determinadas publicações de sua vizinha. Ao México foram destinadas poucas páginas no final do livro. A partir da atuação da família Civita na América Latina, o livro está dividido em seis capítulos com títulos claros acerca do que cada componente irá abordar. Acrescenta-se dois recursos interessantes: o índice onomástico e o caderno de imagens, elementos pós-textuais de grande relevância para quem quer realizar uma rápida consulta de revistas citadas no decorrer dos capítulos.

Scarzanella abordou os passos iniciais dos fundadores das empresas, a família ­Civita, desde o momento que fizeram parte da estatística dos exilados que se espalharam nos territórios da América por causa dos regimes totalitários entre 1920 e da Segunda Guerra Mundial que eclodiram na Europa. Cabe lembrar que uma parcela desses exilados era pertencente à classe social média alta, com elevados recursos econômicos e culturais. A atividade editorial da família Civita dentro do território latino-americano iniciou-se na Argentina com Cesare, empenhado em publicações de revistas em quadrinhos. Uma rede de relações e parcerias, firmadas por Cesare, na qual estavam envolvidos contatos com a comunidade judaica e italiana na Argentina, possibilitou um leque de novos financiadores e leitores. Em 1944, a Abril argentina publicou uma revista em pequeno formato da Disney: El Pato ­Donald. Trabalhar nesse local não significou apenas um privilégio econômico comparado a outros empregos no setor, simbolizava a possibilidade de compartilhar um ambiente dinâmico, jovem, culto e divertido.

Vittorio seguiu o caminho do irmão e, com os direitos autorais da Disney, publicou no Brasil, em junho de 1950, o Pato Donald, marcando o momento inicial da empresa que dominaria as bancas em poucos anos. A sede da editora sempre foi São Paulo, estado que se destacava do ponto de vista econômico e que então contava pouco mais de dois milhões de habitantes. O mundo do jornalismo, assim como o da cultura e dos intelectuais, era largamente dominado pelo eixo Rio de Janeiro/São Paulo e a cidade foi uma aposta do fundador que acabou por se revelar bastante acertada.

Scarzanella estabeleceu os traços comuns entre os dois países, que não se limitaram apenas pela escolha do mesmo nome para a editora. O desenvolvimento paralelo da Abril no Brasil e na Argentina prosseguiu por todos os anos de 1950. O caso da revista de fotonovelas Capricho merece destaque nessa relação devido ao seu grande sucesso. Lançada em 1952, a revista foi dirigida por uma colaboradora da Abril argentina, a fim de contribuir para o lançamento de novas publicações nesse gênero. Após uma mudança de formato e o início da publicação de histórias completas em cada número, o periódico chegou a uma tiragem de 500 mil cópias e uma versão em espanhol passou a ser distribuída na Argentina.

O segredo da Abril consistia em colocar no mercado novos produtos com publicações diferenciadas e destinadas a determinadas faixas de consumidores, em uma velocidade imposta pelas nuances do mercado editorial. Assim, em 1959, foi lançada em São Paulo a primeira revista de moda, Manequim, que utilizava material fotográfico proveniente de Buenos Aires.

Ainda na década de 1960, Parabrisas na Argentina foi grande sucesso relacionada ao desenvolvimento da indústria automobilística no país. O êxito acarretou no aumento de sua periodicidade – de mensal para semanal – a fim de estar mais presente nas bancas. Foi rebatizada como Corrida (1966) e Raúl Horacio Burzaco foi convidado para dirigi-la. Em agosto de 1960, a Abril de São Paulo lançou a revista Quatro Rodas, sob direção do jornalista Mino Carta, nos moldes da publicação argentina, igualmente especializada em turismo e automóveis.

Em 1961 surgiu nas bancas Claudia, publicação homônima à argentina lançada em 1957. Seguindo os moldes de Marie Claire, Grazia e Ladies’ Home Journal, esse semanal feminino foi de imediato grande sucesso. Destinado a donas de casa, explorou o uso de fotografia e publicidade nas suas páginas. No caso brasileiro, foi a primeira revista feminina que trouxe no título o nome de uma mulher. Os periódicos renovaram o gênero e sempre estiveram em sintonia com o crescimento da urbanização e das camadas médias. Porém, progressivamente ambas as revistas, brasileira e argentina, se distanciaram, ao adequar-se aos poucos cada qual a sua realidade nacional. Com grande sucesso até os dias atuais, no Brasil, Cláudia, destinada à mulher casada, deu origem a subprodutos como Casa Cláudia.

A Abril firmou-se no mercado brasileiro em função de projetos grandiosos e inovadores. Para garantir maior eficiência na vendagem, a editora criou uma rede de distribuição própria, comprou bancas e financiou jornaleiros para os quais organizou também cursos de formação. A editora brasileira antecipou-se à argentina no mercado de enciclopédias e fascículos com A Bíblia mais bela do mundo (1965), Os pensadores (1974), Os economistas (1982).

Pode-se levantar hipóteses de que a Abril brasileira pôde usufruir da vantagem de melhores relações com o poder público, mesmo com as dificuldades ligadas à limitação da liberdade da imprensa, fator que não se repetiu com a ditadura na Argentina. O regime militar brasileiro foi provavelmente para os empresários um interlocutor mais estável e mais hábil na gestão da economia em relação ao regime militar argentino, que fez as empresas naquele país “navegar[em] em águas difíceis, adaptando-se à mudança brusca de governos, à pretensão recorrente dos militares de impor à censura (e com ela a moral católica e conservadora) e à hostilidade dos seguidores de Perón (de direita e de esquerda), em guerra permanente entre si” (p.113).

A irmã brasileira lançou Realidade, em 1966, e Veja, em setembro de 1968. A censura impediu a circulação da primeira durante dois anos devido aos conteúdos considerados ofensivos (sexo, aborto, divórcio). O momento de lançamento da última não foi feliz porque, em dezembro do mesmo ano, foi decretado o Ato Institucional nº 5, com o qual o regime militar suspendia as garantias constitucionais. Entre 1975 e 1976, Veja teve que se submeter à aprovação prévia da censura e evitar tratar de uma lista de temas proibidos. Inclusive, de acordo com a historiadora, a demissão do diretor da revista, Mino Carta, teria sido uma exigência da ditadura, informação contestada de acordo com a versão do Roberto Civita (ALMEIDA, 2009, p. 151). Veja conseguiu sobreviver à ditadura e quando a editora brasileira comemorou 50 anos foi a revista com mais exemplares vendidos no país.

A Abril argentina não teve a mesma sorte, seus semanários de atualidade foram alvos de forte censura, houve intimidação e violência contra jornalistas, proprietários e tipógrafos. Em 1975, a organização de direita Aliança Anticomunista Argentina (Triple A) explodiu, diante do prédio da editora, uma bomba lança-panfletos contendo ameaças aos funcionários e à família Civita. Uma contribuição interessante do livro, mas que é pincelada pela autora foi que o empresário Cesare decidiu deixar o país e tentar se instalar em São Paulo, mas Vittorio teria dito que não havia modos de utilizá-lo dentro da sociedade. Esse tema pouco explorado representa uma nova perspectiva sobre a relação dos dois irmãos e questionamentos acerca dos conflitos de interesse das empresas.

A partir dos anos de 1960, Cesare tentou se inserir no México, com a Mex-Abril. enviando o genro Giorgio de Angeli para gerir esse novo empreendimento. Claudia também recebeu uma versão nesse país, com ingredientes locais, com divulgação de material de escritores e comerciantes, assuntos sobre homens e roupas que podiam ser compradas em boutiques nacionais, além de belas mulheres da televisão e sobre o cinema do país. A Mex-Abril não se revelou tão próspera quanto as irmãs e, no livro de Scarzanella, não houve muitas páginas dedicadas a essa investida de Cesare.

O destino da Abril argentina não se mostrou feliz desde os anos de 1970, explorado no encerramento do livro. Scarzanella enfatizou que o “capital social” de Cesare não foi o suficiente para transformar a editora argentina, empresa essencialmente familiar, em um empreendimento internacional. Os políticos, militares e lobistas teriam conquistados a Abril, como a própria autora afirmou no título do último capítulo.

O caso brasileiro foi mais frutífero. No ano de 2000, em seu cinquentenário, a empresa contava com 219 títulos nas bancas. Destarte, uma obra que demonstra as relações sociais e os empreendimentos na imprensa latino-americano dentro da família Civita, se caracteriza como uma leitura imprescindível. Principalmente, ao se considerar o entrelaçamento da Abril argentina com o contexto político do país que influenciou a sorte da empresa. Para um leitor que busca conhecimento acerca da Abril no Brasil e no México, o livro não contempla um estudo detalhado, o título original justifica o motivo: Abril – De Perón a Videla: um editore italiano a Buenos Aires. O assunto está longe de se esgotar dentro da obra, sendo, dessa maneira, um instrumento interessante para multiplicar as pesquisas sobre o assunto na área de História.

O estilo de escrita e a divisão dos capítulos permitem uma leitura fluída, inclusive para aqueles que não são especialistas na área. A obra se destaca por ser o resultado de uma pesquisa intensa com grande diversidade de fontes, motivo que contribui para os debates em torno da editora Abril e também abre espaço para se pensar acerca das redes étnicas criadas pela família Civita.

Referências

ALMEIDA, Maria Fernanda Lopes. Veja sob censura: 1968-1976. São Paulo: Jaboticaba, 2009. [ Links ]

SCARZANELLA, Eugenia. Uma editora italiana na América Latina: o Grupo Abril (décadas de 1940 a 1970). Campinas. Editora da Unicamp, 2016. [ Links ]

Aline de Jesus Nascimento – Mestranda da Universidade Estadual de São Paulo / Departamento de História, campus Assis, Assis/SP – Brasil. Bolsista Fapesp, processo nº 2017/15451-9. E-mail: [email protected].

Da senzala ao palco: canções escravas e racismo nas Américas (1870-1930) – ABREU (Tempo)

ABREU, Martha. Da senzala ao palco: canções escravas e racismo nas Américas (1870-1930). Campinas: Editora Unicamp, 2017. 462 p.p. (Coleção Históri@ Ilustrada). Resenha de: SOUZA, Sívia Cristina Martins. Canções escravas, trânsitos musicais atlânticos e racismo nas Américas. Tempo, v.25 n.1 Niterói jan./abr. 2019.

Os estudos sobre escravidão no Brasil passaram por transformações significativas a partir dos anos 1980, fruto do diálogo travado com uma historiografia internacional renovada, mas também impulsionados pelo fortalecimento dos movimentos negros; pelas ações públicas de combate ao racismo; pela compreensão sobre as lutas políticas, sociais e raciais; e pela disseminação das noções de diversidade cultural e racial. Essa historiografia desde então tem investido no enfrentamento de alguns desafios, entre uma série de outros: o de mostrar que os debates sobre as expressões culturais não podem prescindir de entender os embates sobre a questão racial nelas contidos, bem como a necessidade de denunciar as falácias contidas em mitos, visões e modelos interpretativos que por muito tempo deram o tom dos trabalhos nesta área.

Se os anos 1980 são referenciais para os estudos sobre escravidão, os anos 2000 marcam a emergência dos estudos sobre o pós-abolição e a constituição de um campo historiográfico que apresenta peculiaridades, apesar de sua íntima e reconhecida relação com a história social da escravidão e do processo de abolição.

Os diálogos travados entre a historiografia norte-americana e a brasileira sobre a escravidão e o pós-abolição não são recentes, mas tomaram rumos diferentes nas últimas décadas, em decorrência de algumas constatações. Entre elas destaca-se o reconhecimento de que, a despeito das especificidades dos sistemas escravistas e dos processos de abolição nos Estados Unidos e no Brasil, existem conflitos e experiências dos escravizados e libertos nas Américas que podem ser aproximados, desde que utilizadas metodologias e fontes adequadas, o que significa admitir a impossibilidade de pensar a diáspora africana a partir de histórias isoladas ou desconectadas.

Tal percepção tem ensejado um retorno às abordagens comparativas que já haviam alimentado alguns debates sobre instituições, culturas e organizações sociais nos anos 1940 e 1970, mas foram negligenciadas com a rejeição dos estudos dessa natureza pela historiografia norte-americana e, na historiografia latino-americana, pela concentração em estudos locais (Klein, 2012, p. 95).

A busca por novos procedimentos de análise para pensar problemas, definição de objetos de pesquisa e modos narrativos tem levado os historiadores a questionar a eficiência da própria História Comparada no seu projeto de superação dos limites da perspectiva nacionalista. A necessidade de considerar a nação mais um (e não o mais importante) fenômeno a ser elucidado, e as comparações entre nações mais como temas do que como métodos, tornou-se um objetivo perseguido em trabalhos desenvolvidos em diferentes perspectivas, tais como as Histórias Atlânticas, as Histórias Globais, as Histórias Conectadas, as Histórias Cruzadas e as Histórias Transnacionais (Barros, 2014, p. 280).

Analisar as identidades negras culturalmente híbridas e dinâmicas da diáspora, construídas a partir da memória do trauma original da escravidão e dos desdobramentos do pós-abolição com suas vivências de violência racial e racismo, é o objeto do trabalho referencial de Paul Gilroy intitulado O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência (2001). No prefácio à edição brasileira dessa obra, Gilroy sugere que o conceito de Atlântico Negro muito teria a ganhar se a ele fossem incorporados o Atlântico Sul e suas múltiplas configurações culturais (Gilroy, 2001, p. 16).

Da senzala ao palco: canções escravas e racismo nas Américas (1870-1930), o mais recente livro de Martha Abreu, é uma resposta muito bem-sucedida a esse desafio. Trata-se de um trabalho que abre novas possibilidades para os estudos das culturas e identidades negras no Brasil, em diálogo com os Estados Unidos, e insere o nome de sua autora de maneira definitiva numa historiografia de perspectiva atlântica ao lado de nomes como Micol Seigel, Denis-Constant Martin, Robin Moore, Sarah Merr, David Guss, Astrid Kusser e Kazadi wa Mukuna, entre outros.

O livro de Martha Abreu é um dos frutos dos caminhos trilhados por uma historiadora que elegeu as manifestações culturais populares como seu local de sondagem do mundo. Suas escolhas a conduziram por uma trajetória que, em suas próprias palavras, a transformou de “uma historiadora da festa e da cultura popular em uma historiadora do legado da canção escrava, do racismo no campo musical e cultural e dos caminhos construídos pelos músicos e artistas negros para enfrentá-lo e subvertê-lo”. Nesse percurso, Da senzala ao palco emerge como um ponto alto na produção de uma intelectual que tem contribuído com perspectivas inovadoras aos debates sobre a dinâmica das culturas e identidades negras atlânticas tanto na academia, como professora e pesquisadora, quanto na História Pública, nos projetos e ações relacionados a comunidades quilombolas e jongueiras e na transformação de suas memórias do cativeiro e da liberdade em luta contra o racismo, pelo direito à terra, pela igualdade e pela justiça.

O livro é o terceiro volume da Coleção Históri@ Ilustrada, publicada pela Editora Unicamp, fruto do trabalho de pesquisadores vinculados ao Centro de Pesquisa em História Social da Cultura (IFCH/Unicamp), do qual Martha Abreu participa desde a criação. O texto encontra-se disponível em dois formatos digitais: ePUB3 (com links internos para acesso a imagens, áudio e vídeo) e ePUB2 (com links internos para acesso a imagens e externos para áudio e vídeo). Com isso, Da senzala ao palco não apenas atinge um público amplo como também seus leitores têm a oportunidade de acessar 200 imagens, quase 50 fonogramas e 5 vídeos. Paralelamente ao livro, foi produzido um vídeo de 10 minutos intitulado Canções escravas e racismo nas Américas, que com ele dialoga, ajuda a divulgá-lo e pode ser utilizado por professores nas escolas e no ensino de História.1

Utilizando-se de um rico corpus documental e de uma vasta bibliografia especializada, a autora enfrenta basicamente quatro grandes questões ao longo de seu texto: os trânsitos internacionais, as canções escravas no mundo do entretenimento, as ações dos músicos negros e as construções do racismo no campo musical.

