A cosmologia construída de fora: a relação com o outro como forma de produção social entre os grupos chaquenhos no século XVIII | Guilherme Galhegos Felippe

O trabalho ora resenhado, de autoria de Guilherme Galhegos Felippe, é fruto de uma pesquisa de doutorado defendida em 2014 no Programa de Pós-graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). A pesquisa ganhou o Prêmio Capes de Tese em 2014 na área de História e foi publicada pela editora Paco Editorial, de Jundiaí, em São Paulo.

A pesquisa insere-se no campo da História Indígena e promove um profícuo diálogo entre as disciplinas de Antropologia e História para compreender o processo de colonização da região do Chaco2 na perspectiva dos nativos que habitavam esta região. Assim, o trabalho desafia-se a analisar um conjunto de fontes sobre os nativos do Chaco escritas, em sua maioria, pelos colonizadores e, por isso, sobrecarregadas de preconceitos em relação às culturas que descreviam.

Como esclarece o próprio autor3 , sua pesquisa de doutorado foi resultado de uma verticalização da pesquisa de mestrado e nela aprofundou temas não contemplados na dissertação, o que para ele parecia um desperdício se não fossem aprofundados, já que havia uma quantidade impressionante de fontes sobre a relação entre os grupos chaquenhos e os agentes coloniais que poderiam revelar aspectos interessantes do contato na perspectiva dos povos indígenas.

Na pesquisa em questão, o autor teve o objetivo de analisar o contato entre os agentes coloniais e os povos indígenas da região do Chaco durante o século XVIII, “privilegiando, ao máximo, a análise do comportamento indígena” (FELIPPE, 2014, p. 18). Para tal, considerou a análise de três aspectos da cultura dos nativos do Chaco: a guerra, a reciprocidade e o regime de produção e consumo alimentar. Para compreendê-los, o eixo norteador da investigação foi a mitologia indígena, definida pelo autor como uma forma de produção de conhecimento geradora de práticas rituais, simbólicas e sociais.

Guilherme Felippe fez uso de dois conjuntos de fontes: uma documentação de caráter religioso e uma documentação de caráter laico. Em relação à documentação religiosa, foram utilizadas cartas produzidas pelos padres e jesuítas que atuavam na colônia, memórias escritas pelos inacianos, correspondências de bispos e cartas e memórias escritas por membros de outras ordens religiosas, como os franciscanos, mercedários e dominicanos, que também promoveram missões juntos aos índios do Chaco. (FELIPPE, 2014, p. 30-31)

Em relação às fontes de caráter laico, foram utilizadas as correspondências, memórias, interrogatórios, diários de expedições, testemunhos, descrições e informes legais de moradores das cidades, funcionários reais, autoridades coloniais ou viajantes que tiveram contato com os nativos. Ainda foram utilizadas as cartas e relatórios escritos pelas autoridades administrativas de Tucumã e Buenos Aires. (FELIPPE, 2014, p. 31-32)

Este conjunto de fontes tem em comum a reprodução de uma série de estereótipos sobre os povos indígenas. Para contorná-los e compreender o contato entre espanhóis e os povos do Chaco na perspectiva destes últimos, Guilherme Felippe fez uso das teorias antropológicas conhecidas como perspectivismo ameríndio e multinaturalismo, desenvolvidas por Eduardo Viveiros de Castro, Phillipe Descola e Roy Wagner; e das teorias de oposições duais, de Claude Lévi-Strauss, além das reflexões de Bruno Latour sobre a modernidade.

Assim, no primeiro capítulo, intitulado “Os mitos indígenas como construção da realidade”, Guilherme Felippe apresenta um texto mais teórico, com o objetivo de empreender uma articulação entre teorias antropológicas que orientam a análise das fontes feita nos capítulos subsequentes. Primeiramente, o autor define os conceitos de natureza e cultura, apoiado nas reflexões de Bruno Latour e Roy Wagner, para quem a cisão conceitual entre natureza e cultura foi promovida pelo saber ocidental moderno por volta do século XVII e estendida a todos os povos do planeta.

Baseado em Eduardo Viveiros de Castro, o autor argumenta que o pensamento ameríndio fundamenta-se em uma ontologia diversa. Para este antropólogo, o universo sóciocosmológico indígena é dotado de subjetividade, diferente da ontologia moderna que, ao promover uma ruptura ontológica entre natureza e cultura destitui o cosmos de subjetividade e atribui sua dinâmica a leis gerais que podem ser compreendidas objetivamente pelos cientistas.

A proposta de abordagem de Guilherme Felippe encontra seu fundamento na mitologia indígena, que constitui uma estrutura integradora de elementos externos (FELIPPE, 2014, p. 71), serve como um “sistema de referência” (FELIPPE, 2014, p. 79) e um sistema de conhecimento que também fundamenta as ações individuais e coletivas dos grupos (FELIPPE, 2014, p. 80). Destarte, na esteira de Claude Lévi-Strauss e Eduardo Viveiros de Castro, o autor afirma que os mitos ameríndios estruturam-se a partir de oposições duais conciliativas que tendem a incorporar o outro ao universo cosmológico ameríndio.

