A Cruel Pedagogia do Vírus | Boaventura de Souza Santos

A cruel Pedagogia do vírus, livro do sociólogo português, Boaventura de Sousa Santos, lançado neste ano de 2020 pela Editora Almedina, traz de forma reflexiva e oportuna, para o momento em que vivemos, narrativas contemporâneas e resgates históricos que nos levam a habitar outros tempos e espaços, para entendermos melhor a constituição dessa e de outras pandemias que têm nos assolados nos últimos tempos, tomando como análise crítica uma das matrizes de inteligibilidade do capitalismo, o neoliberalismo. É um livro-convite à vida que nos leva a refletir sobre nossos comportamentos e relações, abrindo possiblidades para uma nova “normalidade”.

Numa versão compacta, o livro consegue apresentar uma discussão necessária para nossa atual realidade, trazendo questionamentos e reflexões, além de instigar o leitor a pensar e analisar acontecimentos cotidianos e suas repercussões na sociedade, provocando um melhor entendimento da constituição dos fatos, bem como suscitando possibilidades e alternativas perante caminhos a serem tomados.

A obra é dividida em cinco capítulos que se relacionam por meio de questionamentos a crises, pandemias e quarentenas vividas pela sociedade contemporânea há décadas. Dessa forma, traz como pano de fundo para discussão o cenário socioeconômico, expondo o poder do vírus e a vulnerabilidade humana, e nos mostra que o que seria impossível de repente se torna possível.

No primeiro capítulo intitulado “Vírus: tudo o que é sólido se desfaz no ar”, o autor inicia seu pensamento questionando a normalidade da sociedade contemporânea, a qual nomeia como “normalidade de exceção”, por ser constituída em um estado permanente de crise, o que não se opõe à crise da atual pandemia. Nesse sentido, Santos (2020, p. 1) coloca que o mundo vive, desde a década de 1980, uma crise global permanente “à medida que o neoliberalismo se foi impondo como a versão dominante do capitalismo”. Assim, ele caracteriza tais crises como passageira e permanente, em que a primeira parte de fatores que a provocam e chega a ser superada em um dado momento; a segunda, se constitui como justificativa para tudo pelos governantes, principalmente, no que diz respeito a melhorias sociais. A manutenção dessa crise tem como objetivo a sua não resolutividade, de forma a legitimar concentrações de riquezas e o travamento de medidas de controle ecológico.

Etimologicamente, o termo “pandemia” significa “todo o povo”, trazendo consigo a ideia de solidariedade e ratificando o sentido de democracia, o que é questionável quando as medidas de segurança são o isolamento uns dos outros. Dessa forma, a pandemia não é uma crise, ela vem apenas agravar uma situação de crise de modos de viver dominantes, sejam eles uns sobre os outros ou sobre a natureza.

Ao observamos mais de perto momentos de crise, nos deparamos com uma espécie de elasticidade do corpo social, jamais imaginada que seria possível, pois as pandemias, os desastres ambientais e os colapsos econômicos, geralmente oferecem alternativas de vida às pessoas. Santos (2020, p. 2) coloca que “a ideia conservadora de que não há alternativa ao modo de vida imposto pelo hipercapitalismo em que vivemos cai por terra”. Isso se dá, a um abrandamento da economia, o qual deixa escapar fatores positivos como solidariedade, cooperação, diminuição da poluição etc.

O autor conclui esse primeiro capítulo, chamando a atenção para a guerra comercial e de interesses entre os Estados Unidos e a China, bem como a constituição dos discursos por meio da mídia e desloca os olhares da comoção social da pandemia para as sombras que a visibilidade cria, citando como exemplo a vulnerabilidade dos refugiados e imigrantes.

O segundo capítulo, “A trágica transparência do vírus”, apresenta-se como uma crítica à política, que tem abandonado seu lugar de interlocução nas discussões entre cultura e ideologia, se distanciando cada vez mais da realidade da maioria da população na ânsia de atender a aspirações dos mercados. Assim, ao mesmo tempo que sentimos medo generalizado da morte sem fronteiras, causada por um inimigo invisível, podemos enxergar a pandemia como uma luz na escuridão que vivemos, que pode nos conduzir a outros caminhos.

Ainda nesse capítulo, o autor faz uma analogia interessante do vírus com o mercado, em que ambos são poderosos, insidiosos e imprevisíveis, marcando uma espécie de último reinado, com sua trindade constituída por Deus, o vírus e os mercados, e só ascendem à salvação os mais fortes, santos, ricos e jovens. Daí, os seres humanos se configurarem como hospedeiros frágeis para esses seres invisíveis, correndo o risco de se tornarem uma espécie em extinção.

No “Sul da quarentena”, capítulo três, são expostas condições de vida de grupos vulneráveis que vivem em quarentena social permanente, sofrendo discriminação e formas de dominação desumanas, dificultando, ainda mais, o enfrentamento dessas condições com o isolamento social exigido durante a pandemia. Nesses grupos, podemos encontrar: as mulheres e o aumento da violência doméstica; os trabalhadores autônomos, que precisam escolher morrer do vírus ou de fome; os trabalhadores de rua, que sem vida na rua não têm como garantir sua subsistência; os sem-teto, moradores de periferias pobres, refugiados, pessoas com deficiência e idosos que já vivem em quarentena permanente ou imposta pela sociedade, familiares ou o sistema. Pensando nisso, as normas recomendadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS) ficam inviáveis de serem atendidas por quem não tem as condições mínimas de sobrevivência, pois para esses grupos a atual emergência de saúde vem juntar-se a muitas outras emergências.