O objetivo central do livro é elaborar uma análise que aproxime as experiências de músicos negros e diferentes produtores e divulgadores das canções escravas nos Estados Unidos e no Brasil, no período que abrange de 1870 a 1930, a partir de problemas e fontes comuns e equivalentes. Sua intenção é, contudo, menos a de reforçar as evidentes diferenças entre os dois países, e mais destacar diálogos e aproximações nas formulações e experiências dos músicos negros e sobre música negra nas Américas. Trata-se, como se pode perceber, de uma história das expressões musicais da cultura negra escrita numa perspectiva atlântica que amplia os estudos sobre o pós-abolição ao sul do equador.

Cultura negra é um conceito central para a obra, embora não seja pensado ou utilizado pela autora como fechado e definitivo, mas enfrentado no seu próprio fazer historiográfico, através do uso das fontes e da metodologia. Ele remete às expressões culturais protagonizadas por afrodescendentes nas Américas e contém em seu âmago as noções de diáspora e desterritorialização por meio de estruturas transnacionais criadas e desenvolvidas na modernidade e marcadas por um sistema de comunicações permeado por fluxos e trocas culturais. Cultura negra é, portanto, um conceito que possibilita colocar em campo diferentes sujeitos sociais e diversas expressões e representações artísticas numa arena de conflitos. Ele indica, também, a intenção de questionar os estudos culturais marcados por perspectivas etnocêntricas e uma oposição à noção de que a cultura sempre flui em padrões que correspondem às fronteiras do Estado-nação.

Canções escravas ou “sons do cativeiro”, termos tomados de empréstimo a Shane e Graham White (White e White, 2005, p. ?), são expressões que não devem levar à falsa impressão de que a obra se dedica à escuta da sonoridade ou das formas musicais e estilísticas africanas presentes nas Américas, como esclarece Martha Abreu já nas páginas iniciais do livro. Entendidos como resultado da combinação de música, verso e dança, Canções escravas ou “sons do cativeiro” são termos alternadamente utilizados no livro para nomear as invenções musicais dos descendentes de africanos trazidos como escravos para o continente americano, as quais ganharam visibilidade e aceitação por meio da ação de músicos negros e de uma complexa rede de agentes que alimentou um cobiçado mercado musical que movimentava negócios de impressão e venda de partituras, espetáculos teatrais e indústria fonográfica. Vistas a partir desse ângulo, as canções escravas são decorrência de trânsitos e interações, tanto nacionais quanto transnacionais, e abrangem diferentes atores sociais, ainda que protagonizadas por músicos e atores negros.

Entre as principais fontes utilizadas por Martha Abreu, destacam-se textos de intelectuais que se preocuparam em entender e avaliar as “influências” dos africanos nas músicas e danças populares e nacionais, gravações fonográficas e, sobretudo, partituras musicais comercializadas em lojas de vendas de partituras, pianos, fonógrafos e discos, impressas pelas muitas editoras musicais existentes na ocasião. É digna de nota, nesse sentido, a análise minuciosa e instigante da autora sobre um extenso e significativo conjunto de capas de partituras cujas temáticas, títulos, gêneros, formas musicais e/ou ilustrações apresentam referências que remetem ao passado e às memórias do cativeiro, bem como a estereótipos e cenas racistas identificados com a população afro-americana no pós-abolição.

O livro organiza-se em nove capítulos abundantemente documentados – alguns deles anteriormente publicados em revistas especializadas (os de número 7, 8 e 9), mas modificados para essa publicação -, nos quais a autora aborda uma ampla pauta de questões. Entre elas encontram-se as experiências de músicos negros e destes com diferentes sujeitos envolvidos na produção e divulgação das canções escravas que alimentaram os trânsitos atlânticos no sentido Norte-Sul e vice-versa; as apropriações de gêneros, ritmos e formas musicais relacionados com africanos por músicos de formação erudita; as dimensões políticas das expressões musicais ligadas ao passado escravista; as experiências sociais e vivências de diferentes formas de racismo que aproximam as culturas negras e seus agentes; os significados das canções escravas para diferentes sujeitos negros, como os artistas Eduardo das Neves e Bert Williams e intelectuais acadêmicos como Coelho Netto e Du Bois; as aproximações entre as figuras de personagens como Pai João, Uncle Tom, Uncle Remus e Sambo, presentes na indústria fonográfica e na literatura popular, bem como as conexões transnacionais de gêneros musicais identificados e protagonizados por músicos negros, como o maxixe, que foi rapidamente assimilado nos Estados Unidos em função das suas proximidades com o cakewalk.

A leitura não é operação desprovida de sentido, pois quem lê busca significados, recorre a significantes, ritmos e formas e, nesse movimento, influenciam-se os modos de sentir, pensar e agir. Ao terminar a leitura do livro de Martha Abreu, o leitor provavelmente terá a sensação de ver abaladas determinadas certezas a respeito de algumas interpretações tradicionais sobre nosso passado musical ao constatar que elas não dão conta de um quadro muito mais rico e complexo.

São consideráveis, por exemplo, as contribuições do livro para se repensar determinadas versões sobre a história da música no Brasil, construídas com base nos marcos nacionalistas dos anos 1920 e 1930 ou na política cultural dos governos Vargas. E isso porque as discussões sobre as canções escravas nele presentes evidenciam quanto as manifestações musicais ditas nacionais só se sustentam e legitimam em contatos transnacionais por meio dos quais dialogam em termos referenciais, de elementos humanos e obtêm reconhecimento cultural. Nesse sentido, pode-se dizer que o livro de Martha Abreu nos mostra o tanto de transnacional que contém a noção de música nacional.

O leitor também perceberá quanto o campo musical foi um espaço minado, poroso e permeado por tensões e conflitos nos quais se travaram disputas em torno das representações dos descendentes de africanos e de seu patrimônio cultural e de como eles foram sujeitos ativos nesse processo. Coube a eles ampliar e redefinir discussões acerca das culturas nacionais, dos gêneros musicais, do legado da escravidão e das experiências do racismo que se reconstruíam em diferentes campos da indústria cultural no pós-abolição.

Por fim, mas não em último lugar, o livro oferece argumentos bastante consistentes para questionar visões que tradicionalmente polarizaram as relações raciais no Brasil e nos Estados Unidos entre mestiçagem, de um lado, e segregacionismo, de outro. Martha nos mostra como existem variantes, mediações e matizes que não podem ser desconsiderados em análises que objetivem romper com interpretações dicotômicas e generalizantes, que pouco contribuem para melhor conhecer um fenômeno bastante complexo, tanto para o Atlântico Norte, quanto para o Sul.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARROS, José D’Assunção. Histórias cruzadas: considerações sobre uma nova modalidade baseada nos procedimentos relacionais. Anos 90 (Porto Alegre), v. 21, n. 40, dez. 2014. [ Links ]

GILROY, Paul.O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. Rio de Janeiro: Editora 34, 2001. [ Links ]

KLEIN, Herbert S. A experiência afro-americana numa perspectiva comparativa: situação atual do debate sobre a escravidão nas Américas. Revista Afro-Ásia (Salvador), n. 45, 2012. [ Links ]

WHITE, Shane; WHITE, Graham. The sounds of slavery: discovering African American history through songs, sermons and speech. Boston: Beacon Press, 2005. [ Links ]

1 O vídeo pode ser acessado em: <https://www.youtube.com/watch?v=agZPb-uEVto>

Sílvia Cristina Martins Souza – Universidade Estadual de Londrina – Londrina(PR) – Brasil. E-mail: [email protected].

 

“Não tá sopa”: sambas e sambistas no Rio de Janeiro, de 1890 a 1930 – CUNHA (Tempo)

CUNHA, Maria Clementina Pereira. “Não tá sopa”: sambas e sambistas no Rio de Janeiro, de 1890 a 1930. Campinas: Unicamp, 2016. Coleção Históri@ Illustrada, Resenha de BRASIL, Eric. “Muitos caminhos até chegar ao samba”. Tempo v.23 no.2 Niterói mai./ago. 2017.

Quantos gêneros musicais podem ser tão identificados a uma nacionalidade quanto o samba no Brasil? O próprio termo samba tem remetido ao país nos mais variados lugares do mundo desde meados do século XX. Samba, Brasil, brasilidade, juntamente com carnaval, futebol e sensualidade, têm comumente andado lado a lado no imaginário global. Meios de comunicação, senso comum, as mais variadas produções artísticas e intelectuais sedimentaram tais associações ao longo do último século. A própria atuação, performance, memória e práticas culturais de sambistas por décadas vêm valorizando e ressignificando as relações entre o gênero musical e a ideia de nação.

Essa construção tornou-se tão forte e eficaz com o avançar do século XX que mesmo a produção acadêmica sobre a história do samba e seus agentes recorrentemente corroborou de forma acrítica seu caráter de símbolo nacional. Outras vezes silenciou seus conflitos e disputas internas, fortalecendo a percepção da história do samba como unívoca e que teria trilhado um caminho linear desde o período da escravidão até os dias atuais. A exceção mais comum dessa leitura harmoniosa dos caminhos do samba esteve nos debates sobre sua origem, local de nascimento “autêntico”: Rio ou Bahia? Morro ou asfalto? Zona portuária ou Estácio?

O novo livro de Maria Clementina Pereira Cunha, “Não está sopa”: samba e sambistas no Rio de janeiro, de 1890 a 1930 busca justamente enfrentar toda essa cultura histórica que tendeu a simplificar e homogeneizar a história do gênero e de seus agentes. Realmente, não é sopa enfrentar um tema tão arraigado no senso comum e nas afetividades populares brasileiras. Mas a autora não foge à briga, e seu livro é um ótimo exemplo da constante necessidade de analisarmos sentidos, possibilidades, aspirações, projetos, rivalidades, tensões, conflitos e alianças costurados na experiência urbana por homens e mulheres que precisaram dialogar e enfrentar sujeitos e grupos que defendiam perspectivas distintas.

Em “‘Não está sopa’”, a autora executa uma verdadeira aula de como realizar uma história social da cultura. Seu objetivo não é simplesmente caracterizar formas culturais, tipos de instrumento, danças ou ritmos, nem mesmo narrar fatos curiosos sobre cada personagem que frequentou rodas de samba. Muito pelo contrário, o objetivo central é compreender os sentidos criados e as escolhas feitas pelos sujeitos sociais que participaram dessas rodas. A análise recai sobre a experiência social de cada um deles, sempre levando em consideração contatos, redes, estratégias e caminhos, não apenas no momento da performance cultural, mas principalmente no restante do ano – nas disputas por emprego e moradia, nas relações familiares e religiosas, no conflituoso convívio com as forças policiais e autoridades republicanas. Nas palavras da autora, o foco está na

[…] vida cotidiana dos participantes e frequentadores dessas rodas [de samba], suas percepções e comportamentos em circunstâncias determinadas. E, naturalmente, nas escolhas, nas disputas, nos valores compartilhados entre os vários grupos, nas relações entre esses indivíduos especiais e a multidão de anônimos que conviviam nos bares e cafés, cortiços, terreiros ou, eventualmente, nas cadeias. (p. 86)

O carnaval, as rodas de samba, as letras, as músicas e os instrumentos são portas de entrada para encontrarmos personagens complexos e historicamente relevantes para nosso entendimento, tanto da história do gênero quanto da própria vida cotidiana dos trabalhadores pobres da cidade do Rio de Janeiro entre 1890 e 1930.

O recorte cronológico em si já demonstra a preocupação da autora com as diferenças mais do que com os consensos, com a diversidade mais do que com a homogeneidade. Esse período foi escolhido justamente por permitir o estudo das variadas possibilidades estéticas, artísticas, musicais que se chocavam nas ruas da capital federal. Estudar o período entre a última década do século XIX e as três primeiras do século XX permite, segundo Cunha, compreender o processo liderado por “indivíduos pobres, em sua maioria negros, sem o glamour que a posteridade lhes atribui” (p. 12), composto por uma musicalidade variada que só depois de algumas décadas levaria ao “samba moderno”.

Para tal, as fontes foram reunidas em mais de 10 anos de pesquisa. A autora explica que seu método principal consistiu em confrontar os processos criminais com os dados biográficos dos sujeitos. Esse método é complementado pela análise de crônicas, literatura, jornais, depoimentos, músicas e imagens (p. 13).

Os dois últimos tipos de fontes citadas, músicas e imagens, são fundamentais no desenvolver do livro, tanto por seu carácter analítico quanto por possibilitar ao leitor um relance vívido da análise histórica que vem sendo construída por Cunha. O livro, por ser em formato digital (Epub-2 ou Epub-3), vem recheado de quase duas centenas de imagens, que podem ser abertas e contempladas pelo leitor, e por mais de 40 gravações originais, muitas delas nas vozes dos próprios personagens cujas trajetórias são analisadas nos quatro capítulos.

Esses recursos audiovisuais transformam a leitura em uma experiência agradável e complexa, ajudando na imersão do leitor na temática estudada. Tais recursos são bem explorados pela autora – cada imagem e música se encaixam no texto, sempre inseridas em momentos que contribuem para a leitura e a compreensão dos argumentos do livro, e não apenas como exemplos ilustrativos. Como fica claro logo na introdução, a autora escolhe reduzir o número de citações e referências bibliográficas, o que torna o texto mais dinâmico – mesmo que dificulte a identificação de alguns debates e críticas presentes no texto.

O livro apresenta quatro capítulos, além da introdução, de fácil leitura. O Capítulo 1, “Uma questão de berço” (p. 18), tem como objetivo principal questionar as “origens” mais comuns atribuídas ao samba. Caracteriza com maestria que os debates sobre a origem do samba são estéreis e pouco, ou nada, têm a oferecer para o entendimento do gênero e de seus agentes; consegue deixar claro para os leitores que os debates acerca do lugar de “nascimento” do samba falam muito das disputas entre grupos coevos, e que é importante pensarmos justamente sobre os motivos que levaram a tais “origens” serem defendidas por determinados grupos. Busca também um debate sobre o termo “Pequena África”, cunhado por Heitor dos Prazeres, e como a história social pode relativizar seu uso. Por meio de fontes policiais, judiciais e de censos, busca caracterizar a região em sua multiplicidade, e não apenas como um espaço negro.

O Capítulo 2, “Gente da lira” (p. 54), analisa as relações entre a atuação policial e a diversidade racial, os padrões demográficos e habitacionais das áreas centrais do Rio de Janeiro, especialmente na freguesia de Santana. Desenvolve mais detalhadamente a análise da região popularmente conhecida como “Pequena África”, comprovando ser um espaço muito mais variado e complexo do que a expressão de Heitor dos Prazeres denotaria. Ao analisar a demografia, os crimes e a ação policial em Santana, a autora é capaz de compreender os padrões e motivos de prisão, os espaços de moradias, convívio e rivalidade. Conclui que, em Santana, a ação policial esteve voltada para o controle social, mais do que para a repressão a crimes, como assassinatos e roubos (p. 59), revelando a preocupação das forças republicanas em manter essas regiões sob o signo da “ordem”.

Os Capítulos 3, “Gente de fora” (p. 94), e 4, “Da gema” (p. 150), apresentam estruturas e estratégias semelhantes e são os melhores do livro. Ambos têm como objetivo analisar experiências de sujeitos ligados ao samba por suas relações com a polícia e a justiça, assim como caracterizar as redes, alianças, rivalidades dos grupos nos quais estão inseridos e com os quais se opõem.

