A África que incomoda: sobre a problematização do legado africano no quotidiano brasileiro | Carlos Moore

A África que incomoda: sobre a problematização do legado africano no quotidiano brasileiro (2010) é um livro sobre uma diversidade de temas da contemporaneidade, não só brasileira, mas da totalidade dos países que se beneficiaram do tráfico de africanos escravizados e seus descendentes. Trata-se de uma obra de intervenção política que alia uma ampla fundação teórica à experiência de aproximadamente quatro décadas de observação de Carlos Moore em uma multiplicidade de ambientes sociais e no combate ao racismo, nas mais diversas partes do mundo. É um livro de fundamental importância, por trazer a contribuição do autor à compreensão da influência africana na cultura e no quotidiano sociocultural brasileiro.

O livro está dividido em três partes, sendo a primeira “África no cotidiano político: que tipo de cooperação”, a segunda, “A África no cotidiano educativo: bases práticas para o ensino da História da África”, e a terceira, “A África no cotidiano internacional: ou um governo federal continental, ou o caos”, composta por três entrevistas.

No prefácio, o professor Kabenguele Munanga introduz o leitor ao conteúdo do livro, contextualizando os questionamentos sobre o(s) porque(s) que a “África incomoda” e a quem ela incomoda. Já no prólogo, a professora Eliane Cavalleiro traça uma breve retrospectiva sobre o contexto em que a obra foi concebida e sua importância, assim como a relevância política de seu conteúdo.

Para a compreensão da complexidade e da amplitude dos debates propostos no livro, torna-se indispensável situar o autor no contexto de sua produção.

Carlos Moore é cubano de nascimento, filho de pais jamaicanos emigrados para aquele país. Formou-se em Etnologia e Ciência Política na Universidade de Paris-7 e doutorou-se em Ciências Humanas e Etnologia na mesma instituição. Desde 2002, é chefe de pesquisa sênior (honorário) na Escola de Estudos e Pós-graduação da University of the West Indies (UWI), em Kingston, Jamaica. É fluente em francês, inglês, espanhol, creole (idioma falado no Haiti) e português. Sua trajetória acadêmica, 1986 e 2002, incluiu os cargos de professor titular de assuntos de América no Instituto de Relações Internacionais da University of the West Indies, em Trinidade e Tobago, e de professor visitante na Flórida Internacional University (FIU), nos Estados Unidos. Entre 1982 e 1983 foi consultor pessoal para assuntos latino-americanos do secretário geral da Organização da Unidade Africana (atualmente União Africana), Edem Kodjo, e desempenhou a mesma função, de 1986 a 2000, junto ao secretário geral da Organização da Comunidade do Caribe (CARICOM), Edwin Carrington. Durante cinco anos, foi assistente pessoal do cientista social senegalês Cheikh Anta Diop, em Dacar. Foi responsável pela organização da 1ª Conferência Internacional sobre a Negritude e Culturas Afro-americanas em Miami, Estados Unidos, em 1987, e é autor de vários livros, como African presence in the Americas (1995); Castro, the Blacks, and Africa (1989) e This Bitch of a Life (1982). Reside no Brasil desde 2000, onde produziu a obra de referência Racismo e sociedade: novas bases epistemológicas para entender o racismo (2007). Seu testemunho autobiográfico e histórico está registrado em inglês no livro Pichon, publicado nos Estados Unidos, em 2008, e no Brasil, pela editora mineira Nandyala.

No primeiro capítulo, “Brasil-África: caminhos complementares e interesses divergentes”, Moore analisa a História do Brasil e do continente africano, destacando os elementos que podem servir a uma sólida cooperação no âmbito internacional entre os mesmos. Elenca a história de colonização e escravidão que tanto o Brasil e os países caribenhos latino-americanos, como a África, tiveram em comum, bem como os fundamentos de uma cooperação coerente, sólida e solidária entre os dois lados do Atlântico. Nesse sentido, empreende uma meticulosa análise da conjuntura internacional, dividindo os países em três blocos de nações – A (países desenvolvidos), B (países em desenvolvimento) e C (países subdesenvolvidos) – e investigando as possibilidades de uma reelaboração desse cenário a partir dos interesses dos países do continente africano e do Brasil, como candidatos a assumir o espaço de potências em desenvolvimento no século XXI.

