Como será o passado? História, historiadores e a Comissão Nacional da Verdade

A obra Como será o passado? História, historiadores e a Comissão Nacional da Verdade é o resultado de um projeto de pesquisa da autora, Caroline Silveira Bauer, “Um estudo sobre os usos políticos do passado através dos debates em torno da Comissão Nacional da Verdade (Brasil, 2008-2014)”, sendo este apenas um dos muitos projetos envolvendo a ditadura civil-militar, os direitos humanos e a Comissão Nacional da Verdade nos quais a autora se envolveu. Antes da publicação deste livro, Bauer havia analisado comparativamente políticas de memória no Brasil e na Argentina, e mais recentemente integra um projeto de pesquisa sobre os usos políticos do passado. Além disso, entre 2011 e 2013 foi consultora na Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Portanto, dado o domínio da autora sobre o tema e sua familiaridade com tantas questões que o tangenciam, não é de surpreender que se trate de uma leitura tão interessante e instigante.

Segundo afirmado pela historiadora na introdução do livro, seu objetivo era o de “fomentar o debate sobre fazeres e práticas dos historiadores comprometidos com uma escrita da história que fundamenta suas análises no pensaras possibilidades de intervenção no mundo”1 , que considero ser seguro afirmar, a obra cumpre com maestria, trazendo à luz questionamentos sobre o papel de organizações como a CNV no estudo de história, bem como o papel de historiadores e historiadoras no que diz respeito à estes órgãos. A autora admite, contudo, que o livro pode ser considerado “inoportuno, insistente ou rancoroso”2 por quem critica o anacronismo da Comissão da Verdade, que deveria ter existido em outro momento, mas é justamente este um dos pontos da obra: compreender se esta comissão foi capaz de apaziguar os ânimos no que diz respeito a memória da ditadura civil-militar.

O livro é dividido em três grandes capítulos. O primeiro deles, “História, historiadores e a Comissão Nacional da Verdade” faz contribuições às questões levantadas em torno da criação da e do trabalho CNV, bem como a ideia de verdade considerada pela Comissão e as relações da organização com os testemunhos recolhidos. Este capítulo ainda se subdivide em três. Na primeira destas três, a autora discute uma das sobreposições de funções que ocorrem quando o direito à justiça não é assegurado: as funções de historiador e juiz. Esta se trata de uma questão interessante pois a própria Comissão Nacional da Verdade se encontra neste “meio do caminho”, onde cabe aos seus membros elucidar crimes de Estado, mas não lhes é permitido que busquem soluções judiciais, o que acaba delegando o encargo do “julgamento” ao historiador, ainda que apenas no âmbito social. Neste tipo de comissão a relação entre estes ofícios é intrínseca, confusa e entrelaçada, o que exacerba ainda mais o valor da argumentação trazida por Bauer. No subcapítulo seguinte, a autora discorre sobre a possibilidade de aprendizado com o passado, discussão recorrente em debates sobre eventos traumáticos – vide o uso de expressões como “nunca mais” e “para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça”, comuns ao rechaçar as ditaduras latino-americanas. Esta parte, mais curta, faz a ponte entre o início do capítulo – e a discussão sobre o papel da história na Comissão, e vice-versa – e a parte final, onde são levantadas as possibilidades de reparação por meio da história.

No segundo capítulo, “As múltiplas temporalidades nos debates sobre a criação da Comissão, são apresentadas as ponderações da autora acerca das temporalidades percebidas nos debates sobre a ditadura e a CNV, ressaltando as diferenças entre o “tempo dos vencidos” e o “tempo dos vencedores”. É neste capítulo onde se percebem as diferentes possibilidades de usos da memória da ditadura brasileira a partir de demandas do presente. A autora dialoga com Henry Rousso e a expressão “um passado que não passa”, para explicitar estas demandas atuais em relação ao passado, e cita Irene Cardoso3 para falar sobre a forma como as tentativas de “normalizar” a sociedade e a política acabaram por perpetuar medos, mantendo-os vivos após o fim do regime.

A ditadura civil-militar é um passado que está presente, pois diversos mecanismos de interdição do passado, como a promulgação da Lei de Anistia e a manutenção por muitos anos da inacessibilidade dos arquivos da repressão, criaram uma “desmemória” sobre o período – a ausência de conhecimento fático sobre o que ocorrera.4

Este capítulo, assim como o anterior, divide-se em três subcapítulos. O primeiro deles trata da CNV como uma política de memória que, por natureza, explicita os usos políticos do passado. Em seguida, a autora se debruça sobre os debates legislativos ocorridos em torno da criação da Comissão, ressaltando as diferentes visões acerca de um organismo deste tipo e suas funções, assim como opiniões diametralmente opostas sobre o passado e o futuro. A parte final deste capítulo se dedica a cerimônia de criação da CNV e sobre as limitações que se impunham a ela.

