A História do Embaixador Morgenthau: O Depoimento Pessoal sobre um dos Maiores Genocídios do Século XX | Henry Morgenthau

Dizer que de forma unitária ou coletiva o homem é capaz de crueldades não revela nenhuma novidade, praticamente toda a história humana é salpicada de lutas cruentas, guerras e genocídio desde o momento em que a pedra foi lascada e o ferro se transformou em seta. O livro de Kenneth Waltz, O Homem, o Estado e a Guerra, havia procurado investigar as reais motivações da natureza humana que conduzem o homem à violência, mas sem concluir, com fórmulas apressadas e mecânicas, como a de que o homem é necessariamente mal (Waltz, 2004). Isto porque se a humanidade produziu seres como Hitler, do outro lado, ela é também foi capaz de criar Martin Luther King e Tereza de Calcutá. No fundo, tudo depende da correlação de forças políticas e morais que conformam o mundo para a guerra e para paz.

A violência humana, expressada em guerras, genocídios e lutas gerais, nos acompanha até a atualidade, citemos Ruanda e ex-Iugoslávia nos anos 1990. Se a Primeira Guerra Mundial revelou o empenho “profissional” para aprimorar a morte por meio de invenções, já a Segunda o aprofundou e o sistematizou por intermédio de estudos e enquadramentos burocráticos que fez com que Hannah Arendt escrevesse livro para compreender como ocorreu a racionalidade da morte em mentes burocratizadas que cumpriram seu dever na eliminação de judeus em campos de concentração, como Adolf Eichmann (Arendt, 1999).

Quer dizer, se a Primeira Guerra trouxe a novidade do tanque, da metralhadora e das armas química, fazendo com que aumentasse grandemente o número de baixas e matando igualmente civis, não mais os distinguindo dos militares, a Segunda Guerra inaugurou a técnica de matar, usando burocracias sofisticadas para maximizar tempo e reduzir custos nas tarefas da solução final. Lembremos da máquina holerith, invenção norte-americana para racionalizar a morte na Alemanha. Assim, os campos de concentração não eram apenas locais de trabalho forçado; eram também “empresas” movidas à racionalidade, cujo objeto era a eficiência da eliminação.

Mas a história da crueldade humana, procurando anular culturas, etnias e religiões não se limita somente aos dois grandes conflitos armados que tiveram lugar entre 1914 e 1939. Independentemente dessas guerras alguns atos de uso sistemático da violência haviam ganhado vulto. Um dos mais notórios, embora pouco divulgado, foi o morticínio promovido pela colonização da Bélgica, em seu Congo, entre 1884 e 1962, entre a compra feita pelo rei Leopoldo, pela possa do imenso território, até a independência da ex-colônia. Mortandade que chegou a ponto de inspirar clássico da literatura mundial, Coração das Trevas que Josef Konrad escreveu para revelar a loucura a que podem chegar culturas que se qualificam como superiores e com direito de matar, como bem analisou Adam Hochschild.

O autor calcula na casa de vinte milhões o número de congoleses mortos pela administração belga em todo o período de colonização, sem falar nas amputações “pedagógicas” de mulheres e crianças, para que seus pais e maridos não desobedecessem a ordens dos capatazes, para que colhessem marfins. As mortes no Congo contribuíram para a primeira grande campanha no século XX com modernas preocupações sobre os direitos humanos (Hochschild, 1999).

Também pouco debatido e conhecido no Brasil, ao menos nos círculos interessados no assunto, foi o denominado genocídio armênio concretizado nos desdobramentos da Primeira Guerra Mundial. Apenas como ilustração na cidade de São Paulo há uma estação de metrô chamada Armênia onde há um monumento que recorda o ato de 1915 e chama atenção daqueles que usam o transporte, mas que se perguntam: afinal que questão foi aquela.

Para ajudar a compreender o que foi a questão que envolveu violência sistemática entre da Turquia sobre armênios, na época Império Otomano, a editora Paz e Terra lança o livro A História do Embaixador Morgenthau, de Henry Morgenthau, para situar o estudioso brasileiro naquele caso que merece ser conhecido, pois ele resultou das conformações internacionais das grandes potências. A Turquia eliminou fisicamente quase dois milhões de armênios com o intuito de reconstruir seu antigo poder e se filiar a uma conjugação liderada pela Alemanha.

O interessante é que o autor faz questões de demonstrar perfis psicológicos de algumas personalidades que tomaram parte naqueles acontecimentos para, daí, compreender as razões de certas decisões, mesmo as mais horrendas, como a da eliminação física dos armênios. Um dessas personagens, que muito impressionou Henry Morgenthau, foi o embaixador alemão em Constantinopla, atual Istambul. Wangenhein era homem de criação à moda prussiana, expressada pela busca da tenacidade e rigor nas decisões, bem como uma força incomensurável para concretizar objetivos. Neste caso, o objetivo era fazer da Turquia um satélite.

