A Cruel Pedagogia do Vírus | Boaventura de Souza Santos

A cruel Pedagogia do vírus, livro do sociólogo português, Boaventura de Sousa Santos, lançado neste ano de 2020 pela Editora Almedina, traz de forma reflexiva e oportuna, para o momento em que vivemos, narrativas contemporâneas e resgates históricos que nos levam a habitar outros tempos e espaços, para entendermos melhor a constituição dessa e de outras pandemias que têm nos assolados nos últimos tempos, tomando como análise crítica uma das matrizes de inteligibilidade do capitalismo, o neoliberalismo. É um livro-convite à vida que nos leva a refletir sobre nossos comportamentos e relações, abrindo possiblidades para uma nova “normalidade”.

Numa versão compacta, o livro consegue apresentar uma discussão necessária para nossa atual realidade, trazendo questionamentos e reflexões, além de instigar o leitor a pensar e analisar acontecimentos cotidianos e suas repercussões na sociedade, provocando um melhor entendimento da constituição dos fatos, bem como suscitando possibilidades e alternativas perante caminhos a serem tomados. Leia Mais

Cidadania/ historiografia e Res publica: contextos do pensamento político | John Greville Agard Pocock

O renomado historiador das ideias John G. A. Pocock afirma que, além de buscar as linguagens existentes em contextos históricos muito bem determinados, estabelecendo uma análise sincrônica dos discursos políticos, a sua própria inteligência histórica “tende para o diacrônico, o estudo de o que acontece quando as linguagens mudam ou os textos migram de uma situação histórica para outra.” (POCOCK, 2013, p. 276) E é dessa maneira que ele propõe os seus questionamentos e afirmações no interior do grupo já há muito conhecido como Linguistic Contextualism da “Escola do Pensamento Histórico e Político” de Cambridge. Ao se posicionar como um pesquisador mais interessado em performances discursivas, nas interações entre langue e parole (entendidas como texto e ação, respectivamente), Pocock, por meio de sua perspectiva teórica antiparadigmática (é equivocado pensar que ele seja um tributário da perspectiva de paradigma formulada por Thomas Kuhn, como o faz grande parte de seus críticos) e multidimensional, acabou por relegar ao anacronismo bibliotecas inteiras. Leia Mais

A geografia dos afectos pátrios. As reformas político-administrativas (sécs. XIX-XX) – CATROGA (LH)

CATROGA, Fernando. A geografia dos afectos pátrios. As reformas político-administrativas (sécs. XIX-XX). Coimbra: Almedina, 2013. 406 p. Resenha de: MARQUES, Tiago Pires. Ler História, v.66, p. 179-182, 2014.

1 É difícil fazer justiça, em poucas páginas, a um livro denso, de esmagadora erudição, que complica consideravelmente a história do Estado-nação português, ao mesmo tempo que oferece inovadoras linhas de intelecção dos seus processos. Com efeito, sob pretexto de uma análise histórica da organização administrativa do território do Portugal contemporâneo, o novo livro de Fernando Catroga mapeia os imaginários de modernidade em confronto, no seio das elites governantes e intelectuais intervenientes no espaço público, e observa os efeitos das sucessivas rearticulações territoriais na história política e sócio-cultural do país. Obra construída a partir de um conjunto de textos autónomos publicados desde 2004, tal como nos explica o autor em nota final, a sua novidade está, para além de alguns acrescentos inéditos, na forma como constrói uma perspectiva unitária da concretização de uma modernidade portuguesa. É que, abdicando do habitual dispositivo sequencial, este livro claramente não é uma soma de elementos, mas um conjunto de unidades que se vão encaixando umas nas outras no interior de uma circunferência comum. Concretizando, tal circunferência parece-nos definida por um tema, um problema e uma perspectiva: 1) pelo tema da institucionalização de um ordenamento político-administrativo e territorial adequado aos princípios da soberania nacional, da divisão de poderes e do carácter público de todas as funções administrativas (p. 31); 2) pelo problema da fraca base social para apoiar tal processo de institucionalização, que se corporizou socialmente em diversas formas de integração e de tensão entre centro e periferia; e 3) por uma perspectiva, a saber, de que no debate entre centralistas e descentralistas se jogou a questão da organização territorial e governo das populações, sendo esta indissociável de ideias de pátria, nação e cidadania (p. 12). Assim, esta obra constitui-se por uma operacionalização do conceito foucaultiano de governamentalidade que integra os imaginários de ordem político-social da modernidade portuguesa.

