A África e as relações internacionais | Monções – Revista de Relações Internacionais | 2016

A história do continente africano é uma das mais ricas que conhecemos. A união de sua grandiosidade territorial, variedade de climas e relevos, fauna e flora, associadas à longevidade das espécies hominídeas que lá se desenvolveram, provavelmente o berço delas, fez com que, ao longo de milênios se constituíssem complexos socioeconômicos e culturais dos mais diferentes matizes.

De pequenas sociedades até grandes impérios, e cada qual com suas especificidades e complexidades, o continente africano foi e é palco de uma extremada pluralidade humana. Para além dessa realidade interna, é também palco histórico de contato com muitos grupos humanos dos outros continentes, de igual forma portadores das mais variadas culturas.

Essa variedade produziu e produz um forte diálogo cultural. Aproximações e afastamentos, alianças e conflitos, expansões e retrações, dominações e submissões, dentre outros, expressam o caráter de contato entre os grupos africanos e seus congêneres dos outros continentes.

Do ponto de vista interno suas supostas adversidades, como a geográfica – por exemplo a extensão do deserto do Saara- , variedades linguísticas – mais de mil línguas, diversidade étnicas – enumeradas em centenas-, dentre outros aspectos, não configuraram empecilho para os contatos entre povos diferentes nos rincões mais extremos desse continente.

Do ponto de vista externo o contato também é muito antigo. Relatos da presença de europeus no continente há cerca de 2000 mil anos (Lenda de São Marcos [61 d.C], o Bispado de Alexandria (século II), O Donatismo (século IV), a expansão islâmica (a partir do século VII), são alguns exemplos da longevidade desses contatos culturais extra continente. Mais recente o início de um contato mais direto e efetivo com os Europeus que tem como marco a chegada em Ceuta (Marrocos) em 1415. Essa última dando início a uma relação nos moldes capitalistas da Idade Moderna. Essa retomada teria como auge o processo do imperialismo europeu sobre partes do continente africano, a luta pela emancipação (a descolonização) e o neocolonialismo que se seguiu aos processos de independências africanas.

Do ponto de vista teórico, as abordagens mais tradicionais das Relações Internacionais (Liberalismo, Realismo, Marxismo) veem/viam a África como objeto desse processo histórico de dominação. No entanto, teorias mais contemporâneas (pós-modernas, e, especialmente, pós-coloniais) percebem os atores africanos como sujeitos desses processos e, por consequência, vetores importantes no entendimento de suas resultantes históricas.

Esse fator de sujeição histórico pode ser apresentado como o elemento que alinha os textos desse dossiê da Monções, formando a colcha de retalhos que entre aproximações e afastamentos, rupturas e continuidades demonstram o diálogo cultural existente nas relações internacionais históricas desse continente.

O dossiê se inicia com a entrevista de Fatoumata Binetou Rassoul Correa Embaixadora do Senegal no Brasil. Correa é a primeira mulher senegalesa a ocupar esse posto no Brasil. A entrevista é bastante enriquecedora para compreender as relações bilaterais entre as duas nações. A explanação da embaixadora se relaciona, de certa forma, com o artigo de Brunna Bozzi que trata das Relações entre Brasil, Senegal e Nigéria durante a “virada pragmática” da política externa brasileira para a África (1974-1979)”. A entrevista ainda trata da questão de gênero no serviço diplomático senegalês e das estratégias de inserção internacional do país africano.

María Noel Dussort, em seu artigo “Un abordaje de los intereses económico-comerciales en la política africana de los gobiernos de Lula y Dilma: ¿impulso presidencial con apoyo privado o estrategia privada bajo el paraguas de la diplomacia presidencial?”, que abre o dossiê, busca entender a trajetória diferenciada da política externa brasileira para o continente africano entre os governos Lula (2003/2010) e o de Dilma Rousseff (2011/2016). A autora trabalha com o argumento de que, sendo Dilma a sucessora das políticas implementadas no governo Lula, isso teria contribuído na redução da intensidade dessas relações. Os argumentos centrais serão “o ativismo de Lula” como fomentador das relações, o papel das empresas privadas no governo Dilma e a falta da construção ao longo dos anos de uma estratégia nas relações internacionais Brasil-continente africano.

