A geografia do crime: violência nas Minas Setecentistas – ANASTASIA (VH)
ANASTASIA, Carla Maria Junho. A geografia do crime: violência nas Minas Setecentistas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005. Resenha de: JESUS, Alysson Luiz Freitas de. Varia História, Belo Horizonte, v.21, n.34, p. 523-525, jul., 2005.
A obra de Carla Anastasia, publicada pela Editora da UFMG, tem como principal objetivo analisar as relações de violência entre os habitantes da capitania das Minas Gerais, ao longo do século XVIII. A historiadora procura avaliar- a partir de textos em sua maioria já publicados em outras ocasiões- a imprevisibilidade da ordem social setecentista nas Minas, principalmente em regiões onde a administração da Coroa não conseguia penetrar. Nesse sentido, o conceito de violência e a análise das relações sociais no sertão acabam por se constituir o eixo protagonista das discussões da autora.
Na introdução do livro, Anastasia procura esclarecer o papel que os atos violentos tiveram no cotidiano da população das Minas. As autoridades responsáveis pela tentativa de ordenamento acreditavam que os tumultos, desordens e assassinatos eram resultados da ”má qualidade dos povos” que viviam na região. Aliava-se a isso a enorme presença de escravos e forros na região, que, sob a tica dos homens do poder, eram diretamente responsáveis pelos atos violentos e pela desordem. De acordo com as autoridades, esclarece Carla Anastasia, as Áreas mineradoras estavam infestadas de quantidade de negros, forros e mulatos, vagabundos sem oficio, que viviam com demasiada liberdade, prontos a praticarem latrocínios e mortes com graves prejuízos dos povos. (p.15) O cotidiano das Minas convivia, portanto, com uma tentativa de tornar previsível, o imprevisível.
Quanto aos negros, mais especificamente, fica claro para as autoridades o envolvimento constante em situações de violência na capitania. Um componente especial no universo criminoso dos negros eram as práticas mágicas, que, com isso, contribuíram para transformá-los nos principais inimigos dos brancos. Essa situação levava a população a nutrir um forte medo com relação aos negros, que, era tanto maior (o medo) quanto mais se adentrava por paragens desertas, sem lei e sem ordem, onde os desmandos uniam escravos, forros, brancos pobres e, muitas vezes, grandes proprietários e ministros do rei. (p.18)
A autora divide a sua obra em 4 partes. Na primeira, intitulada A construção dos espaços da violência, Anastasia recupera a formação da capitania, dedicando especial atenção a ocupação e (des)organização administrativa. Uma das características do setecentos mineiro foi o baixo grau de institucionalização política na capitania. As tentativas de se controlar os territórios de potentados e de mandos no sertão setecentista não surtiram resultados. Portanto, as estratégias levadas frente para normatizar a capitania esbarravam principalmente nessas Áreas, uma vez que os criminosos dificilmente eram encontrados. A partir da a autora passa a discutir a estrutura social e política dessas regiões, o que nos leva segunda parte do texto, intitulada “Terra de ninguém”.
Para Anastasia, a violência dos facinorosos nos sertões constitua zonas de non-droit (termo mantido em francês pela dificuldade de se traduzir com eficácia a expressão, ou seja, zonas nas quais a arbitrariedade era a regra, em que os direitos costumários e a justiça não eram reconhecidos pelos atores sociais, fossem autoridades, fossem vassalos, escravos ou forros.) p.23. Privilegia-se aqui o mandonismo nos sertões do rio das Mortes e do São Francisco. Nesse segundo, em especial, a ausência do poder da Coroa levou á consolidação dos territórios de mando. A violência, nesse sentido, se fazia presente principalmente nos sertões. Isso era propiciado, em grande parte, pelo cárter geográfico da região:
Dos perigos imaginários, contava-se a boca pequena. O sargento de milícias, Romão Fagundes do Amaral, afirmava que a mata do Senhor Bom Jesus dos Perdões, situada nos confins do termo da vila de São José, no sertão da comarca do Rio das Mortes, era bom refúgio para os criminosos, próprio por ser de mata geral com poucas estradas e mal abertas, propícias para mortais emboscadas. (p.20)
Além disso, o componente sobrenatural contribua na formação do imaginário que se fazia da generalização da violência nessas regiões, classificadas como locais “assombrados por criaturas estranhas e superlativas, onde se reproduzem caprichos sobrenaturais e foras malévolas”.
A terceira e quarta partes do livro (intituladas, respectivamente, “Rapina, contrabando e vendeta” e “Joaquim Manoel de Seixas Abranches – um ouvidor bem pouco ortodoxo”) têm como aspecto principal a análise da atuação de determinados bandos de facinorosos da Capitania, entre eles a famosa Quadrilha da Mantiqueira, o bando liderado pelo Mão de Luva e o do Sete Orelhas. Esses homens, criminosos por excelência, faziam da rapina o seu modo de vida. Na quarta parte, a autora examina o comportamento transgressor de uma autoridade, nos fornecendo mais instrumentos para se repensar a questão do público e do privado no Brasil.
Conforme esclarecemos anteriormente, a obra privilegia alguns aspectos que vêm merecendo especial atenção por parte dos estudiosos. No que diz respeito violência, diversos estudos vêm sendo produzidos- muitos deles sob orientação da própria autora, professora titular do Departamento de História da UFMG, contribuindo para um melhor entendimento das relações sociais de ruptura e tentativa de ordenamento das Minas. Por se tratar de uma obra que privilegia o estudo em regiões onde a violência se fazia mais presente, a autora objetiva demonstrar as raízes que possibilitaram essas manifestações, o que levou, nessas áreas, a uma não da legitimidade da violência. Talvez, depois da obra clássica de Maria Sylvia de Carvalho Franco, Homens Livres na Ordem Escravocrata, poucos estudiosos no Brasil trataram com tanta competência a temática do cotidiano da violência.
Por fim, um outro aspecto muito abordado na obra é a questão dos direitos costumeiros. Anastasia destaca o caráter das relações entre a Coroa e os seus vassalos, permeado por regras que deveriam ser respeitadas. Determinados limites eram impostos também ao poder metropolitano, assim como aos vassalos. Para a autora, “se é usual afirmar que os colonos várias vezes reagiram exacerbação do poder metropolitano, é menos comum chamar a atenção para o fato de que os mesmos se beneficiaram com os limites colocados a esse poder”. (p.23) Assim, quando essas regras eram desrespeitadas, rompia-se a ordem. Foi o que aconteceu em vários conflitos nas Minas setecentistas, entre os quais os Motins do São Francisco em 1736.
O livro não esgota como não poderia deixar de ser as análises sobre o cotidiano da violência nas Minas Gerais. Antes disso, o livro é uma contribuição fundamental para futuros estudos sobre a história da capitania, principalmente, acreditamos, no que se refere as análises da centúria posterior, o século XIX. Publicações como “A geografia do crime” são um estímulo para uma produção cada vez mais intensa da história das Minas, não apenas sobre o setecentos, mas, em especial, sobre o oitocentos, tão carente de estudos de qualidade como o livro de Carla Maria Junho Anastasia.
Alysson Luiz Freitas de Jesus – Mestrando em História pela Universidade Federal de Minas Gerais/UFMG. Bolsista CAPES. Professor do Departamento de História da Universidade Estadual de Montes Claros/UNIMONTES. E-mail: alfluiz@yahoo.com.br
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