“A Direita na América Latina Contemporânea”: universidades, intelectuais, disputas de espaços e sentidos | Revista de História da UEG | 2021

Apresentação

“Um fantasma recorre a América Latina”. Especialmente desde os anos de 1960, depois da Revolução Cubana e seu influxo na radicalização política de alguns setores da juventude militante daquele período, os debates entre universitários “bolcheviques”, ou seja, aqueles mais próximos da experiência soviética e chinesa, que, por sua vez, baseavam-se na prática maoísta, o surgimento das propostas de socialismo nacional nos partidos populares, bem como o boom dos escritores latino-americanos fez com que se afiançara a noção cultural da hegemonia das esquerdas nos campos intelectual e universitário. Paradoxalmente, esse argumento, qual seja, o do “esquerdismo” dos e das estudantes, docentes e intelectuais, é um velho tópico usado também pelas direitas para denunciar a decadência das universidades e da cultura em geral.

Por isso, esse dossiê analisa esse sentido comum por meio de diferentes artigos que mostram as experiências direitistas de intelectuais e universitários em diferentes países latino-americanos. Entendemos o conceito de intelectual em seu sentido amplo, isto é, incluindo jornalistas e empresas editoriais, bem como atores políticos que fazem uso de instrumentos intelectuais para indicar e defender suas ações e projetos. O campo de estudos sobre as direitas latino-americanas (e de outros recortes geográficos) cresceu significativamente nas últimas décadas, ganhando legitimidade como tema de investigação social, desmentindo a alguns detratores que lhe atribuíam um caráter meramente militante. Por outro lado, com a recente irrupção de partidos e governos de direita na região, se colocaram em evidência as premissas e corpus de ideais pensados por intelectuais de direita que também assumiram uma nova visibilidade.

A proliferação positiva de obras que problematizam os matizes ideológicos e as práticas das direitas, permitiram superar as caracterizações iniciais de qualquer objeto de estudos, para alcançar uma perspectiva mais profunda y compreensiva. Mesmo assim, os estudos transnacionais foram um aporte muito significativo ao conhecimento de redes, contatos e circulação de ideias e figuras, tanto para observar similaridades nacionais como especificidades. Esse aspecto nos permite problematizar as especificidades históricas e as conexões globais do tema. Por outro lado, a reflexão teórica e metodológica permite-nos contornar as análises essencialistas, a fim de colocar em primeiro plano a historicidade destas tendências políticas e sociais. A pluralidade de debates acadêmicos e as novas intervenções dos investigadores e investigadoras no cenário científico caracterizaram a profundidade e amplitude de suas perspectivas tanto como os matizes dos atores coletivos e singulares identificados com as dinâmicas das direitas, renovando e ampliando a heurística das fontes históricas, assim como seus métodos de investigação.