O capítulo final do livro, “O relatório e o futuro da memória”, se dedica ao relatório final elaborado pela Comissão Nacional da Verdade e a perceptível preocupação com “o futuro da memória, ou a pós memória da ditadura civil-militar brasileira”5. Por meio da análise da cerimônia de entrega do relatório, da narrativa construída pelos membros da CNV e das conclusões e recomendações contidas no documento a autora diz que seu objetivo seria

[…] compreender o relatório como um artefato de memória e produto de determinada cultura histórica e de memória, e, portanto, como uma questão política que suscita debates no espaço público ao estabelecer um conjunto de ideias e valores através de um relato que funciona como um mecanismo de legitimação e coesão sociais.6

A primeira parte do capítulo explica a estrutura do relatório e a forma como tenta-se construir uma narrativa por meio dele. Em seguida, é abordada a cerimônia de entrega do relatório – classificada pela autora como “tímida e melancólica” – os discursos ali proferidos e as suas repercussões.

Na última parte do último capítulo, Caroline Bauer retorna a questão provocativa que dá título ao livro: como será o passado? É a questão central, o fio condutor da obra como um todo: qual memória sobre a ditadura civil-militar foi escrita pela Comissão Nacional da Verdade? O que se fala e o que se cala nesta memória? Qual a relação entre esta narrativa e outras existentes na sociedade brasileira? Estas perguntas se fazem presentes ao longo da leitura, algumas com respostas mais simples, outras nem tanto. Antes de terminar o livro, no entanto, a autora lança mais uma provocação:

Afirmou-se que a CNV possibilitou um espaço de escuta que permitiu que muitos expresos e perseguidos e familiares de mortos e desaparecidos políticos narrassem pela primeira vez suas experiências; da mesma forma, foi conferida especial atenção aos mecanismos de transmissão da memória e de representações do passado; por fim, foi apresentada uma pergunta que permanece sem resposta até o momento: há memórias mais legítimas que outras?

Bauer, em seus parágrafos finais, assim como faz em tantos momentos ao longo da obra, instiga o debate de uma questão importantíssima: a necessidade de problematizar os relatos de ex-agentes da repressão. Da mesma forma que se fizeram públicos os relatos das vítimas, pela primeira vez foram ouvidos oficialmente aqueles que agiam em defesa da ditadura.

A obra termina, mais do que concluindo, perguntando, fomentando o debate e inserindo-se no presente. Demonstrando-se essencial em momentos onde o debate público sobre a ditadura brasileira volta a ser evidente, assim como os usos da memória do período por figuras políticas importantes. A obra constituí importantíssima contribuição para o debate acerca dos usos do passado e da memória, a partir do momento em que problematiza e contextualiza a atuação e as produções da Comissão Nacional da Verdade; e questiona, a partir do título, quais as colaborações que o passado (e o campo da História) pode dar para o presente e para o futuro. O livro suscita ainda a discussão sobre a efetividade dos trabalhos da CNV, assim como as expectativas (da própria Comissão, do Estado, de pesquisadores e pesquisadoras interessados no tema) que envolvem a criação de um órgão deste tipo e a possibilidade de atingi-las ou não. A autora consegue, de maneira primorosa, instigar questionamentos e inquietações importantes, explicitando o fato de que o conhecimento histórico não é cristalizado e pode transformar-se a qualquer momento, principalmente quando tratamos de fenômenos e eventos sensíveis e que permeiam embates políticos até hoje.

Notas

1 BAUER, Caroline Silveira. Como será o passado? História, historiadores e a Comissão Nacional da Verdade. 1. ed. Jundiaí: Paco Editorial, 2017, p. 14.

2 Ibid., p. 16.

3 CARDOSO, Irene. Para uma crítica do presente. São Paulo: Editora 34, 2001, p.149.

4 BAUER, Caroline Silveira. Como será o passado? História, historiadores e a Comissão Nacional da Verdade. 1. ed. Jundiaí: Paco Editorial, 2017, p. 116.

5 Ibid., p. 173.

6 Ibid.


Resenhista

Kauê Pisetta Garcia – Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina (PPGHUDESC). E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

BAUER, Caroline Silveira. Como será o passado? História, historiadores e a Comissão Nacional da Verdade. Jundiaí: Paco Editorial, 2017. Resenha de: GARCIA, Kauê Pisetta. A história e o futuro do passado: uma resenha de “Como será o passado?” de Caroline Silveira Bauer (2017). Fronteiras: Revista catarinense de História. Florianópolis, n. 36, p. 257- 260, jul./dez. 2020. Acessar publicação original [DR]

 

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