A história na política, a política na história | Cecília H. S. Oliveira, Maria Lígia C. Prado, Maria de Lourdes M. Janotti

A renovação dos estudos sobre política em História, ou simplesmente da História Política, tem sido gradativamente traduzida em artigos e obras inovadoras, iluminados a partir de conceitos, métodos e abordagens diferenciados em relação à História factual e elitista criticada pelo Annales no início do século XX. Por meio de novas pesquisas, a “nova” historiografia política vem mostrando ao historiador o quão vasto e interdisciplinar é seu métier, integrando o tempo – com diferentes ritmos – e fontes das mais diversas origens à cultura, à economia e às sociedades. A coletânea de artigos1 reunida pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade de São Paulo e organizada por três importantes historiadoras é claramente uma manifestação desse quadro de ampliação dos estudos de história política, contendo quatorze artigos em cerca de 290 páginas. O conjunto propõe-se “interrogar os sentidos assumidos pela política na investigação histórica e na historiografia atual” (OLIVEIRA; PRADO; JANOTTI, p.10), dividindo a obra em seis partes, analisadas a seguir.

O primeiro item, nomeado “A dimensão política da história” se inicia com o artigo de mesmo nome de Márcia Mansor D’Alessio, com eco nas reflexões de Izabel A. Marson e de Maria Lígia C. Prado. As autoras procuram delinear o lócus da política através da perspectiva historiográfica, considerando a dissolução do conceito na sociedade contemporânea. Sua existência pressupõe a convivência com o elemento diferente e a aceitação da pluralidade, não a busca por hegemonia unilateral. Os atos terroristas e ações militares no Oriente Médio seriam um exemplo deste processo. Segundo Marson, paradoxalmente, vivemos num período análogo ao da Pax Romana, ou seja, de submissão às estruturas hegemônicas que criaram e criam obstáculos de longa duração (a la Braudel) que impedem o desenvolvimento pleno da política. Na mesma esteira, mas num outro tempo (o século XIX), Maria Lígia C. Prado analisa as noções de democracia e autoritarismo na América Latina, tradicionalmente associadas ao caudilhismo e ao militarismo. A autora critica a associação equívoca e de senso comum entre ditadura e América Latina, que exclui a democracia e demonstra que idéias semelhantes surgiram na Europa no mesmo período: a qualificação negativa seria fruto de construção histórica, impedindo o real estabelecimento da política na região.

O segundo tópico intitulado “Mediações e contradições da formação do Estado monárquico” realiza o debate historiográfico a partir de fontes jornalísticas, pessoais e de registros oficiais do Brasil de meados do século XIX, em estudos de Cecília Helena de S. Oliveira, Marisa Säenz Leme e Vera Lúcia N. Bittencourt. As autoras apresentam diferentes ritmos de temporalidade no período monárquico, a partir de diferentes escalas: a Constituição de 1824, a dinâmica poder central/local e a atuação individual, que se entrelaçavam através de um projeto de Estado sem forças políticas unívocas que pudessem sustentá-lo, muitas vezes contradizendo-o. Nesse sentido a Carta Constitucional retomava o debate e o projeto de 1815 2 , não criando algo inédito, ao passo que a disputa pelo poder entre centro e localidades demonstrava que o centralismo monárquico não era tão sólido, fenômeno visto nas províncias, onde indivíduos associavam-se e criticavam o poder político para ampliar influências e negócios.

Os dois artigos que compõem a terceira parte do livro tratam da “Prática política na imprensa e no Parlamento” e destacam como o Poder Legislativo passou a partir do final da década de 1860, a aglutinar tendências críticas às políticas monárquicas, fazendo germinar, por exemplo, o grupo republicano. Tendência paralela é a da imprensa paulistana, que no fim do período regencial criava e difundia identidades a determinadas classes sociais, num cenário de disputa por poder e influência política.

“O lugar do Império na memória política republicana”, quarto tópico da obra, volta suas atenções para a transição do regime político brasileiro da monarquia para a república: A Revolta da Armada e a Revolução Rio Grandense, ambas em 1893. Miguel Arias Neto questiona a Revolta da Armada como simples conspiração monarquista contra o regime republicano, argumentando que o “mito monarquista” foi construído com a finalidade de fragmentar o monarquismo a favor dos republicanos, que buscavam respaldo às recém-proclamadas instituições. Gunter Axt discute o conteúdo dos diários de membros do corpo administrativo da Província do Rio Grande oferecendo um panorama privilegiado das movimentações políticas entre exércitos e generais, locais onde republicanismo e monarquismo conviviam conflituosamente.

No tópico “O espaço político na administração republicana”, quinta parte do conjunto de seis, Suely Queiroz critica o desinteresse historiográfico pelo estudo da burocracia brasileira, algo que preencheria as lacunas sobre os vícios administrativos das cidades e sua evolução. Segundo a autora, a política do Império tendeu a fortalecer os poderes regionais e enfraquecer os poderes locais, adiando a concretização de projetos políticos bem definidos pelos governos estaduais. Na esteira varguista, Marcelo Squinca da Silva revisita os debates entre entreguistas e tupiniquins, nomes atribuídos aos grupos que, respectivamente, propunham um controle descentralizado e centralizado da produção de energia elétrica brasileira. O autor mostra como os referidos grupos interferiam na dinâmica estatal seja através do Poder Executivo ou do Poder Legislativo e o modo de alinhamento na dinâmica global do capitalismo dos países com desenvolvimento industrial tardio, como o Brasil.

Poder e cultura, o último tópico da obra, contêm artigo que analisa o papel do intelectual no Estado Novo, com enfoque em Mário de Andrade. Sidney Pires mostra que Mário de Andrade entendia a atuação do artista essencialmente ligada à participação política, dando à forma e ao conteúdo de seu trabalho caráter crítico e responsável. Em outras palavras, é a defesa da “verdade do artista”, portadora de critérios técnicos, necessidade de servir e paixão política.

Ao longo dos artigos percebe-se que a nova História Política ganha cada vez mais terreno em áreas afins. Trabalhos firmados sobre aparatos burocráticos e administrativos, diários, cartas e documentos oficiais representam mais que uma rentrée às fontes. A partir de novas metodologias e referenciais teóricos, a historiografia tende a se aprimorar e rever visões simplistas e sectárias. Esta ação não significa eliminação do que foi produzido, mas sua transformação a partir de releituras e críticas, atitudes indispensáveis aos historiadores contemporâneos. A história permeia a política e a política, a história? A obra acima é um sinal afirmativo para a questão.

Notas

1. Reúne trabalhos de pesquisa originalmente apresentados no Seminário Temático organizado pelo Grupo de Trabalho de História Política durante XVII Encontro da ANPUH, sediado na Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP – em 2004.

2. Data de elevação do Brasil à categoria de Reino Unido a Portugal e Algarves por D. João VI.

Gabriel Terra Pereira – Mestrando em História e Cultura Política, FHDSS/UNESP – Franca, sob orientação da Prof.ª Dr.ª Teresa Malatian e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).


OLIVEIRA, Cecília Helena de Salles; PRADO, Maria Lígia Coelho; JANOTTI, Maria de Lourdes Monaco (Orgs.). A história na política, a política na história. São Paulo: Alameda, 2006. Resenha de: PEREIRA, Gabriel Terra. Escritas. Palmas, v.1, 2008. Acessar publicação original [DR]

CLEMENTE Marcos E. de (Aut), Lampiões acesos: O cangaço na memória coletiva (T), Editora UFS (E), Fundação Oviêdo Teixeira (E), MANIERI Dagmar (Res), Escritas (Ecr), Cangaço, Memória Coletiva, América – Brasil, Séc. 20

Estamos na década de 1960 e mais especificamente às vésperas do golpe militar de 1964. Na tela do cinema, um público entusiasta assiste ao lançamento de Deus e o Diabo na terra do sol, de Glauber Rocha. Num dos episódios da saga glauberiana, Corisco é o rebelde cangaceiro:

O filme pretende demonstrar a inutilidade das tentativas anarcóides como a fuga “in alto”, isto é, para misticismo e/ou a violência pura, como forma de resolver um estado de crise perene. A tomada de consciência seria a única solução positiva (VALENTINETTI, 2002:59).

Como podemos notar neste caso específico, o imaginário do cangaço ultrapassou barreiras, ganhou o espaço fílmico, da literatura e outros espaços culturais. Mas ele continua presente num espaço bem especial: na memória coletiva do Nordeste brasileiro. É este objetivo que impulsiona a pesquisa de Marcos E. Clemente em sua mais recente obra: Lampiões Acesos: o cangaço na memória coletiva. Mas vamos logo admitir de início: a tarefa a que se propôs executar o historiador não é nada fácil. Nessa obra que originalmente foi tema de dissertação de mestrado da conceituada Unicamp, pretende-se enveredar pelo campo da memória coletiva. Numa linguagem fácil e até comovente, o autor nos conduz ao universo da caatinga e, especialmente, à prática do cangaço. Logo na Introdução, temos delineado o objeto da pesquisa:

Buscamos compreender como vem se constituindo uma memória coletiva do cangaço e ainda como vem se construindo imagens sociais de Lampião em diferentes localidades do sertão nordestino, especialmente na cidade de Paulo Afonso, sertão da Bahia (CLEMENTE, 2009:22).

O que mais surpreende, contudo, é que Marcos E. Clemente não fica restrito a esse objeto. O historiador incursiona ora pela história do cangaço, ora pelos mecanismos de constituição da memória coletiva. Nesse ponto, as dificuldades são inevitáveis. Tanto é assim que o próprio autor em diversas passagens adverte ao leitor sobre os limites da pesquisa. Temos, então, uma “apropriação e a constituição de diferentes memórias do cangaço” nas palavras de Marcos E. Clemente.

É por isso que o tema estudado é tão fascinante. Quais os elementos que contribuem para essa formação (a memória do cangaço)? Que jogo ideológico pode ser identificado nesse processo? Nesse contexto, a hipótese se configura dessa forma: “Haveria outra possibilidade de se construir uma história do cangaço fora dos cânones da historiografia oficial? (Ibid.:180) Ou seja, que tipo de história ocorre no seio da criação popular? Ao tomar essa perspectiva, o autor envereda pela empiria histórica. Pesquisa os folhetos de cordel, faz entrevistas, etc. Constata que ocorre um “processo de glorificação” de Lampião. Assim podemos perguntar: por que isto ocorre? Como explicar o fato – relatado por Marcos E. Clemente – de que a “popularidade” dos cangaceiros supera àquela das autoridades públicas da época? Daí o Capítulo 1, onde se estuda as localidades onde Lampião deixou sua imagem. Serra Talhada, Triunfo, Mossoró, Poço Redondo e Piranhas são visitadas com o intuito de se resgatar as várias facetas do “herói” nordestino. E como é tênue os limites entre história e imaginação popular. O autor, com todo cuidado, acompanha esses limites, enfatizando que não se trata só da figura de Lampião. A região (ele se refere a Mossoró) apresenta uma verdadeira “cultura do cangaço”.

Ainda perseguindo as respostas dessas indagações o autor nos apresenta um longo Capítulo 2 – Lampiões Acesos: memórias de Lampião entre os “cangaceiros” de Paulo Afonso (BA). Aqui, reconstroi-se a formação da cidade de Paulo Afonso. A questão é mostrar que a cidade, sede da CHESF, absorve os migrantes sertanejos de várias regiões. Mas o fato curioso é que a representação dos “cangaceiros” irá se realizar no Carnaval. Nesse Capítulo, o que temos é uma reconstituição detalhada da encenação dos “cangaceiros de Paulo Afonso”. Não só a prática histórico-cultural do grupo é pesquisada; o autor vai até as fontes dessa prática, como a tradição oral por exemplo. Por vezes, Marcos E. Clemente nos dá uma reflexão:

Dessa forma, vemos que o grupo utiliza o passado como uma referência permanente de sua consciência de mundo, como uma possibilidade de conservar em seu cotidiano as formas antigas e ainda como modelo diante de momentos de mudanças (Ibid.:86).

Com habilidade, o autor vai intercalando história do cangaço com o imaginário (criativo) do sertanejo. Em algumas passagens fica clara a postura do historiador: “Todo o registro de violência praticada pelos mesmos, inclusive por Lampião, contra pobres trabalhadores e suas famílias, (…) parece ter desaparecido da memória coletiva” (Ibid: 103). Assim, o pesquisador não se identifica com o objeto de pesquisa. Isso é importante porque quebra a empatia que vai se afirmando (no leitor) ante a figura de Lampião.

Nos relatos colhidos transparece a admiração do sertanejo frente ao espírito corajoso de Lampião. Para Deílson dos Santos, que representa um tenente da volante no grupo cultural “cangaceiros” de Paulo Afonso, Lampião “era um homem valente”. Tal afirmação também aparece em outros depoimentos. Isso resulta num processo de glorificação constatado pelo autor. Já no Capítulo 3 – Sentido atual dos lugares de memória do Cangaço -, Marcos E. Clemente aprofunda a leitura da representação cultural dos “cangaceiros” de Paulo Afonso. Trata-se de extrair as várias concepções do sertanejo através de sua prática cultural. A volante, por exemplo, é vista como parte integrante da “opressão dos poderosos”; já Lampião se insere numa rede (que o autor denomina de “instituição”) de representações em torno da “honra”, da “dignidade” e da “vingança”.

A glorificação em torno de Lampião nos permite produzir algumas idéias. Uma delas pode ser entendida como ausência da negatividade do princípio do mal. Sabemos através de J-P Vernant que os “deuses ctonianos e infernais” eram tão importantes para os gregos quanto os deuses celestes (2006:56). Assim, o princípio do mal pode ser entendido “não como instância mística e transcendente, mas como receptação da ordem simbólica, rapto, violação, receptação e malversação irônica da ordem simbólica” (BAUDRILLARD, 1996:161). Lampião não mais como violência alienada (Cf. Glauber Rocha), ou como violência que compartilha com os desmandos locais, mas como violência instauradora de uma nova representação do sertão. Essa perspectiva interpretativa não deve ser menosprezada; Bakhtin ensaiou algo semelhante ao conceber a “carnavalização” como nova visão de mundo, popular, criativa, longe do oficialismo nobre-cristão. Essa “perspectiva” também pode ser usada na feiticeira medieval de Jules Michelet, embora esta última seja concebida por ele como as origens da ciência moderna: “Foi esse perigo mágico que, enquanto se discutiam o sexo dos anjos, se agarrou às realidades, criou a química, a física, as matemáticas” (1990:240). Como afirma Michel Maffesoli, devemos reconhecer que o mal é uma expressão “forte e intangível da realidade” (2004:78). Então, ele traz essa instauração de um “possível” para tal realidade. Um pouco parecido com Castoriadis, Maffesoli afirma que essa força instauradora “alimenta-se do vazio” que existe por trás do instituído. A criação histórica não necessita, invariavelmente, estar associada a uma teoria. Que a “alma” popular tenha, então, seu instante criador (Lampião violento, mal, história concreta não-oficial) e seu instante institucional (glorificação, as festas populares, a memória coletica, etc.): eis a idéia.