Fazer da Turquia um satélite alemão. Mas por quê? Porque seria uma artimanha para driblar a aliança franco- -russa, e britânica, de suma importância para barrar a escalada germânica ao sul da Europa, em uma região de interesse turco, mas há muito aquele país deixava de gozar exclusivo trânsito permitindo, assim, a Alemanha constituir seu império e seu pangermanismo. Lembremos que nos anos 1850 a Grã-Bretanha havia esparramado forças para, justamente, barrar a descida da Rússia a caminho de Dardanelos. Naquela época o czar era o inimigo, mas nos anos 1910 Moscou tinha planos divergentes tanto com a Alemanha quanto com a Áustria.

Se o embaixador Wangenhein possuía espírito aristocrático, visão que separava os homens não pela renda ou cultura, mas pelo sangue e determinação pela grande Alemanha, então, por que ele se intrometeria nos negócios turcos que, a exemplo do influente sócio, também se concebia como centro irradiador de um império poderoso, que remontasse ás glorias do passado? Fazer da Sérvia o início de um longo projeto, dominado-a para Berlim, era apenas o quebra-gelo para que Constantinopla também fizesse o mesmo, retomando seus antigos domínios, como o Egito. Por isso a dobradinha entre Alemanha e Turquia para esforços conjuntos de expansão.

Entender a Turquia à época do martírio armênio é também entender sua história moderna. Afinal, qual foi o papel desempenhado pelo denominado grupo Jovens Turcos? À primeira vista, tratava-se de líderes civis e militares que tiveram o intuito de reformar profundamente seu Estado, aceitando a democracia e o respeito a todas as culturas que habitavam o império.

Mas para Henry Morgenthau os Jovens Turcos em nada se diferenciavam de seus homólogos meio distantes no século XX, o partido nazista que pessoalmente tocara o autor por ser judeu. Ou, em outro diapasão, citemos o partido Baath que papel análogo teve no Iraque de Sadam Hussein e na Síria de Hafez Assad. O que foi o partido Baath senão uma plataforma modernizante que pleiteva até reforma agrária, mas que, no final das contas, relevou- -se violento e sistemático na perseguição de opositores? Aqui a guerra a outras etnias também não seria estranha, vide as populações de curdos espalhadas pelo Iraque e Turquia.

Mas o interessante é que Talaat, Enver e outros, que formavam a Comissão de União e Progresso, não governavam diretamente, ao menos no início de sua escalada. Um títere fazia o serviço de ser governante, um fantoche na mão deles. Tratava-se do sultão Maomé V, figura afável e educada, mas totalmente desprovido de poder e locomoção para influenciar decisões. Um sultão sem poder sendo que nos séculos XVI, XVII e XVIII o Império Otomano fora considerado despótico justamente porque o sultão não se enquadrava em nenhuma lei nem regra que o contrariasse, conforme se pode ler nas imagens escritas por Montesquieu (Montesquieu, 1992).

Os Jovens Turcos, sob as figuras de Talaat e Enver contribuíram para a derrocada do antigo sistema, de sultanato, carcomido pela ineficiência e atraso econômico. Contudo, qual não foi o comportamento daqueles seres a não ser tomar o Estado pelo pânico, pela corrupção e pela violência em nome do progresso. O resultado foi a eliminação e prisão de todos aqueles que não comungavam com a linha política do novo regime, tido por reformador. Daí só se podia imaginar, como fez o autor, que a perseguição a armênios seria apenas questão de tempo.

Ante-sala do massacre armênio. À medida que a Turquia ficava na alça de influência de Berlim, ainda mais por causa da Missão Alemã que fora responsável pela reorganização do exercito otomano em vista da guerra de 1914, mais Constantinopla se preparava para a violência desmedida. De início, aquela violência era apenas dirigida contra opositores da Comissão. Posteriormente, os assassinatos e exílio em massa passaram a flertar grupos étnicos não-turcos. E para Morgenthau a Alemanha seria, de alguma forma, a inspiração.

Isto porque a Alemanha exercia um tipo de deslocamento étnica para maximizar seu pangermanismo na Polônia e na Sérvia. Vendo isso Talaat et caterva procuraram fazer a mesma coisa nos territórios turcos, mas de maioria grega no Mar Egeu, expulsando helênicos e os assassinando. Por isso, se vê algo interessante para quem procura visão panorâmica das grandes questões políticas. O genocídio armênio não se deu isoladamente, ele foi resultado de um vislumbre de grandeza, tanto de Guilherme II quanto de seu seguidor Talaat.

O começo do genocídio, o restaurante Tokatlian’s. O autor defende a idéia de que fora o embaixador alemão que industriou uma tentativa de revolta da população mulçumana de todos os domínios franco-britânicos e russos contra seus dominantes – uma guerra santa para purgar o povo islâmico das humilhações centenárias promovidas pelo colonialismo. Tal revolta não vingou como imaginara o diplomata germânico. O objetivo era fazer com que as forças Aliadas se preocupassem em proteger seus domínios e, assim, despressurizasse as linhas de enfrentamento, permitindo tentos das potências centrais na Grande Guerra.