No terceiro, a análise recai sobre os sujeitos ligados aos candomblés da região de Santana, da zona portuária, bastante identificados com migrantes do Nordeste, especificamente da Bahia. A autora realiza importante estudo sobre esse grupo, o impacto de sua presença, seu tamanho e as redes de sociabilidade por ele construídas nas ruas de Santana. Cunha consegue evidenciar que tal grupo não constituía uma comunidade ou elite à parte dos demais trabalhadores da região; que não foi demograficamente superior a outros tantos grupos de migrantes e cariocas. Dedica-se, ademais, ao estudo dos centros religiosos e de sua importância na formação de conexões entre esses indivíduos, assim como do papel das mulheres na formação dos vínculos identitários e na ampliação e preservação de espaços de sociabilidade e proteção.

Na parte final do mesmo capítulo, realiza alguns estudos de caso de membros ilustres da comunidade “baiana” por meio de processos criminais, buscando compreender os caminhos e as estratégias costuradas por esses indivíduos ao se relacionarem com a polícia e as autoridades republicanas. Conclui resumindo os motivos que levaram à constituição de uma ideia quase mítica dessa comunidade baiana como foco irradiador de uma cultura popular carioca nos anos 1900 e 1910.

O quarto capítulo faz movimento bastante semelhante ao anterior, mas altera o espaço e os sujeitos: a área estudada é a região do Estácio, com a zona do Mangue e do meretrício; os casos estudados são protagonizados pelos “malandros” sambistas da região do morro de São Carlos. Busca marcar claramente as diferenças com a região estudada no Capítulo 3: o Estácio seria caracterizado por uma pobreza maior, mais repressão policial, sofreria com o impacto da região do Mangue e sua zona do meretrício com suas mazelas. Logo, conclui Cunha, o samba e o carnaval seriam os únicos espaços identitários aos quais seria possível se agarrar, visto que, nessa área, as casas religiosas, como os candomblés, e as redes de solidariedade, como as costuradas pelos descendentes dos migrantes baianos, não teriam conseguido se consolidar com tanta força como em Santana. Todavia, tais constatações podem ser relativizadas e tornadas complexas com novas pesquisas sobre a região e a influência de outros grupos, especialmente os migrantes e seus descendentes do Vale do Paraíba fluminense, de Minas Gerais e de São Paulo (Abreu e Dantas, s.d.; Abreu, Agostini e Hebe, 2016Barbosa, 2015Costa, 2015).

Com esse breve sumário dos capítulos, fica evidente os muitos acertos ao longo das mais de 200 páginas de seu novo livro. Autora experiente da história social da cultura,2 Cunha defende acertadamente que “o carnaval e as rodas de samba podem ser um prato cheio para perceber, em um plano mais geral, [a] multiplicidade” nessa história. Em seu estudo, podemos aprender “sobre os limites, escolhas e alternativas que se ofereciam àqueles homens e mulheres que cantavam, dançavam ou se divertiam em torno do som de violas, cavaquinhos, pandeiros, tambores […] revelando suas formas de reivindicar e se dar a público, seus projetos e aspirações” (p. 11).

Seu foco está na multiplicidade de agentes; seu esforço é compreender os diferentes sentidos elaborados pelos variados grupos sociais; a importância dada aos contatos entre os trabalhadores urbanos com as forças republicanas – polícia, justiça, políticos -, intelectuais e jornalistas; o estudo de trajetórias individuais e a caracterização dos grupos e de suas rivalidades internas. Elementos que representam uma enorme contribuição, tanto para a história do samba quanto para a história da cidade do Rio como um todo, principalmente para o período da Primeira República, que por muito tempo foi relegado a segundo plano pela historiografia.3

Um ponto nevrálgico do livro é a questão racial. Por um lado, está constantemente presente nas fontes; por outro, o leitor fica com a percepção de que uma análise mais detalhada sobre racismos e racialização poderia ter suscitado novos questionamentos ao longo de “’Não tá sopa’”. Nas palavras de Cunha:

Ainda que a racialização das relações sociais e o racismo explícito das elites republicanas impregnassem o dia a dia dos trabalhadores da cidade, os espaços gestados pelos antigos escravos, especialmente aqueles relacionados ao carnaval ou a outras formas de lazer urbano, já encontravam novos parceiros em sua construção. Análises das formas de sociabilidade dos trabalhadores cariocas nesse período evidenciaram que os grupos que se organizaram para a festa e a folia – onde frequentemente os negros tinham a maioria, mas raramente a exclusividade – tiveram um grande peso nesse processo e figuraram entre aqueles que sofreram maior controle ou foram objeto das mais duras iniciativas no dia a dia da polícia local. (p. 10)

Apesar desse parágrafo indicando a importância da questão racial na configuração das rodas de samba como espaço de autonomia protagonizados por homens e mulheres negros, as escolhas teóricas da autora se voltam mais para as dimensões sociais dos trabalhadores da cidade. Apesar de muitas fontes e personagens colocarem essa questão em evidência, e Cunha apontá-las para o leitor, o peso do racismo na história do samba ainda fica em aberto.

Sobre o tema, após afirmar que a palavra samba estivera associada a sociedades carnavalescas e dançantes de trabalhadores “de várias procedências e cores” desde o século XIX (p. 11), a autora afirma:

Ainda assim, é necessário enfatizar que a absoluta maioria dos sambistas que vamos encontrar nas páginas seguintes, no papel de protagonistas dessa história, é constituída por descendentes de escravos. Impossível ignorar essa marca, inscrita na cor de suas peles e nas memórias aprendidas de seus pais e avós. Isso não significa, entretanto, que o samba possa ser tomado de antemão como uma manifestação exclusiva da “raça” ou de uma cultura própria desses setores – e, muito menos, como prática unívoca e isenta de conflitos. (p. 11)

A autora faz um contraponto, talvez muito rígido, ao deixar subentendido que a única possibilidade de pensar a importância da questão racial na formação do samba é a defesa de uma cultura negra essencializada e unívoca. Critica acertadamente interpretações que, carregadas de viés ideológico e político, fariam uma leitura do samba como exemplo de uma cultura negra imóvel. Contudo, essa não é a única forma de se trabalhar com tal perspectiva. Há uma vasta bibliografia sobre identidade, cultura e questões raciais que vêm, por décadas, criticando essa interpretação essencializada de cultura negra – Paul Gilroy (2000), Stuart Hall (2003), Mintz e Price (2003), Matthias Röhrig Assunção (2005) e Kim Butler (1998), apenas para citar alguns exemplos – e propondo interpretações que levem em consideração as inovações, invenções, ressignificações que não impedem tanto os sujeitos históricos quanto os estudiosos de pensar sobre identidades e culturas negras em contextos como o Rio de Janeiro entre 1890 e 1930.4

Ou seja, a multiplicidade defendida e comprovada pela autora na história do samba não inviabilizaria pensar simultaneamente a racialização, o racismo e o antirracismo a partir das mesmas fontes. Como a análise de Cunha valoriza e comprova as trocas e diversidades na história do samba e a importâncias delas para as experiências cotidianas dos trabalhadores cariocas, debates sobre crioulização, diáspora africana e Atlântico Negro podem suscitar novas perguntas e possibilidades sobre o mesmo tema em novas pesquisas.

Os principais exemplos dessa questão são encontrados nos Capítulos 1 e 2. Em ambos, Cunha se dedica a entender a região da “Pequena África” como um espaço de grande heterogeneidade racial, o que fica evidente com as fontes e análises apresentadas. Entretanto, ela não deixa de notar que há uma “racialização do perigo”: “ainda que os brancos constituíssem a maioria da população, o contingente de presos negro e pardos era proporcionalmente bem maior que sua presença demográfica” (p. 61).

Segundo ela, as diferenças vividas no cotidiano da região obrigaram seus moradores

[…] a engendrar formas de diálogo permanente, produzindo novas identidades, reafirmando laços antigos ou inventando tradições […]. A despeito do racismo que levava descendentes de escravos com mais facilidade que brancos às cadeias das delegacias ou à casa de detenção, o que as evidências policiais revelam é, antes que tudo, a intensa mistura e a convivência entre trabalhadores brancos e negros, de diferentes origens nacionais, no enfrentamento de dificuldades da vida diária. (p. 61; grifo nosso)

Esse último parágrafo tende a minimizar um componente crucial na vida desses homens e mulheres negros que formaram a grande maioria dos sujeitos estudados por Cunha no livro: o racismo diário, que impactava (e ainda impacta) as possibilidades, horizontes de expectativa e mesmo a vida e morte de imensa parcela da população carioca. Pesquisas recentes vêm buscando justamente pensar as tensões raciais na cidade ao longo da Primeira República, e sem dúvida têm bastante a dialogar com os argumentos de Cunha.5

Uma questão delicada está presente na escrita do Capítulo 4, “Da gema” (p. 150). Ao lermos as trajetórias de “malandros” da região do Estácio, especificamente as histórias de Baiaco e Brancura, nos deparamos com casos policiais gravíssimos, envolvendo estupro, lenocínio, entre outras formas de violência desses homens contra mulheres nas ruas da cidade. São casos extremamente graves, como navalhadas no rosto de prostitutas e um evento de possível estupro coletivo. Ao lê-los, me senti um tanto incomodado com uma escrita leve e corriqueira que tratou tais atos de violência como “peripécias” (p. 166) ou acontecimentos “rocambolescos” (p. 171). Obviamente, não cabe ao historiador realizar juízos de valor anacrônicos e pessoais sobre os sujeitos em questão. Contudo, talvez fosse preciso um cuidado maior com a escrita – principalmente pela trajetória da autora em trabalhar questões de gênero ao longo da carreira – para evitar o que pode soar como complacência com as atitudes misóginas desses sujeitos históricos – mesmo que não seja o que a autora gostaria de transmitir.

Ao final, o livro se mostra uma importante contribuição para compreendermos as experiências cotidianas de trabalhadores homens e mulheres, majoritariamente negros, na vida cultural, social e política da então capital federal. Também nos possibilita compreender os caminhos do protagonismo desses sujeitos na consolidação do samba como gênero musical entre as décadas de 1920 e 1930, em um processo iniciado ainda no século XIX. Cunha, pioneira no estudo de práticas culturais pelo arcabouço da história social, desvela a multiplicidade de agentes envolvidos nesses caminhos. Uma heterogeneidade tão intensa que, sem dúvida, suscitará novas perguntas e pesquisas no afã de desvendar novos sentidos dessa história plural.

Referências

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ABREU, Martha; AGOSTINI, Camila; HEBE, Mattos; DANTAS, Carolina Vianna. É chegada “a ocasião da negrada bumbar”: comemorações da Abolição, música e política na Primeira República. Varia Historia, v. 27, n. 45, p. 97-120, {s.d.}. [ Links ]

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2Autora de obra fundamental sobre o carnaval carioca do mesmo período (Ecos da folia: uma história social do carnaval carioca entre 1880 e 1920. São Paulo: Companhia das Letras, 2001) e de outros estudos reconhecidamente importantes sobre a temática.

3Sobre as novas pesquisas que buscam analisar novos aspectos durante a Primeira República, ver Abreu e Gomes (s.d.), Dantas (2010) e Brasil (2016b).

4Perspectiva que venho colocando em prática em pesquisas recentes. Ver Brasil (2016a e 2016b).

5Alberto (2011), Silva (2015), Domingues (2014), Hertzman (2013), Brasil (2016b), Abreu, Agostini e Mattos (2016), Barbosa (2015) e Costa (2015).

Eric Brasil – Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), Campus dos Malês – São Francisco do Conde (Ba) – Brasil. E-mail: [email protected].

Trabalhadores dos trilhos: imigrantes e nacionais livres, libertos e escravos na construção da primeira ferrovia baiana (1858-1863) – SOUZA (Tempo)

SOUZA, Robério S.. Trabalhadores dos trilhos: imigrantes e nacionais livres, libertos e escravos na construção da primeira ferrovia baiana (1858-1863). Campinas: Unicamp, 2015. 270p. Coleção Várias Histórias, 42.Resenha de Mac CORD, Marcelo. Acionando a chave de desvio dos trilhos: repensando a história social do trabalho ferroviário no Brasil império. Tempo v.23 no.1 Niterói jan./abr. 2017.

Trabalhadores dos trilhos: imigrantes e nacionais livres, libertos e escravos na construção da primeira ferrovia baiana (1858-1863) é a mais recente obra de Robério Souza. O livro desse talentoso pesquisador, que atualmente é professor do curso de história da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), oferece ao leitor uma série de análises das complexidades políticas, econômicas, culturais, sociais e étnicas que envolveram a construção da Bahia and San Francisco Railway. Publicado pela Editora da Unicamp em 2015, o livro, que faz parte da consolidada “Coleção Várias Histórias”, baseia-se na premiada tese de doutorado do autor, que, sob a orientação de Silvia Lara, foi defendida dois anos antes no Cecult-IFCH-Unicamp.

O livro Trabalhadores dos trilhos, com suas significativas inovações historiográficas, consolida a carreira de Robério Souza como um dos mais destacados especialistas sobre o mundo do trabalho brasileiro. E ratifica sua importância como historiador do mundo do trabalho ferroviário. Em 2011, pela EDUFBA, o pesquisador baiano publicou outro livro sobre a temática: Tudo pelo trabalho livre: trabalhadores e conflitos no pós-abolição (Bahia, 1892-1909). Nesse trabalho inovador, fruto de sua dissertação de mestrado, o autor analisa os conflitos de classe e de cor naquela mesma ferrovia, mas privilegiou uma temporalidade que nos permite conhecer as lutas dos trabalhadores negros contra formas de trabalho análogas aos tempos da escravidão (Souza, 2011).

Ambas as publicações fazem parte da mais refinada história social de matriz thompsoniana produzida em nosso país. Tal historiografia, absolutamente identificada com a Unicamp, reconhece a importância da agência dos subalternos na condução de suas próprias vidas e de seu protagonismo na luta de classes – com desdobramento nas mais variadas lutas dos “de baixo” por direitos jurídicos, sociais, culturais, econômicos e políticos. De forma muito especial, o livro Trabalhadores dos trilhos ainda aponta para a possibilidade de convergências entre a história social da escravidão e a história social do trabalho stricto sensu, dissolvendo, assim, as fronteiras analíticas e temáticas que ainda existem entre elas.2

Em sua sólida trajetória acadêmica, Robério Souza não escolheu seus objetos de estudo aleatoriamente ou de forma diletante. Nascido em Alagoinhas, cidade cortada pela antiga Bahia and San Francisco Railway, a vida do autor, oriundo da classe trabalhadora, esteve ligada direta e indiretamente aos trilhos de ferro. Tal peculiaridade ganha ainda mais significado quando sabemos de sua cor preta. A experiência étnica e de classe do pesquisador foram fundamentais em suas investigações, permitindo que seu esforço científico desconstruísse uma historiografia que invisibilizava os negros como protagonistas tanto na construção da primeira estrada de ferro baiana quanto na organização das históricas lutas dos “de baixo” por direitos trabalhistas e sociais.

Do ponto de vista formal, Trabalhadores dos trilhos é um livro muito bem enredado. São cinco capítulos que dialogam entre si, abordando os seguintes temas: implicações político-econômicas da construção da Bahia and San Francisco Railway, engajamento da mão de obra nacional e estrangeira, acordos sobre contratos e arranjos de trabalho, surgimento de alguma consciência de classe nos canteiros de obras da ferrovia e conflitos entre empregados, patrões, encarregados e autoridades públicas. A documentação utilizada é vasta e densa: correspondências governamentais, registros policiais, processos criminais, periódicos, leis, relatórios oficiais, fotografias etc. Todo o material compulsado foi encontrado em arquivos baianos e ingleses.

Logo nas primeiras páginas, Robério Souza demonstra como muitos historiadores e cientistas sociais do século passado, pouco afeitos ao trabalho empírico, se apoiaram acriticamente na legislação imperial que proibia o uso de mão de obra escrava na construção de ferrovias. Aprovada em 1852, a norma acabou induzindo leituras sociologizantes sobre a temática, o que reforçou a explicação de que existiu uma transição teleológica do trabalho escravo para o trabalho livre no Brasil oitocentista. E, nessas sentenças, a ferrovia surgiu como símbolo de “modernização”, ou, em outras palavras, como um empreendimento que viabilizou o amadurecimento das relações capitalistas e do mercado de trabalho em nosso país.