O que significa ser de direita? Apostamos no uso do conceito para referirmos a um setor amplo e influente do leque político contemporâneo, conformado por grupos de extrema direita ou direita radical, intelectuais e agrupações neoliberais, novas direitas ou direitas alternativas, setores católicos integristas, igrejas evangélicas “eletrônicas” e neopentecostais, esferas liberal-conservadoras, militaristas e negacionistas. De tal modo, buscamos incluir as tradições direitistas mais significativas e influentes na América Latina desde o segundo pós-guerra até os nossos dias, para identificar os elementos principais da(s) identidade(s), as leituras sobre a ordem política democrática, a cultura, a educação e a construção de adversários e inimigos políticos e sociais que também são julgados desde perspectivas políticas, sociais e estéticas supremacistas. Não se trata, em todo o caso, de dar-lhe um sentido absoluto ao conceito de direitas, mas sim de considera-lo em sua multiplicidade histórica e interpretá-lo como atitudes de fundo, como intenções (Bobbio, 1996) que se manifestam nas concepções pré-políticas, políticas, emocionais e morais, nas cosmovisões, códigos culturais, costumes, mentalidades, identidades, heranças e sensibilidades existenciais, éticas, culturais, religiosas ou laicas (ARRIAGA MARTINEZ, 2009). Como se sabe, nenhuma identidade aparece do nada; todas são construções coletivas sobre as bases da experiência, da memória, da tradição (que também pode ser elaborada e inventada) e uma enorme variedade de práticas e expressões culturais, políticas e sociais coletivas (Said, 2001). De tal modo, entendemos como de direitas a sujeitos e ideários que se definiam por seu elitismo ancorado na reivindicação das hierarquias “naturais”, por sua oposição, mais ou menos explicita, a democracia, por sua constante desconfiança a participação das maiorias, por uma não dissimulada defesa da propriedade privada e a invocação (em diferentes gradações) das tradições, valores e estéticas do Ocidente (ECHEVERRÍA, 2021, p 37-39). O caráter velado que teve a posição direitista, em boa parte do século XX, perdeu o pudor e hoje se mostra quase obscenamente, como no caso do Brasil, que tantas reflexões aporta a este dossiê. Entretanto, as novidades poderiam não ser tantas como as formas de comunicações utilizadas nos fazem pensar. Aí se mantem firme o velho anticomunismo que acompanha as direitas desde suas origens y que com o impulso da Guerra Fria e as Doutrinas de Segurança Nacional, como sustento da definição de “inimigo interno”, se converteu em algo tão amplo que comprometia e compromete qualquer atividade que pusesse “em perigo” a segurança interna dos países que orbitaram sob os interesses capitalistas, com especial atenção a educação como um meio que podia ameaçar o status quo capitalista. Buscavam construir e instalar sua própria visão de mundo, impregnada de catastrofismo e a negação de toda a possibilidade de coexistência pacífica com o inimigo (RIBEIRO, 2019, pp. 392-397).

Neste dossiê reunimos artigos de especialistas que analisam a relação conflituosa e ambígua entre as direitas, as universidades e os diversos campos intelectuais, áreas que, em imaginários sociais diversos costumam ser, muitas vezes, pensados como espaços hegemônicos das esquerdas, mas que também envolveram focos de tensão (e conspiração) para as direitas, quer seja como um terreno para ocupar (ou diversificar) e dar-lhe o seu próprio sentido, ou como um núcleo inimigo, “comunista”, que deve ser combatido. O dossiê incorpora trabalhos sobre Argentina, Brasil, México e Uruguai, permitindo delinear um olhar transnacional que ilumina pontos de contato, redes e divergências, pois, é evidente que, no século XX, a extrema-direita latino-americana teve uma forte influência sobre o catolicismo e daquele impulso ocupou importantes espaços educativos em governos de fato e de direita, e mesmo em governos democráticos de países com uma tradição secular estabelecida, como é o caso do Uruguai. Eles também formaram grupos conspirativos e elaboraram uma extensa reflexão sobre as universidades e os seus processos de reformas. As interferências de institutos de direita e de grupos de Think Tanks na cena política e social, que são impostas em debates em torno das políticas universitárias, também são comuns na cena política e social a fim de proliferar ideários anticomunistas produzindo certa síntese histórica que se apoia na proliferação de doutrinas e estratégias de combate pinçadas das diversas ideologias militares experimentas durante a Guerra Fria, a exemplo da Doutrina de Segurança Nacional. Os artigos buscam refletir sobre as realidades nacionais, mas também locais, o que nos permitirá refletir sobre diferentes dimensões do objeto proposto. Como se pode advertir, este dossiê se constrói nas fronteiras da História Intelectual, História dos Movimentos Sociais Estudantis, a História das Direitas e os estudos comparativos, sem descuidar os aportes de diversas ciências. Ou seja, trata-se de um dossiê que se localiza na confluência de campos disciplinares dinâmicos que estão aportando conhecimentos renovados para uma experiência ideológica que parece estar vivendo um novo desenvolvimento. Desta forma, analisar aos e as intelectuais de direita e aos movimentos sociais que se referenciam nestas correntes ideológicas, atendendo suas historicidades, é fundamental para poder caracterizar essas direitas e os campos intelectuais contemporâneos da América Latina, seus traços principais, reconhecer novidades, semelhanças e continuidades históricas e observar a definição de inimigos inerentes ao seu processo de afirmação.