O penúltimo capítulo, “A intensa Pedagogia do vírus: as primeiras lições”, ilustra percepções da sociedade contemporânea aos riscos que correm, utilizando as crises para ilustrar a comoção provocada pelos meios midiáticos e o poder dos discursos políticos. Porém, deixa escapar que as pandemias não matam tão indiscriminadamente quanto se prega, pois, crises crônicas e com um grau maior de letalidade, tendem a passar despercebidas com mais frequência.

A discussão central desse capítulo concentra-se no modelo social e econômico aos quais estamos envolvidos, o que nos serve de subsídio para um melhor entendimento dos comportamentos da sociedade contemporânea.

Historicamente, conhecemos das páginas dos livros à vida prática os modos de dominação como o capitalismo, colonialismo e patriarcado. Eles operam sempre em conjunto e são omnipresentes e invisíveis na vida dos seres humanos, sendo possível visualizá-los apenas nas suas consequências, por meio da desigualdade social e destruição do planeta. Por mais que, em alguns momentos ou lugares, possam demonstrar fracos ou mortos, eles sempre estão vivos e fortes para emergir nos momentos de crises.

Appadurai (2009) discute esses modos de dominação, especificamente o capitalismo, na sua versão mais globalizada e violenta de ser, nos mostrando a incerteza social e a insegurança dos estados advindas da economia como fator desencadeador de genocídios. O autor chama ainda de “pequeno número” classes sociais dominantes infiltradas na multidão, esperando o momento certo para emergir e se estabelecer nos regimes totalitários. Para isso, utiliza-se de eventos de risco, como as pandemias, por exemplo, associados à comoção da população por meio de veículos midiáticos e discursos do diferente como ameaça, disseminando um verdadeiro estado de terrorismo na população.

Nesse contexto, o neoliberalismo crescente e dominado pelo capital financeiro impõe sua versão mais cruel à sociedade, levando a saúde, educação e segurança social ao modelo de negócio capital, disseminando a lógica que qualquer serviço público está aquém de atender com qualidade às necessidades da sociedade atual, assim, ignoram totalmente os princípios de cidadania e direitos humanos, promovendo a mercantilização da vida coletiva. Corroborando com Santos (2020, p. 24), ele caracteriza esse pensamento, elencando:

[…] a demonização dos serviços públicos (o Estado predador, ineficiente ou corrupto); a degradação das políticas sociais ditada pelas políticas de austeridade sob o pretexto da crise financeira do Estado; a privatização dos serviços públicos e o subfinanciamento dos que restaram por não interessarem ao capital.

Dessa forma, podemos visualizar uma população indefesa, propensa a mais endividamentos, um Estado com sua capacidade de intervenção diminuída e um futuro com outras tantas epidemias, consequências, não provocadas pela pandemia, mas por políticas neoliberais que sugam dos seres humanos o exercício de seus direitos como cidadãos. Assim, vemos uma valorização dos corpos mais necessários à economia, o crescimento da vulnerabilidade da maioria das pessoas, as quais sequer, os cuidados com a saúde e as necessidades básicas são atendidos, evidenciando a importância dos problemas globais apenas quando atingem as populações dos países ricos.

Nessa esteira de pensamento, o autor chega, ao quinto e último capítulo do livro, o qual intitula de “O futuro pode começar hoje”. O tema é bastante sugestivo e nos faz pensar que caminhos são possíveis a qualquer tempo, o que nos dá a ideia que podemos navegar por outras rotas diante de turbulências e obstáculos encontrados. Se tomarmos a pandemia que nos assola e a quarentena que vivemos como exemplo, ambas nos mostram essa viabilidade devido a mudanças de comportamento que fomos obrigados a assumir em tempos considerados impossíveis de tais condutas. Dessa forma, nos leva a pensar em possibilidades de um novo modo de viver, de produzir, de consumir e de conviver, que pode evitar novas pandemias e tragédias.

Santos (2002) corrobora nesse sentido quando apresenta a sociologia das ausências, que tem como objetivo transformar objetos impossíveis em possíveis, ou seja, as ausências em presenças, revelando as riquezas das experiências sociais do mundo, antes negligenciadas e não socializadas pela razão metonímica.

Portanto, diante do exposto neste texto, podemos observar que há uma necessidade urgente de estabelecermos um novo contrato de parceria entre os processos políticos e civilizatórios, senão a Covid-19 vai passar e vamos continuar vivendo em quarentena política, cultural e ideológica de um capitalismo fechado em si próprio. Logo, ideias e alternativas irão surgir, cabe saber se vamos concretizá-las ou voltar ao mesmo, vivendo o chamado “novo normal”, com os mesmos protestos, as mesmas desigualdades, a mesma corrupção e falta de proteção social, o que será justificado pela velha crise financeira: a pandemia das pandemias.

Referências

APPADURAI, Arjun. O medo ao pequeno número: ensaio sobre a geografia da raiva. Trad. Ana Goldberger. São Paulo: Iluminuras, Itaú Cultural, 2009.

SANTOS, Boaventura de Sousa. A Cruel Pedagogia do Vírus. Coimbra: Almedina, 2020.

SANTOS, Boaventura de Souza. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, 63, p. 237-280, out 2002.


Resenhista

Francisco Varder Braga Junior – Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Educação pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc). Membro do grupo de pesquisa cadastrado no Diretório do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq): Políticas Públicas, Inclusão e Produção de Sujeitos da UNISC. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

SANTOS, Boaventura de Sousa. A Cruel Pedagogia do Vírus. Coimbra: Almedina, 2020. Resenha de: BRAGA JUNIOR, Francisco Varder. Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica. Salvador, v. 05, n. 16, p. 1882-1885, Edição Especial, 2020. Acessar publicação original [DR]

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