No livro, o tradicional consórcio entre “modernização” do mundo do trabalho e construção das ferrovias brasileiras começa a ser desconstruído assim que o autor demonstra a relação umbilical dos ingleses da Bahia and San Francisco Railway e das autoridades locais com o escravismo. Segundo Robério Souza, por exemplo, muitos empreiteiros e técnicos britânicos compraram e mantiveram cativos em suas próprias casas. Portanto, no cotidiano baiano, era impossível dissociá-los. Para justificar e compreender essa prática, o pesquisador nos remete ao fato de que capitais e homens de negócios ingleses estiveram intimamente envolvidos com o tráfico atlântico ilegal até 1850 – pouco antes da abertura dos canteiros de obras da ferrovia.

As fontes compulsadas por Robério Souza ainda revelam que os profissionais britânicos responsáveis pela construção da Bahia and San Francisco Railway contratavam escravos para os canteiros de obras da ferrovia. Eles alegavam ser impossível identificar a real condição jurídica dos negros que buscavam serviço. De certa forma, em alguns momentos, como salienta o pesquisador, os contratadores poderiam dizer a verdade. Contudo, acostumados com o escravismo e preocupados em viabilizar as empreitadas, pouco se esforçavam para verificar a situação legal das pessoas escravizadas que se passavam por livres. E, aproveitando-se dessa situação, precarizavam ao máximo a força de trabalho dos africanos e de seus descendentes.

Os escravos que se passavam por homens livres, por sua vez, encaravam os serviços oferecidos pela primeira ferrovia baiana como uma possibilidade de se “esconderem” de seus senhores, como propõe Robério Souza. Conseguir um emprego nos trilhos de ferro também era uma forma de os cativos se passarem por homens livres, tendo em vista as determinações impostas pela lei imperial de 1852. Ainda sobre as estratégicas apropriações feitas pelos “de baixo”, o autor afirma que a construção da Bahia and San Francisco Railway serviu como forma de esconderijo para outros sujeitos, como criminosos e desertores. Tais indivíduos queriam ficar invisíveis aos agentes da polícia, da justiça, das milícias e das forças militares.

Entre os trabalhadores que estiveram vinculados às rotinas dos canteiros de obras da Bahia and San Francisco Railway, Robério Souza afirma que poucos eram africanos livres (gente ilegalmente traficada da África para o Brasil entre os anos 1831 e 1850) ou “índios”. Nas páginas de Trabalhadores dos trilhos, sobre o primeiro grupo, observamos que alguns grandes proprietários baianos desviavam os “escravos da nação” mais jovens, saudáveis e fortes para suas terras, impedindo que o governo utilizasse essa mão de obra nos canteiros de obras da ferrovia. Para substituí-los, os senhores de terra e de gente mandavam para as empreitadas os cativos mais velhos e alquebrados de sua propriedade.

Além de escravos que se passavam por livres, africanos livres, “índios”, criminosos e desertores, a Bahia and San Francisco Railway também contou com a mão de obra do nacional livre. Estes últimos eram referidos pelos contratantes e pelos administradores do empreendimento como “preguiçosos” e “inconstantes”. Robério Souza deixa claro que tais julgamentos eram preconceitos étnicos e classistas. Os nacionais livres não aceitavam certas condições de trabalho, rebelavam-se quando injustiçados e tinham na roça seu principal meio de sustento. De acordo com a sazonalidade de seus cultivos e das vantagens financeiras que poderiam auferir, eles conjugavam ou não o plantio de subsistência com os canteiros de obras ferroviários.

Em meio a tanta gente de pele escura (livre, liberta e escrava) em um empreendimento “moderno” e “modernizador”, o operário estrangeiro também se fez presente. Os italianos chegaram à Bahia com a promessa de “moralizar” e “morigerar” os canteiros de obras da Bahia and San Francisco Railway. Apesar de serem os únicos a terem contratos formais de trabalho, também foram explorados pelos contratantes, tendo seus acordos constantemente desrespeitados. Robério Souza, por meio de farta análise documental, demonstra que isso gerou fortes tensões. Uma greve foi deflagrada por causa da insatisfação dos italianos, o que gerou forte repressão e posterior controle policial, com toques de recolher e cerceamento da livre circulação.

Historiador social arguto e sensível, Robério Souza entende a repressão sofrida pelos italianos como mais uma forma de constatarmos os tênues limites entre trabalho escravo e trabalho livre no Brasil império. Sobretudo após a deflagração da greve, os operários europeus da Bahia and San Francisco Railway foram vigiados mais de perto pelas autoridades policiais baianas e por seus patrões. Sob forte ameaça, tinham de seguir rapidamente dos canteiros de obras para seus alojamentos e ficaram com mobilidade limitada em seus momentos de lazer e de descanso. Ao exigirem o devido respeito aos contratos, os italianos experimentaram contratempos muito semelhantes àqueles que foram impostos aos africanos e seus descendentes escravizados.

Como podemos perceber, entre os anos 1858 e 1863, os canteiros de obras da Bahia and San Francisco Railway reuniram os mais variados tipos que viviam do suor do próprio rosto. O livro Trabalhadores dos trilhos chama nossa atenção para essa diversidade social e demográfica. E, mais do que isso, permite que conheçamos as alianças e os conflitos vivenciados pela multidão que construiu a primeira estrada de ferro baiana. Por um lado, como afirma Robério Souza, a precariedade possibilitou alguma consciência de classe: italianos e escravos criaram planos conjuntos de sublevação; as festas e as relações de vizinhança uniam pessoas. Por outro lado, ainda segundo o autor, refluxos ocorreram pelas diferenças de cor, nacionalidade e cultura.

Na construção da Bahia and San Francisco Railway, os fluxos e os refluxos da formação de alguma consciência de classe, processo muito bem analisado por Robério Souza, é um dos pontos altos do livro Trabalhadores dos trilhos. Inspirado por E. P. Thompson, o autor endossa a crítica de que a classe operária é uma construção histórica motivada por certas condições sociais. Portanto, como algo que é forjado na luta, a classe operária não surge pronta e acabada em determinado espaço-tempo, como algo exigido pela necessidade histórica – fruto do devir. O marxista inglês nos ensina que sua construção precisa dialogar com o processo histórico, algo que exige dos analistas especial atenção aos sujeitos, à crítica aos modelos engessados e à empiria.3

Por tudo isso, um dos maiores méritos de Trabalhadores dos trilhos é pensar a história social do trabalho sem engessamentos ou isolamentos teóricos. Robério Souza se apropria de instrumentos analíticos e categorias como etnia, classe, nacionalidade, trabalho escravo, trabalho livre e “modernização” sem perder de vista o processo histórico, a ação política dos sujeitos e a relação dos conceitos com sua pesquisa empírica. Ele ainda conseguiu tecer uma potente análise baseada na história social sem descuidar de elementos das histórias política, cultural e econômica. Utilizando a imagem da própria ferrovia, o livro é um entroncamento que nos permite visitar muitas estações da experiência humana.

Referências

CHALHOUB, Sidney; SILVA, Fernando T da. Sujeitos no imaginário acadêmico: escravos e trabalhadores na historiografia brasileira desde os anos 1980. Cadernos AEL, Campinas, v. 14, p. 11-50, 2009. [ Links ]

SOUZA, Robério S . Tudo pelo trabalho livre: trabalhadores e conflitos no pós-abolição (Bahia, 1892-1909). Salvador: EDUFBA; São Paulo: Fapesp, 2011. [ Links ]

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2Sobre as fronteiras entre história social da escravidão e história social do trabalho stricto sensu, consultar Chalhoub e Silva (2009, p. 11-50).

3Para saber mais, consultar Thompson (19971981).

Marcelo Mac Cord – Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF) – Niterói(RJ) – Brasil. E-mail: [email protected].

BOUREAU, A. Satã herético (RH-USP)

BOUREAU, Alain. Satã herético: o nascimento da demonologia na Europa medieval (1280-1330). Tradução de Igor Salomão Teixeira e revisão técnica de Néri de Barros Almeida., Campinas: Unicamp, 2016. Resenha de: RANGEL, João Guilherme Lisbôa. Da heresia à “caça às bruxas” no final da Idade Média ocidental. Revista de História (São Paulo) n.176 São Paulo  2017.

Alain Boureau é um autor versátil, capaz de transitar por temas diversos com enorme erudição e de propor teses originais seja no campo restrito de cada um deles, seja na articulação entre vários problemas e objetos de pesquisa distintos. Em 2004, publicou Satan hérétique: naissance de la démonologie dans l’Occident medieval (1280-1330). Paris: editora Odile Jacob, traduzido em 2016 para o português pelo prof. dr. Igor Salomão Teixeira. A obra é, segundo o próprio autor (que o afirma em seus agradecimentos), fruto de 15 anos de pesquisa e de artigos publicados em periódicos diversos, que lhe propiciaram uma interlocução crítica com inúmeros outros estudiosos do tema da Inquisição, do sabá (reunião de bruxos) e da “caça às bruxas” no alvorecer da modernidade ocidental. Seja pelo estilo da escrita do autor, seja pelo bom trabalho que fizeram o tradutor e a revisora técnica, esta edição brasileira oferece uma leitura agradável e instigante e, o mais importante, uma tese rica e inovadora, indispensável para aqueles que se dedicam não só aos temas supracitados, mas também aos estudos sobre as heresias, as artes mágicas e as perseguições político-religiosas na Europa dos séculos XIII a XVI.

Inicialmente, no entanto, é preciso atentar para que, conquanto o título da obra proponha um recorte espacial genérico (o “Ocidente”, no título original, ou a “Europa”, no título português), Boureau tem um escopo efetivo menos abrangente: a Itália e a França, uma vez que os intelectuais e os tribunais da Inquisição de que fala estão todos no domínio do Reino francês e da Cúria papal que, àquela altura, residia em Avignon. Remissões a outras espacialidades – notadamente a península Ibérica e a Germânia imperial – são feitas, aqui e acolá, mas servem apenas para situar um ou outro argumento e para contextualizar tanto a abordagem de alguma fonte documental quanto a biografia de alguns dos intelectuais citados ao longo das análises.

Como propõe Martine Ostorero,1 a tese de Satã herético pode ser assim resumida: haveria uma continuação entre a demonologia escolástica do final do século XIII e a histeria da perseguição às bruxas a partir do século XV. Teria sido a racionalidade escolástica radical a abrir novos e perigosos campos de reflexão para a posteridade, incluindo a possibilidade de uma relação eficaz e maligna entre homens e demônios. Em outras palavras, Boureau tenta demonstrar que a escolástica é que permitiu a “emergência do sabá”. A investigação do autor se coloca, assim, numa espécie de genealogia do tema em questão.

De fato, em sua introdução, Boureau diz querer superar as explicações correntes sobre o fenômeno “louco” da “caça às bruxas”. Segundo ele, são quatro os grandes esquemas explicativos para a problemática: 1) a bruxaria derivaria de cultos ancestrais; 2) o sabá era uma invenção da própria Inquisição, que a imputava aos condenados por meio de violência; 3) ele seria uma “formação de compromisso” a partir da qual os clérigos transcreviam em termos cristãos esquemas antigos de comunicação com o além e atualizavam as suas representações; 4) a crença nos demônios teria moldado a cultura erudita europeia e marcado o Renascimento. Porém, para o autor, nenhum desses esquemas explica de forma satisfatória o fenômeno. É por isso que, ao longo de seu texto, Boureau enfrenta, de maneira crítica e contributiva, obras consagradas nesse campo de estudos, como a célebre Storia notturna: uma decifrazione del sabba, de Carlo Guinzburg, de 1988.

O argumento de partida do autor é que, até Tomás de Aquino (1225- 1274), os cristãos não teriam temido os demônios, pois os viam submetidos, inescapavelmente, ao poder de Deus; seria possível, inclusive, controlá-los por meio das artes mágicas (dentre elas a alquimia e a necromancia – a arte de conjurar espíritos ou demônios) e, sob a égide da fé, torná-los “servos” e colocá-los a serviço de causas justas e benignas. A mudança de mentalidade e de sensibilidade em relação às forças demoníacas não teria sido produzida por medos e histerias coletivas a partir do século seguinte – com o sofrimento de desgraças amplas e profundas, como a peste – mas, sim, pela elaboração de uma nova antropologia,2 de uma nova ciência sobre os homens que, enfatizando as possibilidades negativas e destrutivas das relações e dos atos humanos, transpôs para o plano espiritual as modalidades de engajamento temporal entre as pessoas e tornou o diabo não mais um mero servo, mas um agente positivo que, através do pacto com um homem, ganhava a capacidade de se fazer presente no mundo e, portanto, de desviar os homens da fé e de conduzi-los a ações malignas (assim como qualquer outro sujeito com o qual um homem pactuava). A partir daí é que se acreditou ser necessário perseguir aqueles que até então praticavam livremente a necromancia, porque os pactos que eles estabeleciam com os demônios passaram a ser vistos como ameaças à cristandade.

Podemos dizer que Satã herético se divide em duas partes: na primeira, que compreende os capítulos 1 a 4, Boureau se debruça sobre as múltiplas bases ideológicas e culturais que permitiram a formação de uma ciência demonológica no século XIV: respectivamente a base jurídica, a sacramental, a pactual e, por fim, a escatológica. Todavia, tais arcabouços não se encontram, no panorama global da tese, separados, portanto, a análise não se subdivide em segmentos estáticos, tornando a obra fragmentária. Todos os aspectos tratados estão atravessados tanto pela filosofia quanto pela teologia escolástica e partem, grosso modo, do mesmo corpus documental, permitindo que o leitor acompanhe o raciocínio do autor sem grandes dificuldades. Em suma, o fio condutor dessa primeira metade do livro é a problemática de como, através de quais mecanismos e manipulando quais elementos da vida política e religiosa baixo-medieval, o papado e os intelectuais que compunham a sua corte vincularam a necromancia à heresia e viabilizaram a instrumentalização do aparato inquisitorial para a perseguição dos bruxos e das bruxas a partir do século seguinte, o século XV.

Nesse sentido, dois outros argumentos expostos pelo autor nos parecem cruciais. Primeiro: a heresia teria sido o conceito-chave que serviu de ponte para conduzir a necromancia à alçada da Inquisição e permitir a criminalização das artes mágicas e, segundo: a heresia (e, por conseguinte, a própria necromancia) teria deixado de ser um delito de fé para se tornar um delito factual, concernente às ações e não mais às opiniões dos indivíduos. Aparece com enorme importância, então, a ideia de factum hereticale que constituía a prova material a subsidiar a Inquisição, a demonstração empírica daquilo que, de outra maneira, não se podia elucidar: o sabá que, obviamente, acontecia sempre em segredo e permanecia protegido pelas redes de silêncio e cumplicidade dos bruxos, oculto nas consciências indevassáveis dos indivíduos. Dito de outra forma, foi a mudança na concepção sobre a heresia, o enfoque na sua dimensão aparente, prática, fenomenológica, que permitiu a condenação do sabá, a despeito da crença do alquimista ou mago na força demoníaca. Afinal, no reduto da fé, era preciso levar em conta a reputação, a motivação e a intenção do necromante, o que podia permitir ao tribunal considerá-lo inocente ou ingênuo, especialmente se lembrarmos que boa parte dos necromantes era composta de clérigos regulares (como monges e abades) ou seculares (como cônegos e bispos), que faziam das artes mágicas partes integrantes de seus ofícios, das liturgias e da própria cura animarum.

