Direita e Esquerda: Razões e significados de uma distinção política | Norberto Bobbio

Não se passou muito tempo desde quando podíamos ouvir a pergunta: “Mas ainda existe a direita?”. Após a queda dos regimes comunistas, ouve-se aflorar com a mesma malícia a pergunta inversa: “Mas ainda existe a esquerda?” (p.63)

A discussão sobre o significado de direita e esquerda é algo muito presente em nossa contemporaneidade, sobretudo para brasileiros que vivem um momento de polarização política. Contudo, esta temática pode ser observada em tempos precedentes, a fim de identificar um alinhamento político e identificar os sujeitos com uns ou outros princípios. A epígrafe, a qual abre este trabalho expressa uma dúvida quanto a continuidade da existência da direita e da esquerda em diferentes períodos históricos, além de colocar a díade direita-esquerda sobre o escrutínio que visa identificar se os dois opostos realmente “não tem mais nenhuma razão para ser utilizada”2. É diante deste quadro que a obra de Norberto Bobbio se inscreve, ratificando o compromisso com a tentativa de estabelecer uma diferenciação entre direita e esquerda.

Vale ressaltar que a direita foi muito contestada após a derrocada do fascismo, com o fim da segunda guerra mundial a qual uma aliança da direita moderada com a direita extremista deu origem ao fascismo histórico. Por outro lado, o fim do socialismo soviético nos últimos anos da década de 1980 significou um momento de crítica a esquerda, chegando-se a afirmar o triunfo do capitalismo liberal e mesmo o “fim da história”3. Com isso, o contexto em que é escrito o livro de Norberto Bobbio, que no ano de 1994 tem sua primeira edição, apresenta-se fortemente influenciado por uma esfera influenciada pelas ideias de direita e a crítica à esquerda.

No primeiro capítulo do livro, o autor trabalha com as hipóteses que são utilizadas para afirmar que direita e esquerda não possuem mais razão de ser. Nesse sentido, se anunciaria uma crise das ideologias, contudo segundo Bobbio “não há nada mais ideológico do que a afirmação de que as ideologias estão em crise”4 e argumenta que esquerda e direita não são somente ideologias, pois indicam também “contrastes não só de ideias, mas também de interesses e de valorações a respeito da direção a ser seguida pela sociedade”5. Eis alguns exemplos que defendem a superação da díade e a perda de seu significado:

O surgimento de novos problemas políticos-e, aqui, chamo de problemas políticos os que requerem soluções por meio de instrumentos tradicionais da ação política, isto é, da ação que objetiva formar decisões coletivas que, uma vez tomadas, passam a vincular toda a coletividade- fizeram nascer movimentos que não se inscrevem (e eles próprios consideram ou presumem não se inscrever) no esquema tradicional da contraposição entre direita e esquerda. O caso atual mais interessante é o dos Verdes. (p.58)

As duas etiquetas se tornaram meras ficções e, na realidade, diante da complexidade e novidade dos problemas que os movimentos políticos devem enfrentar, os “destros” [destri] e os “esquerdos” [sinistri] dizem, no fim das contas, as mesmas coisas, formulam, para uso e consumo de seus eleitores, mais ou menos os mesmos programas e propõem-se os mesmos fins imediatos. (p.65)

É diante dessas objeções que Norberto Bobbio irá se debruçar, confrontando-se no capítulo 4 com autores italianos de sua época que escreviam sobre o mesmo tema, tendo como argumento central a ideia de que o conceito de igualdade serve, em grande medida para definir direita e esquerda. Embora o autor ressalte que direita e esquerda vão tomar características diferentes conforme o contexto histórico “o critério mais frequentemente adotada para distinguir a direita da esquerda é a diversa postura que os homens organizados em sociedade assumem diante do ideal de igualdade”6, sendo este elemento essencial para a definição da díade quanto aos seus fins. Por outro lado, o autor ressalta que não se deve confundir os fins dos movimentos ou partidos com os métodos praticados por estes, sendo aqui onde nasce concepções errôneas sobre o conceito e a crítica à díade. Esta ressalva do autor pode ser relacionada à ideia de que o extremismo ou moderantismo de um partido ou movimento não é da natureza da esquerda ou da direita, mas são possíveis em ambos os espectros.

Na medida em que os próprios meios podem ser adotados, conforme as circunstâncias, tanto pela esquerda quanto pela direita, conclui-se que direita e esquerda podem se encontrar e até mesmo trocar de lado, sem porém deixarem de ser o que são. (p.98)

De fato, “os conceitos de liberdade e de igualdade não são simétricos. Enquanto a liberdade é um status da pessoa, a igualdade indica uma relação entre dois ou mais entes”7. Aqui, reside um grande mérito da obra de Bobbio, uma vez que ajuda a desmontar mal-entendidos sobre a díade. Esta questão aparece por exemplo na obra de Robert Paxton8, quando este compara o hitlerismo com o stalinismo, ressaltando que seria necessário analisar os fins de cada movimento, ou seja os elementos essenciais de definição, em oposição àqueles “valores instrumentais variáveis”9 como coloca Bobbio.