É a partir desta perspectiva que a guerra indígena é analisada por Guilherme Felippe no segundo capítulo, intitulado “A guerra como motor social”. No início do século XVIII, passaram a ser enviadas expedições armadas à região do Chaco com o intuito de submeter os indígenas às relações de vassalagem ao Rei da Espanha e, desse modo, garantir a ocupação e o trânsito na região, considerada hostil devido ao grande número de indígenas que a habitava. Essa tentativa de submissão dos indígenas aos desejos do Rei da Espanha gerou uma série de ataques e contra-ataques entre os povos chaquenhos e os colonizadores.

A guerra entre os nativos do Chaco e os espanhóis, bem como a guerra entre os próprios nativos, caracterizava-se, na visão dos espanhóis, pela sua desorganização, pois não possuía hierarquias, padrões de comando, escalas de mando entre outros expedientes da guerra moderna. No entanto, como demonstra o autor ao ler as fontes a contrapelo e munido das teorias antropológicas sobre a guerra nativa, sobretudo a partir dos trabalhos de Eduardo Viveiros de Castro, a guerra indígena baseava-se em outra lógica e as incursões bélicas “eram apenas uma intersecção de um sistema muito maior que a violência ou selvageria que os espanhóis viam.” (FELIPPE, 2014, p. 121)

Para o autor, a guerra indígena era o meio de se estabelecer relações sociais com o outro, pressuposto da cosmologia ameríndia. A guerra, para os povos indígenas do Chaco, funcionava como um motor social, produtora de sociabilidade. Guilherme Felippe demonstra que o que era tido como atitudes de “selvagens” e de “bárbaros” pelos colonizadores, como o apresamento de mulheres e crianças de ambos os sexos e o escalpo das vítimas, para os nativos do Chaco eram estratégias de reprodução social.

No capítulo três, intitulado “Economia dos índios chaquenhos I – a captação de bens materiais: reciprocidade, roubos e comércio”, Guilherme Felippe analisa outros aspectos culturais dos nativos do Chaco em contato com os espanhóis, tais como os furtos praticados pelos indígenas da região, o hábito de solicitar presentes aos colonos e missionários, os rituais de bebedeiras organizados com frequência entre os indígenas e a participação de alguns grupos nativos no comércio local.

Os missionários e colonos queixavam-se das constantes solicitações de presentes dos índios do Chaco, que pareciam nunca se satisfazer com os brindes. Esta insistência em receber presentes acabou difundindo a ideia de que eles eram interesseiros e materialistas. No entanto, o autor mostra que a insistência dos indígenas em ganhar presentes não se pautava em mero interesse material, como acreditavam os missionários e colonizadores, mas, sim, em gerar laços reciprocitários com o intuito de manter relações com grupos aliados em potencial a partir da troca de objetos e favores: “a insistência dos índios em pedir objetos aos missionários seria, portanto, uma tentativa de introduzi-los na relação de trocas reciprocitárias e formadoras de alianças no meio social nativo.” (FELIPPE, 2014, p. 208)

Assim como os brindes solicitados pelos indígenas, os furtos que praticavam com frequência também tinham a função de gerar relações sociais. Guilherme Felippe atenta para o fato de que a ontologia indígena não comportava o conceito de propriedade privada e que por isso o que era considerado roubo pelos espanhóis, para os indígenas era um meio de gerar relações sociais na medida em que muitos dos objetos roubados eram usados – ou mesmo potencializavam – na guerra ou na comercialização com os colonos: “se havia algum acúmulo era de relações sociais, e não de bens”. (FELIPPE, 2014, p. 213)

As bebedeiras também possuíam a função de gerar relações sociais e a análise feita por Guilherme Felippe desses rituais desconstrói os preconceitos presentes nas fontes escritas pelos missionários. Nas descrições dos missionários, as bebedeiras são depreciadas, enfatizando as brigas e mortes entre os indígenas ao final do ritual. De acordo com o autor, dois são os motivos que levam a uma escrita depreciativa das bebedeiras por parte dos missionários: por ser o alcoolismo um obstáculo à civilização dos índios e pelo fato de os missionários terem observado acertadamente que as bebedeiras eram ocasiões nas quais os índios lembravam as mortes de parentes em batalhas passadas para insuflar o sentimento de vingança da coletividade – o perdão, lembra o autor, é um princípio caro ao cristianismo.