Temos, portanto, diante de nós um importante trabalho sobre a memória coletiva do cangaço. Toda a riqueza histórica que trouxe à tona referente à constituição da memória (coletiva) abriu possibilidades para novas reflexões. E o próprio trabalho ensaia, muitas vezes, tal reflexão. Mas a prudência de Marcos E. Clemente num campo tão complexo transforma-se, no final, em virtude epistemológica.

Referências

BAUDRILLARD, Jean. As estratégias fatais. Tradução Ana M. Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.

CLEMENTE, Marcos E. de. Lampiões acesos: O cangaço na memória coletiva. São Cristóvão: Editora UFS; Aracaju: Fundação Oviêdo Teiveira, 2009.

MAFFESOLI, Michel. A parte do diabo. Tradução Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2004.

VALENTINETTI, Claudio M. Glauber, um olhar europeu. Rio de Janeiro: Instituto Lina Bo e P. Bardi, 2002.

VERNANT, Jean-Pierre. Mito e religião na Grécia antiga. Tradução Joana A. D’Avila Melo. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2006.

MICHELET, Jules. A feiticeira. Tradução Ronald Werneck. São Paulo: Círculo do Livro, 1990.

Dagmar Manieri – Graduado em História pela Universidade de São Paulo (USP); Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos (UFScar) e Professor Adjunto de História na Universidade Federal do Tocantins (UFT), campus de Araguaína.

CLEMENTE, Marcos E. de. Lampiões acesos: O cangaço na memória coletiva. São Cristóvão: Editora UFS; Aracaju: Fundação Oviêdo Teixeira, 2009. Resenha de: MANIERI, Dagmar. Cangaço e memória coletiva no nordeste brasileiro. Escritas. Palmas, v.2, 2010. Acessar publicação original [DR]

SANTOS Milton (Aut), Por uma outra globalização: do pensamento único a consciência universal (T), Record (E), DIAS Reges Sodré da Luz Silva (Res), BRITO Eliseu Pereira de (Res), Escritas (Ecr), Globalização, Pensamento Único, Consciência Universal

A obra por uma outra globalização tem como objetivo principal discutir o atual processo de globalização, abordando questões que trata da constituição da globalização; quais indivíduos de fato esta atual globalização beneficia? E se é possível dar novos rumos a atual história social no período da globalização?

O livro é organizado em seis partes, todas subdivididas em capítulos. A primeira parte é a introdução. Nesta compreende-se que o autor procurou introduzir os três eixos temáticos do livro, sendo a possibilidade de considerarmos pelo menos três mundos em um só: a Globalização como fábula; a Globalização como perversidade e a Globalização tal como pode ser, sendo esta pautada na solidariedade humana.

A segunda parte tem por título: A produção da Globalização. Nesta Santos norteia a partir do pressuposto de que tanto o estado das técnicas, como, o da política, são elementos fundamentais na análise da formação da globalização. Somente a partir destes, que foi possível a criação de condições para a produção da globalização. Assim, a produção da globalização atual se dá através dos seguintes fatores: a unicidade da técnica (conjunto de técnicas que se dá em todo o mundo), a convergência dos momentos (conhecimento instantâneo dos fatos), o motor único (mais valia global). Esta última possibilitada pela mundialização do produto, do dinheiro, da dívida e da informação.

Na terceira parte Santos apresenta a Globalização Perversa. A informação e o dinheiro são pontos categóricos da perversidade. A informação é usada por alguns poucos atores para interesses próprios, com o objetivo de manipular e convencer a população global de seus interesses. Para Santos esta informação é uma manipulação de convencimento dos atos perversos mascarados por uma cordialidade do mercado e do sistema financeiro global. Afinal, a informação que chega para as massas é totalmente manipulada, que em vez de esclarecer, confunde.

O dinheiro se torna nesse mundo perverso o centro de todas as ações. Sendo assim, o homem perde importantes valores de humanidade, por exemplo, a compaixão e a solidariedade. Atualmente, o outro é visto como um inimigo a ser vencido, um obstáculo. A competitividade tem como norma a guerra, e o consumo tornou-se um verdadeiro regime totalitário, o que Santos chamou de Globaritarismo. Paralelo a isso, aumenta a cada dia o desemprego, a pobreza, a fome, a infelicidade e o egoísmo das pessoas. De fato, é essa forma perversa de se realizar a globalização que atualmente existe e, não qualquer outra.

Na quarta parte, Santos aborda a questão do Território do Dinheiro e da Fragmentação, para tanto, avalia que as novas configurações territoriais estão intrinsecamente relacionadas ao dinheiro, “o dinheiro é, cada vez mais, um dado essencial para o uso do território” (SANTOS, 2010).

O dinheiro se tornou global e as ambições se manifestam em todas as regiões, a partir de macroatores. Com isso, o conteúdo do território escapa a regulação interna. Os territórios acabam por se tornarem fragmentos de exercício de poder, de absolvição de técnicas e desenvolvimento, ou seja, há territórios que se desenvolve e outros não. O referido autor apresenta o exemplo da agricultura moderna cientifizada que se desenvolveu no Brasil como caso de fragmentação territorial.

A quinta parte tem por título, Limites à Globalização Perversa, na qual há uma análise dos processos diversos, que nos autoriza a pensar nos atuais indícios de limites da globalização, para assim, termos a possibilidade de imaginar e buscar uma nova globalização. O autor explica que todo período histórico apresenta variáveis descendentes e variáveis ascendentes, que por vez levam a produção de um novo período. Dessa forma, ele observa que as variáveis ascendentes estão em alta no atual período. Verificando-se um desencanto com as técnicas a medida que o acesso a elas cada vez mais é menor. A racionalidade hegemônica se tornou totalitária e perdeu a razão, surgindo uma irracionalidade que nada mais é do que outra racionalidade, produzida e pensada pelos pobres, pois, estes últimos com a experiência da escassez, tomam consciência que existe uma dicotomia entre o discurso formal da atual globalização e, a realidade vivida no cotidiano.

O autor concluiu sua obra com otimismo, falando da Transição em Marcha. Observa os vários acontecimentos vindos, tanto por parte dos atores hegemônicos como também dos hegemonizados, que se constituem em um processo de transição da atual globalização para uma mais humana. Argumenta que os países do sul possuem um papel central na metamorfose da atual globalização, através da cultura popular.

Cabe ainda dizer que nessa parte final da obra, apresenta-se também uma pequena idealização do que seria essa nova globalização pensada por Santos. Nesse caso, todas as ações teriam como centro o homem, deixando este de ser visto como um “simples” objeto.

Conclui-se que, diante dos objetivos propostos pelo autor, este fez uma “boa” argumentação. Entende-se que introduziu uma base de discussão teórico/crítica para o momento em que vivemos, fazendo com que seus leitores possam ver o mundo de hoje sobre a lente da crítica e da possibilidade. A obra pode ser indicada para todos aqueles que queiram ver a realidade como ela é, e também, como muitas vezes pensamos que esta seja. Essa obra nos trás uma esperança de como deve e pode ser um novo mundo, criado a partir das realidades já existente.

Reges Sodré da Luz Silva Dias – Professor da Universidade Federal do Tocantins (UFT). E-mail: sodré@bol.com.br

Eliseu Pereira de Brito – Professor da Universidade Federal do Tocantins (UFT).  E-mail: [email protected]

SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único a consciência universal. 19ª Ed. Rio de Janeiro: Record, 2010. Resenha de: DIAS, Reges Sodré da Luz Silva; BRITO, Eliseu Pereira de. Escritas. Palmas, v.3, p. 135-137, 2011. Acessar publicação original [DR]

ARRUDA Eucidio Pimenta (Aut), Aprendizagens e Jogos Digitais (T), Alínea Editora (E), ALAMINO Caroline Antunes Martins (Res), PEREIRA Lara Rodrigues (Res), Escritas (Ecr), Aprendizagens, Jogos Digitais,

Eucidio Pimenta Arruda, doutor em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais, apresenta a obra Aprendizagens e Jogos Digitais como resultado de sua tese de doutorado. E, portanto inovadora em seu tema: o uso de jogos digitais na aprendizagem de História.

O autor em sua longa caminhada de pesquisa demonstra suas dificuldades em se embrenhar em um campo nem sempre convidativo de jogadores on-line. Para seu estudo de caso Arruda utilizou o jogo Age of Empires III, que se trata de um game de computador que se ambienta em cenários históricos, é um jogo de estratégias, que no caso na sua versão III, foi criada em 2005 pela empresa estadunidense Ensemble Studios. Como uma continuação das versões I e II, o Age of Empires III não se passa mais nas primeiras civilizações históricas, já se ambienta entre os séculos XVI e XIX.

A escolha do tema pelo autor se deu baseada na idéia de que os processos de aprendizagem ocorrem em todos os espaços fora da escola. E no caso do jogo de videogame escolhido, há uma caracterização maior para o debate sobre aprendizagens, em primeiro plano está evidente a influência dos jogos nos jovens adeptos a este tipo de lazer, visto que segundo Arruda os praticantes jogam uma média de 3 horas diárias. Em um segundo plano, o game escolhido representa uma evolução histórica das civilizações antigas e suas ligações com suas colônias que vão sendo conquistadas de acordo com o desempenho do jogador.

Em razão de ser uma temática ainda pouco explorada o próprio autor reconhece que para escrever sobre videogames e suas relações com o ensino de História é necessário ultrapassar alguns “pré” conceitos colocados pela academia, no entanto se torna uma temática atraente para leitores interessados em novas práticas de ensino de História.

Para ambientar o leitor Arruda optou por deixar a obra com várias características metodológicas de sua tese original de doutorado. Introduzindo a obra com um prefácio convidativo de sua orientadora Lana Mara de Castro Siman, que apresenta como o tema pode ser agradável e pensado por educadores e pensadores gerais da área do ensino de História mesmo que completamente leigos em games. Já Arrruda, descreve em sua apresentação a árdua tarefa de se inserir nesse mundo de games para poder acessar de forma ampla seu objeto de pesquisa, através de muitas horas de prática de jogo, individuais para aprendizagem do próprio jogo e coletivas o que possibilitou sua aproximação com os jogadores pesquisados.

A obra transcorre em seu primeiro capítulo com uma discussão mais geral sobre o universo de jogos digitais, refletindo sobre os conceitos de normas e regras virtuais, a ética e o compromisso estabelecido pelos próprios jogadores. A relação dos jogadores com o jogo e as relações humanas que esse estabelece, pois embora desenvolvidas num ambiente virtual ocorre de forma coletiva e em tempo real, dependendo de interações humanas, interações minimamente interessantes uma vez que estabelecem compromissos “morais” entre jogadores que não se conhecem pessoalmente, muitas vezes não se sabe nem seus verdadeiros nomes, pois todos se cadastram com seus nicknames, apelidos criados para cadastro no jogo. Após essa imersão no mundo virtual que o autor nos leva, ele volta a superfície finalizando o primeiro capítulo com análises mais distantes dos jogadores, mais técnicas e próximas dos historiadores discutindo o jogo na relação de tempo e espaço.

No segundo capítulo, Arruda trabalha mais profundamente os conceitos de aprendizagens de Vygotsky e suas possíveis aplicações aos jogos digitais. Também traz novamente a discussão de conceitos morais e éticos dentro dos ambientes de jogos, mas de forma específica à aprendizagens que se dão de forma aberta e gratuita nos ambientes virtuais, o compartilhamento de saberes no mundo dos jogos.

E depois de gerar muita ansiedade nos leitores leigos sobre jogos a obra aborda as características do jogo Age of Empire III, sua ligação com História e sua posição enquanto ferramenta de aprendizagem aberta e colaborativa.

Neste terceiro capítulo, Arruda trata das civilizações que podem ser escolhidas pelos jogadores entre Europa Ocidental, Europa Oriental, Árabe, Asiática e Pré – Colombianas, ressaltando que apesar do jogo ter características predominantes da História da Europa Ocidental e suas táticas de colonização e mercantilização, o jogo apresenta características muito variáveis visto que ele vai sendo construído também pelos seus jogadores que possuem a opção entre escolher mapas reais dessas civilizações, ou construir seus próprios mapas. As escolhas das civilizações vão estabelecer as características sociais, econômicas culturais e religiosas sem, no entanto ter muita diversidade nessas características para não afetar demasiadamente as estratégias do jogo.

Uma informação interessante que Arruda traz sobre o jogo é da noção de passagem do tempo sempre relacionada com a evolução humana, em que com o tempo e pesquisa no jogo as armaduras e as técnicas de agricultura são aprimoradas. Neste capítulo a obra também aborda uma descrição mais detalhada de cada “construção” possível no jogo, das formas de jogar e das “possíveis historiografias” do jogo, pois o jogo não tem a pretensão de ser fiel a eventos e épocas históricas.

No quarto capítulo, intitulado de Operações da Cognição Histórica e a Aprendizagem da História sobre possibilidades no mundo dos jogos digitais, há uma importante contribuição para as reflexões atuais no campo de Ensino da História, sobretudo quando se pensa nos processos de construção de consciência histórica. Pois o autor traz trechos de suas entrevistas com jogadores, em que eles revelam a preferência pelo jogo por ser um jogo cuja temática principal é a História e por acreditarem estar adquirindo conhecimento histórico através do jogo.

Ainda no quarto capítulo, Arruda constrói criticas sobre os temas abordados no primeiro capítulo, como o uso do tempo linear e progressivo. Mas reconhece que o jogo possibilita fazer construções de assimilação entre as relações de tempo e do sujeito inserido numa sociedade, fruto do seu tempo histórico.

Nas considerações finais da obra é abordado a relação do jogo como narrativa, segundo conceitos de Ricoeur, Arruda trabalha as narrativas históricas que permeiam o jogo sem a preocupação de terem fundamentos ficcionais.

E concluindo o livro, o autor trabalha com as principais contribuições que o uso do jogo Age of Empire III traz para os processos de aprendizagens histórica, que estão relacionadas com o uso de analogias, característica tão necessária e muitas vezes tão escassa nos usos conservadores do ensino de História. E um riquíssimo campo de conceitos históricos sendo “posto em prática” durante a ação de jogar.

A leitura total da obra Aprendizagens e Jogos Digitais possibilita repensarmos o uso de novas mídias e tecnologias no Ensino de História, dentro e fora das salas de aula, assim como ampliarmos os campos de construção de consciência histórica. É um convite para nos despirmos de preconceitos e reconhecermos o papel dos games na aprendizagem histórica dos jovens na atualidade.

Caroline Antunes Martins Alamino – Licenciada em História. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC.

Lara Rodrigues Pereira – Licenciada em História. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC.

