A Conferência de Viena e a Internacionalização dos Direitos Humanos | Matheus de Carvalho Hernandez

As transformações ainda em curso do sistema internacional pós-Guerra Fria certamente passavam por momentos mais otimistas à época da realização da II Conferência Mundial sobre os Direitos Humanos, em 1993, na capital austríaca. Findado mais um conflito de dimensões mundiais, vislumbrava-se novamente a possibilidade de fortalecimento do multilateralismo na condução da política internacional; o papel deste como meio de difusão de valores humanistas; a hipótese do declínio no uso da força militar; somados à relativa novidade da pluralização de temas e atores a serem integrados na agenda global.

Ciente da historicidade de que são dotados os eventos, mas também de sua capacidade de influenciar seu tempo e, assim, produzir história, Matheus Hernandez identifica as razões pelas quais a Conferência de Viena se tornou um divisor de águas para a compreensão, a negociação e a busca por efetivação dos Direitos Humanos. As especificidades levantadas acerca do evento em questão demonstram que a Conferência de Viena foi mais do que uma simples reafirmação da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, à medida que contou com ampla participação e interlocução de delegações estatais (171) e atores não estatais, alcançando, assim, maior legitimidade ao “tornar o debate global sobre direitos humanos muito mais pluralizado do que antes”. (HERNANDEZ, 2014, : 256).

Entretanto, os consistentes resultados de pesquisa apresentados neste livro, com um instigante prefácio do delegado brasileiro na Conferência, José Augusto Lindgren Alves, comprovam que as negociações de Viena não se restringiram a exortações idealistas, ao passo que a Conferência “consistiu em uma verdadeira arena de debates e disputas em torno da temática dos direitos humanos” (idem). Mesmo com a afirmação do art. 1º de que a natureza universal desses direitos e liberdades não admite dúvidas, destaca-se que as contribuições da Conferência não residem apenas nos consensos arduamente construídos e expressos na Declaração e no Programa de Ação de Viena. Foram fundamentais também em seu legado os inevitáveis dissensos trazidos à tona quando se pretende construir valores e normas de alcance universal através da interação de múltiplos atores com distintas representatividades.

Além do difícil e complexo debate entre relativismo e universalismo, indissociável do tema dos direitos humanos, uma série de outras questões específicas discutidas na Conferência são exploradas pelo autor, como as questões sobre direitos individuais e coletivos, igualdade e indivisibilidade dos direitos e deveres do cidadão, as dimensões cultural e teológica dos direitos humanos, as questões do direito ao desenvolvimento como um direito humano, a relação entre o Grupo Ocidental e o Grupo Asiático, e entre Primeiro e Terceiro Mundo.

Não obstante, o pluralismo e as dificuldades nas negociações fomentaram, ao invés de impedir, o avanço conceitual e propositivo da Conferência, tendo em vista que “vários países se valeram da oportunidade histórica concedida pelo fim da Guerra Fria para recolocar o debate sobre direitos humanos em outro nível de visibilidade no contexto político internacional” (HERNANDEZ, 2014, : 255). Por outro lado, alguns eventos posteriores a Viena, essencialmente a tragédia planejada e anunciada do genocídio em Ruanda, em 1994, mostrariam o descompasso entre tais avanços conceituais/propositivos e o atraso no engajamento responsável e efetivo da comunidade internacional.

Assim, na dificuldade de referir-me à análise de Lindgren Alves sobre os desdobramentos posteriores de Viena sem prejudicar- lhe a qualidade, permito-me citá-lo:

Se os conceitos lá registrados mostraram-se, em certos casos, letra morta, ignorados por Estados e ONGs que haviam participado do consenso, e se algumas de suas diretrizes tornaram-se depois contraproducentes, porque levadas a extremos, as principais distorções e defeitos ora presentes no sistema internacional de promoção e proteção aos direitos humanos não advêm de Viena. Resultam de contradições inerentes à globalização de outro sistema muito mais abrangente [Democracia, Desenvolvimento e Direitos Humanos], que se impôs como “sem alternativas” em escala planetária (ALVES, 2014 apud HERNANDEZ, 2014; 09).

Logo, na contramão do descaso em certas situações, encontra-se outro problema recorrente no debate ora em foco: a acusação, por vezes genuína, da utilização dos direitos humanos como ferramenta ideológica e instrumento de poder a serviço de interesses outros. Este ponto nos permite entrar na análise de uma clara contribuição de Hernandez para a área de conhecimento das relações internacionais, a saber: a relação entre soberania e direitos humanos.

o olhar dispensado […] à relação entre direitos humanos e soberania costuma enxergá-la como uma relação de antagonismo, ressaltando comumente a preponderância da segunda em detrimento dos primeiros. Esse tipo de abordagem torna opaca uma série de fenômenos internacionais atinentes à área dos direitos humanos (HERNANDEZ, 2014, : 21).