No artigo “Historiografia das relações internacionais: um saber-poder africano” de Matheus Augusto Soares, ao ser realizada uma abordagem a partir de teorias pós-modernas, o autor apresenta como, ao se realizar escolhas teóricas diferentes, é possível se chegar a resultados também diversos. Em seu estudo “Ao evidenciar a relação saber-poder negativa existente no domínio epistemológico dos estudos africanos afro-pessimistas”, ele o apresenta como uma forma de resistência através de uma “perspectiva africanista sobre a África”. O resultado é o foco para o papel africano como ator-sujeito de seus processos históricos e da composição epistemológica de suas historiografias.

Esmael Alves de Oliveira procura perceber o papel do cinema Moçambicano na construção das imagens do pós-guerra civil, conflito no qual o país esteve envolvido entre os anos de 1977/1992. Tendo como luzeiro Walter Benjamin, o autor tomará como base de suas análises os conceitos “guerra, destruição e ruína” e suas marcas na produção cinematográfica do pós-guerra. Dentre outros, merece destaque a forma de tratar o cinema como fonte para sua análise histórica. Ao final fica a pergunta: “seria o cinema de Moçambique uma imagem ‘sobrevivente’?”.

No artigo “Peekabo! Uma análise em três níveis do reconhecimento de uma crise no Zimbábue pelo Ocidente”, Xaman Minillo utiliza o exemplo das relações entre o Regime de Robert Mugabe no Zimbábue (desde 1980 no poder) e o mundo ocidental, que serve analogicamente para muitas relações semelhantes entre países do mundo ocidental e africanos, além de outros. Nelas, é possível observar a mudança do discurso e relações entre países ocidentais em relação aos países citados de acordo com interesses conjunturais e estruturais em voga em cada período. Para tal, analisa as relações entre Mugabe e ocidente relacionando aos contextos históricos em seus níveis “sistêmico, regional e doméstico” que vão se transformando ao longo das décadas de 1980/1990.

O artigo “Relações entre Brasil, Senegal e Nigéria durante a “virada pragmática” da política externa brasileira para a África (1974-1979)”, de Brunna Bozzi, reforça o caráter dialógico entre os artigos desse dossiê ao demonstrar o papel de sujeição histórica que Senegal e Nigéria tiveram quando da chamada “virada pragmática” realizada pelo Brasil, dentre outros atores ocidentais, a partir da década de 1970 nos seus avivamentos nas relações com países do continente africano. Em um período de Guerra Fria, o Brasil flexibilizou seu apoio ao lado capitalista visando interesses próprios no continente africano. É nesse momento que “o Senegal e a Nigéria influíram, particularmente, na forma com que o governo brasileiro recepcionou, respectivamente, as independências de Guiné-Bissau e de Angola a partir de 1974”, demonstrando que mais que objetos os países africanos foram sujeitos de seus processos históricos e, para além dos mesmos, nos de outros países nesse diálogo internacional.

Bruna Troitinho e Igor da Silva fecham o dossiê com o artigo “A política externa afirmativa do Brasil: movimento negro, estado e política externa africana em Geisel e Lula”. A pergunta central que norteia o artigo é “por que houve mudança na política externa africana do Brasil entre Geisel e Lula?”. Merece destaque em sua análise a importância creditada a “novos atores sociais”, aqui representados pelos(s) movimento(s) negro(s), na confecção das Relações Internacionais. Para além dos Estados, esses atores vêm merecendo maior visibilidade na agenda de pesquisadores e os que se dedicam à temática africana vem se inserindo nessa percepção. E é focando nesse ator internacional, em um caráter relacional com o sistema internacional, Estado e sociedade que os articulistas buscam apresentar forças que contribuem no entendimento da mudança da política externa do Brasil para com partes do continente africano, em especial a chamada África Negra, desde o governo Geisel (1974/1979) até o final do governo Lula (2003/2010).

Esperamos que esse dossiê contribua com o fortalecimento de um olhar acadêmico do campo de Relações Internacionais no Brasil para as relações internacionais do continente africano e de seus países, especialmente através da abordagem de novas teorias que percebam a sujeição histórica dos países africanos e os insiram em seus processos históricos como atores-protagonistas.

Boa leitura!


Organizadores

Alfa Oumar Diallo – Professor de Relações Internacionais da UFGD.

Mario Teixeira de Sá Junior – Professor de Relações Internacionais da UFGD.


Referências desta apresentação

DIALLO, Alfa Oumar; SÁ JUNIOR, Mario Teixeira de. Apresentação. Monções: Revista de Relações Internacionais da UFGD. Dourados, v.5 n.10, p.1-5, jul./dez. 2016. Acessar publicação original [DR]

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