ARRUDA, Eucidio Pimenta. Aprendizagens e Jogos Digitais. Campinas: Alínea Editora, 2011. Resenha de: ALAMINO, Caroline Antunes Martins; PEREIRA, Lara Rodrigues. Ensino de história e games: o uso de jogos digitais na aprendizagem de história.  Escritas. Palmas, v.4, p. 138-140, 2012. Acessar publicação original [DR]

GREENBLATT Stephen (Aut), Como Shakespeare se tornou Shakespeare (T), GARSCHAGEN Donaldson M. (Trad), GUERRA Renata (Trad), Companhia das Letras (E), MANIERI Dagmar (Res), Escritas (Ecr), William Shakespeare, Biografia, Europa – Inglaterra, Séc. 17

Stephen Greenblatt em Como Shakespeare se tornou Shakespeare realiza uma biografia bem particular. Ele não segue, como nas biografias tradicionais, a simples evolução da vida de seu personagem. Greenblatt, que comprova ser um bom conhecedor da Inglaterra de fins do século XVI, vai até as obras do dramaturgo inglês em busca de provas daquilo que mostrou ao leitor através da pesquisa histórica. Esse é um método interessante e que, a princípio, mostra como Shakespeare utilizou, na criação de suas peças, os elementos primordiais da vida social ao seu redor. Mas como em todo gênio do drama, Shakespeare não reproduz de forma direta os acontecimentos (históricos) que lhe tocaram de forma mais intensa.

Aqui, percebe-se o trabalho de Greenblatt: ele preenche esse hiato entre história concreta e criação cultural. Neste ponto, a obra Como Shakespeare se tornou Shakespeare é de grande valor. Isto porque prova que em Shakespeare não há só o gênio da criação cultural, mas também o atento observador do universo social de uma Inglaterra pré-revolução burguesa. Neste caso, vamos dar dois exemplos. Greenblatt explica dessa forma a criação de Hamlet:

Se Hamlet foi escrita não em 1600, e sim no início de 1601, então, como acreditam alguns especialistas, um desses choques pode ter sido a insurreição – para usar a palavra empregada por Brutus em Júlio César – que levou à execução do conde de Essex e, mais importante, à prisão do patrono de Shakespeare, amigo e talvez amante, o conde de Southampton (GREENBLATT, 2011: 315).

Assim, a execução do conde de Essex e a prisão do conde de Southampton motivaram a criação de Hamlet. Os homens ligados a Essex assediaram a companhia teatral de Shakespeare, os Homens do Lorde Camerlengo, para que encenassem a peça Henrique V, onde aparece (no final) um general que provoca uma comoção popular: “Quanta gente deixaria a cidade em paz, para recebê-lo”, dizia uma das personagens. Greenblatt afirma que esses acontecimentos de 1601 “com certeza deram um susto em Shakespeare”. De forma mais direta, a insurreição liderada por Laertes em Hamlet pode ter sido influenciada pelos acontecimentos que descrevemos acima. Mas a essência de Hamlet, Greenblatt não consegue descobrir: “Alguma coisa mais profunda devia estar acontecendo com Shakespeare, alguma coisa poderosa o bastante para evocar a representação sem precedentes de tormento interior” (Ibid.: 318).

O segundo exemplo é Macbeth. Em relação às bruxas que aparecem logo no início da peça, Greenblatt faz um estudo interessante da relação do rei Jaime I com o tema. Assim, Shakespeare queria despertar a atenção de seu protetor (o rei) para um tema que lhe era caro. Quanto ao enredo, Greenblatt afirma que Shakespeare quis associar o rei Jaime I a Banquo, o personagem honesto e decente. Como sabemos, a tentativa de Macbeth e sua maquiavélica esposa, fracassa. Na visão de Greenblatt, Shakespeare quis passar a seguinte mensagem ao seu rei:

(…) Jaime é louvado não por sua sabedoria, sua cultura ou seus dotes de estadista, mas pelo lugar que ocupa numa linha de legítima descendência que começa em seu nobre ancestral no passado distante e chega a seus filhos, que são a promessa de uma sucessão ininterrupta. Para dar destaque a esse ponto, Shakespeare precisou distorcer a verdade histórica. O pageant de Gwinn provavelmente tomou o seu Banquo da Crônica de Raphael Holinshed, livro que Shakespeare usou muito em suas peças históricas (Ibid.: 343).

Eis o estilo investigativo de Greenblatt. Neste caso, sua obra é de grande valor, não só porque mostra a interação do dramaturgo inglês com seu tempo histórico, mas também em relação à criação de suas obras.

Greenblatt divide sua biografia em temas. “O sonho de reabilitação”, no segundo capítulo, mostra a crise econômica que se abateu sobre a família dos Shakespeare e sua tentativa (com sucesso) de William se tornar um “cavalheiro”; “A vida nos subúrbios”, no sexto capítulo, mostra o universo das classes populares – que Shakespeare conhecia tão bem – na periferia de Londres, com suas casas de espetáculos, comércio, etc.

No terceiro capítulo, “O grande medo”, Greenblatt aborda o tema da religião na Inglaterra da época. É um capítulo importante porque nos joga no âmago dos conflitos ideológicos do período. Greenblatt mostra com propriedade o rígido modelo punitivo no reinado de Elizabeth. Neste ambiente de “medo” (segundo as próprias palavras do autor), investiga-se a opção religiosa de Shakespeare. E convenhamos: isto não é uma tarefa fácil. Através de Greenblatt, sabemos que a mãe do dramaturgo provinha de uma família intimamente ligada ao catolicismo; já seu pai, John Shakespeare, por motivos de adesão ao sistema político-religioso – já que tinha sido bailio, uma espécie de “prefeito” da pequena Stratford – tendia para o protestantismo anglicano. As investigações de Greenblatt o levaram à hipótese de que na juventude, Shakespeare professava o catolicismo: ao ser indicado como preceptor na residência do católico Cottam, o jovem era tido “como inteligente, razoavelmente culto, discreto e com certeza católico” (Ibid.: 103). Mas quando Greenblatt vai até as peças de Shakespeare, constata:

As peças de Shakespeare dão muitos indícios de duplicidade e ainda mais: em certos momentos – Hamlet é o maior exemplo disso –, o autor parece ser ao mesmo tempo católico, protestante e profundamente cético em relação a ambas as correntes (Ibid.: 102).

Portanto, Greenblatt não ousa lançar uma hipótese mais decisiva. Só sabe afirmar que há uma espécie de fé nas obras de Shakespeare, “porém certamente não era uma fé ligada à Igreja Católica ou à Igreja anglicana”.

No último capítulo, “O triunfo do cotidiano”, temos o retorno de Shakespeare a Stratford. É nesta época que ele escreve sua última peça, A tempestade (1611), já que Os dois nobres parentes, É tudo verdade e Cardênio foram compostas em parceria com John Fletcher. O que preocupa Greenblatt é saber como Shakespeare se sentia ao abandonar os palcos. Por isso ele vai até A tempestade sondar o que se passava no íntimo do dramaturgo. O que constata – principalmente ao seguir as pegadas de Próspero – é que na proximidade de sua aposentadoria, Shakespeare indicava “um sentimento de perda e de evolução pessoal ao mesmo tempo” (Ibid.: 383). Mas o que se evidencia neste capítulo é o fato de que Shakespeare termina seus últimos dias de vida como um “homem rico”. Mais do que ninguém – isto em relação ao mundo artístico – ele soube utilizar-se de seu talento para se tornar um homem de posses. Mas sua vida particular, o universo de seu relacionamento familiar em Stratford não era bom. Em seu testamento fica claro que ele amava muito sua filha Susanna; já sua esposa e sua outra filha, Judith, parecem não contar com muita simpatia do artista.

Nesta época uma grande decepção abalou a vida de Shakespeare. Thomas Quiney, esposo de Judith, engravida uma moça da cidade. O caso ganha fama; Quiney “confessou-se responsável ante o tribunal eclesiástico e foi condenado a um castigo público humilhante, que só conseguiu evitar mediante uma doação de cinco xelins aos pobres” (Ibid.: 393). Greenblatt afirma que este caso causou um grande impacto na vida do dramaturgo, já que após a queda de notoriedade de seu pai, ele fizera de tudo para ascender na escala social da pequena Stratford. É nesse sentido que na proximidade de sua morte, em abril de 1616, Shakespeare compartilhava de “uma sensação de tristeza e perda”.

Mas duas observações de ordem crítica podem ser endereçadas à obra de Greenblatt. A primeira se refere à análise das peças. Ele toma só como ponto de referência os elementos que afetaram a vida particular do gênio dramático. Greenblatt não supõe que o grande gênio apresenta uma visão mais ampla, um horizonte mais extenso da história. A título de exemplo, essa forma (positiva) de análise pode ser encontrada em Lukács. Vejamos o que o pensador húngaro nos diz de Shakespeare:

[Shakespeare] vê a vitória do humanismo, mas vê ao mesmo tempo que o novo mundo será o do domínio do dinheiro, da opressão e da exploração das massas, do egoísmo desenfreado, da ganância inescrupulosa, etc. (…) Shakespeare tem uma viva simpatia pessoal (…) pelos tipos da antiga nobreza, internamente ainda não problemática nem corrompida (LUKÀCS, 2011: 190).

Lukács percebe o fato de que todo gênio cultural possui uma intuição histórica refinada, profunda. Vale observar o fato de que Shakespeare não estava tão longe (ele morre em 1616) daquilo que Christopher Hill descreve:

Mais ou menos entre 1645 e 1653 procedeu-se na Inglaterra a uma enorme contestação, questionamento e reavaliação de tudo. Foram questionadas velhas instituições, velhas crenças, assim como velhos valores (HILL, 1991: 31).

A segunda observação crítica é a quase ausência de Nicolau Maquiavel na obra de Greenblatt. Nota-se que no Índice remissivo, o italiano aparece uma única vez, mesmo assim para mostrar que Shakespeare não tinha uma repulsa ante as classes populares, como ocorre em Maquiavel. Nesse sentido, podemos interrogar: Shakespeare conhecia a obra de Maquiavel? Como conceber a obra Macbeth sem uma leitura atenta de Maquiavel? Quando a esposa de Macbeth lhe diz, induzindo-o ao crime, que é impossível um gato comer um peixe sem sujar as patas, logo lembramos em Maquiavel: o mal pode ser o caminho para o bem (a formação de uma nova ordem civil).

Com certeza, essas duas observações acima não tiram o grande mérito de Greenblatt. Sua pesquisa é exaustiva. Ele nos apresenta em suas notas bibliográficas todo um balanço da extensa lista de biografias sobre Shakespeare; neste sentido, Greenblatt quis realizar uma espécie de biografia diversificada – assim como afirmamos no início dessa resenha – que jogasse luz tanto na vida, quanto na obra do gênio inglês.

A tradução de Donaldson Garschagen e Renata Guerra é boa, ao preservar o estilo fácil, coloquial, da escrita de Greenblatt. Além disso, os tradutores mantiveram o original em inglês (em nota de rodapé) de todas as citações das peças de Shakespeare.

Na obra Como Shakespeare se tornou Shakespeare notamos uma nova forma de biografia, onde a vida cultural do autor nos auxilia na compreensão de sua obra.

Referências

GREENBLATT, Stephen. Como Shakespeare se tornou Shakespeare. Tradução Donaldson M. Garschagen e Renata Guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

HILL, Christopher. O mundo de ponta-cabeça: ideias radicais durante a Revolução Inglesa de 1640. Tradução Renato J. Ribeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

LUKÁCS, György. O romance histórico. Tradução Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2011.

Dagmar Manieri – Graduado em História pela Universidade de São Paulo (USP); Mestre e Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). É Prof. Adjunto no Colegiado de História da Universidade Federal do Tocantins (UFT), campus de Araguaína.

GREENBLATT, Stephen. Como Shakespeare se tornou Shakespeare. Trad. Donaldson M. Garschagen e Renata Guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. Resenha de: MANIERI, Dagmar. Shakespeare: biografia e criação cultural. Escritas. Palmas, v.5, n.1, p. 145-150, 2013. Acessar publicação original [DR]

SILVA Elizete da (Org), SANTOS Lyndon de Araújo (Org), ALMEIDA Vasni de (Org), Fiel é a Palavra: Leituras Históricas dos Evangélicos Protestantes no Brasil (T), UEFS Editora (E), SILVA, Raylinn Barros da (Res), Escritas (Ecr), Igrejas Protestantes, Anglicanos, Luteranos, Presbiterianos, Batistas, Metodistas, Igrejas Congregacionais, Séc.19, América – Brasil

A obra organizada pelos historiadores Elizete da Silva, Lyndon de Araújo Santos e Vasni de Almeida traz à luz uma importante discussão histórica acerca da presença das, por assim dizer, igrejas protestantes reformadas no Brasil, mais nomeadamente anglicanas, luteranas, presbiterianas, batistas, metodistas e congregacionais.

A primeira contribuição das discussões colocadas pelos autores é a importância das leituras por eles levantadas sobre parcela importante da população brasileira – os evangélicos reformados – no campo historiográfico nacional. A renovação historiográfica que alcançou a academia a partir do século passado tem nessa referida obra seu fecundo sinal ao enfocar novos objetos: a religião e a religiosidade dos “crentes”; novos enfoques: a institucionalização das igrejas; e novas preocupações: as questões de gênero, a mídia, a educação.

Os estudos sobre as nossas religiões, nossas religiosidades e, sobretudo um mergulho histórico para entender a institucionalização das denominações cristãs reformadas no Brasil vêm contribuir de forma significativa para a formação de nossa história cultural e religiosa. Ao propor, através da abordagem da obra, um enfoque na formação dessas instituições, os autores nos brindam com um novo olhar sobre a presença protestante no Brasil.

Os autores localizaram o século XIX como o recorte histórico de uma presença mais sistemática das diversas denominações cristãs no país. Importante é, para o leitor, compreender que esse século em matéria de história foi crucial para a configuração de um novo modelo de país e de sociedade que estava nascendo a partir dos primeiros momentos de um Brasil que recebia a corte portuguesa e anos mais tarde proclamava a sua independência.

É de signo positivo constatar que esse momento da história do Brasil, localizado pelos autores em suas investigações históricas, que coincide com a institucionalização das denominações evangélicas no país, evidencia a configuração de uma nova realidade econômica: a questão comercial com a formação de uma burguesia que aspirava novas oportunidades de negócio, novos interesses, novas formas de perceber o mundo a sua volta.

A realidade brasileira do século XIX em diante – tempo histórico abordado pelos autores – traz também uma nova configuração política nacional. A formação do Estado Nação mesmo tendo ainda na cultura católica luso-brasileira, seu grande referencial religioso demonstrou que a hegemonia da igreja de Roma, enquanto religião já não era tão hegemônica, assim, os evangélicos reformados já estavam se espalhando por todo o país, uma realidade nova que somada à urbanização por qual passava a sociedade brasileira na época, favoreceu a expansão religiosa.

Entre as contribuições da referida obra, consideramos o fato da mesma dar ênfase ao chamado pluralismo evangélico nacional. Enxergar não um protestantismo, mas protestantismos. A pluralidade religiosa nacional no aspecto evangélico, seja ele reformado – enfoque da obra – como neopentecostal, abre inúmeros campos de análise e de pesquisa de caráter histórico devido à diversidade de igrejas, de visões de mundo, de culturas e de modos de vida das populações crentes.

A abordagem proposta pela obra a partir de uma análise dos evangélicos reformados, mas sem deixar de lado a preocupação de localizá-los dentro de um universo bem mais amplo de cristãos, coloca – por esse não simples motivo – a discussão num patamar de importância para a historiografia que aborda as relações igreja-sociedade na história do país, historiografia não menos importante no nosso ponto de vista não proscrita em termos de importância teórica e metodológica de abordagem da história de nossa sociedade.