A nosso ver, tais argumentos trespassam conjuntamente a primeira parte da obra de Boureau. Em seu primeiro capítulo, o autor trata da vinculação entre heresia e magia no seu âmbito jurídico e processual. Boureau tem sucesso em evidenciar o “esforço contínuo” e pessoal do papa João XXII (1249-1334, na sé de 1316 até a data de sua morte), mediante bulas e consultas teológico-jurídicas a membros de sua cúria, em tipificar a necromancia como heresia e em convencer os inquisidores a processá-las enquanto tal. Boureau ressalta que “(…) a tarefa dos inquisidores dependia antes da teologia que do direito” (p. 32) porque tradicionalmente não se via a necromancia como delito; foi necessário antes, portanto, forjar uma nova concepção sobre ela, problema que residia no campo teológico. A teologia norteava o direito e o esforço de João XXII consistiu justamente em uma inovação teológica que pudesse engendrar um novo direito, capaz de enquadrar os necromantes como hereges e torná-los condenáveis pelos tribunais régios e papais. Ao mesmo tempo, tratava-se também de um desafio epistemológico e de outro metodológico: era preciso, como dissemos, deslocar o foco da opinião para a ação, da fé para o comportamento, e criar meios de investigação que superassem os morosos e truncados trâmites dos julgamentos. Ambas as estratégias convergiam para a mesma finalidade: livrar a Inquisição das obstruções que o foro da consciência individual impunha e dar-lhe o poder de processar sumariamente os suspeitos de necromancia. A urgência dos processos escancarava o medo do segredo, situado na raiz da obsessão pelo complô que viria a ser atrelado ao sabá.

No segundo capítulo, Boureau trata da dimensão sacramental que se passou a atribuir à necromancia. Ela reforçava a imputação de heresia na medida em que apresentava a necromancia como uma perversão do sacramento divino, não tanto porque se movia por uma crença desviante – isto é, a crença em Satã ao invés da crença em Deus (já destacamos: a crença desviante era uma questão difícil de provar) -, mas porque o próprio ato sacramental que selava o pacto demoníaco implicava a submissão voluntária a um outro poder, que não aquele aceitável, o divino. O sacramento não tinha causa em si mesmo – por isso o problema não era a sua apropriação pelos necromantes -, mas usá-lo para invocar o diabo era colocar Satã no lugar de Deus e romper o pacto com este por uma nova aliança com aquele. O necromante aceitava espontaneamente, assim, a soberania do antagonista de Deus. E se o diabo era um ser naturalmente mau, qualquer pacto com ele só poderia ter fins malignos.

No capítulo 3, Boureau lida justamente com a invenção de um poder positivo, eficaz, para o pacto demoníaco. Frisa que “a força constitutiva dos pactos tinha, nas sociedades da Idade Média central, uma ampla pertinência da qual Satã podia lançar mão” (p. 83) e lembra que Tomás de Aquino, seguindo a doutrina voluntarista de Agostinho de Hipona (354-430) – segundo a qual o livre-arbítrio consistia não na liberdade plena, mas na capacidade de escolher o bem ao invés do mal -, havia aceitado a possibilidade desse tipo de pacto e o condenado, simplesmente porque o próprio Deus havia condenado Satã. Ostorero 3 pontua a importância da distinção que o autor faz entre pacto forte e pacto fraco. O pacto forte, mais poderoso, seria o engajamento legítimo, aceito, porque inserido na lógica sacramental (através de ritos como o do juramento) e partícipe da autoridade divina; ele não podia ser quebrado senão por um dissenso voluntário, movido por más intenções, constituindo crime e ameaça à ordem social. Já o pacto fraco, menos poderoso, seria aquele feito fora ou em afronta a tal ordem: ele teria a sua eficácia, mas não partilharia do poder divino – ao contrário: estaria sujeito às sanções dos poderes eclesiástico e régio, oriundos da autoridade divina – e poderia (ou deveria) ser quebrado. O pacto forte produziria o bem e a salvação; o fraco produziria a morte e a danação e precisaria ser, por isso, investigado e combatido, dissolvido à força, afinal, embora fraco, ele permitiria ao necromante trazer Satã e o mal para o mundo dos homens. Essa lógica reforçava o caráter sectário e privativo dos pactos demoníacos, opondo-os aos pactos legítimos que tinham por característica a publicidade. Destarte, a argumentação do autor é arguta em mostrar que, assim como a heresia, o problema da necromancia era questão de desobediência, de dissidência, não de crença ou doutrina desviante: “o pacto, aqui, é assimilado à traição feudal, que consiste em requerer por um acordo explícito a ajuda do inimigo de seu senhor. Essa concepção banal e externa do pacto, como modo de negociação entre poderes rivais a um nível vassálico, era muito difundida no século XIII” (p. 93).

No capítulo 4, o autor examina as ações dos agentes diabólicos. Como anunciado na introdução do livro, mostra-se aqui que, até o século XIII, a teologia não havia dado muita atenção aos demônios, mas que tal situação muda a partir do tratado tomista De malo, datado provavelmente de 1272. Os doze artigos presentes no tratado teriam renovado as considerações esparsas sobre o tema e formado um corpus doutrinário amplo e original. Boureau sustenta que o De malo não representaria, contudo, uma síntese de diversas opinões teológicas organizadas pelo dominicano, mas um posicionamento particular que rapidamente seria atacado por alguns franciscanos como Guilherme de La Mare, em 1277, e Pedro de João Olivi, no início dos anos 1280. As polêmicas giraram ao redor da natureza de Satã e de seus acólitos, bem como seus poderes e atuações. O autor indica que, enquanto Tomás separava o pecado de Satã do pecado dos homens (fixando um limite claro entre os demônios e a humanidade, uma vez que o primeiro pecaria por sua vontade, ao passo que o segundo o faria por sua natureza), opositores como Pedro Olivi destacavam que “o anjo não difere necessariamente do homem: nos dois casos, é o querer próprio da criatura que o dana ou o salva”; Boureau completa: “inversamente em relação ao anjo de Tomás, o anjo de Pedro Olivi é muito mais próximo do homem que de Deus” (p. 125). Em Tomás, portanto, os demônios eram impermeáveis à história (p. 130), enquanto que, em Pedro Olivi, eles a recuperavam. Assim, paradoxalmente, a teologia tomista, por um lado, acorrentava o diabo, por outro, teria sistematizado um saber acerca do demônio que abriria espaço para a reflexão demonológica por meio da qual os franciscanos teriam desacorrentado o diabo e seus seguidores, aproximando-os dos homens.

No capítulo 5, por meio dos processos de canonização do início do século XIV, ocorridos sob os pontificados de Clemente V e João XXII, Boureau analisa a transformação em torno da demonologia. O autor observa duas tendências no tratamento dos possessos: uma tratava a maioria dos casos como loucura, outra invertia a proporção e considerava a maior parte das vítimas como endemoninhados. Para o autor, tal discrepância indicia a naturalização e a medicalização da loucura no século XIII. A partir de então, muitos casos em que as testemunhas alegavam possessão passaram a ser encarados como loucura; a centralidade da taumaturgia cedia lugar, então, à centralidade da virtude. Contudo, propõe-se que os casos de possessão demoníaca não teriam desaparecido, mas tomado novos contornos. Em linhas gerais, Boureau sugere que a permanência das menções ao exorcismo não sinaliza meros arcaísmos em face de uma onda naturalista que medicalizava a loucura; ao contrário, a nova sensibilidade sobre a presença demoníaca entre os fiéis teria criado um verdadeiro embaraço para a Cúria pontifícia, para além do ceticismo médico, obrigando-a a encarar o problema da possessão. A partir daí, foram sistematizadas novas formas de possessão que associavam Satã às aparições, aos hereges e aos mortos sem confissão, no mesmo momento em que João XXII estava interessado em redefinir a relação entre magos, hereges e demônios. Nesse sentido, a figura do louco não esgotaria a complexidade dos quadros e se constituiria apenas como uma baliza para avaliar a suscetibilidade dos indivíduos à possessão.

Graças a essa nova antropologia, derivada tanto do saber naturalista quanto da reflexão escolástica, a constatação da presença invasiva do demônio teria assumido, no século XIII, um novo sentido. Exploravam-se as forças e as fraquezas da natureza humana. Ao inaugurar a reflexão sistemática acerca de Satã e de seus demônios, o saber escolástico se abriu para uma investigação dos próprios limites e ações humanas; em outras palavras, a partir de uma reflexão sobre o diabo e sobre sua ação entre os homens, refletiu-se acerca da própria natureza humana.

No capítulo 6, a fim de melhor compreender as “fendas abertas no edifício da personalidade humana” (p. 169), Boureau investiga a figura do sonâmbulo. Essa personagem é inserida por Clemente V (1264-1314, papa a partir de 1305), à época das Constituições clementinas, no cânone Si furiosus, que apresentava uma novidade: “o sono, como a loucura, a infância ou a legítima defesa, constitui então fator de irresponsabilidade penal” (p. 170). A inimputabilidade penal do sonâmbulo evocava certa natureza pura para o ser humano, que era reduzido a um estado de passividade, “como um simples receptáculo de influências” (p. 172). Nesse sentido, o sonâmbulo se aproximava da figura do endemoninhado, visto que ambos estavam suscetíveis à possessão externa.

Para o autor, os debates acerca da relação entre a alma e o corpo expandiram a discussão sobre a personalidade humana. Do lado tomista, ter-se-ia afirmado “a unidade do sujeito” e entendido a alma como uma infusão de Deus na matéria, e não uma dedução dela. De outro lado, os “neoagostinianos” – em especial os franciscanos, mas também alguns dominicanos e seculares – teriam defendido a ideia de uma pluralidade das formas substanciais do homem. Segundo Boureau: “a teoria pluralista colocava em evidência uma estrutura federativa ou mesmo confederativa do sujeito” (p. 185). Como notou Ostorero,4 admitia-se a possibilidade de em um mesmo corpo coabitar a alma do indivíduo e um hóspede divino ou satânico. Essa fragilidade é que viria a ser explorada à época da caça às bruxas.

Finalmente, em seu último capítulo, Boureau se atém justamente ao debate acerca da fronteira entre as possessões divina e demoníaca. Duas formas de possessão divina são identificadas: a incorporação e a inhabitação. Nos dois casos o que está em jogo é a abertura do sujeito para a própria salvação, bem como para a ação direta da divindade. Tais casos seriam tratados pela Igreja com cautela, porque “os inspirados ofereciam a imagem temível de um individualismo religioso que tendia a apagar e mesmo rejeitar a mediação da Igreja entre Deus e os homens” (p. 224); os partidários do livre-espírito (acusados de autodeísmo e antinomismo), por exemplo, foram considerados heréticos pelo próprio Clemente V. De toda forma, tal debate teria preparado não apenas a possibilidade da divinização do sujeito, mas também a oportunidade da evocação de anjos decaídos para dentro do possesso: “as novas Pandora místicas carregavam em seu seio uma temível caixa que não tardaria a ser aberta. Os demônios dela escapariam” (p. 225).

Ao longo de seus capítulos, Boureau faz digressões que tornam a sua obra valiosa não só para os estudiosos da Inquisição e da demonologia, mas para todos aqueles que se interessam pelas temáticas relativas à história medieval e à história moderna. Suas reflexões conciliam referenciais teóricos clássicos com outros mais atuais (considerando o ano da publicação original, 2004) e formam um arcabouço condizente com as teorias vigentes sobre seus temas correlatos – as heresias, a feudalidade, a santidade e os processos judiciários, por exemplo – e são capazes de conectá-los de forma pertinente à questão da demonomancia, construindo uma tese geral bastante coesa. Mesmo a introdução do livro faz uma digressão; esta, porém, é menos profunda do que gostaríamos, pois ela cumpre o papel fulcral de inserir a problemática no quadro dos conturbados acontecimentos coevos. Pouco retomada posteriormente – visto que o autor está mais preocupado com a história intelectual e a história do pensamento – ela acaba ficando em segundo plano no desenvolvimento da tese. Em poucas palavras o autor resume a sua contextualização:

O período da “virada demoníaca” (1280-1330) coincide com um momento de viva tensão entre os poderes espiritual e secular, entre o papado e as monarquias. Os elementos de uma perseguição pública dos adoradores de demônios podem ser facilmente identificados nesse contexto de violência institucional e ideológica, que culmina com a captura do papa Bonifácio VIII pelas tropas de Filipe, o Belo, em Agnani em 1303. A presença de Satã ao lado de uma ou de outra parte dá lugar a procedimentos jurídicos especializados e a grandes affaires (p. 19).

A superficialidade do tratamento dado a essa dimensão acaba deixando de lado as tensões e, especialmente, as colaborações que o poder papal em Avignon teceu com o poder régio francês, as quais encontraram na Inquisição um ponto de convergência, uma vez que a perseguição aos hereges era não apenas um negócio de domínio e submissão, mas também de conquista territorial. Nas palavras do próprio autor,

O pacto satânico tornou-se perigosamente atual no século XIII por duas razões: uma política, outra teológica. Desde o vasto movimento de expansão demográfica e de concentração do habitat que caracterizou o início do primeiro milênio, as formas de organização da vida coletiva multiplicaram-se e sobrepuseram-se (comunidades rurais e urbanas, paróquias, senhorios, principados, reinos etc.). O estatuto complexo, de níveis sobrepostos, da propriedade, no seio da organização feudal, multiplicou as situações de pertencimentos múltiplos. A um período de concorrência conquistadora, que conduziu ao esgotamento e ao abandono progressivo de terrenos e das possibilidades de expansão, sucede, no século XIII, um período de confrontos, tensões entre as diversas formas de organização. As soberanias tentavam se afirmar sem meios institucionais e ideológicos para fazê-lo (p. 20).

Tal argumento só será retomado, rapidamente, no curto epílogo do livro, quando Boureau lembra que o mapeamento dos assentamentos heréticos e das presenças de bruxas no século XIV indicia certo projeto de conquista de áreas, próximas aos Alpes, ainda fora das esferas de poder dos papas e dos reis franceses. Diante das experiências fracassadas de conversão dos judeus, dos muçulmanos e dos valdenses é que os teólogos e juristas passaram a conceber a sua perseguição e extermínio.

Além disso, uma grande motivação para o nascimento da demonologia no século XIV, que Boureau evoca logo em seu primeiro capítulo, fica infelizmente obliterada nos capítulos posteriores: o medo e a obsessão de homens como João XXII com relação às possibilidades de estender ou de encurtar a vida humana por meio da magia e da necromancia. Ela nos sugere que todo o processo histórico em questão não era apenas questão de mudanças mentais, ideológicas e culturais, mas também de estratégias de proteção e contra-ataque em disputas políticas. O próprio autor inicialmente lembra: João XXII, assim como todos os papas que ocuparam a sé de Avignon, foram eleitos em clima de intensas disputas que os fizeram temer pela segurança de seus mandatos e pelas suas próprias vidas. Se, enquanto cardeais, eles recorreram à magia e à alquimia para defender suas posições e seus interesses, após eleitos eles temeram que seus adversários, dentro e fora da cúria, empregassem os mesmos recursos contra eles, no que podemos ver, então, certa tentativa de controle dessas artes, não apenas uma vontade de exorcizá-las e suprimi-las.

A presente tradução conta com um prefácio escrito pela própria revisora técnica da edição, Néri de Barros Almeida. Em sucintas palavras, Almeida apresenta um excelente esboço do livro; todavia, a autora transcende os limites gerais atribuídos a um prefácio, conectando a obra de Boureau à própria essência do fazer historiográfico. Por isso, recomendamos que o leitor o leia após ter percorrido os capítulos do livro, pois a revisora oferece uma chave de leitura que amplia a compreensão de um tema que, malgrado a antiguidade, permanece contemporâneo.

1Em resenha sobre a obra de Boureau: OSTORERO, Martine. Alain Boureau, Satan hérétique. Nais sance de la démonologie dans l’Occident médiéval (1280-1330). Médiévales [en ligne]. Vincennes: s. n., n. 48, printemps 2005. Disponível em: <http://medievales.revues.org/1087>. Acesso em: 18/02/2017.