Ao longo do século XX e as primeiras décadas do século XXI, as direitas denunciaram a politização das instituições de estudos e os supostos erros e carências dos intelectuais de esquerda que levavam as universidades – e os países – a decadência. Mas, as formas de intervenção foram tão plurais como as direitas mesmas e se desenvolvem em projetos de corte tradicionalista, conservadores, nacionalistas como outros de modernização liberal, sem esquecer as lutas do catolicismo por poder reivindicar a ingerência na formação dos profissionais e criar suas próprias instituições de educação superior. O certo é que os âmbitos universitários foram espaços favoritos para expressões dos enfrentamentos entre esquerdas e direitas e de suas aulas saíram a maioria dos dirigentes políticos e referenciais ideológicos da América Latina. O artigo de Francisco Thiago Rocha Vasconcelos aborda o estudo do pensamento da extrema direita brasileira contemporânea, atendendo a suas raízes ideológicas e suas batalhas políticas e culturais.

O artigo considerou a inserção que tem esses grupos radicalizados (neofascistas, anticomunistas, supremacistas raciais, cristãos conservadores e religiosos exotéricos) no debate político e cultural por meio das plataformas de internet em que se desenvolvem. A convergência de atores tão heterogêneos se dá por meio da base de ação e institucionalização da política que alcançam valores “antimodernos” e “antiliberais” em táticas de “revisionismo” histórico dentro de uma estratégia de “guerra cultural” subjacente aos movimentos “neofascistas” e formas de governo populistas de direita. Trata-se de analisar a experiência comunicativa das direitas alternativas do Brasil que recuperam tópicos tais como o anticomunismo, assinalado como totalitário e portador de um projeto de dominação mundial. Ao valorizar uma visão teleológica da História, que aplicam ao estudo da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, enquanto sustentam que a ameaça comunista não acabou com a caída da URSS, mas que persiste com novas estratégias e alianças globais. Outro aspecto recuperado como bandeira é o tradicionalismo. Sustentam argumentos de recuperação de um passado mítico como solução para os problemas atuais. Seus expoentes tentam manter certa distância com as estruturas de poder como forma de mostrar liberdade de ação e apresentar-se como a reserva moral, de orientação profética, para a construção do projeto mundial. Uma das figuras desta alternativa é Olavo de Carvalho, também estudado pelo artigo de Beatriz Castro Miranda, quem analisou as teorias conspirativas que subjazem no discurso e na prática do governo de Jair Bolsonaro. A autora enfoca o pensamento do guru das novas direitas brasileiras e, sem dúvida, uma das principais referências da mobilização política baseada em pressupostos irracionalistas e em construção de inimigos poderosos e invisíveis.