2 O livro compõe-se formalmente de quatro partes, cada uma delas percorrendo a totalidade do período analisado. Vamos assim avançando em espiral, desde a circunferência mais ampla do território (Parte I), à região ou província (Parte II), à organização dos micro-poderes locais (Parte III), e, enfim (Parte IV), à organização dos afectos patrióticos que, à maneira de eixo central, ligaria o imaginário nacional aos fogos familiares, «fisiológicos», do lugar. Na primeira parte, o autor ataca a questão ampla do território nacional, nomeadamente a sua ocupação pelo poder estatal na mira de governar a população. Trata aqui de seguir, no debate em torno dos modelos de divisão administrativa, dos alvores do Liberalismo ao Estado Novo, o olhar estratégico dos políticos e administradores sobre o alinhamento entre centro e periferias, ao tentarem fazer repercutir o sentido universal do contrato social fundador do poder central nos poderes regionais e locais. Catroga mostra como em torno do «município» se constituiu uma luta política e simbólica, opondo liberais e restauracionistas, e diferentes modos liberais de entender a «liberdade dos modernos» (p. 37). Para os liberais descentralistas, o município surgiu como resposta à dificuldade prática de operacionalizar o sistema representativo na governação do território nacional. Construindo-se sobre a noção anglo-saxónica de «self-government», para os descentralistas o município parecia assim «saído das mãos de Deus» (nas palavras citadas de Alexandre Herculano), já que dava um conteúdo palpável, uma factualidade institucionalizada, à noção «abstracta» e «artificial» de nação sobre o qual o também abstracto «pacto social» adquiria um conteúdo concreto: as «sociabilidades naturais» cristalizadas pela história. Para outros, porém, o município permitia mobilizar uma versão mitificada do passado com uma finalidade restauracionista (p. 38). Vingou a solução do «constitucionalismo histórico», a demarcação distrital do país ao serviço, segundo Catroga, de uma visão hierárquica do poder que subalternizava as periferias ao centro político do Estado-nação (p. 53 e sgs.). Esta malha saída do modelo triunfante de poder – finalmente, ao estilo jacobino – teria estruturado, na prática, as formas observadas pela sociologia histórica comparativa da modernização política portuguesa, nomeadamente o caciquismo, o clientelismo e o nepotismo. Formas de sociabilidade típicas das «capitalidades distritais», elas seriam o complemento funcional da figura, tão diabolizada, do «burocrata» (p. 86).

3 A segunda e terceira partes podem ler-se conjuntamente como uma genealogia do provincianismo e paroquialismo portugueses enquanto forma de organização do poder na base de uma certa «cultura», ancorada não só nos discursos dos políticos mas também na história social do país. A ausência histórica de ordens intermédias entre o centro político e as periferias locais gerou dinâmicas supletivas, apoiadas nos modelos do regionalismo francês e espanhol, que viriam a desembocar nos diversos movimentos federalistas da segunda metade do século XIX e da I República e, em sentido antiliberal, nos movimentos favoráveis à noção de «província», de ressonâncias imperialistas, visando casar regionalismo e patriotismo (p. 152). Este segundo modelo triunfou, como sabemos, como forma de organização territorial do Estado Novo. Tornam-se claros os elos entre as sociabilidades que floresceram no Portugal contemporâneo – grémios, casas regionais, associações, congressos, partidos políticos com lógicas clientelares, movimentos militantes (ex. a Cruzada Nun’Álvares) e político-intelectuais (ex. o Integralismo Lusitano) – e estas diferentes formas de estruturação territorial do poder. Neste sentido, é luminosa e convincente a análise de uma governamentalidade característica do caso português, cujas linhas de compreensão se devem buscar em combinatórias de escalas – nacional, regional e paroquial.

4 A quarta parte do livro é porventura a mais ousada e sugestiva. Articulando agora estas várias governamentalidades estruturantes da sociedade portuguesa, Fernando Catroga analisa os afectos que produziram e de que se alimentaram para a sua própria reprodução. Os processos históricos em causa revelam uma mesma tensão estrutural: como fazer surgir patriotismos locais e nacionais, isto é, à escala do lugar étnico e do lugar cívico – consoante o posicionamento ideológico –, que não só não fossem antagónicos, mas que se reforçassem mutuamente? Esta questão atravessou os três regimes observados, tendo obtido com o Estado Novo uma solução relativamente original que autor chama de «patriotismo de campanário». Neste, as pequenas pátrias de que se fazia a grande pátria – e que nas visões liberais coincidia com a pátria cívica e contratual – foi complementada com a ideia de uma protecção divina de legitimação católica (p. 383). Na linha do Integralismo Lusitano, o Estado Novo enfatizou a ideia de «sociabilidade natural» – que, no entanto, já encontramos em descentralistas como Herculano –, recorrendo agora a uma argumentação biológica e psicológica colhida na ciência, e sacralizou-a através de um providencialismo católico que abrangia, bem entendido, a «missão» político-espiritual do Império. Seria, assim, dialéctica e eminentemente ideológica a via portuguesa para o autoritarismo e corporativismo. Por um lado, o Estado Novo construiu-se num discurso que, contrariamente ao fascismo italiano, atribuía prioridade ôntica à nação, entidade simultaneamente histórica e fisiológica, e não ao Estado. Por outro, na prática, o regime traduzia a necessidade de ajustar a sociedade a uma suposta natureza histórica através de uma bem conduzida concepção pastoral da política. Neste sentido, o Estado Novo assumiu a função condutora na concretização histórica do que alegava ser, em nome dos «factos», a essência da nação. Por outras palavras, se no plano discursivo o Estado Novo assentava no mote «from nation to state», na prática, e porque se tratava de «colocar a nação no Estado», a sua acção foi no sentido «state to nation» (p. 380). O Estado Novo foi, nesta óptica, um jacobinismo erguido em nome do anti-jacobinismo (p. 385), construindo-se culturalmente como um «positivismo do espírito» (p. 389).