2O próprio Igor Teixeira trata especificamente deste ponto em um artigo: TEIXEIRA, Igor Sa lomão. Antropologia histórica e antropologia escolástica na obra de Alain Boureau. Bulletin du centre d’études médiévales d’Auxerre [en ligne], n. 18.1, Auxerre: Bucema, 2014. Disponível em: <http:// cem.revues.org/13439>. Acesso em: 18/02/2017. DOI: 10.4000/cem.13439.

3OSTORERO, Martine. Alain Boureau, Satan hérétique, op. cit., 2005, p. 2.

4Idem, p. 4.

Felipe Augusto RibeiroDoutorando em História e Culturas Políticas pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Pesquisador do Laboratório de Estudos Medievais – Leme. E-mail: [email protected].

João Guilherme Lisbôa Rangel – Mestre em História pelo Departamento de História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFFRJ. Pesquisador do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Medievalística – Lepem. E-mail: [email protected].

Conspirações da raça de cor: escravidão, liberdade e tensões raciais em Santiago de Cuba (1864-1881) – MATA (RBH)

MATA, Iacy Maia. Conspirações da raça de cor: escravidão, liberdade e tensões raciais em Santiago de Cuba (1864-1881). Campinas: Ed. Unicamp, 2015. 303p. Resenha de: CHIRA, Adriana. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.36, n.73, set./dez. 2016.

O complicado relacionamento entre as pessoas de cor e os movimentos nacionalistas latino-americanos esteve no centro de um vasto conjunto de pesquisas historiográficas. Algumas das questões que os estudiosos enfrentaram foram estas: o que levou as pessoas de cor a participar nesses movimentos? Como os modelaram? E por que endossaram ideologias nacionalistas que celebravam a harmonia racial e que as elites brancas viriam a usar como meio para silenciar as reivindicações baseadas na raça? As pessoas de cor foram sendo cooptadas pelas elites brancas, ou conseguiram dar forma ao teor geral dos movimentos e das ideologias nacionalistas? Historiadores cubanos envolveram-se nessas discussões, muito embora Cuba tenha discrepado cronologicamente em comparação com outras colônias espanholas nas Américas, alcançando sua independência apenas em 1898. O paradoxo que faz de Cuba um tema particularmente interessante de pesquisa é por que o maior produtor de açúcar para o mercado global poderia abrigar um ideal nacionalista de fraternidade racial, no momento em que o racismo científico tornava-se o lastro ideológico para os segundos impérios europeus na Ásia e na África, e para as chamadas leis Jim Crow no sul dos Estados Unidos. Realizando rica pesquisa em arquivos cubanos e espanhóis e tecendo uma bela narrativa que coloca na frente e no centro as vozes e as ações das próprias pessoas de cor, Iacy Maia Mata oferece, em sua monografia, novas abordagens sobre essas questões.

Estudos anteriores sobre fraternidade racial em Cuba centraram o foco sobretudo na experiência militar durante a prolongada Guerra de Independência contra a Espanha (1868-1898). Estudiosos e intelectuais já desde José Martí argumentaram que o esprit de corps militar que se desenvolveu entre os rebeldes pró-independência através das linhas de segregação oficiais serviu como catalisador de ideologias radicais de inclusão nacional e racial. Mata, porém, sustenta que há indícios nos arquivos de uma cultura política popular em Santiago que parece ter preexistido à campanha militar de 1868. Introduzindo um novo recorte cronológico para a emergência de ideologias de igualdade racial em Cuba, Iacy Mata não está apenas oferecendo o relato mais completo. Ela também está sugerindo que a população de cor de Santiago havia considerado a igualdade antes mesmo de as elites liberais de pequenos proprietários na província vizinha de Puerto Príncipe terem iniciado a guerra de independência.

O objetivo de Iacy Mata é traçar as origens da cultura política popular de Santiago e explicar como, entre meados dos anos 1860 e o início da década de 1880, a população de cor local superou as divisões de status e criou laços e solidariedades que alcançaram sua expressão completa na ideia de uma raza de color unificada. A autora argumenta que essa visão particular de uma comunidade política centrada na raça estava alinhada com a causa nacionalista de uma Cuba livre. Como ela coloca adequada e incisivamente, as pessoas de cor de Santiago passaram, no começo da década de 1860, da condição de la clase de color, um rótulo oficial nelas fixado pelas autoridades coloniais espanholas, para a de la raza de color, termo que intelectuais e líderes políticos e militares de cor começaram a usar para se autoidentificar no início da década de 1880.

Ao longo da maior parte de sua existência colonial, Santiago de Cuba, província situada na extremidade leste da ilha, foi uma zona de fronteira colonial, ator marginal na política imperial e local de pouco investimento da agricultura de plantation em larga escala. Os refugiados da Revolução Haitiana que migraram para essa região por volta de 1803 ali introduziram plantações de café, muitas das quais faliram no começo da década de 1840. Até o final dos anos 1850, as principais fontes de renda locais eram a criação de gado, a plantação de café e tabaco e a mineração de cobre (que as autoridades concederam a uma companhia inglesa). Como resultado da localização de Santiago nas margens do domínio açucareiro, a pequena propriedade permaneceu ali muito mais comum do que na parte centro-oeste de Cuba. Além do mais, Santiago também se destacou entre as demais províncias cubanas pelo peso demográfico relativamente maior da população de cor. No começo dos anos 1860, muitos deles eram pequenos proprietários e alguns possuíam um pequeno número de escravos. Era essa população que começou a se mobilizar politicamente no início daquela década, argumenta a autora, em resposta aos acontecimentos econômicos locais e aos movimentos internacionais antiescravagistas.

Nos primeiros anos da década de 1860, o açúcar começou a deitar raízes mais profundas em Santiago e a produção de café voltou a se expandir ali. Como consequência, as plantações começaram a invadir áreas onde os pequenos proprietários ou arrendatários cultivavam tabaco, deixando a população de cor insatisfeita. Ademais, em meados da década, teriam chegado a Santiago notícias e rumores sobre a emancipação dos escravos no sul dos Estados Unidos. A população local também teria consciência, havia bastante tempo, dos protestos britânicos contra a escravidão e o comércio de escravos para o Império Espanhol (em razão da proximidade da Jamaica), bem como da reputação do Haiti como república construída a partir de uma bem-sucedida revolução de escravos. Fazendo uma leitura cuidadosa de registros criminais e judiciais, Iacy Mata recupera como essas notícias impactaram a vida cotidiana entre os escravos e a população de cor livre e o que fizeram com elas. Quer fosse a exibição sutil e irônica de uma bandeira haitiana, trazendo inscrita a palavra Esperança, quer fosse o uso de um vocabulário pró-republicano, antiescravidão e antidiscriminação, sustenta a autora, as conversas de natureza política se espalharam pela cidade e pelas áreas rurais antes de 1868.

As conversas políticas locais culminaram em uma série de conspirações que transpirou entre 1864 e 1868 na província de Santiago e em áreas adjacentes. Iacy Mata interpreta a evidência dessas conspirações cuidadosamente, identificando os objetivos e as alianças dos participantes que emergiam entre escravos, população de cor livre e brancos. Os desiderata incluíam uma república independente, o fim da escravidão e a igualdade de direitos no que diz respeito ao status de raça. Nos dois capítulos finais, a autora coloca em discussão que essas metas políticas receberiam maior articulação durante a Guerra de Independência, quando as pessoas de cor tentariam radicalizar a agenda principal da liderança branca liberal para incluir a igualdade política e a abolição imediata.

A monografia baseia-se em extensa pesquisa nos arquivos imperiais espanhóis (Arquivo Histórico Nacional, Arquivo Geral das Índias), bem como em fontes dos Arquivos Nacionais Cubanos e do Arquivo Histórico Provincial de Santiago de Cuba. Esses diferentes repositórios forneceram a Iacy Mata fontes que lhe permitiram deslocar-se entre diferentes percepções dos mesmos eventos ou processos: elite/subalterno, centro imperial (Madri)/elite política centrada no açúcar (Havana)/zona de fronteira cubana (Santiago). Adicionalmente, o trabalho de Iacy Mata mostra como o estudo de uma área de fronteira do Caribe pode ser importante para se entender o radicalismo político na região. Por muito tempo, os historiadores permaneceram focando as áreas produtoras de açúcar como os principais espaços onde a mudança social se deu. Embora seu trabalho tenha nos munido de ferramentas e abordagens analíticas indispensáveis, Iacy Mata sugere que é importante olhar para além dessas áreas se quisermos compreender a cultura política local.

A monografia também abre importantes caminhos para novas pesquisas. A unidade discursiva do termo raza de color esconde as complexas políticas e as fraturas existentes entre as pessoas de cor em Santiago que sobreviveram nos anos 1880 e moldariam a política clientelista nos primórdios da Cuba republicana. Seria fundamental considerar que as origens e os desdobramentos posteriores dessas fraturas estariam em Santiago. Em segundo lugar, o estudo de Iacy Mata alude à presença de aliados brancos liberais em Santiago, que, ocasionalmente, ajudaram os combatentes pela liberdade ou participaram de conspirações antiescravidão. A historiadora cubana Olga Portuondo Zúñiga explorou a história do liberalismo na parte ocidental da ilha, revelando um vibrante campo de ideias liberais que se mostravam, às vezes, contraditórias ou contraditórias em si mesmas. Puerto Príncipe e Bayamo foram terrenos particularmente férteis para o pensamento liberal, mas Santiago não esteve alheia a ele antes da Guerra de Independência (ver, por exemplo, o governo de Manuel Lorenzo nos anos 1830). Algumas dessas ideologias liberais podem também ter escoado através de redes que alcançaram ex-colônias latino-americanas depois da década de 1820 e a República Dominicana durante a Guerra da Restauração nos anos 1860. Estudar os ideais políticos da população de cor de Santiago em relação a essas outras correntes políticas, tanto internas quanto externas à ilha, parece ser um terreno especialmente importante para futuras pesquisas.

O trabalho de Iacy Mata é uma bela ilustração de como as ferramentas da história social e política podem capturar a dinâmica dos movimentos políticos populares. Assim sendo, eu o recomendo vivamente para os estudiosos interessados em sociedades escravistas e pós-escravistas e nos papéis que as pessoas de cor desempenharam no interior delas.

Adriana Chira – Ph.D., University of Michigan. Assistant Professor of Atlantic World History, Emory College of Arts and Sciences (USA). Emory College of Arts and Sciences. Atlanta, GA, USA. E-mail: [email protected].

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Provas de liberdade: uma odisseia atlântica na era da emancipação – SCOTT et. al (VH)

SCOTT, Rebecca J; HÉBRARD, Jean M. JOSCELYNE, Vera. Provas de liberdade: uma odisseia atlântica na era da emancipação. Campinas: Editora da Unicamp, 2014. 296 p. DIÓRIO, Renata Romuldo. Provas de liberdade: uma odisseia atlântica na era da emancipação. Varia História. Belo Horizonte, v. 31, no. 57, Set./ Dez. 2015.  

Edouard Tinchant, um homem negro, “descendente de haitianos”, nascido em New Orleans, sul dos Estados Unidos, viveu na Antuérpia, onde foi fabricante e comerciante de tabaco. Em 1899, ele escreveu para Máximo Gomez, um dos líderes pela luta da independência cubana, para fazer um pedido. Tinchant pretendia usar o nome e o retrato do general Gomez como marca de seus melhores charutos. O pedido seria uma forma de reverenciar um defensor do antirracismo, causa que marcou a história dos seus antepassados e descentes.

A referida carta foi encontrada por Rebecca Scott e Jean Hébrard, no Arquivo Nacional de Cuba, e, a partir desta, esses pesquisadores iniciaram uma busca surpreendente por outras informações relativas à vida profissional e pessoal de Tinchant. Eles obtiveram dados sobre cinco gerações de uma família constituída pela união entre uma africana e um francês, Rosalie e Michel Vincent, e essa extensa pesquisa documental deu origem ao livro Provas de Liberdade: uma odisseia atlântica na era da emancipação.

As trajetórias de homens e mulheres de cinco gerações da família de Tinchant foram resgatadas com base em registros encontrados em arquivos. Estes documentam momentos de suas vidas em diferentes locais onde se instalaram, como Cuba, Estados Unidos (Luisiana), Haiti, Bélgica (Antuérpia) e França. As histórias são elucidadas a partir da análise de cartas de alforria, batismos, testamentos, contratos de casamento, recenseamentos, dentre outros. O pano de fundo são os acontecimentos políticos que perpassam a crise do escravismo e do colonialismo no Mundo Atlântico e as revoluções antirracistas e de cunho liberal do século XIX. As principais são a Revolução Haitiana, a Revolução Francesa de 1848, a Guerra Civil e a Reconstrução nos Estados Unidos.

Por meio dos estudos dessa família, o livro aborda questões relativas a tráfico, escravidão, liberdade e condições impostas aos descendentes de escravos nos séculos posteriores à emancipação e em contextos de guerras. As histórias dos membros dessa família convergem na luta por direitos, como a preservação da liberdade, a legitimidade das uniões conjugais e a garantia da cidadania. Na opinião de Rebecca Scott e Jean Hébrard, Rosalie e seus descendentes eram conscientes da importância dos documentos para a reivindicação de suas prerrogativas, e em função disso, procuravam os meios para que os registros fossem produzidos. Esse é o fio condutor de histórias vivenciadas pelas pessoas que possuíam laços consanguíneos em locais e momentos tão díspares.

O livro dialoga com trabalhos mais recentes que buscam uma narrativa de biografia. Nesse caso, trata-se de pequenas biografias desenvolvidas a partir das escolhas individuais dos descendentes de Rosalie, apresentadas em nove capítulos. São micro-histórias “em constante movimento”, como afirmam os autores. Partidas, chegadas e fixação em diferentes localidades denotam uma relação direta com condicionantes como legislação, hierarquia social e guerra.

Tráfico, escravidão e liberdade são elucidados pela trajetória de vida de Rosalie na segunda metade do século XVIII. Os principais mecanismos de administração da escravidão nos domínios franceses e espanhóis no Novo Mundo são relatados a partir das experiências dessa africana dentro de um contexto mais amplo em que estava inserida. São evidenciados os indícios da sua travessia pelo Atlântico, da Senegâmbia para Santo Domingo, Caribe, passando pelo período que viveu sob o regime da escravidão até a sua libertação.

No período da Revolução Haitiana Rosalie era denominada na documentação como Marie Françoise. Nessa ocasião, ela era liberta e possuía quatro filhos, fruto da relação conjugal com o francês Michel Vincent. Em uma tentativa de fuga para Cuba, a família foi separada, a filha, Elisabeth Vincent, foi levada para Nova Orleans, onde mais tarde casou-se com o carpinteiro Jacques Tinchant. Edouard, mencionado anteriormente, era um dos cinco filhos nascidos dessa união, nenhum deles se encontrou com a avó, Marie Françoise. Embora os Tinchant apresentassem uma confortável situação na Louisiana, a família partiu para a França em 1840. Pelo que consta nas fontes encontradas, o motivo teria sido a tentativa de escapar das severas leis que incidiam sobre homens negros e seus descendentes nos Estados Unidos daquela época.

A trajetória política de Edouard Tinchant merece destaque, pois ele foi diretor de uma escola de crianças libertas, veterano do exército da União na guerra civil e representante multirracial no sexto distrito de Nova Orleans. No entanto, foi na Antuérpia que ele teve uma espetacular ascensão econômica com a produção e venda de charutos finos. Seus negócios estenderam-se para Nova Orleans e também para o México, onde Joseph Tinchant, irmão de Edouard, representou o empreendimento. Eles transitaram entre a América do Norte e a Europa, deixando registros como empresários ou cidadãos respeitáveis. Em 1875, Joseph foi mencionado nos documentos como Don Joseph Tinchant, que, de acordo com as formas de tratamento local, indicava ser um cidadão do México.

