A História de Homero a Santo Agostinho | François Hartog

Portanto, assim deve ser para mim o historiador: sem medo, incorruptível, livre, amigo da franqueza e da verdade; como diz o poeta cômico, alguém que chame os figos de figos e a gamela de gamela; alguém que não admita nem omita nada por ódio ou por amizade; que a ninguém poupe, nem respeite, nem humilhe; que seja juiz equânime, benevolente com todos até o ponto de não dar a um mais que o devido; estrangeiro nos livros, apátrida, autônomo, sem rei, não se preocupando com o que achará este ou aquele, mas dizendo o que se passou.

Esta orientação téorico-metodológica, esta introdução aos estudos históricos, embora tenha semelhança com o postulado estabelecido por Ranke no século XIX, aquele que instruía o historiador a “mostrar como algo realmente aconteceu” (wie es eigentlich gewesen 2), não pertence, no entanto, ao grande historiador alemão. Nem a W. Humboldt, ou a G. Monod, e muito menos a Langlois e Seignobos 3. Esta passagem é uma criação antiga, cuja data remonta ao ano 165 de nossa era, e foi escrita por Luciano de Samósata (119-175 d.C.), autor de numerosos tratados (diálogos, panfletos e sátiras), e da “única obra sobre a história que nos chegou da Antiguidade!”, explica François Hartog, na introdução que faz à coletânea, da qual também é o organizador e comentador, A história de Homero a Santo Agostinho 4.

A raridade de textos dedicados exclusivamente à história não torna, no entanto, impossível de se delinear “uma genealogia do conceito antigo de história” 5 . Com essa finalidade, Hartog, reuniu um conjunto de escritos históricos para através deles procurar entender como seus autores conceberam sua tarefa e apresentaram suas obras: “Quem fala, para quem, como e por quê? Mas também: como se escreveu a história?”. A interrogação tem o objetivo de lembrar “que tudo não se deu de uma só vez, com Heródoto e Tucídides, mas que, na construção continuada dessa tradição de escrita, foram feitas certas escolhas, produziram-se ‘esquecimentos’, desloca-mentos e também reformulações”, quer dizer, “de Heródoto a Luciano e a Santo Agostinho, passando por Cícero e Tito Lívio, a mesma palavra não designou sempre a mesma mercadoria” 6.

A História de Homero a Santo Agostinho, resultado de estudos e discussões realizadas por François Hartog no seu seminário, dedicado à Historiografia Antiga e Moderna, na École des Hautes Études en Sciences Sociales em Paris, procura, portanto, através de prefácios (“na verdade, nem todos os prefácios, nem só prefácios” 7 ) de obras desses autores antigos, gregos e romanos, apresentando além da tradução, os textos originais, em grego e latim, refletir sobre as proximidades e afastamentos da história enquanto discurso específico de outros gêneros literários tais como a filosofia, a poesia, a oratória ou a teologia.

Aos prefácios sucedem-se os apurados comentários de François Hartog sobre noções e conceitos centrais à análise da escrita histórica. Assim, em Homero e Hesíodo, cujos textos compõem o primeiro capítulo intitulado “Antes da história”, ele chama a atenção para a presença da musa, do hístor e do aedo, enquanto figuras importantes à fundamentação do saber histórico.

Em Demócrito, Hecateu de Mileto, Pausânias e, sobretudo, em Heródoto, prefácios do segundo capítulo nomeado de “A operação historiográfica”, são identificadas marcas e estruturas profundas que organizam a narrativa histórica, tais como: eu escrevo/grápho: “eu, Hecateu, escrevo (…)” 8 ; investigação/historía: investigação, Heródoto “fará dela a palavra-chave de todo seu empreendimento”, historía, formada a partir do verbo historeîn, derivada de hîstor (o que remete etimologicamente a ideîn, “ver”, e a (w)oida, “saber”): “de Heródoto de Halicarnasso, eis a exposição de sua historíe’: expressas no genitivo, essas primeiras palavras valem como uma assinatura inaugural daquele que vem apresentar em público, em seu próprio nome, sua pesquisa.” 9 ; significar/semaínein: “se Heródoto historeî, quer dizer que também semanínei, isto é: significa” 10 ; e enfim o par antônimo e assimétrico gregos/bárbaros : “o historiador ‘vê’, deve ver dos ‘dois’ lados e deve utilizar um princípio de seleção” 11 , resume Hartog.