A partir da consideração do caráter jurídico-moral dos direitos humanos e jurídico- -político da soberania, o autor procede à verificação de duas hipóteses articuladas: primeiramente a percepção da Conferência de Viena como catalisadora da disseminação global da temática dos direitos humanos, tornando-a pluralizada e discutida por múltiplos e distintos atores; consoante, a sua inserção em um processo histórico mais amplo de tendência à flexibilização da soberania, devido não somente à participação de atores não estatais, mas fundamentalmente ao “surgimento e fortalecimento de princípios e iniciativas que desafiam o monopólio de jurisdição exclusiva do Estado em relação à proteção e garantia dos direitos humanos” (HERNARDEZ, 2014, : 24).

Destarte, através da análise dos antecedentes históricos; do processo preparatório; de posicionamentos estatais e de ONGs durante as negociações; e, do documento final da Conferência, Hernandez constata que: dada a maior complexidade do regime internacional de direitos humanos no pós-Guerra Fria, verificaram-se, na Conferência de Viena, posições visando amenizar as tensões entre soberania e direitos humanos, e pressões visando a flexibilização e complementaridade desta relação. Tais processos não se limitaram ao campo moral, na medida em que “as exigências de legitimidade trazidas pela disseminação e institucionalização da temática dos direitos humanos e a própria abertura a novos atores condicionam o espaço de ação dos Estados no sistema internacional” (HERNANDEZ, 2014, : 257).

Nesse sentido, tenta-se expor a ambivalência dessa relação, ou seja, como ao mesmo tempo os direitos humanos se inserem no quadro atual da soberania, das instituições e autoridade do Estado, mas como também eles se chocam com esse arranjo e pressionam pela sua transcendência (HERNANDEZ, 2014,: 24).

Este movimento pode ser evidenciado pela criação, fortalecimento e atuação de instituições como o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH), o Tribunal Penal Internacional, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), estes no ambiente internacional, e as distintas Instituições Nacionais de Direitos Humanos (INDH), no plano doméstico, somadas à multiplicação de ONGs como atores internacionais legítimos e influentes através da estratégia de naming and shaming, dentre outras.

Portanto, demonstram consistência as conclusões centrais do livro de Matheus Hernandez de que os debates da Conferência de Viena contribuíram para os processos de legitimação, internacionalização e institucionalização dos direitos humanos. Provas destes resultados encontram-se no alcance de consenso acerca de componentes antes ausentes da concepção de direitos humanos, como os direitos políticos, econômicos, sociais, culturais e o direito ao desenvolvimento, tão reivindicado pelos países periféricos. Por estes motivos Hernandez (2014, : 257) ressalta que “os direitos humanos fortaleceram-se […] enquanto veículos de contestação às assimetrias do sistema internacional […] assim como se considera o potencial aglutinador exercido pelos direitos humanos junto à periferia do sistema internacional”, possibilitados mediante os debates e disputas em torno de consensos e dissensos levantados desde as Reuniões Preparatórias até a efetiva realização da Conferência de Viena.

Por fim, o autor argumenta que a realização da Conferência de Viena e a utilização da legitimidade dos direitos humanos tiveram papel muito importante no esforço de reativação ou revitalização da ONU no pós-Guerra Fria, tendo em vista que a missão das Nações Unidas baseia-se em três grandes objetivos: manutenção da paz e segurança internacional; a promoção do desenvolvimento econômico e social; e, o respeito pelos direitos humanos.

Ciente de não haver abordado a obra em sua totalidade, resta parabenizar e agradecer às contribuições de Matheus Hernandez, reconhecendo se tratar, doravante, de leitura indispensável aos estudiosos do tema, profissionais da área e todos os demais interessados em compreender os direitos humanos.

Referências

ALVES, J. A. Lindgren. Prefácio (2014). In: HERNANDEZ, Matheus de C.. A Conferência de Viena e a Internacionalização dos Direitos Humanos. Curitiba: Juruá.

HERNANDEZ, Matheus de Carvalho.(2014). A Conferência de Viena e a Internacionalização dos Direitos Humanos. Curitiba: Juruá.


Resenhista

Rodolfo Ilário Silva – Doutorando do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB).


Referências desta Resenha

HERNANDEZ, Matheus de Carvalho. A Conferência de Viena e a Internacionalização dos Direitos Humanos. Curitiba: Juruá, 2014. Resenha de: SILVA, Rodolfo Ilário. Monções: Revista de Relações Internacionais da UFGD. Dourados, v.4, n.8, p.151-154, jul./dez. 2015. Acessar publicação original [DR]

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