A história em questão: diálogos com a obra de Manoel Luiz Salgado Guimarães / História da Historiografia / 2013

O tempo entre o sopro e o apagar da vela

Paulo Leminski (1976, p. 23).

Which is to say, I guess, that in the end I come back to Aristotle’s insight

that history without poetry is inert, just as poetry without history is vapid

Hayden White (2010, p. XI).

Aquele “probleminha” que Aristóteles causou a alguns historiadores durante muito tempo em decorrência do que escreveu no capítulo IX de a Poética – a ideia de que a poesia era superior à história por tratar do geral enquanto a história tratava apenas do singular – não afetava muito nosso Manoel. Até onde sabemos nunca perdeu o sono por causa disso. Ao contrário, seus escritos e aulas revelavam um professor e pesquisador aberto às formas eruditas de existência, nas quais os gêneros ficcionais e a história conviviam, como se não tivessem sido afetadas pelo anátema aristotélico, muito menos pelo estatuto cientifico da história adquirido no século XIX.

Manoel Luiz Lima Salgado Guimarães (1952-2010) foi um exemplo de incentivo à diferença, respeito à pluralidade temática e à tolerância teórica. De muitos foi professor, e de muitos se tornou amigo. Daqueles com os quais podíamos contar. Desde o empréstimo de um livro difícil de se conseguir na biblioteca até o conselho solidário e maduro. Manoel foi um parceiro intelectual de primeira hora. Acima de tudo um acadêmico rigoroso, que acreditava na pesquisa e em certa capacidade regenerativa do conhecimento histórico. Expliquemos: Manoel acreditava que a história poderia ser útil para alguma coisa: para a crítica constante de sua própria evidência; e para a vida!

Nesse espírito de um pensamento histórico ainda capaz de se lançar para o futuro, alimentando-se da abertura que só o diálogo constante proporciona, o objetivo deste dossiê não é apresentar um “balanço” de sua diversificada produção – ainda que apontamentos a este respeito não estejam ausentes dos artigos –, mas antes potencializar, reverberando, os ecos de suas investigações e ensinamentos na historiografia contemporânea dedicada a pensar a historicidade da escrita da história e seus desdobramentos.

Dentro do escopo de reflexões que orientavam a produção de Manoel Salgado a respeito da escrita da história, duas questões, essencialmente interligadas, se mostravam centrais: as diferentes linguagens através das quais o passado podia se tornar visível ao presente, seus efeitos e constrangimentos, assim como a problematização do alcance e dos limites da crítica histórica erudita em suas diferentes tradições e configurações intelectuais. Estas duas questões se fazem aqui presentes nos artigos de dois de seus interlocutores: François Hartog e Francisco Murari Pires. O primeiro analisa certos desdobramentos na disciplina histórica da chamada virada linguística, centrando-se nas distintas apropriações – mediadas pela reação a Hayden White – que Ginzburg e Ricœur realizaram da obra aristotélica. Já o texto de Murari Pires concentra-se em desvelar as aporias e as artimanhas que se dissimulam nas considerações de Ginzburg a respeito do método histórico e seu caráter indiciário, também apontando para as apropriações que este realiza de autores (ou auctoritas) como Tucídides e Lorenzo Valla.

Na continuidade, essa reflexão sobre o papel e a historicidade das práticas eruditas na representação historiográfica se verticaliza na análise realizada por Pedro Afonso Cristóvão dos Santos acerca dos debates envolvendo as noções de plágio e de compilação no oitocentos brasileiro. A partir da sugestão de Manoel Salgado de seguir as diferentes disputas acerca do passado e dos modos de escrita da história, o autor resgata o confronto entre distintos protocolos envolvendo o modo de leitura e as formas de exposição dos documentos no texto historiográfico. Leitura que também é o foco do artigo de Fernando Nicolazzi, cuja cuidadosa análise do tratado setecentista de Claude-François Menestrier revela como a escrita da história, entendida em sua pluralidade, demanda, antecipa e só se realiza, efetivamente, no encontro com seus leitores.

Investigar a historicidade da escrita da história, como ensinou Manoel Salgado, implica problematizar a própria forma na qual essa investigação se realiza. É o que procura desenvolver Rodrigo Turin em seu ensaio, explorando o alcance da noção de “memória disciplinar”, cara a Manoel Salgado, para o entendimento dos constrangimentos sedimentados historicamente na história da historiografia. E pensar uma história da historiografia atenta aos diferentes dispositivos através dos quais o passado pode se fazer visível é o tema dos artigos de Francisco Régis Lopes Ramos, Aline Montenegro Magalhães e Márcia Naxara, seja investigando os usos e as formas da cultura material na elaboração de uma história nacional, seja resgatando os projetos de fundação de uma identidade histórica que, para além da dimensão textual, também se fazia valer da cartografia como forma de espacializar o tempo da nação.

As inquietações e reflexões que Manoel explorava em suas pesquisas não se limitavam a ser expressas em artigos e capítulos de livros, indicadores mais visíveis e valorizados hoje na produção acadêmica, mas também na experiência de sala de aula, de cuja intensidade os seus ex-alunos foram, ao mesmo tempo, testemunhas e cúmplices. Essa íntima relação que Manoel nutria entre a reflexão sobre a escrita da história e a experiência docente é explorada no artigo de Maria da Glória de Oliveira, abordando “o ensino da história nos desdobramentos de suas proposições teóricas sobre a historiografia”. Por fim, Durval Muniz relembra Manoel, justamente, como um “mestre do rigor”: atento, crítico e generoso nas diversas searas intelectuais nas quais transitou e cujos ecos, como os artigos aqui reunidos evidenciam, ainda reverberam fortemente em nosso meio acadêmico.

Finalmente, o dossiê guarda algo da fórmula através da qual Paulo Knauss e Temístocles Cezar, na apresentação à versão em português da tese de Manoel, procuraram sintetizar sua vida e obra: um historiador-viajante (2011). Mas comporta também um pouco do que Durval Muniz, em outro momento, chamou de “a amizade como método de trabalho historiográfico”. O certo é que entre o sopro e o apagar da vela o tempo de Manoel ficou entre nós.

Referências

GUIMARÃES, Manoel Salgado. Historiografia e Nação no Brasil (1838- 1857). Rio de Janeiro: EdUERJ, 2011.

LEMINSKI, Paulo. Quarenta clics em Curitiba (1976). In:______. Toda poesia. Companhia das Letras: São Paulo, 2013.

WHITE, Hayden. The fiction of narrative: essays on history, literature and theory (1957-2007). Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 2010.

Temístocles Cezar – Professor associado Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: [email protected]

Rodrigo Turin – Professor adjunto Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro [email protected]


CEZAR, Temístocles; TURIN, Rodrigo. Apresentação. História da Historiografia, Ouro Preto, v.6, n.13, dez., 2013. Acessar publicação original [DR]

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