Em 1937, Marie-José Tinchant, uma jovem de 21 anos que era neta de Joseph Tinchant, deu uma entrevista ao jornal londrino Daily Mail. A publicação mostra que, embora Marie-José fosse uma moça delicada, culta e filha de um próspero comerciante de charutos da Antuérpia, teve seu casamento anulado por causa da tez da sua pele. Mesmo fugindo e conseguindo realizar o casamento, ocorreram tentativas de anulação da união da parte dos pais do noivo, com base no preconceito racial. Anos depois ela é presa pelas forças nazistas de ocupação da Bélgica, supostamente por ser um membro do Movimento de Resistência durante a Segunda Guerra, e morre em um campo de concentração em 1945, na Ravensbrück, Alemanha.

Os momentos de vida elucidados no livro resultam de um levantamento exaustivo de fontes sobre os membros das famílias de descendentes da ex-escrava Rosalie, depois referida como Marie Françoise. As histórias são retratadas com acentuada tendência, por parte dos autores, em suposições de informações que não são captadas por meio dos documentos. De todo modo, isso em nada compromete o trabalho, tamanho o esforço em evidenciar como essas gerações fizeram uso desses papéis para legitimar seus direitos e superar restrições que os ligavam à escravidão. O livro nos mostra que quanto mais distante da condição escrava, maiores as chances de obter ascensão econômica, social e até mesmo política. Contudo, também deixa claro que em cada uma dessas conquistas havia uma luta constante em torno do combate ao racismo que assolou e ainda assola gerações até os nossos dias.

Por abarcar um período tão abrangente, marcado por tantas mudanças, o livro interessa aos especialistas da escravidão, do fim do colonialismo e dos conflitos antirracistas no Mundo Atlântico, mas também àqueles dedicados a debates mais contemporâneos acerca da luta contra o racismo

Renata Romuldo Diório – Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo. Pós-Doutoranda em História Social da Cultura. Universidade Federal de Minas Gerais. Rua Amador Catarino Jales, 105, Distrito de Padre Viegas, Mariana, MG, 35422-000, Brasil. [email protected].

Justiça do Trabalho – BULLA. A Justiça do Trabalho e sua história – GOMES; SILVA (EH)

BULLA, Beatriz; NUNES, Fabiana Barreto; GHIRELLO, Mariana; MAIA, William. Justiça do Trabalho: 70 Anos de Direitos. São Paulo: Alameda, 2011. 262 pp. GOMES, Ângela de Castro; SILVA, Fernando Teixeira da. A Justiça do Trabalho e sua história: os direitos dos trabalhadores no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 2013. 528 pp. Resenha de : SANTOS JÚNIOR, José Pacheco dos. Justiça do Trabalho: história, domínios e sujeitos. Estudos Históricos, v.27 n.54 Rio de Janeiro July/Dec. 2014.

Exibindo sete décadas de existência, o Judiciário Trabalhista brasileiro entra no século XXI com o vigor de uma instituição que, pela importância e impacto que exerceu e exerce na regulamentação das relações trabalhistas no país, não escapa aos olhares atentos da comunidade intra e extra-acadêmica. PJustiça do trabalhoossibilitadas pelas renovações conceituais e metodológicas vislumbradas pela historiografia nas últimas quatro décadas, e matizadas pela potencialidade que emana da documentação (escrita e oral) da Justiça do Trabalho, duas obras coletivas vêm, num intervalo de dois anos, explorar a história dessa instituição instalada por Vargas à época do Estado Novo e inicialmente vinculada ao Poder Executivo: Justiça do Trabalho: 70 anos de direitos, e A Justiça do Trabalho e sua história: os direitos dos trabalhadores no Brasil, objetos de discussão da presente resenha.

O primeiro livro, gestado sob os auspícios celebrantes dos exatos 70 anos da instalação da Justiça do Trabalho no país, é produção de quatro jornalistas especializados na área jurídica. Em Justiça do Trabalho: 70 anos de direitos, salta aos olhos a bela proposta de articular uma obra que transite pelas sete décadas de atuação do Judiciário Trabalhista e pelas experiências de alguns de seus agentes, como juízes e advogados. Estruturado em três partes e detentor de uma última seção denominada “caderno de imagens”, o conjunto de reportagens se apresenta ao público leitor como uma obra que persegue o objetivo de “rememorar fatos e acontecimentos históricos que conferiram à Justiça do Trabalho o título de ‘Justiça Social do Brasil’” (p.13). Para isso, a primeira parte, assinada por Mariana Ghirello (com reportagens de Daniella Dolme), expõe as principais marcas do cenário político-econômico brasileiro, desde a criação do Judiciário Trabalhista, na década de 1940, até os anos 2000. Na sequência, o cotidiano da Justiça do Trabalho é colocado em debate por William Maia (com reportagens de Thassio Borges). Nesta parte, ganham terreno tópicos como demandas, julgamento e execução dos processos, a informatização na Justiça do Trabalho, além das várias faces do cotidiano da advocacia trabalhista.

O ponto alto da obra se evidencia na reunião de entrevistas organizadas por Beatriz Bulla em parceria com o site Última Instância. Enfatizando as diversas trajetórias e concepções que alguns operadores do direito atribuem à Justiça do Trabalho, nesta terceira seção encontra-se uma importante entrevista com Arnaldo Süssekind, ministro do Tribunal Superior do Trabalho no período da ditadura militar, falecido um ano após a publicação da obra. Por outro lado, apesar dos belos insights expressados, o que deixa a desejar na publicação é a total ausência de referências bibliográficas e notas explicativas, além da rasa exploração do “caderno de imagens”: seção que exibe inúmeras fotografias que, em sua maioria, estão desprovidas de fontes e autores, apenas munidas de breves legendas. Sopesando a ousada proposta aventada, com toda a licença que uma obra jornalística exige, o livro em questão se configura apenas como uma introdução básica, de caráter informativo, aos estudos sobre a história da Justiça do Trabalho.

Sob a coordenação de Ângela de Castro Gomes e Fernando Teixeira da Silva, historiadores que de longa data vêm se dedicando à História Social do Trabalho e em particular à Justiça do Trabalho, a segunda coletânea opera uma cuidadosa análise, materializada em 11 textos que evidenciam os múltiplos traços da relação dos trabalhadores brasileiros com essa Justiça especial e com o mundo jurídico. Debruçado em histórias individuais e coletivas dos trabalhadores de diversos rincões do país, A Justiça do Trabalho e sua história: os direitos dos trabalhadores no Brasil reúne contribuições de pesquisadores de norte a sul do Brasil e de um canadense, todos querendo decifrar sujeitos, reclamações, cotidiano e as diversas estratégias de luta e negociação fomentadas na arena da Justiça do Trabalho.

Ao depositar suas expectativas e reclamações na Justiça do Trabalho, os trabalhadores legaram à posteridade registros que sinalizam uma cultura jurídica (e de classe) que extrapola as fronteiras do “legal institucionalizado” e contempla um delicado campo que compreende costumes e tradições na interpretação das leis, na definição de regras jurídicas, como também na afirmação de mecanismos legais para a resolução de conflitos. Visando interpretar essa seara, as contribuições desta obra distribuem-se em cinco eixos temáticos articulados através de seus propósitos em comum. Primeiramente, Clarice Speranza e Rinaldo José Varussa esmiúçam condições de trabalho e políticas de conciliação de classe no Sul do país em dois momentos distintos da história brasileira. Em um segundo momento, Antonio Luigi Negro e Edinaldo Souza, assim como Benito B. Schmidt, abordam as facetas do poder disciplinar, na Bahia (no caso dos dois primeiros autores) e no Rio Grande do Sul, recorte espacial de Schmidt. Em um denso e cuidadoso trabalho analítico, Fernando Teixeira da Silva explora a natureza do poder normativo nos domínios do TRT de São Paulo no “longo ano de 1963, que termina com o golpe civil-militar de 1964” (p.203), ao passo em que Larissa Rosa Corrêa examina a questão da Justiça do Trabalho e da política salarial entre 1964 e 1968.

Para além dos estudos que focam no eixo Rio/São Paulo e na força de trabalho industrial, ainda predominantes na historiografia brasileira sobre o labor, os capítulos de Antonio Montenegro e do canadense Frank Luce elegem como objeto de investigação as tramas dos trabalhadores rurais e magistrados do Nordeste brasileiro com o Judiciário Trabalhista, tratando de Pernambuco e da zona cacaueira da Bahia. Descortinando temas e privilegiando metodologias ainda pouco usuais nas análises acerca da Justiça do Trabalho, a quinta e última parte da coletânea convida o leitor a refletir sobre temas que compreendem, entre tantos outros discutidos, a regulamentação das relações de trabalho em Franca (SP), a terceirização e o trabalho análogo ao de escravo no Brasil contemporâneo, pontos e categorias dissecados respectivamente por Vinícius de Rezende, Magda Barros Biavashi e Ângela de Castro Gomes.

Indispensável para a compreensão das lutas dos trabalhadores brasileiros na busca por direitos, e, num plano mais amplo, da própria edificação da cidadania no Brasil, A Justiça do Trabalho e sua história revela-se uma contribuição fulcral, ainda que seja uma pequena amostra dos estudos que hoje se dedicam à relação dos trabalhadores com esse ramo do Judiciário – estudos estes que, possibilitados pelo recente contato com os acervos dos tribunais trabalhistas, apresentam a dinâmica das tensões e experiências que até então estavam reservadas ao domínio da esfera privada do mundo do trabalho.

Se alguns dos grandes nomes do mundo jurídicoganham ênfase e voz na obra de Bulla et alii, na segunda coletânea, coordenada por Gomes e Silva, os trabalhadores (com suas disputas, acordos e conquistas) se veem historicizados num canal privilegiado. Todavia, numa época em que o Judiciário se encobre nas brumas do esquecimento, ao manter a política de descarte dos autos findos a partir de cinco anos de arquivamento,1 coletâneas como estas, aqui ligeiramente discutidas em face da limitada dimensão de uma resenha, têm todo o direito de se arvorar em obras-manifesto, mesmo que sem se enunciar enquanto tais.

1. BRASIL. Lei nº 7.627, de 10 de novembro de 1987. Dispõe sobre a eliminação de autos findos nos órgãos da Justiça do Trabalho, e dá outras providências.

José Pacheco dos Santos Júnior – Mestrando em História Econômica na Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador do Laboratório de História Social do Trabalho (LHIST/UESB) ([email protected]).

Espaços da recordação: formas e transformações da memória cultural – ASSMANN (VH)

ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação: formas e transformações da memória cultural. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2011, 453 p. QUELER, Jefferson José. Varia História. Belo Horizonte, v. 29, no. 49, Jan./ Abr. 2013.

Ainda existe memória no mundo contemporâneo? Qual o papel da cultura em sua formulação ao longo do tempo? Tais são alguns dos desafios enfrentados por Aleida Assmann em seu livro Espaços da recordação: formas e transformações da memória cultural. A obra foi recentemente traduzida do alemão por pesquisadores ligados à Universidade Federal do Paraná e publicada pela Editora da Unicamp, em 2011. Trata-se de versão modificada de uma tese de livre-docência apresentada à Universidade de Heidelberg, em 1992. Professora da Universidade de Konstanz, com formação em língua e literatura inglesa e em egiptologia, Assmann foi bem-sucedida em ultrapassar as fronteiras de suas especialidades. Atualmente seu trabalho desfruta de renome internacional entre as mais diversas áreas do pensamento, e pode estimular novas abordagens sobre a questão da memória no Brasil.

O livro foi produzido em meio ao rompimento do “silêncio coletivo” sobre o Holocausto e o período nazista na Alemanha, em momento em que tais temáticas assumem lugar de destaque em debates públicos naquele país. Da mesma forma, apareceu na esteira da crescente digitalização da mídia, em situação em que os computadores contribuem para modificar as formas de se lidar com o passado.

Diante de tais transformações, Assmann questiona posições que apontam o fim da memória nas últimas décadas. O alvo privilegiado de suas críticas, destacado desde as primeiras páginas do texto, é o historiador francês Pierre Nora. A obra deste último, em especial seu Les lieux de mémoire, obteve grande repercussão internacional ao proclamar a subsunção da memória pela história. Com o advento da modernização, a primeira, pautada por discursos espontâneos e naturais, seria cada vez mais incorporada pela história, marcada por um discurso artificial e racionalizado. Diante dessas colocações, Assmann coloca as seguintes perguntas: “É assim mesmo? Não existe mais memória? E que tipo de memória não existiria mais?”.

O eixo de sua argumentação consiste em demonstrar que não há uma essência da memória. Não apenas os indivíduos lembram-se das coisas, como também grupos e as mais diversas coletividades. Ou seja, os modos de recordar são definidos culturalmente, variam ao longo do tempo e segundo a formação cultural em que são formulados. Desse modo, se há o desaparecimento da memória, como quer Nora, isso é verdade apenas na medida em que há o descrédito de algumas formas de recordar. A mnemotécnica, tão exaltada na Antiguidade, sobretudo por Cícero, proclamava o valor do saber de cor, habilidade procurada em líderes e governantes. Entretanto, tal uso da memória cai em descrédito nos dias atuais, resvalando até mesmo na esfera do patológico. Afinal, perguntam-se muitos, por que decorar o que se pode registrar por escrito? Segundo a autora, não se considera mais a memória como vestígio ou armazenamento, mas como uma massa plástica constantemente reformulada sob as diferentes perspectivas do presente. Um pouco de exagero, pois poderíamos pensar na coexistência de diversas formas de se conceber e usar a memória atualmente.

Porém, a relevância do trabalho não deve ser diminuída. Assmann recorre a uma erudição impressionante para sustentar seus pontos de vista. Dialoga com autores clássicos das mais diversas épocas e áreas do conhecimento: Platão, Aristóteles, Shakespeare, Wordsworth, Halbwachs, Benjamin, Rousseau, Freud – mérito seu, evidentemente, mas que deve ser igualmente atribuído à situação institucional que abriu espaço para a elaboração desse trabalho de fôlego. E, a partir de tais autores, constata não apenas os mais diversos usos da memória, como também as diferentes formas pelas quais ela foi pensada e teorizada. Assim, enquanto Cícero notabilizou-se por delinear a arte da mnemotécnica, Nietzsche destacou-se por conceber a memória enquanto elemento central na formação da identidade. Outros embates são traçados: a memória recompõe cenas do passado, ou as reconstrói? Erige-se a partir tão-somente de um esforço deliberado, ou também de forma involuntária? Forma-se apenas com lembranças, ou também a partir de esquecimentos?

Nos horizontes de Assmann, destaca-se a preocupação de considerar tanto a memória quanto a história como formas de recordação. Elas, a seu ver, “não precisam excluir-se nem recalcar-se mutuamente”. As ciências históricas são vislumbradas como uma memória de segunda ordem, uma memória das memórias, a qual integra aquilo que perdeu relação vital com o presente. É o processo de formação dos Estados modernos o pano de fundo para o desenvolvimento delas. O interesse pela identidade nacional aumentou a velocidade do movimento arquivista, com a formação de coleções reunindo traços de um passado esquecido. E, uma vez reconquistado o passado das mãos dos monges e da Igreja, tornou-se premente a crítica das fontes. Mesmo diante de tais esforços, a autora aponta que os modos de recordar o passado nunca se concentraram exclusivamente nas mãos de profissionais ou especialistas. A memória nunca foi enquadrada totalmente pela história.

Os modos de recordação, por vezes, reconhecem revivescências. Assmann indica como a memória cultural tem seu núcleo antropológico na memoração dos mortos. Segundo tabu universal, estes devem ser sepultados e levados ao repouso; caso contrário, vão incomodar o mundo dos vivos. A Antiguidade, por sua vez, insistirá na eternização de alguns nomes. Poetas, cantores e historiadores serão mobilizados nessa tarefa. Concepção que, após interlúdio durante a Idade Média, será retomada no Renascimento. Casos como o memorial do Holocausto, por outro lado, marcariam o fim de quaisquer retóricas da Fama, voltando à forma original da lembrança histórica: a memoria dos mortos. Segundo a autora, contrapondo-se a Nora, a cobertura da Europa com locais de recordação da guerra não tem nada a ver com a modernização, mas com o regime totalitário e o genocídio planejado dos nazistas.