As teorias conspirativas têm uma longa trajetória entre as direitas mais radicalizadas, e, como assinala Ernesto Bohoslavsky, a historiografia, a psicologia cognitiva, a antropologia e a ciência política, tratam de fazê-la compreensível. Na perspectiva de Geoffrey Cubitt (1993, pp. 1-2), para quem o “mito conspirativo” é a propensão a considerar que a política está dominada por maquinações mal-intencionadas e secretas de um grupo de interesses e valores contraditórios ao enfrentar-se com a sociedade. Este “mito” sinaliza para o fato de que o “verdadeiro” significado das coisas se escondem por detrás das aparências e que o relevante da política ocorre nos bastidores. Na lógica do complô não existe lugar para o acaso e os resultados involuntários, mas sim que os feitos são apresentados sempre como resultado de uma intenção concreta (Bohoslavsky, 2008, p. 15). E, nesta linha, se articula o artigo de Beatriz Castro Miranda, ao analisar as teorias conspirativas que se alinham ao discurso e a prática do governo de Jair Bolsonaro, prestando especial atenção ao pensamento de Olavo de Carvalho. Na contextualização que a autora realizou se pode advertir que essa construção irracionalista se assenta na construção de processos concretos da realidade social que são analisados por Carvalho, desde uma perspectiva que se apresenta como opositora e destruidora da hegemonia comunista e fazendo um uso sistemático de redes sociais e canais de informações tradicionais. Ou seja, se trata de uma manipulação racional de irracionalidade, por meio da paranoia e da produção de fantasmas. Assim, os movimentos conspirativos, embriagados por temporalidades messiânicas e causalidades ocultas, propõem um “reordenamento”, prometem clareza e compreensão onde antes só havia opacidade e confusão; esperança, futuro e protagonismo onde antes só havia consternação, ceticismo e impotência. Em tempos de crise, e o neoliberalismo é um grande produtor de crises, se abrem as oportunidades para as saídas autoritárias que promovam a ordem como meio para conquistar a paz social ilusória, especialmente nas sociedades que não trabalharam eficazmente a memória e a história para combater o autoritarismo.

Neste ponto podemos vincular o artigo de João Francisco Teixeira Amaro da Silva e seu estudo das dimensões textuais e estilísticas presentes na narrativa negacionista do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra em “A Verdade Sufocada: história que a esquerda não quer que o Brasil conheça”, utilizando os mecanismos tropológicos propostos por Hayden White. O autor considera que se pode extrair da estrutura temporal negacionista uma perspectiva centrada na compreensão de que o tempo histórico opera de maneira determinista, fatalista e homogênea que estabelece, no pensamento do repressor convertido a escritor, uma sequência ininterrupta e linear de fenômenos e diretamente relacionados a ameaça comunista desde a década de 1920, ou seja, desde a fundação do Partido Comunista Brasileiro (PCB) até a atualidade e estendendo-se até o futuro. Assim, Ustra desenvolveu sua trama a partir de uma relação conflitiva entre partes inconciliáveis e que estão obrigadas a enfrentar-se novamente no presente ou em um futuro próximo. A narrativa de Ustra, avalia, Amaro Silva, expõem um forte ressentimento com a historiografia que não reconheceu os esforços dos que “responderam o chamado da Pátria e arriscaram a vida com valentia lutando com honra e dignidade para extirpar o terrorismo de esquerda ”que ameaçava “a paz e a tranquilidade do Brasil”. Como se pode aferir, o negacionismo brasileiro – como o de outros países do conesul – busca elaborar e difundir um contra discurso alternativo ao dominante. Contudo, como foi questionado pelo historiador argentino Mario Ranalletti: como avaliar esta tentativa, se seu fundamento na negação da realidade como a implementação e aplicação do terrorismo de Estado com fins apologéticos? (RANALLETTI, 2009, p. 03). Neste sentido, a narrativa de Ustra, mais que negar, mas também sem revisar, busca legitimar (BAUER, 2019, p. 46), instalando a ideia de que o “herói trágico”, encarnado nas Forças Armadas, só cumpriu com sua missão. Uma vez cumprido esse dever, teria que velar para que a memória desta “comunidade” de militares seja salvaguardada e reposta na arena pública. Notoriamente, a pretensão é o oposto a toda pretensão “cientifica”, já que se limita a negação total e absoluta dos acontecimentos (ROUSSO, 2006, p. 81), se trata de uma sinédoque, um tropo, que desintegra e reconstrói as partes de um todo para alcançar uma verdade revelada. De tal modo, e como avaliou Odilon Caldeira Neto (2009. p. 1097-11230), o negacionismo surge como uma tentativa intolerante e depredadora da memória, uma prática de falsificação histórica que vai avançando gradualmente nos aspectos negados de um processo traumático e se encontram envolvidos em ódios racistas e ideológicos.