Tucídides, que abre o terceiro capítulo “A história entre o presente e passado”, é aquele que impõe a essa primeira operação historiográfica grega uma “ruptura instauradora” por meio de sua História da Guerra do Peloponeso: não, não é possível se fazer história “científica” do passado, e autópsia, núcleo central, o “coração” segundo Hartog 12, da epistemologia tucidiana tenderia a confirmar essa perspectiva presentista. No entanto, o prefácio de Tucídides “ao mesmo tempo que se esforça em demonstrar que não se pode escrever uma história verdadeira da Grécia arcaica, vem a ser a tentativa mais bem acabada de propor algo neste sentido” 13. Nesse mesmo capítulo, encontramos ainda a resposta de Xenofonte a Tucídides; textos de Isócrates, que marcam o momento em que a historiografia se transforma em retórica, e que embora se considerasse um filósofo, foi tomado pela tradição não apenas como um historiador, mas um mestre “nefasto” da história; e a apresentação que Dionísio de Halicarnasso fez do historiador Teopompo, discípulo, segundo Cícero, do próprio Isócrates.

Do geral ao comum, a questão da história universal”, tema do quarto capítulo, retoma às considerações de Aristóteles sobre as relações e distinções entre a poesia e história desenvolvidas na Poética: “o historiador e o poeta não diferem por falar em metros ou sem eles, mas diferem nisto: no dizer um o que aconteceu, o outro o que poderia acontecer” 14. Segue-se ao texto do estagirita a resposta que Políbio lhe endereça com o objetivo de “demonstrar a superioridade da história sobre a tragédia” 15, que acaba por se constituir também na primeira formulação de uma história universal. Ainda no campo deste gênero de história, são recuperados o projeto de uma “geografia universal” de Estrabão, bem como a perspectiva de uma história universal de Diodoro da Sicília, através da sua Biblioteca Histórica: espécie de “síntese histórica”, ou um “livro único que engloba (e deveria substituir) os outros livros” 16.

No quinto capítulo, “O advogado e o historiador. A história como mestra da vida”, são reunidos textos de Cícero, Dionísio de Halicarnasso, Quintiliano, Plínio o Jovem, Salústio e de Plutarco. O glossário estabelecido por Hartog discute as seguintes noções: Anais: “a história não é mais que ‘a redação de anais’”, passagem escrita por Cícero que marca o “começo da historiografia romana” 17 ; Orator: “para Cícero, a história, para ser verdadeiramente escrita, para não ser simples narratio, necessita do orador” 18 ; Historia magistra vitae: formula sintetizada por Cícero que atravessará os séculos, a idéia de que a história é fornecedora de exemplos é-lhe, no entanto, anterior; Gloria: que para os autores latinos fazia brilhar seu objeto e também sua própria reputação, mas que para Plutarco era apenas emprestada pelos historiadores aos homens de ação 19 ; e, por último, Bioi/vidas, referências a um dos conceitos norteadores de as Vidas Paralelas de Plutarco 20 .

“Roma, grandeza exemplar do passado”, temática do sexto capítulo, tem por objetivo mostrar que apesar de a escrita da história manter-se ainda no domínio da historia magistra, ela perde o otimismo em relação ao presente e cede espaço ao pessimismo: “a história serve [então] para reencontrar a glória que foi o passado”, explica Hartog 21. Os textos dessa parte são de autoria, mais uma vez, de Dionísio de Halicarnasso, sobre as origens de Roma, de Tito Lívio e de Tácito.