De fato, a revolta anticristã não vingou como desejado, mas para os armênios que habitavam a capital houve “efeito colateral. Afinal, os armênios são cristãos e tem valores culturais distintos dos otomanos e do Islamismo de forma geral. Para a legislação jurídico-islâmica da Turquia todos os povos do império tinham direito a professar suas crenças com liberdade, desde que pagassem financeiramente para isso. Por conseguinte, além do pecuniário, os cristãos tinham restrições na empregabilidade no serviço público e outros limites.

População mais letrada e com valores tradicionais os armênios desde a segunda metade do século XIX contestavam aquele tipo de segregação, exigindo igualdade de oportunidades. Nos primeiros anos do século XX aquelas manifestações nem sempre terminavam bem. Houve matança nos anos de 1904 e 1906, antes da chegada dos Jovens Turcos. Como fora frisado acima, os planos alemães para arquitetar uma guerra santa contra os Aliados, tento a Turquia como títere, não ocorreu, contudo a população sem instrução encontrou nos armênios um meio de extravasar seu descontentamento. A mira se deu no restaurante, sendo totalmente destruído.

Próximo passo, o 24 de abril de 1915. Sofrendo reveses na frente de combate junto à Rússia, afinal a Turquia entrara em guerra, a Comissão passou a imaginar que os armênios havia se aliado ao exercito do czar, pois historicamente a população armênia habitava território próximo à Rússia, na antiga Anatólia. Ressentidos pela derrota Constantinopla viu nos armênios a culpa de tudo. Dirigindo fogo contra os armênios o exercito turco imaginava fazer justiça. Diga-se de passagem, não apenas foram usadas armadas de fogo contra aquela população. Outros meio também foram usados, mas pensamos ser conveniente não mencioná-los.

Por outro lado, Talaat, Enver, e outros, não deixaram de tirar proveito daquelas ações de violência, pois encontraram nela um ponto-de-partida para seu programa de nacionalismo turco, “uma Turquia para os turcos”, foi o lema proferido pela Comissão, o ônus ficou com os armênios. Na busca de instituir uma Turquia pura, com viés de grande potência, lançou-se mão de aniquilar fisicamente os intelectuais armênios que viviam em Constantinopla. Muitos intelectuais armênios foram mortos para que a cultura e sofisticação política ali mesmo se findassem.

Por fim, ler o depoimento do embaixador Henry Morgenthau vale muito a pena. Não vale apenas só porque se trata de um dos poucos escritos que analisa profundamente a questão armênia; ele vai além disso. Ler suas memórias é também penetrar nos bastidores da Primeira Guerra Mundial, compreender as mentes que a desejavam, como a do Kaiser, do seu embaixador em Constantinopla e os dramas individuais da elite turca que migrava de um pólo a outro.

A escrita do ex-embaixador dos Estados Unidos no Império Otomano é elegante e atraente, embora o assunto seja cruel. Mas eis também outro objetivo de Henry Morgenthau, embora não tenha sido proposital, compreender a condição humana, fazer, de alguma forma, aquilo que Hannah Arendt fez, tentar compreender as razões mais profundas da alma que conduzem a tais atos irracionais, que negam toda a busca de se conceber a civilização. Não se trata de escrever algo para se vingar dos atos ignominiosos, mas para ter em mente aquilo que o homem é.

No final de tudo, Henry Morgenthau se mostrou um ser frustrado, um liberal que acreditava na razão. Admirador de Wilson, mostrou-se resignado pelos acontecimentos, pelo genocídio armênio e com o pesar de não ter podido fazer mais por aquele povo e por outros que dele precisava. Talvez este relevante livro venha, de alguma forma, continuar suas preocupações de justiça e democracia.

Referências

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: Um Retrato sobre a Banalidade do Mal. São Paulo, Cia das Letras, 1999.

HOCHSCHILD, Adam. O Fantasma do Rei Leopoldo: Uma História de Cobiça, Terror e Heroísmo na África Colonial. São Paulo, Cia das Letras, 1999.

MONTESQUIEU. O Espírito das Leis. São Paulo, Martins Fontes, 1992.

WALTZ, Kenneth. O Homem, O Estado e a Guerra. São Paulo, Martins Fontes, 2004.


Resenhista

José Alexandre Altahyde Hage – Doutor em Ciência Política pela Universidade de Campinas – Unicamp e professor do curso de Relações Internacionais da Fundação Armando Álvares Penteado – FAAP – São Paulo. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

MORGENTHAU, Henry. A História do Embaixador Morgenthau: O Depoimento Pessoal sobre um dos Maiores Genocídios do Século XX. São Paulo: Paz e Terra, 2010. Resenha de: HAGE, José Alexandre Altahyde.  Meridiano 47, v.12, n.126, p.50-53, jul./ago. 2011. Acessar publicação original [DR]

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