Eduardo dos Santos Chaves, analisou o impacto das marchas de mulheres contra o comunismo e seu impulso na legitimidade do golpe de Estado de 1964. O autor considera que essas marchas foram impulsionadas por jornalistas e empresas editoriais de mídias gráficas que buscavam desestabilizar João Goulart, cumprindo funções que consideraram legítimas ao defender seus interesses privados como se fossem interesses nacionais, violados pela “infiltração comunista” e pela inabilidade do governo em combate-las. De tal modo, os agentes de imprensa se transformaram em instrumentos ideológicos de mobilização de outros setores sociais, que, por sua vez, se sentiram parte da luta anticomunista. O autor considera que havia segmentos sociais médios que, influenciados pela imprensa, saíram à rua contra o governo. Mas também existiram organizações que colaboraram junto a imprensa colaborando para a produção de consensos. Um desses grupos foi o de mulheres de direita que, desde uma posição defensiva, chamavam a mobilizar-se pela pátria, a família e Deus para enfrentar o comunismo. Eram mulheres de setores médios e urbanos que se apresentavam como mulheres e esposas, conformes com seus afazeres domésticos que se obrigavam, em sua própria avaliação, a sair do lugar e defender a família. Muitas dessas mulheres mobilizadas eram praticantes católicas de características marcadamente conservadoras que não foram manipuladas, mas sim que se mobilizaram conscientemente e com posições tomadas e demandas políticas concretas. Por isso, a imprensa pode apresentar-se como porta voz da opinião pública e inclusive construir sua imagem política e ideológicas como neutra.

Na mesma linha de estudos com perspectiva de gênero se encontra o artigo de Silviana Fernandes Mariz, quem analisou a defesa do moralismo patriarcal e cristão por parte da nova direita desde 1980, mas principalmente no século XXI. A autora estabeleceu uma dupla função do moralismo: por um lado, é o que funda e alimenta a despolitização necessária para que todo o tipo de indivíduos e microideologias se combinem e orquestrem na mesma direção e, por outro lado, neutralize suas “diferenças ideológicas”, em particular suas diferenças de classe, que se ocupam por detrás do modelo de sociedade patriarcal, heteronormativa e racista. Estes grupos se alimentam de um profundo ódio aos direitos humanos por temor a que os privilégios das elites brasileiras finalmente sucumbam a transformação social, não só pela abertura do acesso às universidades e ao mercado de trabalho formal, mas também pelas expressões da diversidade de identidades de gênero. A consolidação desta “nova direita” chegou, inclusive, às universidades brasileiras que, se até a década de 2.000 se conservaram como território quase ileso de seus ataques, no tempo curto que nos leva a atualidade, a partir desse momento também começaram a sofrer ataques, especialmente no campo dos Estudo de Gênero que foi acusado de fabricar a “ideologia de gênero” e assim atentar contra a ordem. Esta expressão atual, manifesta seus princípios sem pudor: anticomunistas, ultracristãos, depolitizadores e patriarcais.

Juan Filipi Garcês, se atendo, também, a realidade brasileira contemporânea, estuda as bases materiais que, com matizes, sustentam os projetos direitistas. Seu estudo se centra na análise das estratégias utilizadas pelo Instituto Von Mises, com sua sede no Brasil, para defender o livre-mercado. Na análise das construções conceituais realizadas durante seus anos iniciais no Brasil, o autor avaliou que se trata de um grupo que pretende incidir socialmente por meio da tática conhecida como think thank – ainda que eles não se definam assim, por considerar que encarnam uma expressão superior – reivindicando a “sociedade livre”. Em sua exposição digital, ressaltam conceitos centrais, tais como: socialismo e libertarianismo. Socialismo, valorizado negativamente, faz alusão a presença abusiva do Estado e toda presença estatal é considerada arbitrária e despótica. Tanto é que o termo libertário, de raiz anarquista, é utilizado para definir uma sociedade sem Estado, mas defensora da propriedade privada e do livre mercado. De tal maneira, o mercado é apresentado como a única instância que pode conseguir o desenvolvimento da sociedade e do Estado, em troca, é o responsável de toda instabilidade capitalista.