Desligar-se dos paradigmas de abordagem dos protestantes no Brasil, que em outros trabalhos sempre deram enfoque nas conhecidas “ondas”, nas já sedimentadas “classificações”, e as já saturadas “terminologias” para enquadrar esses ou outros temas relacionados às igrejas protestantes é outro sinal significativo de uma nova concepção historiográfica, de uma nova história da presença dos crentes no Brasil, novos referenciais que estão bem presentes na escrita da obra aqui resenhada.

Reafirmamos a importância de destacar a preocupação dos autores com a questão referente à diversidade religiosa brasileira, mesmo em se tratando do campo protestante-evangélico e este último, de forma especial, por se tratar do tema em debate na obra. A dimensão dos religiosos não católicos no Brasil não permite que desprezemos esse tipo de preocupação, pois se assim não fosse, a discussão cairia facilmente nas armadilhas que as generalizações conceituais costumam fazer, ao enquadrar, por exemplo, a igreja protestante como se fosse uma igreja homogênea, coisa que está mais claro que nunca que não o é.

Consideramos ainda observar o esforço da obra em não desconectar as questões relativas à presença protestante no Brasil com a sua raiz histórica, ou seja, a reforma luterana do início do século XVI. Observar as origens e os antecedentes históricos das novas religiões é importante do ponto de vista histórico pela necessidade da localização espacial e temporal dos acontecimentos que são na verdade a base de toda revolução religiosa que alcançou todo o ocidente católico a partir das ideais de Lutero, essas ideias aqui chegaram e estão na base da formação de uma nova realidade religiosa nacional.

Nomeamos como a grande justificativa para a leitura da obra a necessidade que nossa sociedade tem de compreender a grande presença protestante e evangélica em toda a estrutura da vida brasileira. Se o início do século XIX é marcado pela presença mais sistemática e o início da organização das igrejas cristãs não católicas no Brasil, o que é mostrado pelos autores, no século XX e XXI há uma verdadeira presença dos evangélicos em toda a estrutura social do país através de atuações na área da educação, da saúde, de obras assistenciais, para além é claro, da igreja enquanto templos religiosos que aglutinam e reúnem fiéis.

Na primeira parte da obra, os autores dão enfoque à institucionalização das igrejas no país. Anglicanos, Luteranos, Congregacionais, Presbiterianos, Metodistas e Batistas construíram seus alicerces históricos de formação de suas comunidades a partir de uma nova visão de mundo, de homem, de sociedade e de país. A institucionalização das igrejas é a preocupação dos autores, entender e discutir do ponto de vista histórico os evangélicos reformados em suas trajetórias históricas traz um panorama novo para nossa historiografia e abre novos interesses para pesquisas futuras dentro da temática ora exposta.

Na segunda parte, a obra propõe a discussão sobre os novos temas no campo religioso nacional na seara evangélica, que são a questão da mídia e as problemáticas em relação à questão de gênero dentro do universo das igrejas pesquisadas pelos seus autores. A necessidade de compreensão da relação das igrejas com o fenômeno da mídia nacional em todas as suas dimensões favorece a abertura de novas preocupações de pesquisa para a compreensão do fenômeno religioso nacional que, somada ao debate sobre as questões de gênero, nos ajuda a entender os novos horizontes que as pesquisas acerca das religiões favorecem.

Julgamos importante observar algumas lacunas que a obra deixa, mas que em nada tira o seu mérito e importância. Historicizar e questionar a presença das igrejas evangélicas e de seus membros com enfoque no campo político se mostra de fundamental importância para a compreensão do universo dos evangélicos no país, e de quebra nos apresentaria novos horizontes de compreensão desse fenômeno de crescimento dos mesmos na estrutura social brasileira. Acredito que depois de um longo período quase sem se fazer notar, a relação dos evangélicos com a política, como também a atual participação dos mesmos no debate político nacional, vem gradativamente influenciando os caminhos da nossa democracia.

Consideramos que se no século XIX ocorreu a institucionalização dos evangélicos no Brasil como é apresentado pela obra, o final do século XX em diante vem nos mostrando o que consideramos a institucionalização política dos crentes. A presença da chamada bancada evangélica no congresso nacional é testemunha dessa nova institucionalização que diferentemente do século XIX, não ocorre mais na forma de templos e conquista de fiéis para seus cultos, mas agora na forma de influência direta na configuração política nacional, o que, a nosso ver, mostraria o interesse das igrejas evangélicas na formação de uma agenda moral para o país, por meio do debate político.

Outro silêncio da obra consiste na problematização da relação entre a presença dos evangélicos no país e a sua relação com os valores contemporâneos de nossa sociedade. Em que medida a cultura evangélica estaria atuando e configurando a formação de novos valores morais, sociais e educacionais e é claro para além dos valores religiosos dos próprios crentes. Como estaria a cultura nacional brasileira já caracterizada pela personalidade do homem que ama o futebol, vive o seu carnaval, suas festas populares diante do avanço de uma identidade religiosa evangélica tão presente no nosso cotidiano e que segundo o último censo já totaliza 22% da população brasileira ou 42 milhões de pessoas?

Fica ainda uma reflexão: porque os evangélicos protestantes – em análise na obra – pelos mesmos dados do IBGE citados anteriormente somam apenas 6 milhões de seguidores, ou seja, 14% do universo atual de evangélicos nacionais? Sendo anglicanos, luteranos, presbiterianos, batistas, metodistas e congregacionais, os primeiros a se institucionalizarem no país a partir do século XIX, porque hoje em números gerais são parcela minoritária comparada aos números totais do universo evangélico no país?

Mas para além dessas lacunas e silêncios que apontamos na discussão da obra, ou seja, a preocupação com o fenômeno da presença dos evangélicos no debate político nacional, na configuração da democracia, da relação da cultura evangélica com a cultura nacional, os valores contemporâneos nacionais e, por último, a localização das igrejas, objeto de análise do livro em relação ao quantitativo dos outros evangélicos no Brasil, consideramos no todo, a obra como uma leitura de importância ímpar para o debate historiográfico em torno do universo religioso nacional de uma forma geral, e particular, em se tratando do universo evangélico.

Às vésperas das comemorações dos 500 anos da reforma protestante no mundo ocidental, acontecimento que quebrou com o monopólio do catolicismo, a obra Fiel é a Palavra: Leituras Históricas dos Evangélicos Protestantes no Brasil, em matéria religiosa, contribui de forma harmoniosa, conceitual, metodológica e histórica para a compreensão de um Brasil que não é mais tão católico como foi nos seus três primeiros séculos após a primeira chegada portuguesa. Atualmente, não há mais como conceber qualquer pesquisa séria que se proponha em entender a sociedade brasileira sem se pensar na presença evangélica no país.

Finalmente, julgamos importante observar que a obra aqui resenhada abre a possibilidade de renovação da história da presença protestante no Brasil, como citamos no início do texto, por se distanciar da já amplamente discutida, presença protestante através das conhecidas ondas, classificações e terminologias. Por esse motivo inicial e que foi também preocupação dos autores, a obra pode contribuir para a formação de uma nova história da presença dos evangélicos protestantes no Brasil e por consequência, contribuir com a formação de uma consciência histórica e cultural do leitor, que sobre essa obra venha a se debruçar.

Raylinn Barros da Silva – Graduado em História e Pós-Graduado em Ensino de História pela UFT (Universidade Federal do Tocantins). Tem experiência na História Regional, atuando principalmente na pesquisa dos temas que envolvem a Igreja Católica e suas missões religiosas no extremo norte de Goiás, hoje Tocantins.

SILVA, Elizete da; SANTOS, Lyndon de Araújo; ALMEIDA, Vasni de (Orgs.). Fiel é a Palavra: Leituras Históricas dos Evangélicos Protestantes no Brasil. Feira de Santana: UEFS Editora, 2011. Resenha de: SILVA, Raylinn Barros da. Escritas. Palmas, v.5, n.1, p. 151-156, 2013. Acessar publicação original [DR]

SCAVINO Dardo (Aut), Rebeldes y confabulados: narraciones de la política argentina (T), Eterna Cadencia Editora (E), MINELLI Ivia (Res), Escritas (Ecr), História Política, América – Argentina, Séc. 19-20

Filósofo, crítico literário e ensaísta, o argentino Dardo Scavino (1964 -) é atualmente professor de História Cultural Latino-americana na Université de Versailles, cargo que assumiu após ter exercido docência na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidad de Buenos Aires até 1993. Sua formação acadêmica também se deu nessa instituição portenha, o que explica o grande envolvimento do autor com os assuntos políticos de sua terra natal até os dias atuais. Em seus últimos trabalhos, tem se dedicado a pensar os relatos políticos produzidos ao longo da história republicana na Argentina, analisando a gramática que os compuseram e, ainda, compõem.

A motivação do autor para tal abordagem teria surgido das imediações do Bicentenário de independência do país, momento em que Scavino percebe haver uma mudança de época por conta dos interrogantes que surgiram sobre alguns valores políticos e morais sustentados pelo Kirchnerismo. O autor começou a construir sua análise com a publicação de Narraciones de la independência: arqueología de un fervor contradictorio (2010), livro em que recupera discursos sobre a identidade política argentina por meio dos mais diversos tipos de fontes entre o século XVI e XX. Esta obra acabou conhecendo sua continuidade no lançamento de Rebeldes y confabulados: narraciones de la política argentina (2012), uma obra mais conceitual cujo propósito é percorrer os mais diversos relatos políticos perfilados no contexto do século XX a fim de sublinhar as formas narrativas que definem os atuais enunciados da política Argentina. As abordagens perpassam desde o radicalismo de Hipólito Yrigoyen (1852- 1933) até o desenvolvimentismo de Carlos Menem (1930 -).

A questão central de Rebeldes y confabulados é estabelecer a gramática que sustenta os relatos políticos argentinos, entendendo por “gramática” as regras discursivas que erigem a fórmula narrativa da nação. Pela observação de textos que apresentam em seu teor diretrizes políticas – podendo ser eles literários ou pronunciamentos oficiais –, Scavino define três dimensões que compõem essa fórmula: a denúncia, sendo primordial o anúncio do adversário nas narrativas políticas; a exortação, o reconhecimento de dimensões inconciliáveis que geram o enfrentamento e a mudança de ideais; e, por fim, a promessa, reveladora de novas perspectivas à definição da política. Dessa forma, entender o nome do livro é alcançar a proposta analítica do autor: todos os relatos políticos propõem-se transgressores frente à ordem estabelecida (rebeldes), independentemente de suas filiações esquerdistas ou direitistas, e acabam comprometendo seus adeptos (confabulados) através da introjeção de uma fábula política.

“Não há povos sem narrações, não há povos sem memória”. Por meio dessa máxima, Scavino indica ser o homem um animal político pela sua condição de “narrador definitivo”, uma vez que a linguagem é precursora de qualquer ação política. O autor define, assim, a força material presente nas narrativas políticas, revelando ser o passado das guerras pela independência argentina um mito revisitado inúmeras vezes para a elaboração de novos sentidos discursivos. Essa fábula do “hoje como ontem” esteve presente nas narrativas da rebelião armada promovida pelo partido da União Cívica Radical, sob a liderança de Yrigoyen, em prol da democracia (1905-1930), assim como esteve em Leopoldo Lugones, que defendeu na “repetição da espada” a forma de suprimir uma anarquia democrática sentenciada pela presença de uma plebe ultramarina (1924), e também na Revolução Argentina organizada por Juan Carlos Onganía, de teor anticomunista, que resgatava a Tradição Militar iniciada pelo processo de independência para reaver a integridade nacional (1967). Valendo-se de uma leitura de Freud, Scavino indica que recordar é reelaborar um relato e, portanto, um mesmo evento passado pode assumir distintos lugares narrativos.

Essa metodologia de análise de Scavino pode também ser observada na própria disposição que edifica sua obra. Composto por vinte e três capítulos que apresentam certa independência entre eles, o livro segue um ritmo cronológico, não tão rigorosamente – de forma a permitir pequenos lampejos de raciocínios que se mostram como breves interlúdios –, mas sempre dentro de uma lógica sucessora de argumentos. Por exemplo, entre o já anunciado início do livro em torno da figura de Yrigoyen e o desfecho com a de Menem, outro grande nome que recebe destaque e, de certa forma, conecta os relatos políticos dessas personagens é o do General Perón, que em torno da sua figura ressignificou e enraizou importantes substantivos à gramática da narrativa política argentina.

O primeiro dos capítulos em que Scavino vai tratar de Juan Perón inicia-se com uma citação à obra de José Hernández, assim interpretando Martín Fierro: “los argentinos sean unidos porque esa es la ley primera”. Seguem as nomeações dos inimigos políticos e a interpretação do que seria uma má política após 1917 com o comunismo, o anarquismo, o liberalismo, sendo estes criadores de conflitos internos à sociedade e que desarticulariam a população como um todo. Por fim, configura-se o relato do fascismo. Nesse momento, Scavino vai sobrepor os discursos de Benito Mussolini (1926) e de Perón (1943) para encontrar a semelhança de suas gramáticas, sem reduzir a experiência argentina a uma cópia do modelo totalitário europeu. Ambos não falavam em nome de partidos, mas de organizações corporativas para impedir a radicalização interna de opostos; assim como ambos defendiam a intervenção estatal, para suplantar a democracia burguesa que dividia a população. E essas ideias seriam apenas rearranjos dos sentidos de povo – que só com Perón assumiriam as distintas significações de “argentinos”, trabalhadores e descamisados, sugerindo-nos um afunilamento do relato político com o passar do tempo –, de inimigos – primeiramente os estrangeiros e, depois, os que não se encaixavam nas demais classificações de povo – e de propostas políticas – a partir de 1946 Perón deixaria, por exemplo, o uniforme militar para vestir a casaca civil!

Essa é a forma como são apresentadas as narrativas políticas em suas particularidades, antagonismos e porosidades internas, e também em sua relação com alguns nomes clássicos de filósofos e políticos estrangeiros. Podemos destacar três grandes nomes que perpassam todo o livro: León Bloy (1846-1817), Ernest Hello (1825-1885), Mao Tsé-Tung (1893-1876), os quais apresentam fábulas bastante perceptíveis nos relatos argentinos. O primeiro, talvez o mais recuperado, foi um ensaísta francês que apontou a singularidade premente em certos homens por aceitar o seu destino e ou vocação. O segundo, filósofo de convicções católicas, definiu as oposições entre o “homem conservador” (que nada a favor da correnteza, medíocre) e o “homem superior” (que questiona e age, rebelde). E, por fim, o terceiro, grande referência política do século XX, concretizou em seu relato político a perspectiva de que o povo deve se unir frente a um inimigo comum, que foi lido na Argentina ora como a ditadura, ora como a democracia, ora como o neoliberalismo.