O livro de Assmann é publicado no Brasil em momento em que se instala uma Comissão da Verdade destinada a investigar, sem a prerrogativa da punição, crimes e abusos contra os direitos humanos cometidos durante a ditadura militar. Trata-se de situação bem distinta do contexto de produção da obra. Afinal, muitos dos criminosos nazistas foram julgados e condenados tão logo terminou a Segunda Guerra Mundial. Em seguida, é bem verdade, seguiu-se longo silêncio sobre o Holocausto entre a sociedade alemã. E a obra de Assmann foi construída justamente em conjuntura em que tal negação do passado era revista. No caso brasileiro, há que se perguntar se as diferentes formas de recordação presentes no debate público, tanto a memória quanto a história, serão capazes de iluminar os caminhos tomados pela Comissão da Verdade: suas formas de rememorar o passado talvez possam ser relativizadas a partir do trabalho de Assmann. Portanto, o livro em questão é de interesse não apenas para historiadores e cientistas sociais, como também para qualquer público interessado nas problemáticas colocadas pela memória.

Jefferson José Queler – Professor do Departamento de História. Universidade Federal de Ouro Preto. [email protected].

Inventar a heresia? ZERNER (VH)

ZERNER, Monique (org.). Inventar a heresia? Discursos polêmicos e poderes antes da Inquisição. Campinas: Editora da Unicamp, 2009, 304 p. Resenha de: SILVA, Carolina Gual da. Varia História. Belo Horizonte, v. 28, no. 47, Jan./ Jun. 2012.

A Editora da Unicamp, em parceria com o LEME (Laboratório de Estudos Medievais USP/Unicamp), inaugura com essa obra uma série de traduções de importantes textos dedicados à História Medieval com o intuito de tornar acessíveis obras que discutem de forma original e atualizada temas da historiografia medieval. Este livro, organizado por Monique Zerner, discute a construção do discurso anti-herético na Europa pré-Inquisitorial.

Monique Zerner, professora emérita da Universidade de Nice, pesquisadora vinculada ao CNRS e experiente em estudos sobre as heresias, 1 coordenou os trabalhos de outros nove pesquisadores da Antiguidade Tardia e Idade Média, reunidos no seminário “Heresia, estratégias de escrita e instituição eclesial” acontecido em Nice entre 1993 e 1995. O livro publicado na França em 1998 agora chega para os leitores brasileiros em versão traduzida.

A obra é composta por uma introdução, feita pela organizadora, oito capítulos, dois excursos e um posfácio. Os dois primeiros capítulos se referem a textos da Antiguidade Tardia com Jean-Pierre Weiss escrevendo o primeiro capítulo, “O Método Polêmico de Santo Agostinho no Contra Faustum” e Jean-Daniel Dubois com “Polêmicas, Poder e Exegese: o exemplo dos gnósticos antigos no mundo grego”. A esses capítulos se segue o primeiro excurso que inaugura a discussão em torno do século XI, “Saint-Victor de Marselha no Final do Século XI: um eco de polêmicas antigas?”, escrito por Michel Lauwers. A partir do excurso temos os capítulos referentes aos séculos XI e XII, o principal foco do livro: capítulo 3, de Guy Lobrichon, Arras, 1025, ou o “Processo Verdadeiro de uma Falsa Acusação”; capítulo 4, “A Argumentação Defensiva: da polêmica gregoriana ao Contra Petrobrusianos de Pedro, o Venerável”, de Dominique Iogna-Prat; capítulo 5, de Monique Zerner, “No Tempo do Apelo às Armas Contra os Hereges: do Contra Henricum do monge Guilherme aos Contra Hereticos“; capítulo 6, novamente de Michel Lauwers, “Os Sufrágios dos Vivos Beneficiam os Mortos? História de um tema polêmico (séculos XI-XII)”; capítulo 7, “Na Época em que Valdo não era Herege: hipóteses sobre o papel de Valdo em Lyon (1170-1183)”, de Michel Rubellin; capítulo 8, escrito por Jean-Louis Biget, “Albigenses: observações sobre uma denominação”; o segundo excurso, “Um Caso de não Heresia na Gasconha no ano de 1208”, por Benoît Cursente; e finalmente o posfácio escrito por Robert Ian Moore.

É interessante notar que, embora seja uma coletânea de diferentes autores, os textos aparecem como capítulos de uma mesma obra e não como artigos independentes reunidos. Isso se deve, em parte, ao contexto de produção do livro, resultante de pesquisa conjunta dos autores ao longo de cerca de cinco anos. Os textos de Inventar a Heresia? possuem uma coerência e coesão muito grande não apenas na temática, mas também no tipo de documentação utilizada e principalmente na linha teórico-metodológica que seguem. Eles podem, sim, ser lidos separadamente, mas é em seu conjunto que eles ganham uma força argumentativa e explicativa que tornam essa uma obra tão rica.

Zerner nos apresenta, na introdução, todas as motivações teóricas e metodológicas que guiaram os textos apresentados no livro. O impulso inicial veio das pesquisas dos anos 1980 da própria autora e da inquietação dela e de vários outros pesquisadores, principalmente a partir dos anos 1990, em relação ao tratamento dado pelos historiadores ao catarismo, nas palavras da autora, “tomado como um fato indiscutível na historiografia francesa”.2 Com os seminários de Nice colocou-se a necessidade de pensar as relações entre heresia e estratégias eclesiásticas que tiveram um papel fundamental em sua construção doutrinal e historiográfica.

Surge, assim, a necessidade de considerar as fontes de uma maneira mais crítica, pensando-as dentro da lógica de sua produção, questão ressaltada por Moore no posfácio como sendo “a regra mais elementar porém facilmente negligenciada por nosso métier“.3 Assim, a preocupação com as fontes pode ser vista claramente no tratamento dado, em todos os capítulos do livro, aos seus respectivos documentos. Todos os autores baseiam suas pesquisas fortemente sobre a análise crítica das fontes primárias em relação aos seus contextos de produção (presente em todos os textos, mas com maior ênfase no capítulo de Monique Zerner no tratamento da autoria e composição dos manuscritos), aos mecanismos retóricos e discursivos (particularmente o texto de Jean-Pierre Weiss a propósito da obra de Santo Agostinho e de Dominique Iogna-Prat a respeito do discurso de Pedro, o Venerável), aos termos utilizados (especialmente na discussão sobre o termo “albigense” feita por Jean-Louis Biget) e às relações do texto escrito com as práticas sociais (Michel Lauwers no capítulo sobre os sufrágios dos vivos). Essa orientação dialoga com a historiografia anglo-americana sobre as práticas da escrita com o tema da literacy.4

Outro elemento de coerência da obra está na escolha das fontes utilizadas pelos pesquisadores. Os estudos trabalham com os textos polêmicos dos séculos XI e XII, à exceção dos dois capítulos iniciais dedicados aos textos polêmicos da Antiguidade Tardia. As fontes desses capítulos iniciais, especificamente o Contra Faustum de Agostinho e o texto de Irineu de Lyon contra os gnósticos, têm como função explicar o método polêmico e lançar luz sobre as técnicas retóricas utilizadas. Eles servem como uma ferramenta para que se possa entender, mais à frente, o tipo de texto que se desenvolveu nos séculos XI e XII e cujas formas de argumentação são bastante semelhantes.

Por fim, os textos são guiados pelo título provocador da obra em forma de pergunta: Inventar a heresia? O capítulo que se atém de forma mais direta a essa pergunta é o de Jean-Daniel Dubois, mas a resposta – ou a pergunta – é o fio condutor de todos os autores. Numa organização que vai progressiva e quase que cronologicamente montando o quadro das heresias nos séculos que antecedem a Inquisição, cada autor procura demonstrar que o discurso sobre a heresia se constitui muito mais como uma construção discursiva – daí a ideia de invenção – do que uma realidade vivida.

Guy Lobrichon, por exemplo, demonstra a autenticidade do sínodo de Arras de 1025. Entretanto, ele comprova que a maneira como o manuscrito foi registrado e organizado em um dossiê, mais de um século depois, junto com outros documentos anti-heréticos, deturparam seu sentido original em nome de interesses e realidades da época da compilação. Zerner faz o mesmo com a edição de um tratado contra o herege Henrique, feita por Raoul Manselli nos anos 1950. A autora mostra que a edição, na verdade, une três documentos diferentes de épocas também diferentes e cria a falsa impressão de um dossiê anti-herético que jamais existiu para o caso de Henrique.

De forma mais direta, Michel Lauwers inicia seu texto já com a afirmação “A heresia é certamente o produto de um discurso forjado pela instituição eclesial”. 5 Além da ênfase na construção do discurso, Lauwers coloca outro tema que é uma constante do livro: a relação entre a institucionalização da Igreja e o combate à heresia. Lobrichon associa esse movimento anti-herético ao crescimento e fortalecimento dos cistercienses, hipótese também fortemente sustentada por Michel Rubellin e Jean-Louis Biget. Iogna-Prat, Zerner, Rubellin e Cursente enfatizam o processo da reforma gregoriana, particularmente o fortalecimento do poder papal, como um importante fator na “invenção” da heresia.

O elemento político também aparece de forma bastante clara, culminando com o caso relatado no último excurso, de Benoît Cursente, em que aquilo que seria possivelmente considerado como heresia em outras regiões da França ou mesmo da Itália na Gasconha foi dispensado como um incidente sujeito apenas a leves penas e multas e facilmente resolvido. Não interessava ao contexto político envolvendo o papa Inocêncio III e o rei João da Inglaterra que aquilo tomasse as proporções de uma heresia. O caso deveria “ser tratado com cuidado, como um abscesso local a cortar e não como uma metástase da peste herética a erradicar”. 6

Outro exemplo da interferência do fator político é o caso de Valdo, como discute Rubellin. Até o ano de 1183, Valdo teria sido um aliado do arcebispo de Lyon, inclusive com a simpatia do papa Alexandre III, o que permitiu que ele seguisse seus ideias religiosos livremente. Com a morte desses dois aliados, a eleição de um novo arcebispo cisterciense e o contexto senhorial da região, Valdo e seus seguidores foram expulsos de Lyon. No momento em que os interesses locais se transformaram, Valdo tornou-se uma ameaça em potencial e foi, então, tachado de herege.

Jean-Louis Biget também demonstra o quanto a “fraqueza relativa” do condado de Toulouse, envolvido em inúmeras guerras e disputas internas, favoreceu o desencadeamento da cruzada albigense de 1209. A existência e quantidade de hereges na região de Albi foram amplamente exageradas com o intuito de desviar as forças que ameaçavam a região. Além do contexto político, Biget destaca, novamente, que o espírito cisterciense teve papel fundamental na elaboração da noção dos albigenses como hereges.

Essa referência repetida ao papel de Cister na criação do discurso anti-herético nos séculos XI e XII também aponta para o elemento religioso e espiritual presente nesse movimento. Embora enfatizem o elemento político, os autores em nenhum momento eliminam o componente religioso da equação. Há questões de doutrina e crença envolvidas, mas elas são colocadas, na maioria das vezes, a serviço dos interesses de unificação e institucionalização da Igreja.

Os autores tampouco negam a existência de heresias. A afirmação da “invenção” da heresia se refere especificamente à maneira como a Igreja construiu a imagem delas, transformando-as em uma heresia, exagerando seu alcance e seu perigo, definindo o que era um comportamento herege, por fim criando uma imagem tão bem elaborada que orientou boa parte das pesquisas sobre heresias até os dias atuais. Essa postura dos autores também revela uma crítica à leitura literal, quase ingênua, da documentação por boa parte dos estudiosos.

Ela também tem o intuito de deixar claro que o contexto dos séculos XI e XII é bastante diferente daquele do século seguinte, com a instituição dos tribunais inquisitoriais. Iogna-Prat, em seu capítulo sobre o Contra Petrobrusianos, lembra que, a partir do século XIII, a heresia se torna algo impronunciável. Não é mais o momento de polemizar, argumentar. O tom dos textos muda radicalmente. Com a Inquisição e o estabelecimento da heresia como crime de lesa-majestade passa-se do plano judiciário ao mais discursivo.

E foi nesse contexto da Inquisição que a maioria dos dossiês e tratados anti-heréticos foi compilado. Com isso, criou-se a falsa impressão de que as heresias, particularmente aquela denominada genericamente de “cátara”, explodiam já nos séculos XI e XII e exigiam empreitadas maciças para combatê-las. Sem uma análise criteriosa da documentação através dos elementos da crítica documental, corre-se o risco de ver nesses documentos uma expressão da realidade e não uma construção discursiva que cria uma realidade.

É ao trazer essa abordagem crítica e nova de fontes já conhecidas (é importante ressaltar que as fontes utilizadas são já estudadas, muitas delas editadas) que a obra organizada por Monique Zerner se mostra um elemento fundamental para o avanço dos estudos sobre as heresias na Idade Média. Além disso, os textos mesclam um caráter bastante didático – explicando os contextos e fornecendo dados biográficos e históricos para o leitor não tão familiarizado – com um tom altamente erudito – apresentando citações originais em latim, trazendo em anexos trechos dos documentos trabalhados e fazendo uma discussão teórica e metodológica muito aprofundada.

O Posfácio não é tanto uma conclusão quanto um apanhado geral da obra, ressaltando e resumindo alguns dos pontos mais importantes discutidos. Robert Ian Moore, ele próprio um grande contribuinte para o estudo das heresias,7 destaca que esse livro é apenas o começo, mas um começo de extrema importância para que se escreva de novo a história das heresias nos dois séculos que antecedem a cruzada albigense. Monique Zerner aponta para estudos e edições em andamento que poderão trazer novas interpretações. Espera-se que a tradução dessa obra para o português ajude os estudantes medievalistas brasileiros a se inserirem nesse debate historiográfico tão atual e significativo e quem sabe trazer, eles também, contribuições futuras. Reutilizando Duby a partir de Monique Zerner – que foi sua aluna – “A história continua”.8

1 Entre seus trabalhos estão: La croisade albigeoise. Paris: Gallimard, 1979; Le cadastre, le pouvoir et la terre:le comtat venaissin pontifical au début du XVe siècle. Rome: Ecole française de Rome, 1993; (org.). L’histoire du catharisme en discussion:le concile de Saint-Félix, 1167. Nice: Centre d’études médiévales, 2001.
2 ZERNER, Monique. Introdução. In: Inventar a heresia? Discursos polêmicos e poderes antes da Inquisição. Campinas/São Paulo: Unicamp, 2009, p.7.         [ Links ] 3 MOORE, Robert Ian. Posfácio. In: Inventar a heresia?, p.279.
4 Zerner aponta, particularmente, para os estudos de Brian Stock.
5 LAUWERS, Michel. Os Sufrágios dos vivos beneficiam os mortos? História de um tema polêmico (séculos XI-XII). In: Inventar a heresia?, p.163.         [ Links ] 6 CURSENTE, Benoît. Um Caso de não Heresia na Gasconha no ano 1208. In: Inventar a Heresia?, p.273.
7 Sua mais importante obra é MOORE, Robert Ian. The formation of a persecuting society: power and deviance in western Europe, 950-1250. Oxford: Blackwell Publishers, 1987,         [ Links ] na qual já apresentava a ideia da heresia como uma “criação” vinculada ao desenvolvimento e fortalecimento das autoridades eclesiásticas.
8 Citado por ZERNER, Monique. Introdução. In. DUBY, Georges. L’histoire continue. Paris: Poches Odile Jacob/Points/Seuil, 1991, p.13.         [ Links ]

Carolina Gual da Silva – Mestre em História Social pela USP. Doutoranda em História – Unicamp/Ecole de Hautes Etudes en Sciences Sociales, Paris – Bolsista CNPq/CAPES Departamento de História/IFCH Cidade Universitária Zeferino Vaz Distrito de Barão Geraldo -13083-896 – Campinas – SP [email protected]/[email protected].