O hitlereismo e o stalinismo também diferiam profundamente em termos de seus objetivos últimos declarados- para um, a supremacia da raça mestra; para outro, a igualdade universal, embora as notórias e bárbaras perversões de Stálin tendessem a fazer com que seu regime convergisse com o de Hitler, em termos dos instrumentos homicidas utilizados por ele (p.348)

Ademais, vale ressaltar que, o contexto é fundamental para a definição do conceito nascente a partir da Revolução Francesa. Nesse contexto, “direita e esquerda não são conceitos absolutos mas historicamente relativos, ou seja, apenas dois modos possíveis de catalogar os diversos ideais políticos”10. Enxergo como um dos particulares símbolos desta temática o keynesianismo11, que sofreu uma transmutação de sua acepção dadas as circunstâncias históricas que forçavam os governos a tomarem medidas que fossem de encontro a esta doutrina econômica, seja lá qual fosse a inclinação política dos governos, tendo em vista o contexto da Crise de 29. Diante deste quadro, que anos mais tarde e passada a turbulência da crise Keynes, passou de salvador do capitalismo, por isso questionado pela esquerda, a destruidora do capitalismo, sofrendo agora um ataque da direita. Em sua obra, Norberto Bobbio também faz coro quanto a importância de perceber que direita e esquerda não são conceitos absolutos:

Pode-se apenas observar historicamente que desde quando surgiram os partidos socialistas na Europa as ideologias e os partidos liberais passaram a ser considerados, na linguagem comum, ideologias e partidos ou de direita (seria diferente o caso do liberals americanos), como na Itália ou na França, ou do centro, como na Inglaterra ou na Alemanha (p.104)

Diante da citação anterior, pode-se inferir que o movimento liberal da Revolução Francesa possui limites, uma vez que a expansão de direitos é limitada até certo ponto, tendo em vista que a massa francesa só será contemplada de maneira mais ampla a partir dos movimentos sociais do século XIX12. Por esse viés, a burguesia não está disposta a expandir direitos até a massa, como pode ser constatado por reivindicações referentes ao sufrágio universal ou reivindicações trabalhistas como um todo. Assim, esses dois diferentes movimentos e sua relação com a igualdade são modificáveis com o tempo, fazendo inclinar estes para a direita ou para esquerda a medida que a História se move.

A discussão sobre o tema da igualdade e do inigualitarismo não implica em colocar um ou outro como naturalmente positivo ou negativo na sua axiologia. Tal visão depende segundo Bobbio do juízo de valor feito por uma ou outra parte da díade. Se por um lado, o “igualitário parte da convicção de que a maior parte das desigualdades que o indignam, e que gostaria de fazer desaparecer são sociais e, enquanto tal, elimináveis”13, por outro lado, o não-igualitário “parte da convicção oposta, de que as desigualdades são naturais e, enquanto tal, inelimináveis”14. Assim, as desigualdades além de naturais seriam benéficas e as desigualdades seriam não-artificiais, tal como Nietzche defende. Como contraste, tem-se a posição que considera que os homens nascem iguais e se tornam desiguais pela sociedade, sendo necessária uma condenação da desigualdade social, que é artificial, conforme Rousseau diz15.

Levando em consideração que “os homens são entre si tão iguais quanto desiguais”16, tomando como exemplo a questão do crescente fluxo migratório, “neste caso, como em muitos outros, a maior ou menor discriminação está fundada sobre o maior ou menor relevo que se dá a traços característicos do diverso, que para alguns não justificam e para outros justificam uma diversidade de tratamento”17. Bobbio aqui, vai identificar dois tipos de atitudes: uma em que, as pessoas serão enxergadas mais como iguais, atenuando as diferenças; e outra, os indivíduos são vistos a partir mais do que os diferem uns dos outros, abrandando o que os torna iguais, sendo assim as desigualdades naturais. Portanto, de um lado “o elemento que melhor caracteriza as doutrinas e os movimentos que se chama de ‘esquerda’, e como tais têm sido reconhecidos, é o igualitarismo, desde que entendido, repito, não como a utopia de uma sociedade em que todos são iguais em tudo”18, segundo Bobbio. Por outro lado, “a direita está mais disposta a aceitar aquilo que é natural e aquilo que é a segunda natureza, ou seja, o habitual, a tradição, a força do passado.”19

No entanto, é importante ressaltar que o argumento de Bobbio no livro refere-se a um tipo ideal, que por sua vez pode servir enquanto instrumento de luta. Contudo, é preciso atentar para outro problema que transforma o quadro de análise, que consiste em enxergar a governabilidade exigida aos partidos tanto de esquerda ou de direita, sob a égide hegemônica da ordem neoliberal. Segundo José Fiori, a governabilidade pode ser o “sinônimo ou resultado da capacidade dos reformistas”20, no que tange a aplicação da cartilha do Consenso de Washington que consiste em “austeridade fiscal e monetária, com desregulação dos mercados e liberalização financeira, abertura comercial, privatizações e eliminação de todo tipo de barreiras ou discriminações contra os capitais forâneos”21. Logo, os governos, inclusive os de esquerda estão submetidos a essas condições neoliberais que implicam uma boa ou má governabilidade, conforme José Fiori, sendo este elemento desconsiderado na análise de Norberto Bobbio, ratificando a necessidade de incluir este fator para a luta pela igualdade preconizada pelo autor.