Definindo a sua própria obra como um “breviário”, Scavino buscou meios de mostrar a ausência de uma política ideal, pois todas as formas políticas representariam a conjugação das ideias de dominação e libertação. E, num mesmo sentido, tais ideias não podem ser confundidas com objetivos políticos, porque elas não são nada mais do que leis indissociáveis da gramática política. A corriqueira expressão basta! não carrega significados em si mesma, mas apenas se nela buscarmos a subjetivação e a convicção que sintetiza.

Nesse ponto, é possível marcar a importância da obra de Dardo Scavino para uma reflexão historiográfica. Embora Rebeldes y confabulados centre-se nas disputas pela gramática da política, seguindo um tom ensaístico e livre das prerrogativas contextuais, o autor não ignora que a própria linguagem tem uma problemática histórica, sendo importante observar que cada aliança, forjada dentro de um relato, tem sua distinta historicidade e temporalidade. O cuidado de Scavino é desarticular uma leitura simplista de seu argumento, alertando para o fato de que entender as narrativas políticas sob os mesmos traços formais não implica concluir que elas sejam equivalentes. Com essa breve acuidade historiográfica, Rebeldes y confabulados reestabelece um diálogo difícil e complexo do discurso como documento da análise histórica:

Las revelaciones históricas no dependen tanto de los documentos encontrados como de las metamorfosis en las perspectivas de interpretación. Y algo semejante ocurre con un sujeto: no es la súbita rememoración de algún episodio olvidado lo que le permite cuestionar su fantasma fundamental o su mito individual; es porque logra cuestionar ese relato que accede a vastas porciones reprimidas del pasado (2012: 243).

Sendo um dos objetivos a desconstrução de uma “origem” das políticas, o livro foca nos usos que se faz desses conceitos ou, como define o próprio autor, de palavras como revolução, violência, democracia, ditadura. Nesse sentido, a linguagem ganha destaque, convidando os historiadores a repensar o limite de “manipulação” dos homens sobre seus discursos, tendo em vista que já estamos possuídos por algumas destas narrativas.

Por fim, a atualidade efervescente desse livro nos sugere inúmeros outros questionamentos históricos sobre, inclusive, as atuais narrativas políticas que têm surgido nos movimentos brasileiros pelas ruas e redes sociais do país e, talvez aceitando o movimento analítico proposto por Dardo Scavino em seu livro, poderíamos pensá-las segundo uma pluralidade de interesses e de origens que correspondem a antigas e reiteradas fábulas políticas. A gramática do “Hoje como ontem”, “o povo heterogêneo unido por um inimigo comum” ou do simples “basta!” está pululando na nova cartilha política do brasileiro, embora não indiquem um inimigo comum. Sejam os discursos contra a ditadura, ou seja por ela, seria interessante desenvolvermos no Brasil uma reflexão como fez Scavino sobre a Argentina; ou melhor, não podemos nos valer da gramática de nossos vizinhos para pensar as nossas próprias posições políticas? Isso defenderia Rebeldes y confabulados, definindo que para o sujeito político só há uma única história.

Ivia Minelli – Mestre em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Atualmente faz parte do programa de doutoramento dessa mesma instituição. E-mail: [email protected]

SCAVINO, Dardo. Rebeldes y confabulados: narraciones de la política argentina. Buenos Aires: Eterna Cadencia Editora, 2012. Resenha de: MINELLI, Ivia. Escritas. Palmas, v.5, n.2, p. 199-203, 2013. Acessar publicação original [DR]

NICOLAU Jairo (Aut), Eleições no Brasil: do Império aos dias atuais (T), Zahar (E), VIEIRA Martha Victor (Res), Escritas (Ecr), História das Eleições, América – Brasil, Séc. 19-21

A trajetória dos direitos no Brasil, desde a independência até a atualidade, tem sido abordada de diferentes maneiras por historiadores e cientistas políticos e sociais. No entanto, a maioria desses estudos dedica-se a analisar determinadas épocas históricas ou temas específicos, que se relacionam às mais variadas etapas concernentes ao desenvolvimento da cidadania na sociedade brasileira. De modo geral, no tocante ao Império, tem-se estudado a relação entre direito e escravidão, a atuação da imprensa, como espaço de crítica e manifestação da opinião pública, o acesso à justiça por parte dos imigrantes, as diferenças entre cidadania ativa e passiva, o antilusitanismo, os conflitos entre o Estado, grandes proprietários e indígenas, entre outros assuntos que tocam direta ou indiretamente na questão dos direitos individuais e coletivos. Já sobre a República, encontramos trabalhos que tratam do coronelismo, da abstenção e das fraudes eleitorais, da conquista dos direitos sociais, do trabalhismo, da cidadania regulada pelo Estado, da inserção da mulher no mercado de trabalho, da luta pela reforma agrária, da cidadania limitada dos governos militares, e mais recentemente, do movimento das chamadas minorias e dos excluídos da história. Após 1980, com a redemocratização, a luta pelos direitos dos cidadãos passou a ser um dos temas mais visitados pelos intelectuais brasileiros. São os homens do presente, cobrando contas dos homens do passado, visando construir um novo futuro.

Apesar da abundância de estudos sobre cidadania, são poucas as pesquisas e publicações que se propõem a analisar recortes temporais mais longos e temas mais abrangentes. A recém lançada obra do cientista político Jairo Nicolau, Eleições no Brasil: Do Império aos dias atuais, contrariando as tendências acadêmicas especializantes, que realizam investigações cada vez mais recortadas no tempo e espaço, vem contribuir, significativamente, para compreendermos um pouco melhor o caminho político-institucional percorrido para que o Brasil pudesse passar das eleições do pelouro para urnas eletrônicas, do voto aberto ao secreto, das eleições feitas à “bico de pena” à biometria.

A temporalidade histórica abarcada nesse livro se assemelha à analisada por José Murilo de Carvalho em Cidadania no Brasil: o longo caminho (2001). No entanto, enquanto Carvalho, dialogando com a classificação teórica feita por T. H. Marshall (1967), discute os avanços e retrocessos dos direitos civis, políticos e sociais no Brasil, de 1822 a década de 1990, Jairo Nicolau, de forma concisa, foca seu olhar na história do voto, tomando como fonte privilegiada as legislações que tratam dessa matéria. Além das leis, o autor se utiliza também das estatísticas eleitorais e das avaliações sobre as eleições feitas pelos atores dos respectivos períodos históricos abordados. A intenção de Nicolau, conforme disposto na introdução, é atualizar e ampliar as informações do seu livro anterior História do Voto no Brasil, publicado em 2002.

A obra é dividida em seis capítulos, que tratam das eleições utilizando recortes cronológicos tradicionalmente conhecidos: Brasil Império (1824-1889), a Primeira República (1889-1930), dos anos de 1930 ao Estado Novo (1930-1945), do fim do Estado Novo ao golpe militar (1945-1964), regime militar (1964-1985) e, por fim, a democracia atual (1985- 2012). Todos os capítulos possuem os seguintes temas: quadro geral das eleições, o direito de voto, o alistamento e o número de eleitores e o processo de votação e as fraudes. A estratégia de trabalhar os mesmos temas nos vários capítulos confere ao livro um caráter mais didático e ajuda o leitor a compreender e comparar as diferenças existentes nos processos eleitorais ocorridos ao longo da história do Brasil.

A narrativa começa realizando uma pequena e necessária explicação sobre as eleições na época colonial, quando ocorriam as chamadas eleições do pelouro, referência a bola de cera onde era colocada a lista contendo os nomes dos candidatos que iriam ocupar anualmente o cargo de governança no âmbito das câmaras municipais. As eleições na Colônia ocorriam a cada três anos. Não obstante as restrições para participação no processo eleitoral existentes neste período, a prática do voto gerou um aprendizado político e conferiu legitimidade e representatividade para as câmaras, as quais possuíam várias atribuições administrativas. É interessante lembrar que foi por meio das câmaras municipais que as elites locais brasileiras puderam manifestar sua adesão ao Príncipe Regente D. Pedro I, em 1822, para que se efetivasse a independência do País.

Após comentar sinteticamente o processo eleitoral da Colônia, Jairo Nicolau disserta sobre as legislações, estatísticas, avaliações e oscilações que envolveram a trajetória do voto no Brasil. Ao tratar do panorama geral das eleições, o autor apresenta as principais características de cada período histórico analisado, fazendo comparações com outros países, apresentando gráficos e quadros que sintetizam e ilustram o processo de votação.

No que se refere ao direito ao voto, Nicolau destaca que uma marca importante da votação no Império eram as eleições indiretas e a exigência de uma renda mínima para ser eleitor. Em 1881, a Lei Saraiva introduziu as eleições diretas. Já em 1882, uma nova lei acrescentou a exigência da alfabetização para os indivíduos que almejassem votar. A Constituição de 1891 manteve a eleição direta e a proibição dos analfabetos de votarem, mas, por outro lado, aboliu o censo econômico. Os analfabetos só tiveram direito ao voto a partir da Emenda Constitucional n. 25 de 1985, que colocou a idade como critério único para definir quem poderia ser considerado eleitor. Tanto as legislações do Império quanto a primeira Constituição republicana não fazem menção ao voto feminino, pois, como afirma Nicolau, “a política era pensada como uma atividade eminentemente masculina.” O direito de voto às mulheres só foi conferido pelo Código Eleitoral de 1932. Até 1965, porém, eram obrigadas a votar apenas as mulheres que exercessem algum ofício remunerado.

Além de mencionar quem eram os atores com o direito de votar, o autor levanta importantes informações sobre a questão do alistamento eleitoral, que sofreu inúmeras modificações ao longo do tempo. Pela Carta de 1824, o reconhecimento dos eleitores era feito pela mesa eleitoral no dia da votação. A partir de 1842, era realizado um cadastro prévio pelas Juntas locais. Com a Lei Saraiva de 1881, o alistamento eleitoral passou a ser solicitado individualmente. Nos primórdios da era republicana, os Estados tinham certa autonomia para fazerem suas próprias legislações e isso incluía às eleições. A lei mais significativa da primeira República foi a Rosa e Silva de 1904, que buscou unificar o alistamento eleitoral, obrigando todo brasileiro a requerer a sua inclusão como eleitor. O Código Eleitoral de 1932 e a lei Agamenon (1945) mantiveram o alistamento nas mãos do eleitor e ex-officio. O Código de 1950 extinguiu o alistamento ex-officio, exigindo que o eleitor fizesse seu registro no cartório eleitoral, conforme ocorre nos dias atuais.

Jairo Nicolau afirma que as estatísticas eleitorais sobre o Império e sobre as primeiras décadas da República são escassas. Um relatório governamental de 1875 aponta, contudo, que cerca de 13℅ da população livre votava. As leis de 1881 e 1882 mudaram a forma de alistamento e reduziu o número do eleitorado. Na primeira República, o número de eleitores girou em torno de 5℅. Durante o Estado Novo não houve eleições, mas, após 1946, um dado relevante destacado pelo autor, é que apesar das constantes mudanças políticas e institucionais o percentual de eleitores no Brasil foi crescendo, gradativamente, mesmo no período da ditadura militar. Em 1986, o TSE informatizou o cadastro de todos os eleitores em âmbito nacional. De acordo com dados da Justiça Eleitoral, em 1990, aproximadamente, 95℅ da população adulta votava no Brasil.

Outro tema destacado pelo autor são os sistemas eleitorais. No Brasil Império predominou as variações do sistema majoritário. Nas eleições de primeiro grau praticava-se a maioria simples. Já nas eleições de segundo grau ora optou-se pela maioria simples, ora pela maioria absoluta. O sistema de maioria simples, segundo Nicolau, era muito criticado pelas lideranças locais porque tendia a beneficiar as elites dominantes no âmbito provincial. O foco dos debates sobre sistema eleitoral residia na preocupação com a representação dos grupos minoritários. Ao longo da primeira República, geralmente, vigoraram versões diferentes do sistema majoritário, tendo-se o cuidado de incluir alguns procedimentos que garantissem a participação política da minoria. Com essa preocupação, a Lei Rosa e Silva criou o voto limitado e o voto cumulativo. O Código de 1932 implantou um sistema misto, que combinava aspectos proporcional e majoritário. O Código de 1935 e a Lei Agamenon adotaram o sistema proporcional. Com o golpe militar, foram realizadas eleições indiretas para o executivo e diretas para o legislativo. Contudo, o Código de 1965 manteve o sistema proporcional, que continua em vigor.

Ao descrever as variações dos sistemas eleitorais implantados no Brasil, um dado que chama a atenção do leitor é a forma como o autor explica, com detalhes, o cálculo eleitoral que era feito para a escolha dos representantes. Essa preocupação em exemplificar o enunciado é louvável e evidencia a intenção de Jairo Nicolau em se comunicar não somente com um público de especialistas, dotados de um repertório de leituras anteriores que os possibilitam compreender o interdiscurso que permeia alguns conceitos e expressões relacionadas ao processo eleitoral. De modo que aqueles que pouco ou nada sabem sobre sistema eleitoral têm nessa obra uma boa oportunidade de aprender.

Jairo Nicolau explicita que, em 190 anos de história, o processou de votação brasileiro sofreu transformações paulatinamente. A princípio, o voto era manifestado publicamente. Pelas disposições da Carta de 1824, os votantes deveriam trazer de sua residência uma lista pronta e assinada por ele contendo os nomes e a profissão dos candidatos escolhidos. Não havia inscrição prévia, nem necessidade de partido. A menção ao sigilo só passou a ser feita após 1840. A partir de 1842, com o alistamento prévio, já havia uma listagem de eleitores e as cédulas não precisavam ser assinadas. Em 1876, a legislação recomendava que as cédulas depositadas nas urnas fossem fechadas por todos os lados. Com a Lei Saraiva, apareceram as divisórias entre a mesa eleitoral e o local onde ficavam os eleitores. A cédula era colocada em envelope fechado na urna e o eleitor tinha que assinar uma lista de presença.

Não obstante as precauções das autoridades públicas, considera-se que, durante o Império e na Primeira República, as fraudes eram freqüentes. Fazia-se o uso de capangas, eleitores fantasmas (fósforos) e forjavam-se atas eleitorais (eleições a bico de pena). Com as determinações da Lei de 1904, além de votar o indivíduo deveria escrever na parte exterior do invólucro o cargo para o qual estava votando. O Código de 1932 instituiu a foto no título, criou um espaço privativo para votar, fundou a Justiça Eleitoral e decretou que as apurações deviam ser feitas pelos Tribunais Regionais Eleitorais. As disposições do Código de 1932 permitiam que os candidatos e partidos disponibilizassem cédulas aos eleitores. Procedimento esse que foi proibido pela Lei Agamenon e pelo Código de 1950. Segundo o autor, desde meados da década de 1940, as eleições se tornaram cada vez mais limpas. A criação da cédula oficial de votação, adotada desde 1955, contribuiu para reduzir as fraudes. Com a lei Agamenon os candidatos deveriam ser registrados pelos partidos ou alianças de partidos.