O sétimo e último capítulo, “O historiador enquanto tal”, é dedicado inteiramente a Luciano de Samósata, também um dos responsáveis pela “transmissão do retrato de Tucídides como modelo do historiador” 22 . François Hartog adiciona aos fragmentos da obra de Luciano os comentários às concepções de “o historiador/ho syngrapheús”, e de “os fatos/tà érga” 23.

Por fim, o epílogo, intitulado “A história e a historiografia vistas de alhures”, congrega três olhares, assim descritos por Hartog: o de Flávio Josefo, o judeu que aderiu a Roma em 67 e se fez historiador da história judaica antiga e contemporânea; o de Eusébio de Cesaréia, bispo do IV século, e pioneiro da história da Igreja; e, finalmente, o de Santo Agostinho, que recapitula no início do V século, a história universal em uma teologia que é, até hoje, a sustentação da visão cristão da história. O glossário da conclusão compõe-se das seguintes noções: “as antiguidades/tà arkhaîa”; “discordância/diaphonîa da historiografia grega”; “Josefo historiador”; “sucessão/diadokhé; “florilégio”; “tábuas cronológicas”; “as duas cidade”; “Babilônia/Roma”; e por último a “historia”, em sua duas divisões em historia divina, a história sagrada, e a historia gentium, a história das nações ou pagã 24.

Aos prefácios, além dos comentários críticos, François Hartog acrescenta uma pequena notícia biográfica de cada autor, o que auxilia, em muito, o leitor a se situar e se familiarizar com eles nesta longue durée, reveladora de toda a complexidade e riqueza do conceito de história. Esta resenha não estaria completa sem uma nota acerca do trabalho de Jacyntho Lins Brandão, tradutor da presente obra. Com maestria e competência o professor de grego da Universidade Federal de Minas Gerais, contorna as dificuldades que o gesto de traduzir necessariamente implica (tal como já fizera na tradução de o Espelho de Heródoto, obra fundamental de François Hartog 25 ), e nos oferece um texto claro e distinto.

Notas

2 RANKE, L. von. «Geschichten der romanischen und germanischen Völker von 1494 bis 1514» (1824), in Sämmtliche Werke, vol. 33-34, p. VII.

3 HUMBOLDT, W. von. La tâche de l’historien (1821), Lille: Presses Universitaires de Lille, 1985; MONOD, G. «Du progrès des sciences historiques en France depuis le XVI siècle», in Revue Historique, n° 1, 1876, t. I, pp. 36-38. LANGLOIS, Ch.-V/SEIGNOBOS, Ch. Introduction aux études historiques (1898), Paris: Kimé, 1992.

4 HARTOG, François (org). A história de Homero a Santo Agostinho, Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2001. Traduzido para o português por Jacyntho Lins Brandão, p. 9.

5 Idem, p. 10.

6 Ibid.

7 Ibid.

8 HARTOG, François (org). A história de Homero a Santo Agostinho, idem, p. 50.

9 Idem, p. 51.

10 Idem, p. 52.

11 Idem, p. 53.

12 Idem, p. 98.

13 Idem, p. 11.

14 HARTOG, François (org). A história de Homero a Santo Agostinho, idem, p. 107.

15 Idem, p. 139.

16 Idem, p. 137.

17 Idem, p. 180.

18 Idem, p. 181.

19 Idem, p. 184.

20 Idem, p. 185.

21 Idem, p. 187.

22 HARTOG, François (org). A história de Homero a Santo Agostinho, idem, p. 223.

23 Idem, pp. 234-235.

24 Idem, pp. 264-271.

25 HARTOG, François. O espelho de Heródoto. Ensaio sobre a representação do outro. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1999. Tradução de Jacyntho Lins Brandão.


Resenhista

Temístocles Américo Corrêa Cézar – Professor do Departamento de História e PPG em História, IFCH/UFRGS. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

HARTOG, François (Org). A História de Homero a Santo Agostinho. Trad. Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: UFMG, 2001. Resenha de: CÉZAR, Temístocles Américo Corrêa. História em Revista. Pelotas, v.8, 2002. Acessar publicação original [DR]

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