Outro teórico que realiza críticas a Norberto Bobbio diante da sua aplicação de “tipos ideais” que serviriam para definir a díade direita-esquerda foi Perry Anderson. Nos apêndices do livro de Bobbio é explicitado um comentário de Anderson acerca de sua análise sobre o livro, colocando em xeque o fato das esquerdas se utilizarem ou não das desigualdades no plano político e a sua aplicabilidade. Anderson indaga:

É mesmo verdade que a Esquerda, tal como se apresenta de fato na Europa dos dias de hoje, nega qualquer funcionalidade às desigualdades sociais? Basta observar o tributo universal que se paga ao mercado, e as estruturas propostas para incentivá-lo, para perceber que não é bem assim (p.167)

Dessa forma, é notório que, para Bobbio a distinção entre direita e esquerda para o autor está viva e pulsante, tendo em vista as duas diferentes visões que se pode ter sobre a igualdade, tendo os dois termos um constante contraste. Ainda que, Norberto Bobbio em sua obra deixe um vácuo quanto às questões mencionadas anteriormente, o autor que não é um comunista, mas um afeiçoado com a igualdade, viveu os tempos do fascismo italiano e enxerga que, embora o comunismo histórico tenha falhado, “o desafio por ele lançado permaneceu”22. Assim, a visão de Bobbio neste livro está em grande medida guiada pelo ideal de igualdade devido aos contrastantes momentos vividos por ele. De um lado, a juventude sobre a égide do fascismo italiano e do outro, época da produção do livro, da queda do comunismo soviético.

Notas

2 BOBBIO, Norberto. Direita e Esquerda: Razões e significados de uma distinção política. São Paulo: Editora UNESP, 2001, p.50

3 Esta expressão foi utilizada por Francis Fukuyama, em seu livro ´´O fim da história e o último homem´´, no ano de 1992.

4 Ibid., p.51

5 Ibid., p.51

6 Ibid., p.111

7 Ibid., p.131

8 PAXTON, Robert. A anatomia do fascismo. São Paulo: Paz e Terra, 2007, p.348

9 Ibid,. p.98.

10 Ibid., p.97

11 O keynesianismo foi uma doutrina econômica empregada pelos EUA e por outros países após a Crise de 29, prezando pela intervenção do Estado e investimento público para a recuperação econômica, em contraposição à falência liberal do auto ajustamento econômico no período.

12 Karl Marx em ´´O Manifesto do Partido Comunista´´ em 1848 vai ressaltar alguns destes aspectos realizando uma forte crítica a burguesia.

13 Ibid., p.121

14 Ibid., p.121

15 Norberto Bobbio na página 122 realiza um debate sobre a igualdade e a desigualdade por meio das perspectivas de pensamento de Rousseau e Nietzche.

16 Ibid., p.119

17 Ibid., p.123

18 Ibid., p.125

19 Ibid., p.121

20 FIORI, José. Globalização e Governabilidade Democrática. PHYSIS: Revista Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 7 (1): 137-161. 1997, p.145

21 FIORI, José. Globalização e Governabilidade Democrática. PHYSIS: Revista Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 7 (1): 137-161. 1997, p.145.

22 BOBBIO, Norberto. Direita e Esquerda: Razões e significados de uma distinção política. São Paulo: Editora UNESP, 2001, p.140.


Referências

FUKUYAMA, Francis. O fim da história e o último homem. Rio de Janeiro: Editora Rocco LTDA, 1992.

PAXTON, Robert. A anatomia do fascismo. São Paulo: Paz e Terra, 2007.

FIORI, José. Globalização e Governabilidade Democrática. PHYSIS: Revista Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 7 (1): 137-161. 1997


Resenhista

João Vitor Hugo Menezes do Nascimento – Graduando em História pela Universidade Federal Fluminense. Bolsista PIBIC pela Rede PROPRIETAS. E-mail: [email protected]

Referências desta Resenha

BOBBIO, Norberto. Direita e Esquerda: Razões e significados de uma distinção política. São Paulo: Editora UNESP, 2001. Resenha de: NASCIMENTO, João Vitor Hugo Menezes do. Direita e Esquerda: Para além de confusões, critérios para uma distinção. Revista Outrora. Rio de Janeiro, v. 2, n. 1, p. 182-188, jan./jun. 2019. Acessar publicação original [DR]

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