No período militar houve pequenas modificações no processo de votação, uma das novidades foi o bipartidarismo, a instituição do senador “biônico” e a criação da sublegenda, que permitia que um mesmo partido apresentasse mais de um nome para concorrer a determinado cargo. O pluripartidarismo retornou no início de 1980. Em 1986, um novo título, sem fotografia, foi adotado. Até início dos anos de 1990, a apuração das eleições podia durar vários dias e a ameaça de fraudes, embora mínima, ainda persistia. A partir de 1996, o TSE adotou a urna eletrônica. O Brasil é pioneiro em fazer uso de um processo de votação eletrônico. Atualmente, esse processo está sendo aperfeiçoado com a implantação da biometria, a qual, no entendimento de Nicolau, eliminará mais uma possibilidade de fraude nas eleições, pois um indivíduo não poderá mais driblar a mesa eleitoral e votar no lugar de outro.

A obra escrita por Nicolau é bastante descritiva, no sentido de não se ater às questões historiográficas, teóricas ou ideológicas. O foco do texto é analisar os dados contidos nas fontes selecionadas, comparar e apontar as diferenças nas eleições ocorridas desde a independência até os dias atuais. Contudo, o autor, com base nos dados coletados, faz algumas problematizações e traz explicações que são bastante pertinentes, um exemplo disso são as inferências feitas sobre o percentual do eleitorado em diferentes momentos históricos. Enfim, são vários os méritos desse livro. Particularmente, quero destacar a clareza e a objetividade da narrativa, que torna a obra de Jairo Nicolau de fácil leitura, seja para especialistas, professores da educação básica, estudantes, políticos profissionais e também pessoas comuns, portadoras ou não de curso superior, interessadas em conhecer melhor a história das eleições no Brasil.

Martha Victor Vieira – Doutora em História Social e Professora do Colegiado de História da Universidade Federal do Tocantins (UFT), Campus de Araguaína.

NICOLAU, Jairo. Eleições no Brasil: do Império aos dias atuais. Rio de Janeiro: Zahar, 2012. Resenha de: VIEIRA, Martha Victor. A trajetória do voto no Brasil: das eleições “a bico de pena” à biometria. Escritas. Palmas, v.5, n.2, p. 204-209, 2013. Acessar publicação original [DR]

CAVALCANTI Erinaldo Vicente (Aut), Relatos do Medo: A ameaça comunista em Pernambuco (Garanhuns – 1958-1964) (T), Editora Universitária da UFPE (E), GENÚ Luiz Felipe Batista (Res), Escritas (Ecr), Comunismo, Cidade de Garanhuns, América – Brasil Séc. 20

O ano de 2014 marca o cinquentenário do golpe civil-militar que instaurou um regime ditatorial no Brasil que se estendeu por vinte e um anos. A ditadura militar instalada no Brasil, bem como seus efeitos, ainda hoje é motivo de debates e discussões que estão longe do esgotamento. A título de exemplo do vigor desses debates podemos citar a promulgação de Comissões da Verdade que, em âmbito municipal, estadual ou federal, têm se dedicado a investigação dos abusos cometidos pelos militares durante o período em que comandaram a política no Brasil.

Tão importante quanto investigar seus efeitos é entender como foi sendo urdido um momento propício para a tomada do poder pelos militares. Questionar, por exemplo, que fatores concorreram para que o golpe civil-militar fosse bem sucedido? Como se criou uma atmosfera própria para o seu sucesso? É na perspectiva de investigar como foram surgindo fatores que contribuíram para a derrubada de um governo constitucional e, ao mesmo tempo, forneceram a sustentação para que fosse estabelecido um regime ditatorial militar que podemos inserir o livro Relatos do Medo: A ameaça comunista em Pernambuco [Garanhuns – 1958-1964], do historiador Erinaldo Cavalcanti.

A obra em foco, proveniente da dissertação desenvolvida pelo autor junto ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco, se propõe a analisar como, a partir do medo do comunismo, foram construídos discursos e práticas anticomunistas na cidade de Garanhuns durante os anos de 1958 a 1964. Durante a leitura da obra, fica claro que o comunismo era referenciado em diversos discursos da época como um conjunto de ideias e práticas que ameaçavam subverter determinados valores delineados como fundamentais dentro do microcosmo representado pela cidade de Garanhuns – e no restante do Brasil – como a liberdade individual, a família e a religião. É importante ressaltar, como escreveu Erinaldo Cavalcanti, que nas análises presentes no livro, o autor procura abordar o comunismo e o anticomunismo “não apenas como projetos, meramente políticos, mas as experiências vivenciadas por diversos atores sociais num espaço e tempo específicos que ajudaram a tecer uma atmosfera de medo na cidade de Garanhuns” (2012, p. 20).

O deslocamento analítico proposto por Erinaldo Cavalcanti – analisar o papel do medo do comunismo na constituição de discursos anticomunistas e os efeitos desses discursos no cotidiano de uma cidade distante 245 quilômetros da sede do poder estadual, que era o palco de grandes embates políticos e sociais à época, a cidade do Recife – permite observar que as cidades distantes das grandes capitais não estavam imunes às disputas e negociações que ganhavam espaço nos principais centros urbanos do Brasil. Essa é, aliás, umas das preocupações presentes em sua escrita: durante os três capítulos que compõem a obra, o autor mostra como as inquietações, os debates e mesmo os conflitos ocorridos na esfera municipal de Garanhuns se articulavam com o que estava acontecendo em outras partes de Pernambuco – e, em maior escala, no Brasil – naqueles anos anteriores ao golpe civil-militar de 1964.

Como referido, o livro Relatos do Medo é composto por três capítulos mais a introdução, onde cada capítulo é estruturado a partir de uma determinada parte do corpo documental relacionado pelo historiador durante suas pesquisas. No primeiro capítulo, chamado Garanhuns: cenário de histórias múltiplas, Erinaldo Cavalcanti expõe ao leitor como o seu interesse pela temática do medo – especificamente o medo do comunismo – foi motivado por relatos memorialísticos que ouviu de pessoas mais velhas que presenciaram os discursos e práticas anticomunistas nos anos anteriores ao golpe de 1964. Em seguida, o autor apresenta a cidade de Garanhuns e algumas particularidades de sua constituição histórica que vão ajudar na compreensão da história a ser narrada, como a importância do café para a produção local e o poder que conferia aos latifundiários responsáveis pela sua produção.

Após situar o leitor em relação a algumas singularidades da cidade de Garanhuns, Erinaldo Cavalcanti apresenta alguns dos autores com quem dialoga ao longo de sua obra, entre os quais podemos destacar Michel de Certeau. Baseado nas análises de Certeau sobre as cidades e as práticas urbanas, Erinaldo Cavalcanti volta seu olhar para as vivências desenvolvidas pelas pessoas nos mais variados espaços da cidade de Garanhuns – como as barbearias, a câmara de vereadores, as praças, as alfaiatarias, etc. – a fim de ponderar sobre “o comunismo sendo vivenciado, perseguido, vigiado, defendido, controlado e passando despercebido sempre que se julga necessário e possível” (2012, p. 50).

Nesse momento o autor chega ao ponto principal do capítulo: a crítica à documentação produzida pelos agentes da Secretaria de Segurança Pública de Pernambuco, por meio do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social). Com base nos relatórios dos agentes do DOPS, Erinaldo Cavalcanti analisa como a presença de práticas de partidários do comunismo na cidade de Garanhuns, por exemplo, a realização de comícios, atrai a atenção da Secretária de Segurança Pública do Estado. O deslocamento de agentes do DOPS para Garanhuns, a vigilância e o mapeamento das atividades das pessoas consideradas comunistas em relatórios cujos detalhes incluíam informações referentes à profissão que desempenhavam na cidade e os apelidos pelos quais eram conhecidos, são alguns dos efeitos relacionados pelo autor como decorrentes do medo da presença de comunistas na cidade.

Sob o título de Palavra escrita e poder: a imprensa como instrumento de luta política, o segundo capítulo da obra em foco contém uma análise do papel da imprensa na construção do medo do comunismo e na propagação de discursos anticomunistas. Para tanto, o autor empreende uma minuciosa investigação do semanário garanhuense O Monitor e de dois periódicos de ampla circulação em Pernambuco à época: o Jornal do Commércio e o Diário de Pernambuco. Além desses periódicos, Erinaldo Cavalcanti analisa ainda a repercussão de um artigo publicado pelo jornal estadunidense The New York Times, onde Pernambuco é referenciado como um estado a beira de uma revolução comunista, a exemplo do que aconteceu com Cuba. Após apresentar alguns de seus interlocutores, no que se refere ao uso da imprensa como fonte histórica, como Tânia de Lucca (2006), Erinaldo Cavalcanti investiga a formação em Garanhuns do periódico O Monitor, pois considera que a “posição estampada que o jornal assumia é fruto do lugar social onde ele estava inserido” (2012, p. 103). No caso do semanário O Monitor, este lugar social estava ligado a Diocese de Garanhuns, desde sua fundação do semanário em 1933, até 1963 quando foi vendido a um político local. Em seguida, a análise volta-se para os artigos publicados nos referidos periódicos que vão criando e reforçando uma imagem do comunismo ligada à instauração de uma ditadura ateia, à dissolução de valores e liberdades pessoais. Nesse sentido, o historiador registra ainda uma série de artigos publicados no jornal O Monitor onde o voto feminino é incentivado e as mulheres são instruídas a votarem nos candidatos indicados pela Liga Eleitoral Católica (LEC), para, dessa forma, defenderem seus lares, suas famílias e sua religião.

Chegando ao terceiro e último capítulo de sua operação historiográfica1 – A Câmara de Vereadores de Garanhuns: poder, estratégias e combates – Erinaldo Cavalcanti volta-se para as atas da Câmara de Vereadores de Garanhuns. Ao percorrer essas atas, o historiador observa e aponta as singularidades estratégicas que o combate ao comunismo e seus representantes assumia ao ser travado na sede do poder legislativo municipal, como a recusa por parte dos demais vereadores em aprovar propostas comunistas. O autor demonstra também, ao narrar a ida à Garanhuns de Gregório Bezerra e, em momento posterior, a de Jorge Amado – ambos conhecidos como importantes membros do Partido Comunista no período – que as lutas sociais não obedecem a uma mecânica ou trajetória determinada. Por essa razão, segundo sua narrativa, enquanto a viagem de Gregório Bezerra à Garanhuns foi repudiada por autoridades ligadas a Igreja Católica e à Polícia, a ida do escritor Jorge Amado foi motivo de orgulho e recebeu voto de aplauso da Câmara de Vereadores. Jorge Amado inclusive foi convidado a oferecer uma conferência na Câmara. Por essa razão, o autor afirma que ao examinar a relação da Câmara de Vereadores com o anticomunismo “não podemos pensá-la sem levar em consideração essa dinâmica da luta que produziu atitudes de oposição ao comunismo, e em certos momentos, abraçou um intelectual defensor das ideias comunistas, convidando-o para aquele recinto” (2012, p. 145). A narrativa de Erinaldo Cavalcanti, ao acompanhar as deliberações dos vereadores, conduz o leitor até os primeiros dias do mês de abril de 1964. Dessa forma, podemos observar as demonstrações de apoio ao golpe civilmilitar por parte do poder legislativo de Garanhuns, apoio refletido no envio de moção de aplausos a políticos que apoiaram os militares, na cassação dos direitos políticos de representantes do comunismo na cidade e na concessão do título de Cidadão de Garanhuns a personagens que atuaram durante o golpe, como o General Justino Bastos, comandante do Quarto Exército à época.

Relatos do Medo: A ameaça comunista em Pernambuco [Garanhuns – 1958/1964], figura como um trabalho de relevância para a historiografia brasileira por sua proposta analítica, pelos diálogos que estabelece com outros autores importantes da historiografia brasileira e internacional e pela maneira como Erinaldo Cavalcanti procede ao analisar o corpo documental que reuniu durante suas pesquisas. A narrativa tecida pelo autor a partir de suas fontes é fluida e minuciosa, o que permite aos leitores, mesmo os que não estão familiarizados com o tema, a se situarem e acompanharem sem dificuldades o que está sendo narrado. Vai além e instiga reflexões não apenas sobre o golpe civil-militar ocorrido no Brasil, mas também sobre o medo, sobre os interesses presentes em discursos que disseminam o pavor numa sociedade e os ganhos que esses discursos podem render aos grupos responsáveis por sua disseminação.

Nota

1Ver: CERTEAU, Michel de. A operação historiográfica. In: _______. A Escrita da História. Trad. Maria de Lourdes Menezes, 2. ed., Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. p 56 – 108.

Luiz Felipe Batista Genú – Graduado em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), e mestrando do programa de Pós-Graduação em História da mesma entidade (PPGH-UFPE)

CAVALCANTI, Erinaldo Vicente. Relatos do Medo: A ameaça comunista em Pernambuco (Garanhuns – 1958-1964). Recife: Editora Universitária da UFPE, 2012. Resenha de: GENÚ, Luiz Felipe Batista. As Práticas do Medo e a Construção do Anticomunismo na Cultura Política da Cidade de Garanhuns – PE (1958-1964). Escritas. Palmas, v.6, n.1, p. 271-275, 2014. Acessar publicação original [DR]

SEBALD W. G. (Aut), Guerra aérea e literatura (T), Companhia das Letras (E), LAGE Rodrigo Conçole (Res), Escritas (Ecr), Literatura, Guerra, Memória, Europa – Alemanha, Séc. 20

O escritor judeu alemão Winfried Georg Maximilian Sebald, mais conhecido no Brasil como W.G. Sebald, aborda neste livro duas questões extremamente polêmicas, que se entrelaçam: a ausência do tema dos bombardeios das cidades alemãs na literatura alemã do pós-guerra e a brutalidade e o horror desses ataques (cuja consequência foi a dificuldade dos escritores em lidar com a história recente de seu próprio país).

O livro é composto por dois textos, antecedidos de uma breve introdução. Primeiro, temos as conferências que “não estão publicadas exatamente na forma em que foram proferidas na Universidade de Zurique no final do outono de 1997” (2011, p. 7). Na sequência, temos a um artigo sobre o escritor Alfred Andersch, por meio do qual ele pretende demonstrar como a literatura alemã foi influenciada de forma perniciosa pela atitude dos escritores que optaram por continuar no país. Eles teriam considerado como mais importante “a redefinição da ideia que tinham de si próprios depois de 1945” (Ibid., p. 8) e não “a apresentação das relações reais que os envolviam” (Idem), o que os levou a ignorar a História e, consequentemente, a tragédia que viveram.

A primeira parte das conferências aborda a destruição e mortandade promovida pelos bombardeios, a motivação dos bombardeios e suas consequências. Se, comumente, os números são utilizados para se demonstrar a brutalidade dos alemães durante a guerra, Sebald utiliza o mesmo recurso para ressaltar a violência dos Aliados contra eles. Aborda somente os bombardeios perpetrados pela Royal Air Force, citando “400 mil voos, 1 milhão de toneladas de bombas; (…), em torno de 600 mil vítimas civis; (…) 3,5 milhões de residências foram destruídas; (…) 7,5 milhões de desabrigados (…)” (Ibid. p. 13). Para ele, foi uma verdadeira “ação de aniquilamento” promovida contra os alemães e polemiza, ao dizer que tal ação foi “até então sem par na história” (Ibid., p. 14). Acompanhando o texto e, em diferentes momentos do livro, encontramos a utilização de fotografias, algo recorrente em seus livros.