No capítulo “Da África mítica a África real: para cooperação estratégica entre a África e suas diásporas”, o autor se refere à concepção da África construída no Brasil, comparando-a com uma ficção, ou mesmo com uma ilusão. Moore afirma que tal noção tem uma estreita relação com a África “necessária”, elaborada pelos escravizados com o objetivo de não perder os vínculos com o seu continente de origem. Nesse sentido, percebe certa continuidade entre a concepção de África no país durante o período escravagista e a da África contemporânea, que perdura nos dias correntes. Moore destaca então a importância de uma releitura epistemológica nos eixos centrais da História da África que é abordada no Brasil, para desconstruir a história fictício-ilusionista consolidada nos bancos escolares. Assim, o autor faz uma breve retrospectiva da história da escravidão, dissecando o tráfico árabe de escravizados e o beneficiamento das elites africanas com esse comércio ilícito. Ao discorrer sobre essas elites lança outro olhar sobre o processo histórico da escravidão, além de uma nova perspectiva na discussão sobre a racialização e o monopólio da escravidão pelos europeus.

Em um segundo momento, Carlos Moore utiliza a conferência de Berlim (1885) e a neocolonização do continente africano para demonstrar os continuísmos existentes nas mentalidades “entreguistas” das elites africanas que, no período escravista, forneceram escravos ao tráfico internacional e, durante o neocolonialismo, entregaram os recursos minerais ao Ocidente, para o abastecimento de suas indústrias. Moore demonstra como ocorreu a reelaboração e a transformação das elites escravistas do século XVI para a constituição das neocoloniais, que viabilizaram a transferência ao Ocidente do monopólio dos recursos minerais estratégicos de que a indústria necessita para o seu funcionamento.

Demonstra, ainda, como a construção da ideologia pan-africana serviu como orientação aos movimentos de descolonização do continente africano. Desse modo, cita os principais teóricos que refletiram sobre o assunto e como aquela ideologia, a partir dos mesmos, adentrou e influenciou a organização revolucionária e anticolonial. O autor faz uma breve retrospectiva das descolonizações da África, desconstruindo alguns mitos a respeito, como, por exemplo, a ideia de que houve uma sintonia consensual entre os países para que todos decretassem sua emancipação ao mesmo tempo. Desconstrói, da mesma maneira, a ideia de que a Organização da Unidade Africana foi concebida consensualmente entre todos os países do continente africano.

Evidencia também como o projeto progressista de levar a África a outra direção, a partir da unidade pan-africana – defendida por Kawame Nkruma – foi violentamente destruído pelos serviços de segurança do Ocidente, com a colaboração das elites africanas, por meio golpes de Estado e assassinatos políticos que ceifaram toda e qualquer possibilidade de organização anticolonial no continente. Moore estabelece uma relação entre a destruição da elite africana progressista e o esfacelamento das lutas e movimentos antirracistas da diáspora, destacando os assassinatos de líderes como Malcolm-X e Martin Luther King. Por fim, o autor aponta a importância da sociedade civil como a principal protagonista para a mudança e a necessidade de retirada das atuais elites dirigentes africanas, corruptas, do poder.

No primeiro capítulo da Parte II, “A África no cotidiano educativo: bases práticas para o ensino da História da África: que tipo de ensino sobre a África”, Moore faz uma breve apresentação sobre a forma como a História da África tem sido abordada nos currículos escolares, apontando os mitos raciológicos que têm sido historicamente retroalimentados por conceitos carregados de racismo e estereótipos. No decorrer do texto, o autor menciona a importância da mudança da Lei de Diretrizes e Bases da Educação brasileira e a implementação da obrigatoriedade do ensino da História da África e da cultura afro-brasileira, destacando as singularidades da História desse continente e apontando soluções metodológicas sobre como abordar interdisciplinarmente sua longa duração. Moore destaca, ainda, a problemática das fontes que denomina de “poluídas”, alertando para a retroalimentação do racismo por livros que mais fortalecem do que desconstroem certo estereótipo. Para o autor, a importância da utilização de um referencial teórico-metodológico de origem africana é um dos pré-requisitos para a “descolonização” dos conteúdos da disciplina de História da África, não podendo os profissionais que se habilitam a trabalhar com a mesma deixar de o utilizar.

No capítulo 4, na Parte II, “O ensino da História da África no Brasil: repercussões sociorraciais domésticas e implicações políticas internacionais”, Moore discorre sobre as relações existentes entre o contexto interno nacional e a conjuntura internacional, demonstrando a importância que a Lei nº 10.639, de 2003, ocupa na reelaboração dos currículos universitários e na preparação dos profissionais que se habilitam a trabalhar com o ensino da História da África no país.

Moore destaca a importância do reconhecimento da diversidade como um dos pré-requisitos, não apenas no Brasil, mas nos demais países da Organização das Nações Unidas, para a afirmação nacional no século XXI, sublinhado as mudanças efetivadas pelo governo brasileiro ao reconhecer, dentro da diversidade, as particularidades das populações afro-brasileiras como um passo sólido para a sua autoafirmação como uma das “potências” no século XXI.