No quarto capítulo, intitulado “Economia dos índios chaquenhos II: a produção e o consumo alimentar como métodos econômicos de relação cosmológica”, Guilherme Felippe analisa dois aspectos da cultura tradicional que não foram modificados pela interação com a cultura dos colonizadores, legitimando, assim, a observação de Sahlins, que afirma que numa estrutura cultural “existem pontos estratégicos de ação histórica, áreas circunstancialmente quentes, e outras relativamente fechadas.” (SAHLINS, 2011, p. 15)

A produção e consumo de alimentos foi um aspecto da cultura nativa que se mostrou refratário à mudança almejada pelos colonizadores. Conforme mostra o autor, os agentes coloniais reclamavam com frequência da baixa produtividade, da pouca propensão ao trabalho e da indisciplina indígena. Além de produzirem pouco, os indígenas ainda consumiam rapidamente todo o suprimento alimentar que possuíam. Estes hábitos, pouco apreciados pelos missionários, geravam uma série de estigmas em relação aos povos do Chaco, ora tidos como preguiçosos, ora como índios imprevidentes. (FELIPPE, 2014, p. 286-287)

Guilherme Felippe argumenta que o que estava em jogo eram relações de produção e consumo alimentar com finalidades distintas. Para os indígenas, estas relações não possuíam a função de criar um excedente produtivo e de um estoque de comida. A não criação de um estoque de alimentos “não era, como entenderam os espanhóis, uma consequência direta da imprevidência que os índios apresentavam no trabalho; era, antes, uma evidência de que os nativos não trabalhavam com fins de produzir excedentes…” (FELIPPE, 2014, p. 302-303)

A lógica produtiva moderna que tentava ser imposta aos indígenas do Chaco pelos colonizadores ia de encontro aos seus princípios de produção e consumo alimentar, de tal modo que incorporá-la colocaria em risco a própria estrutura cosmológica indígena, pois incorporar os métodos produtivos da agricultura moderna, “além de implicar na modificação estrutural do regime de consumo indígena, subverteria a cosmologia nativa, já que a intervenção na ordem social agravaria todo um sistema de trocas e formação de alianças responsável pela dinamicidade e construção do grupo.” (FELIPPE, 2014, p. 313)

Assim como a produção e consumo de alimentos, a dificuldade dos indígenas em domesticar animais também foi tema de lamúria dos espanhóis. De acordo com Guilherme Felippe, a incapacidade indígena em administrar uma economia mais complexa era o argumento mobilizado pelos espanhóis para justificar as dificuldades encontradas para ensinar a domesticação aos indígenas. No entanto, mais do que um problema relativo à técnica, o que estava em jogo era, de acordo com o autor, a disparidade cosmológica entre espanhóis e nativos.

Em diálogo com o perspectivismo ameríndio, Guilherme Felippe argumenta que considerar o outro uma propriedade era, para os nativos do Chaco, algo que contradizia a sua própria cosmologia, que atribuía uma humanidade comum a todos os seres do cosmos. Nesse sentido, o autor destaca as observações dos espanhóis sobre a inexistência da escravidão entre os povos do Chaco. Ainda que houvesse a prática de aprisionar os inimigos em guerra, o destino dos inimigos que não eram trocados ou sacrificados em rituais antropofágicos era a internalização no grupo como membros cognáticos. (FELIPPE, 2014, p. 323)

O mérito da pesquisa de Guilherme Felippe está na promoção de um profícuo diálogo entre as disciplinas de História e Antropologia. O desafio metodológico da pesquisa consistiu em perceber como os nativos do Chaco vivenciaram a história da colonização ao longo do século XVIII a partir de um conjunto de fontes sobrecarregadas de preconceitos em relação aos povos indígenas. Ao analisar estas fontes à luz de um conjunto de teorias antropológicas, o autor pôde elucidar diversos aspectos da colonização na perspectiva dos nativos de modo original e que dificilmente seriam compreendidos através dos cânones historiográficos comumente mobilizados pelos historiadores brasileiros em suas pesquisas.

Notas

2 Chaco ou Gran Chaco é uma região geográfica da América do Sul, que abrange os territórios da Bolívia, Argentina, Paraguai e Brasil.

3 Trata-se de uma entrevista concedida por Guilherme Felippe à rede social Café História para o quadro Minha Pesquisa. O vídeo foi enviado ao Canal Café História TV em 21 de janeiro de 2015 e pode ser conferido no link: https://www.youtube.com/watch?v=cuGGPyyWUlY (Acesso em 13 de março de 2016).

Referências

FELIPPE, Guilherme Galhegos. A cosmologia construída de fora: a relação com o outro como forma de produção social entre os grupos chaquenhos no século XVIII. Jundiaí: Paco Editorial, 2014.

SAHLINS, Marshall. Ilhas de história. 2. ed., Rio de Janeiro: Zahar, 2011.


Resenhista

Adalto Vieira Ferreira Júnior – Graduação em Licenciatura em História pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT-Rondonópolis). Atualmente é estudante de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). Bolsista CAPES/DS.


Referências desta Resenha

FELIPPE, Guilherme Galhegos. A cosmologia construída de fora: a relação com o outro como forma de produção social entre os grupos chaquenhos no século XVIII. Jundiaí: Paco Editorial, 2014. Resenha de: FERREIRA JÚNIOR, Adalto Vieira. Revista Eletrônica da ANPHLAC, 20, p. 256-261, Jan/Jun. 2016. Acessar publicação original [DR]

Deixe um Comentário

Você precisa fazer login para publicar um comentário.