Sua tese, mesmo sendo polêmica, deve ser vista dentro de uma característica essencial de sua obra: a luta contra a falsificação e o esquecimento da História. Sua intenção foi demonstrar que os alemães também foram vítimas e que esse fato não pode ser esquecido, assim como as atrocidades dos nazistas também não podem ser igualmente esquecidas. O aniquilamento dos alemães e o Holocausto – tema sempre presente em sua obra, mesmo que somente na forma um tanto oblíqua pela qual sempre tratou o assunto –, devem ser vistos como diferentes faces da grande tragédia que foi a 2ª Guerra Mundial. E como a sociedade alemã trabalhou essa questão na construção de uma memória social? O processo de ruptura com o passado ocorre no momento de reconstrução. Para Sebald, “a reconstrução alemã equivaleu, após as devastações causadas pelos inimigos de guerra, a uma segunda aniquilação, realizada em fases sucessivas, de sua própria história anterior” (2011, p. 16).

A partir dessa constatação, desenvolve a ideia de que a população foi levada ao silêncio sobre tudo que enfrentou (a escassez de testemunhos alemães daquele período seria uma prova disso). Paradoxalmente, esse fato negativo tem um caráter positivo ao se apresentar, “por assim dizer, como o primeiro estágio de uma reconstrução bem-sucedida” (Idem). Ao tratar da presença do tema dentro da literatura, comenta como “os poucos relatos redigidos em língua alemã provêm de antigos exilados ou outros autores periféricos, como Max Frisch” (Ibid., p. 18).

A partir desse diagnóstico, condena duramente o silêncio dos escritores que continuaram no país e, muitas vezes, criticaram os que optaram pelo exílio: “Os que permaneceram no país – e, como Walter von Molo e Frank Thiess na malfadada controvérsia sobre Thomas Mann, se jactavam de ter persistido na pátria na hora da desgraça, (…) se abstiveram de qualquer comentário a respeito do processo e do resultado da destruição (…)” (Idem).

Também comenta como a literatura do pós-guerra, surgida a partir de 1947, não abordou a questão. Com exceção de alguns poucos romancistas cujas obras serão comentadas na segunda parte, principalmente o “romance de Heinrich Böll O anjo silencioso” (Ibid., p. 19), onde o assunto foi melhor abordado, apesar de suas limitações.

A seguir, discute a legitimação dos bombardeios e a falta de protesto dos alemães contra esses ataques (condenados até por alguns ingleses), examinando como surgiu a ideia dos bombardeios. Defende a tese de que “a maioria das fontes sobre a destruição das cidades alemãs é de uma cegueira extraordinária para a experiência vivida, fruto de uma perspectiva extremamente estreita, parcial ou excêntrica” (Ibid., p. 26, 27). Para demonstrá-la, examina a primeira reportagem ao vivo de um ataque a Berlim; examina, também, alguns testemunhos de ataques e de como não se pode ver os relatos dos sobreviventes como algo digno de confiança.

O estudo da chamada “Operação Gomorrha”, com o qual conclui a primeira parte, serve para demonstrar suas teses, reforçadas pela afirmação de que “apesar da censura oficial que impedia qualquer informação mais precisa, não era impossível se inteirar do fim horroroso das cidades alemãs” (Ibid., p. 34). Dentro desse ponto de vista, a alegação de que os fatos não eram conhecidos não pode ser utilizada como justificativa dessa ausência.

A segunda parte começa com uma pergunta: “Como deveria ter começado uma história natural da destruição?” (Ibid., p. 34). Inicia com um exame do romance de Böll – descrevendo os deslocamentos dos refugiados que, segundo Böll, originaram o hábito de viajar dos alemães; comenta como a ausência das descrições das infestações de vidas parasitárias (ratos, moscas, etc.) “explica-se pela imposição implícita de um tabu bastante compreensível quando se pensa que os alemães, que se propuseram à total limpeza e higienização da Europa” (Ibid., p. 38), examinando as descrições do autor. Descreve a vida das pessoas naquela situação, seus problemas e dificuldades contrapondo algumas descrições de Victor Gollancz com a obra de Böll. Comenta “o relato de Kluge sobre a destruição de Halberstadt” (Ibid., p. 43) para discutir “o papel desempenhado pela música na evolução e na derrocada do Reich alemão” (Ibid., p. 44), seguido de um breve comentário do Doutor Fausto de Thomas Mann.

O restante dessa parte é um longo comentário crítico no qual aponta os defeitos e limitações das obras de Hermann Kasack, Hans Erich Nossack, Peter de Mendelssohn, Arno Schmidt, Hubert Fichte e Alexander Kluge. É preciso destacar que, ao tratar de Mendelssohn, seus comentários estão acompanhados de algumas associações do livro com os roteiros que “Thea von Harbou escreveu para Fritz Lang, mais precisamente, do script para a megaprodução Metrópolis” (Ibid., p. 54).

A terceira parte é um tipo de postscriptum das conferências comentando as reações, as cartas recebidas e o fato de que elas confirmavam suas afirmações sobre a ausência do assunto nos escritores. Além disso, “o pouco que nos foi transmitido pela literatura não guarda nenhuma correspondência, nem em termos quantitativos nem qualitativos, com as experiências coletivas extremas daquele tempo” (Idem). Problema encontrado também na historiografia onde há apenas um texto, de Jörg Friedrich, e que padece das mesmas limitações. Em seguida, faz uma longa digressão – com descrições de alguns episódios de sua vida nos quais sua “trajetória de vida se cruza com a história da guerra aérea” (Ibid., p. 73). Esses episódios o levaram a se dedicar a investigar o silêncio e/ou a impossibilidade dos escritores alemães abordarem o assunto.

Em seguida, inicia a discussão de alguns textos que haviam sido citados, em algumas das cartas, ou enviados, como prova de que haviam escrito sobre o assunto, ao contrário do que ele havia afirmado, apontando suas limitações. Apenas duas menções são dignas de elogio. A primeira se refere a Hans Dieter Schafer, como podemos ver no comentário a um artigo que considerou “um dos trabalhos mais importantes a respeito da literatura alemã do pós-guerra e, logo após a sua publicação, deveria ter servido para uma revisão da ciência da literatura no que tange à sua posição diante dos supostos conteúdos de verdade de muitas obras surgidas entre 1945 e 1960” (Ibid., p. 82), mas que lamentou por ter sido ignorado, e pelas referências a um romance que não chegou a escrever. O outro se refere ao livro Berlin im Zweiten Weltkrieg, comentando o capítulo que contém descrições da devastação de um jardim zoológico (que não teriam sido censurados por abordarem o sofrimento de animais e não de seres humanos). Passa, então, a comentar criticamente alguns livros de que veio a tomar conhecimento posteriormente. Ele os classificou como pertencendo a “categoria das obras desaparecidas” (pelo fato de que não voltaram a ser publicados). Apesar das críticas, eles apresentam alguns elementos positivos (uma das causas do “desaparecimento” dessas obras). Por fim, termina com um extenso comentário de uma carta onde estão presentes elementos tipicamente nazistas. Nela, defende a tese de que os judeus planejaram “alijar os alemães de seu legado e origem, destruindo suas cidades e preparando assim a invasão cultural e a americanização generalizada que ocorreram de fato no pós-guerra”, por meio da guerra aérea (Ibid., p. 89). Faz uma interessante comparação entre a visão do autor sobre os judeus e o personagem Dr. Mabuse, do filme de Fritz Lang que “paradigma da xenofobia que grassava entre os alemães desde o fim do século XIX” (Ibid., p. 92).

O artigo O escritor Alfred Andersch (Ibid., p. 97-124), com o qual encerra o livro é uma análise da vida e obra do escritor no qual revela um homem vaidoso e pretencioso (com uma obra onde se retratou de forma a omitir, e distorcer, fatos que mostrariam sua adequação ao regime nazista). Faz uma violenta crítica ao casamento com uma judia, aparentemente por dinheiro, e seu posterior divórcio para que tal casamento não fosse um obstáculo a sua carreira de escritor, e a outras atitudes que revelam as contradições do escritor. O apresenta como o autor de uma obra cuja qualidade literária estava muito aquém de suas altas pretensões, que é um exemplo dos escritores que Sebald havia condenado anteriormente.

Podemos então dizer que a obra de Sebald nos permite lançar um olhar sobre os traumas que a guerra causou a sociedade alemã e as marcas que deixou na literatura pós-guerra. Além disso, nos permite ter contato com um segmento da literatura alemã ainda pouco conhecido no Brasil.

Rodrigo Conçole Lage – Graduado em História (UNIFSJ), especialização em História Militar (UNISUL), em andamento. E-mail: [email protected]

SEBALD, W. G. Guerra aérea e literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. Resenha de: LAGE, Rodrigo Conçole. A presença da guerra na literatura e na memória da Alemanha pós-Segunda Guerra Mundial. Escritas. Palmas, v.6, n.2, p. 244-248, 2014. Acessar publicação original [DR]

ASANTE Molefe Kate (Aut), Afrocentricidade (T), Editora Afrocentricity Internacional (E), PAIM Márcio (Res), Escritas (Ecr), Conceito de Afrocentricidade, Séc. 20

Livro composto de 193 páginas, incluindo o glossário, está dividido em quatro capítulos, sendo que o primeiro: Bases essenciais, o autor inicia com um prólogo ao livro original onde recapitula o contexto de criação do conceito da afrocentricidade relacionando-o a conjuntura atual e destacando a contribuição de novos elementos, a exemplo do hip-hop para uma nova releitura. Após o prólogo, no subitem definição o autor define e fala da afrocentricidade como uma metodologia que tem por fim o deslocamento dos sujeitos africanos para o centro, contextualizando-os e colocando-os, a partir de questionamentos, em seus respectivos lugares. Na página sete, no subtópico, as questões religiosas, o autor demonstra a “eficiência” e as possibilidades interpretativas da metodologia afrocêntrica questionado o lugar que a religião islâmica para os povos africanos relacionando-a com os costumes e tradições do continente. O autor evidência as bases que contribuíram para que o islamismo se tornasse uma religião universal. Nestes questionamentos Asante demonstra como o pensador afrocêntrico deve se posicionar para descortinar os “equívocos” que a história convencional tratou de convencionar em relação às culturas da África. Em outro tópico: Desafios, Asante coloca os desafios de se tornar um afrocêntrico no mundo pós-moderno, demonstrando a forma como fazê-lo a partir da reinterpretação da História. O autor deixa muito claro que o conhecimento histórico, é a base para (da) mudança afrocêntrica. Ainda no sentido de demonstrar os desafios que a interpretação afrocêntrica exige Asante faz uma retrospectiva no pensamento dos principais líderes políticos do século XX – Booker Taylor Washington, Marcus Garvey, Martin Luther King, Malcolm – X, Maulana Ron Karenga e William Du Bois – expondo seus respectivos pensamentos ideológicos, evidenciando suas aproximações e distanciamentos. Paralelo a exposição, Asante demonstra que exceto o pensamento de Marcus Garvey e de Elijah Mohammed, embora os demais pensadores exerçam importância incomensurável para o que viria ser mais tarde o pensamente afrocêntrico, apenas Garvey e Mohammed já se utilizavam de uma análise conjuntura proto-afrocêntrico. Já no tópico: Njia: o caminho, Asante depois de uma reflexão sobre a importância de uma ação coletiva aponta a Njia como uma estratégia prática de ação afrocêntrica no sentido de dar início a um processo de dissociação e valorização da cultura africana em detrimento da epistemologia eurocêntrica. Em seguida, no tópico, rumo à consciência coletiva o autor nos fala da importância da filosofia da afrocentricidade como uma estratégia de conscientização. É importante destacar a digressão que o autor faz no sentido de demonstrar que a afrocentricidade não é uma “metodologia filosófica” que busca a unidade entre as comunidades africanas e afro-americanas na diáspora e que a mesma almeja um projeto de conscientização coletiva que é algo que está mais além do a unidade. Finalizando o primeiro capítulo, o tópico, a crise dos nomes, o autor volta na história da escravidão americana e explica como os africanos escravizados perdiam sua identidade africana – quando tinham seus nomes retirados – e recebiam os nomes dos seus senhores para em seguida explicar a importância de voltar a usar nomes africanos, não apenas como uma forma de reassumir suas respectivas identidades africanas, mas como uma forma de se colocar em prática a filosofia afrocêntrica. O capítulo dois, os constituintes do poder, é iniciado com um subtópico libertação da linguagem o autor discorre sobre como a opressão histórica da escravidão imposta aos afro-americanos foi responsável pela construção de uma linguagem opressora e racista e a necessidade das pessoas de cor, na atualidade, desenvolver uma linguagem alternativa que seja revigorante e positivamente reconstrutora. Para ilustrar seu pensamento Asante toma como exemplo a experiência do Partido dos Panteras Negras demonstrando que a linguagem comunista assumida pela liderança, embora tenha exercido um impacto significativo sobre a população africana da América foi limitada em sua mobilização e conteúdo por não utilizar-se e não desenvolver uma linguagem afrocentrada. Nesse sentido, Asante destaca que a liderança do partido teve uma maior preocupação em absolver os conteúdos comunistas do que desenvolver uma linguagem afrocêntrica. No tópico: tipos de inteligência, Molefi destaca a existência de três tipos de inteligência: a inteligência criativa, a reprodutiva e a consumidora-reprodutora, sendo a primeira dos pensadores que criam; a segunda dos pensadores que reproduzem aquilo que foi criado pelos primeiros e a terceira, a dos pensadores que reproduzem e consomem e que é produzido, nesse sentido, percebe-se que Asante estabelece uma relação entre essas inteligências deixando claro que as mesmas não são determinações biológicas, mas que o mesmo as usa como uma forma de localizar a filosofia afrocêntrica. O autor evidencia que independente dos tipos de inteligência, todas, fazem parte de uma mesma inspiração que é Deus e que não há nenhum problema na utilização das mesmas pelo pensador associado a afrocentricidade. No último tópico do segundo capítulo, bases comparáveis, Assente demonstra como o processo de negação da história africana reflete a falta de referências para às próprias populações africanas e da diáspora, além de ser um dos principais obstáculos para a reconstrução de uma interpretação associada a afrocentricidade. A exposição de Asante tem o objetivo de demonstrar que o conhecimento da História da África e da diáspora é o principal meio de construção dos referenciais que são necessários a filosofia afrocêntrica para a descolonização das mentes e da construção de uma imagem positiva da África e de suas populações descendentes. O capítulo três, Análise e Ciência, iniciam-se com um subtópico crítica e análise mais uma vez com o autor expondo a importância da história na implementação da análise afrocêntrica e nesse sentido Asante elenca termos como tribo, selva, dialeto africano, dentro outros, que apartir de uma análise da afrocentricidade imperam por uma redefinição semântico-conceitual ou mesmo um banimento. No tópico seguinte, o caminho da inovação o autor reflete sobre a importância da construção de escolas negras afrocentradas para dar início ao processo de desconstrução da imagem negativa da África e de seus descendentes consolidada no ocidente. O autor destaca que os educadores nessa escola não bastam apenas ser negros, pois, muitos negros foram educados em escolas ocidentais brancas e por esse motivo carecem dos referenciais históricos necessários para a implementação da filosofia-metodológica afrocêntrica. No subtópico Níveis de transformação, Asante discorre sobre o processo de transformação\ identificação com a afrocentricidade, destacando as cinco fases que todas as pessoas passam até incorporarem a filosofia afrocêntrica, sendo estas: o reconhecimento de pele, é quando, segundo o autor, a pessoa reconhece a cor da sua pele, mas não consegue compreender o contexto histórico e da realidade em que vive; na segunda fase tem-se o que reconhecimento do meio, é o momento onde a pessoa o ambiente através dos abusos e das discriminações que estão submetidas; em seguida, tem-se a consciência de personalidade onde o indivíduo identifica-se com os elementos da cultura africana, porém, Asante deixa claro que essa identificação por si só, não constituí afrocentricidade; preocupação\ interesse constituem a quarta fase, sendo esta caracterizada pelo fato de a pessoa reconhecer-se nos três primeiros itens, demonstrando interesse e preocupação com os problemas do povo africano; no quinto nível, consciência afrocêntrica é quando o indivíduo é tomado, transportado e envolvido por alto nível de afrocentricidade em sua mente. No tópico consciência, o autor discorre sobre os dois tipos de consciência com os quais a afrocentricidade tem que tratar, sendo elas a consciência da opressão e a consciência da vitória. No caso da consciência da opressão ela apresenta-se de forma significativa na mente da comunidade afroamericana, onde, na interpretação do autor muitas pessoas tem a consciência de suas exploração\opressão, mas, não possuem a consciência da vitória, sendo elas indissociáveis. Para Asante, além de o pensador afrocêntrico ter a consciência de sua exploração, ele tem que ter a consciência\ fé na vitória como o produto final do projeto afrocêntrico. Já no subitem relacionamento, Asante nos fala sobre o que vem a ser um relacionamento afrocêntrico entre um homem e uma mulher. Segundo o autor é necessário para que o mesmo obtenha êxito que ambos esteja em harmonia com o projeto afrocêntrico tornando-se ambos um só com a finalidade de somar-se a coletividade. Na visão do autor o tornar-se afrocêntrico vai desde a vestimenta externa – trajes, torços – até a o conhecimento histórico que produz a consciência coletiva afrocêntrica. Nesse tópico Asante reflete sobre um o tema complexo e delicado da relação entre a homossexualidade e sua relação com a relação à filosofia afrocêntrica. Segundo Asante a homossexualidade deve ser aceita, porém dever ser demonstrado quanto a mesma é prejudicial em termos de projeto coletivo. O diz que ao assumir esse posicionamento ele afirma que não é homofóbico, nem defende a homofobia, mas reconhece que a homossexualidade eurocidental, não é o discurso mais coerente como projeto para a coletividade afro-americana. Já no tópico afrologia\africologia o autor diz que esses dois termos não possuem qualquer diferença, possuindo o mesmo significado. Asante ressalta que a criação dos mesmos surge da conjuntura e exigência dos alunos afro-americanos durante a criação dos departamentos de estudos africanos e da diáspora durante os anos 1960 do século XX. De acordo com a interpretação do autor a afrologia surgiu como uma possibilidade que pudesse preencher o vazio em função da ausência de uma posição filosófica unificadora que pudesse contemplar as possibilidades contidas em uma nova lógica, ciência e retórica. No tópico método, Asante fala sobre os pré-requisitos básicos para implementação da teoria afrocêntrica, destacando a competência, clareza de perspectiva e clareza do objeto. Para o autor a competência diz respeito à habilidade e a capacidade que o investigador afrocêntrico possui quando confrontado com os problemas da pesquisa e de sua área de estudo. Clareza de perspectiva para Asante é ter consciência de que a metodologia afrocêntrica é pan-africana e que em seu tratamento devem ser levados em conta os aspectos da criatividade, políticos, geográficos e culturais evidenciando a relação das experiências diaspóricas em âmbito universal. No quarto capítulo, Bases de ação, Asante traça um panorama de suas ideias discutidas no decorrer do livro estabelecendo os pré-requisitos do que é na prática ser afrocêntrico. O autor reflete sobre o que se deve ou não repudiar, quanto pensadores da afrocentricidade. Nesse sentido eles nos fala sobre as estratégias de demolição e reconstrução sobre o que diz respeito aos termos que devem (ou não) ser usados dentro da linguagem afrocêntrica. Fala-se da demolição dos nomes impostos pela colonização e que carregamos até hoje, sendo que estes devem ser substituídos por nomes africanos, devem-se substituir as noções derrotistas pelas visões vitoriosas e de orgulho, dentre algumas citadas pelo autor. A família, a cidade e a religião são alguns dos segmentos citados por Asante onde a filosofia da afrocentricidade pode ser inserida e trabalhada. Molefi faz uma reflexão entre a inovação X tradição, destacando que a tradição não é um corpo estático e homogêneo. O autor introduz essa discussão com o objetivo de demonstrar a teoria da afrocentricidade como uma junção de ambas. Em seguida, Asante coloca as expectativas futuras para afrocentricidade no século XX. Por fim o autor finaliza o livro expondo os princípios da Njia que no seu entender seria o caminho para se atingir a afrocentricidade.