5 Como vemos, a estrutura concêntrica do livro é possibilitada pela observação de que o debate entre centralismo e descentralismo, com todas as suas gradações e efeitos de sociabilidade, atravessou a Monarquia Constitucional, a I República e o Estado Novo. Porém, o dispositivo interpretativo que possibilita ao autor conduzir com eficácia o seu empreendimento é a noção foucaultiana de governamentalidade, explicitada nas páginas iniciais. Contrariamente a algumas críticas feitas aos que em Foucault buscam utensílios de análise, a leitura da história pela perspectiva do poder não funciona como rolo compressor das singularidades históricas. Pelo contrário, Fernando Catroga singulariza uma diversidade de lógicas de governamentalidade, nelas vendo inter-relações específicas também no plano dos afectos políticos que produziram. Contudo, e embora o autor nunca o afirme, a obra sugere um determinismo último de configurações de poder, observadas a partir da aplicação de modelos. Esta perspectiva, ainda que meta-histórica, é certamente legítima. Ficam, no entanto, por explorar as formas de mobilização de indivíduos e colectivos e os processos da sua adesão a imaginários e instituições: se parece certo que os poderes produzem afectos, não é de descartar que estes se liguem a recursos simbólicos a imaginários com força criativa relativamente autónoma. Ora, esta acção criativa dos afectos parece-me mais eficazmente observável numa história de interacções sociais que, sem deixar de lado a problemática dos poderes, permita equacionar a relação entre assimetrias sociais concretas (urbano vs. rural, classe e status, diversos capitais simbólicos) e significados culturais.

Tiago Pires Marques – Centro de Estudos Sociais – Universidade de Coimbra. E-mail: [email protected].

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Os mestres da humanidade – JASPERS

JASPERS, Karl. Os mestres da humanidade. Coimbra: Almedina, 2003. 165p. Resenha de: CARVALHO, José Mauricio de. Argumentos – Revista de Filosofia, n.6, p.161-164, 2011.

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Concepção da coisa julgada contemporânea | Carlos Henrique Soares

Trata-se de um trabalho de significativo valor para o direito processual, pois já faz algum tempo que juristas portugueses e brasileiros discutem a coisa julgada inconstitucional. A proposta do doutor Carlos Henrique Soares, é justamente contrária ao entendimento dos juristas Paulo Otero, de Portugal, e Humberto Theodoro Júnior, do Brasil. A tese de doutorado desenvolvida pelo Professor, na Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, portanto, é no sentido de que a coisa julgada só alcança sua imutabilidade e atinge a segurança jurídica à medida que se busca a garantia processual do contraditório.

Mas ainda restam dúvidas sob a revisão ou modificação do trânsito em julgado da decisão jurisdicional e, por conseguinte, a respeito da dependência ou não do processo democrático na coisa julgada. É possível encontrar explicação para esses temas neste livro. Ensina o Professor Carlos Henrique que se houver dependência, só haverá segurança jurídica à medida que se garante o contraditório e a ampla defesa no processo. Leia Mais

Mare Oceanus Atlanticus: Espaço de Diálogos | Maria Manuela Tavares Ribeiro

No âmbito da VIII Semana Cultural da Universidade de Coimbra (2 a 7 de Março de 2006), sob o título De Mar a Mar, especialistas diversos reuniram-se no Ciclo de Conferências Mare Oceanus Atlântico – Espaço de Diálogos, do qual resultou o livro com o mesmo nome. Coordenado pela Prof. Cat. Doutora Maria Manuela Tavares Ribeiro, da Universidade de Coimbra, publicado pela Almedina em Novembro de 2007, esta obra magistral sobre o Atlântico, a margem ocidental da Europa, conta com a participação dos Profs. Doutores Adriano Moreira (Universidade Técnica de Lisboa), Guilhermo Pérez Sánchez (Universidad de Valladolid), Ricardo Martín de la Guardiã (Universidad de Valladolid), Estêvão de Rezende Martins (Universidade de Brasília), Rui Cunha Martins e Cristina Robalo Cordeiro (ambos da Universidade de Coimbra).

Num momento em que a Europa procura definir com clareza a geografia da sua construção política, conjugando o alargamento com o aprofundamento, a dicotomia que sempre caracterizou a integração europeia, eis que surge uma literatura de alta qualidade sobre as fronteiras, geográficas e identitárias, da Europa, analisada sob o ponto de vista da simbiose entre europeidade e ocidentalidade culturais e entre europeísmo e atlantismo políticos. Leia Mais