Jefferson Rodrigues Barbosa avaliou a fundação Docentes pela Liberdade (DPL) como um novo instrumento de luta em busca do consenso conservador e liberal para a construção da hegemonia ao lado do governo de Jair Bolsonaro. Construído por intelectuais das novas direitas, este “aparelho privado de hegemonia” difusor de “materiais ideológicos”, preza pela mobilização da opinião pública em favor das propostas educativas do governo federal. Se trata, avalia o autor, de uma criação de militares e civis que acompanham Bolsonaro em sua batalha contra um sistema educativo plural e democrático. Esse programa reformista é acompanhado também por setores empresariais que impulsionam a privatização das instituições públicas de ensino e investigação.

Giuvane de Souza Klüppel, Matheus Mendanha Cruz e Luís Fernando Cerri, por sua parte, estudam a relação entre as e os jovens brasileiros, em idade escolar, e a nova direita brasileira. A análise quantitativa, com perspectiva de gênero, ainda que sem desconsiderar as diversidades, se realizou a partir dos dados brindados pelo “Projeto Residente: observatório das relações entre os jovens, a história e a política na América Latina” que tem entre seus objetivos buscar elementos para fundamentar as reflexões sobre a cultura histórica e a cultura política dos jovens latino-americanos e do qual os autores formam parte. De um total de 3.656 jovens observados, 2.314 estão localizados à esquerda do espectro político, e 796 são identificados com espectros direitistas (o pertencimento aos estratos sociais médio e baixo é significativo), e desse total, 52% tendem a formas direitistas autoritárias.1 É importante indicar que os jovens localizados à direita da bussola política expressam uma maior propensão a participar na política que os que foram situados à esquerda e manifestam um respeito importante por valores/instituições tradicionais: família, religião e nação. Os resultados de um estudo deste tipo, como advertem os autores, devem tomar-se com cautela para não fixar estereótipos preconcebidos ou identidades preestabelecidas.

As mesmas precauções evidenciam Mario Virgilio Santiago Jimenez e Denise de Jesús Cejudo Ramos. Em seu artigo, de claro perfil historiográfico, onde estudam o jornal Puño, publicado durante a primeira metade dos anos de 1960 pelo Movimento Universitário de Renovadora Orientação (MURO), agrupação católica anticomunista que operou durante mais de duas décadas na Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM). Os autores privilegiaram a análise das ideias e da cosmovisão da agrupação por cima do seu caráter de força e choque. O texto recorre às ideias de universidade, movimento estudantil e inimigo dos jovens do MURO, tanto quanto de suas estratégias para ter mais inserção na estudantada em geral. Para Jimenez e Cejudo, o Movimento é um posto avançado estudantil dos ativismos católico, radical e anticomunista, antes que uma agrupação estudantil de direita nascida ao calor da Guerra Fria e concebida para perseguir aos “universitários vermelhos”. Nesse sentido, os autores encontram uma matriz ideológica de longa vida na história do México que não escapa às tradicionais leituras conspirativas que também trabalha Castro Miranda neste mesmo dossiê. É muito interessante a recepção e a influência na política universitária da Revolução Cubana, considerada, inicialmente, em seu nacionalismo e no rápido desencanto e estremecimento que lhes produziu a aproximação com a URSS, que derivou na queima de fotos de Fidel Castro e enfrentamentos com agrupações de esquerda, mas também na organização de comitês pró-defesa da liberdade de cátedra e expressão, como os que denunciavam a infiltração comunista na Universidade e começavam a dar forma ao MURO, replicando experiências regionais exitosas. O acionar dos setores direitistas vinculados ao Partido Nacional e a setores conservadores católicos no Uruguai tomou outro caráter, já que esses setores – como aconteceu na Argentina2 – buscaram superar a situação impulsionando a criação de uma Universidade privada e católica que respondesse a crescente politização da universidade pública e as necessidades de transformações do sistema educativo. Tais questões podem ser estendidas ao artigo de Maria Eugenía Jung dando conta da forte impressão desenvolvimentista e da Guerra Fria que incentivavam a direita em suas reivindicações contra o monopólio estatal e a denúncia do avanço comunista na educação superior.