Márcio Paim – Mestre em Estudos Africanos pelo Programa Multidisciplinar em Estudos Étnicos e Africanos da Universidade Federal da Bahia – Pós-Afro/UFBA. Graduado em História pela Universidade Católica do Salvador (UCSAL).

ASANTE, Molefe Kate. Afrocentricidade. Philadelphia: Editora Afrocentricity Internacional, 2014. Resenha de: PAIM, Márcio. Escritas. Palmas, v.7, n.1, p. 230-235, 2015. Acessar publicação original [DR]

OLIVEIRA Ariosvalber de Souza (Org) et al, Ubuntu: Educação/ Alteridade e Relações Étnicos-Raciais (T), Editora CCTA (E), Giuseppe Roncalli Ponce León de (Res), LIMA Marinalva Vilar de (Res), Escritas (Ecr) Educação, Alteridade, Relações Étnico-Raciais

Com a aprovação da Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, e a Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008, que tornou obrigatório nas escolas de todo o Brasil o ensino de História da África e cultura afro-brasileira como, a inclusão dos conteúdos de História e Cultura dos Povos Indígenas, além de atender a uma antiga e justa reivindicação; trouxe uma série de consequências para o Ensino de História em sua totalidade. As mudanças ocasionadas pelas respectivas leis ainda estão em processo e não influenciarão apenas educadores. Crianças, adolescentes, jovens, adultos entrarão e estão entrando em contato com o tema. O alcance das transformações pode ser grande – e muito positivo, devendo ser aceleradas ou adquirirem um ritmo mais lento, conforme a capacidade dos setores interessados em intervir no processo (LIMA, 2009, p. 149).

Contudo, vale salientar que o trabalho com História da África e Indígena como conteúdos curriculares dos cursos de graduação, pós-graduação lato sensu e stricto sensu e mesmo na educação básica não nasce no Brasil como resultado da imposição das leis mencionadas anteriormente, havendo histórias de mais longa duração que se relacionam diretamente com o cenário que hoje vislumbramos 1. Os ativistas do Movimento Negro reconhecem que a educação não é a solução de todos os males, porém ocupa lugar importante nos processos de produção de conhecimento sobre si e sobre “os outros”, contribui na formação de quadros intelectuais e políticos e é constantemente usada pelo mercado de trabalho como critério de seleção de uns e exclusão de outros. Ao colocar a diversidade étnico-racial e o direito à educação no campo da equidade, o Movimento Negro indaga a implementação das políticas públicas de caráter universalista e traz o debate sobre a dimensão ética da aplicação dessas políticas, a urgência de programas voltados para a efetivação da justiça social e a necessidade de políticas de ações afirmativas que possibilitem a efetiva superação das desigualdades étnico-raciais, de gênero, geracionais, educacionais, de saúde, moradia, e emprego aos coletivos historicamente marcados pela exclusão e pela discriminação (GOMES, 2011, p.112, 115).

Os negros brasileiros, assim como outros grupos étnicos postos à margem pela sociedade, resistem ao plano de ideais, papeis, condutas que se lhes pretende impingir. Desejam ver confirmadas sua história e sua cultura, tal como as herdaram e vêm reconstruindo em dolorosas relações que lhes são impostas. Pretendem ter reparadas as injustiças de que são vítimas e assim receber as condições devidas a todos os cidadãos de tomar parte da elite intelectual, científica, política. Logo, estas demandas precisam ser entendidas como indenizações devidas, pela sociedade, àqueles a quem ela tem impedido vida digna e saudável, trabalho, moradia, educação, respeito a suas raízes culturais, à sua religião. O pagamento da dívida precisa ser concretizado mediante políticas, organizadas em programa de ações afirmativas, que eliminem as diferenças sociais, valorizando relações étnico-raciais e culturais (SILVÉRIO, 2005, p. 146).

Ao pensarmos sobre os caminhos da introdução de estudos de História da África e História e Cultura dos Povos Indígenas do Brasil, devemos considerar no que tange à formação de professores, que estão lidando com um campo no qual os profissionais não apenas reproduzem, mas produzem reflexões, influenciam posturas e visões de mundo. Portanto, é fundamental estarmos conscientes que a formação de professores – regular e continuada – é item fundamental nesse processo de resgate da história afro-brasileira e dos povos indígenas para os estudantes brasileiros (LIMA, 2009, p. 152).

É comum que as imagens e representações reportadas sobre o assunto mantenham certa reprodução de estereótipos em relação a esses grupos étnicos. Muitas vezes, tais questões são reforçadas e disseminadas pela mídia e, até mesmo, em sala de aula, tornando-se um constante desafio abordá-las e redimensiona-las no ambiente escolar. Sendo assim, o livro Ubuntu: Educação, Alteridade e Relações Étnico-Raciais (2016) foi pensado como espaço de reflexão e como subsídio didático para profissionais da educação básica, estudantes de cursos de graduação, pós-graduação e demais interessados no assunto. Os artigos apresentados na respectiva obra buscam contribuir para a construção de um processo educacional pautado nas relações étnico-raciais.

Estão presentes em Ubuntu, textos que apresentam múltiplas perspectivas, entretanto, a reflexão em torno do processo de ensino de história e da cultura afrobrasileira e indígena perpassa todos eles. Os artigos trazem reflexões em torno da obra de escritores como Lima Barreto, discutindo aspectos sobre a literatura afrodescendente no Brasil, como sobre a obra de Monteiro Lobato, indicando traços de racismo em seus escritos e demonstrando que o aludido escritor era adepto das teorias eugenistas do seu tempo. Refletem sobre a poética negra e estabelecem os usos da mesma em sala de aula como uma possibilidade didática, atendendo as indicações preconizadas pelos temas transversais propostos através dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN). Apresenta reflexões sobre os usos da internet e das tecnologias digitais pelos jovens na atualidade, demonstrando que as redes sociais podem se tornar grandes aliadas no processo de uma educação para as relações étnico-raciais, entre outros aspectos.

Vale ressaltar que este livro vem à tona em um delicado período da História do Brasil, marcado por fortes tensões sociais e plena ascensão de forças conservadoras, que compelem duros golpes ao processo democrático. Não obstante, o cenário de violência e desrespeito à dignidade humana do povo brasileiro faz-se presente há décadas no país. Por intermédio deste panorama, os organizadores justificam sua escolha quanto à utilização do conceito filosófico africano “Ubuntu” como título e fio condutor do mesmo:

Esta perspectiva pode ser compreendida como a percepção de que só existimos através do contato com o outro, na medida em que ‘uma pessoa é uma pessoa por meio de outras pessoas’. Logo, Ubuntu renova a necessidade de (re) pensarmos nossa relação com o outro e de sentirmos que somos afetados quando nossos semelhantes são ofendidos e humilhados. (OLIVEIRA et al., 2016, p. 12).

Ubuntu contribui no processo para uma educação inclusiva e emancipadora, visto que o indígena e o negro não podem continuar sendo identificados e ensinados meramente como o “outro”. Através desta perspectiva, estes são parte integrante de nós mesmos, das nossas vidas, parte constitutiva de nossa formação histórica e cultural, pois herdamos esta história e ela está presente no nosso dia a dia, no que fomos e somos enquanto indivíduos e sociedade.

Por fim, acreditamos que o processo de aprendizagem se dá em grande parte pela via da empatia – condição fundamental para uma mudança de atitude. A empatia é entendida aqui na sua acepção mais ampla, devendo proporcionar ao conhecimento um significado empático, tendo como chave da aprendizagem uma atitude caritativa, de interesse, estimulada, e desafiadora. Que possam agregar valores e contribuir para negar preconceitos e visões deturpadas. Esse é um importante objetivo que todos nós enquanto sociedade temos que atingir. E para abrir os caminhos de um novo tempo é necessário romper com os muros do preconceito, da negação. É preciso Ubuntu!

Nota

1 De acordo com Mônica Lima (2009), a Universidade Federal da Bahia (UFBA), a Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade Candido Mendes (Ucam) criaram respectivamente o Centro de Estudos Afro-Orientais em 1959, o Centro de Estudos Africanos em 1965, e o Centro de Estudos Afro-Asiáticos, em 1973. A Ucam criou em 1996 o primeiro curso de Pós-Graduação lato sensu em História da África. E a UFBA fundou em 2005 o Programa de Pós-Graduação em Estudos Étnicos (stricto sensu), com mestrado e doutorado, além de possuir desde longa data, uma linha de pesquisa sobre escravidão e liberdade no Programa de Pós-Graduação em História (LIMA, 2009, p. 150).

Referências

GOMES, Nilma Lino. Diversidade étnico-racial, inclusão e equidade na educação brasileira: desafios, políticas e práticas. In: RBPAE – v. 27, n. 1, p. 109-121, jan./abr. 2011.

LIMA, Mônica. Aprendendo e ensiando história da África no Brasil: desafios e possibilidades. In: ROCHA, Helenice A. B; MAGALHÃES, Marcelo de S.; GONTIJO, Rebeca. (Orgs). A Escrita da História escolar: memória e historiografia. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2009, p.149-164.

SILVÉRIO, Valter Roberto. Ações Afirmativas e Diversidade Étnico-Racial. In: SANTOS, Sales Augusto dos. (Org.) Ações Afirmativas e Combate ao Racismo nas Américas. Brasília: MEC/Secad, 2005, p. 141-163.

Giuseppe Roncalli Ponce León de Oliveira –  Universidade Federal de Campina Grande. E-mail: [email protected]

Marinalva Vilar de Lima –  Universidade Federal de Campina Grande. [email protected]

OLIVEIRA, Ariosvalber de Souza et al. (Orgs.). Ubuntu: Educação, Alteridade e Relações Étnicos-Raciais. João Pessoa, PB: Editora CCTA, 2016. Resenha de: Giuseppe Roncalli Ponce León de; LIMA, Marinalva Vilar de. Escritas. Palmas, v.9, n.2, p. 210-213, 2017. Acessar publicação original [DR]

 

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