Em seguida o autor apresenta uma breve análise dos currículos universitários, evidenciando que estes não dispõem dos conteúdos necessários para a formação dos profissionais da educação no que diz respeito às diversidades raciais, de gênero, de classe e culturais. É nesse sentido, que Moore explicita o espaço que o Programa Nacional das Ações Afirmativas ocupa, ao levar o conhecimento das diversidades aos futuros quadros preparados pelas universidades. O autor demonstra como uma gestão que não detém os conhecimentos das diversidades populacionais – no caso do Brasil, das populações afrodescendentes – pode se assemelhar à gestão colonial, na qual os governantes, no caso, os colonizadores, usavam da coerção e violência na manutenção e no exercício do poder.

Já a Parte III do livro, “A África no cotidiano internacional: ou um governo federal continental”, é composta por três entrevistas, sendo a primeira “A luta pela descolonização da África: reflexões sobre a guerra civil em Angola”, feita em 2009 por Pedro Cardoso e veiculada no Novo Jornal de Luanda.

Na entrevista, Moore discorre sobre alguns dos principais personagens – Jonas Savimbi, Mário de Andrade, Viriato da Cruz – que protagonizaram a guerra de independência em Angola. Ele explica o contexto em que conheceu cada um dos personagens mencionados, bem como os bastidores, as divergências e as intrigas políticas em que cada um estava inserido. Neste quadro, é importante mencionar a conjuntura da criação da União Nacional pela Independência Total de Angola (UNITA) por Jonas Savimbi, com a qual o autor esteve envolvido.

Ao ler-se atentamente a segunda entrevista, concedida em Luanda em 21 de agosto de 2008 e intitulada “África frente ao imperialismo multipolar”, percebe-se que ela possui, basicamente, o mesmo conteúdo da primeira, diferindo o entrevistador, que nesse caso é Cláudio Ramos Fortuna, e algumas das perguntas, como a que se refere à relação entre a estabilidade administrativa e a etnicidade.

Na última entrevista, “Brasil, futura potência neocolonialista?”, concedida ao jornal Irohin em outubro de 2007, por ocasião da visita do presidente Lula a quatro países africanos – Burkina Faso, Congo-Brazzavile, África do Sul e Angola – Moore faz uma análise sobre a construção da política externa do presidente para o continente africano, destacando seus avanços, limites e retrocessos.

Moore empreende uma reflexão sobre essa viagem, que se apresentou como marco inicial e ponto de partida da abertura da política externa do governo brasileiro para o continente, e chama atenção para o fato de que, na visita a um dos países mais pobres da África, o presidente brasileiro foi recebido por um ditador assassino, pois, na ocasião, o então presidente de Burkina Faso, Blase Campaoré, tinha sido responsável pela deposição e morte do dirigente Thomas Sankara, considerado um dos últimos líderes políticos a advogar a ideologia do pan-africanismo. Moore refuta a hipótese de que os responsáveis pela elaboração da política brasileira para o continente africano “desconhecessem” o histórico de Campaoré, já que o Ministério das Relações Exteriores é composto de quadros capacitados e conhecedores do contexto político da região para que tivesse ocorrido o cometimento de um “erro primário”, como aquele.

No decorrer da entrevista, Moore contextualiza as relações entre o Brasil e o continente africano, apresentando elementos positivos e negativos para sua construção sólida e efetiva, nos dois lados do Atlântico, sugerindo uma reelaboração desse cenário de forma justa e igualitária para ambas as partes.

O livro A África que incomoda distingue-se por pensar o continente africano e o Brasil sob uma perspectiva renovadora, sendo único pela forma como apresenta os seus conteúdos, abordagens e interpretações. A obra de Moore ocupa um lugar de destaque quando somada a outros escritos redigidos por estudiosos e pensadores que se debruçam sobre o continente africano, antes e depois da Lei 10.639, de 2003. No livro, o autor faz a conexão entre os intelectuais da África e da diáspora que procuraram descolonizar o pensamento sobre a história do tráfico, da escravidão e da colonização, o qual ficou preso ao axioma eurocêntrico e ao discurso hegemônico ocidental.


Resenhista

Márcio Paim – Professor do Curso de Especialização em História Social na Faculdade Visconde de Cairu/Associação Classista do Estado da Bahia. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

MOORE, Carlos. A África que incomoda: sobre a problematização do legado africano no quotidiano brasileiro. 2ª edição (Revista e ampliada). Belo Horizonte: Nandyala, 2010. Resenha de: PAIM, Márcio. Intellèctus. Rio de Janeiro, v. 14, n. 1, p. 188-193, 2015. Acessar publicação original [DR]

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