Em outro artigo, Laura Graciela Rodríguez estuda o pensamento sobre a universidade de sete intelectuais argentinos, notando a sobrevivência da Reforma Universitária como marco histórico negativo da dinâmica política para o catolicismo de extrema direita. Assim, e como se de camadas sucessivas se tratassem, foram rechaçando cada instância reformadora e a crescente participação estudantil. Em contraposição com essa universidade infiltrada de comunistas, os intelectuais analisados içaram a bandeira da verdadeira Universidade, filosófica, controladamente científica, sem participação estudantil e sem dependência estatal. Nesse sentido, consideravam que o modelo de universidade a seguir era o da Universidade Católica Argentina, nascida da luta pela verdade e constituída como uma universidade de elite e não de massas.

Por fim, queremos expressar que este dossiê foi incentivado pelo objetivo de debatermos questões epistemológicas e metodológicas subjacentes aos estudos das direitas. Além disso, uma questão sempre presente é a necessidade de definir o entendemos o que chamamos de direitas, sem estabelecer definições teleológicas ou rígidas no tempo longo que aborda este dossiê.

Notas

1 Os autores tomam por referência a distinção operacional a proposição de Norberto Bobbio para quem a esquerda se define pela propriedade da igualdade sobre a liberdade e a direita pela propriedade da liberdade sobre a igualdade (BOBBIO, 1996, p. 16).

2 Uma referência pode se encontrar no artigo de Laura Graciela Rodrigues, incluído nesse dossiê.

Referências

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BAUER, Caroline Silveira. La dictadura cívico-militar brasileña en los discursos de Jair Bolsonaro: usos del pasado y negacionismo. Relaciones Internacionales, La Plata, Argentina. v. 28, n. 57, p. 37-51, 2019.

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RANALLETTI, Mario. Apuntes sobre el negacionismo en Argentina. Uso político del pasado y reivindicación del terrorismo de Estado en la etapa post-1983. XII Jornadas Interescuelas/Departamentos de Historia. Departamento de Historia, Facultad de Humanidades y Centro Regional Universitario Bariloche. Universidad Nacional del Comahue, San Carlos de Bariloche, 2009.

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SAID, Edward. Cultura, identidad e historia. In: SCHRÖDER, Gerhart & BREUNINGER, Helga (comps.) Teoría de la cultura. FCE. Buenos Aires, 2001.


Organizadores

Olga Echeverría – Doctora en Historia, especializada en el estudio de los intelectuales de derecha, las subjetividades y las prácticas políticas, sociales, culturales y represivas de las derechas y dictaduras del siglo XX argentino; Investigadora Adjunta del CONICET y docente titular ordinaria de las carreras de Historia, Trabajo Social y Geografía de la Facultad de Ciencias Humanas (UNCPBA).  E-mail: [email protected]

Marcos Vinicius Ribeiro – Doutor em História pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE); docente do curso de História e do Programa de Pós-Graduação em História (PPGHIS) da Universidade Estadual de Goiás (UEGE-mail: [email protected]


Referências desta apresentação

ECHEVERRÍA, Olga; RIBEIRO, Marcos Vinicius. Editorial. Revista de História da UEG. Morrinhos, v.10, n.2, jul./dez. 2021. Acessar publicação original [DR]

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