Os militares e a crise brasileira | João Roberto Martins

Joao Roberto Martins Filho Foto Gabriela Di BellaThe Intercept
João Roberto Martins Filho Foto: Gabriela Di Bella/The Intercept

Em 2020, João Roberto Martins Filho publicou a segunda edição de O palácio e a caserna: a dinâmica militar das crises políticas na Ditadura (1964-1969), adaptação da sua tese de Doutorado em Ciência Política, orientada por Décio Saes e defendida em 1989. Nesse livro, manteve a proposição de que as forças armadas brasileiras configuram um partido político fortalecido na emergência uma “ideologia militar fortemente calcada na repulsa à política civil”, cujas pautas correlatas e consequentes seriam a estabilidade social e a garantia da ordem. (p.55). A tese contrapunha-se à interpretação da experiência militar como um conflito entre dois ideais capitalistas: o internacionalismo da Escola Superior de Guerra (ESG) e o nacionalismo de grupos minoritários. Um ano depois da republicação, Martins Filho nos brinda com outro estudos sobre “militares” e “crise” dos anos recentes, reunindo dezessete autores vinculados a instituições de ensino e pesquisa nas áreas de Estudos de Defesa, Segurança Internacional, Relações Internacionais, Estudos Estratégicos, Ciência Política e História Contemporânea, Antropologia e, ainda, profissionais do jornalismo e da área militar.

Os militares e a crise brasileiraSe o organizador registra que a proposição de 1989 ficou no limbo até 2005, agora restam poucas dúvidas de que os militares representam funções e estratégias de um partido político para si mesmos e que são corresponsáveis pelos ataques à democracia liberal brasileira, perpetrados, por exemplo, desde 2013. O leitor, contudo, encontrará alguma dificuldade para chegar às provas dessa responsabilização. A coletânea é qualitativamente desequilibrada e variada em termos de gênero textual. Verá divergências compreensíveis e saudáveis, em termos de fontes e interpretações. A credibilidade das Forças Armadas (FA), na última década, por exemplo, é tida como em declínio e em ascensão; as políticas dos governos progressistas em termos de defesa são vistas positivamente e negativamente; e a profissionalização dos militares é fundamental e nula para a sua submissão ao controle político civil. Leia Mais

Os militares e a crise brasileira | João Roberto Martins Filho

Joao Roberto Martins Filho Foto Gabriela Di BelaThe Intercept 2
João Roberto Martins Filho | Foto: Gabriela Di Bela/The Intercept

Os militares e a crise brasileira é uma obra escrita a muitas mãos como declara o seu apresentador e organizador, o cientista político, João Roberto Martins Filho. São pesquisadores das ciências sociais e humanas que destrincham, com análises e evidências consistentes, o emaranhado em que nos encontramos, desde a retomada, em alta intensidade, da ação política das Forças Armadas quando vislumbraram em Jair Bolsonaro, o capitão “dono de uma fé de ofício pobre, reprovável, brutal e curta”, o representante para liderar a agenda autoritária que estava em latência desde o fim da ditadura militar que oprimiu o Brasil, de 1964 até 1985.

Os militares e a crise brasileiraOs responsáveis pelos quinze textos da coletânea são parte significativa do conjunto de estudiosos sobre as Forças Armadas. Muitos estão conectados à Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED) e a maioria têm larga produção acadêmica na área. O livro é composto por quinze capítulos e uma entrevista com Héctor Saint-Pierre, concedida à Ana Penido. Na fala, esse especialista discorre sobre papel desempenhado pelas Forças Armadas no contexto internacional a partir de três temas: a autonomia diante do Estado e sua relação com a democracia; as percepções de hegemonia regional; e os conceitos de inimigo na dinâmica de guerra e paz. Leia Mais

Júlia: nos campos conflagrados do Senhor | Bernardo Kucinski

Bernardo Kucinski Foto Marcos SantosUSP ImagensCult
Bernardo Kucinski | Foto: Marcos Santos/USP Imagens/Cult

“[…] quem pretende se aproximar do próprio passado soterrado deve agir como um homem que escava” (BENJAMIN, 2000, p. 239).

Narrada em terceira pessoa, a novela Júlia: nos campos conflagrados do Senhor, de Bernardo Kucinski, publicada pela editora Alameda, em 2020, retrata a história de uma bióloga que, por um acaso, acaba se debruçando no passado de sua família, até então desconhecido pela jovem. Após o falecimento de seus pais, Júlia, assim como é denominada na narrativa, entra em conflito com seus irmãos Beto e Jair para não vender um luxuoso apartamento que ganhara de herança paterna, pois esse imóvel guardava as memórias afetivas da personagem.

Decidida a não vender seu aposento, essa bióloga compra a parte da herança de seus irmãos. No entanto, por conta de seu doutorado em Londres, ela resolve alugá-lo a Daniel, um pesquisador que conhecera no Instituto Biológico. Esse homem, além de sentir-se o dono do imóvel, acabou deteriorando toda a morada dela. Ao ver tal reação do inquilino, a personagem, depois de vários acordos, consegue despejá-lo de seus aposentos.

Como o apartamento estava bastante danificado, a protagonista decide fazer uma reforma naquele lugar. Durante esse período de reparação de seu imóvel, Júlia encontra uma caixa de fuzil, a qual desperta a sua curiosidade. Ao abrir tal objeto, ela encontra umas cartas que revelam não só a participação de seu pai, o engenheiro Durval, na luta contra o regime militar, mas também o envolvimento de religiosos da igreja católica: uns que colaboravam com o autoritarismo, encobriam mortes e colocavam crianças sequestradas para adoção; outros que tentavam impedir as barbaridades cometidas pelos militares. A descoberta dessas correspondências representa a história de um passado obscuro, que até então a personagem não conhecia, como podemos perceber no fragmento abaixo:

Júlia larga os papéis no meio da leitura. Então era isso que acontecia no Brasil? E o pai sabia de tudo isso? E a mãe será que sabia? E o Beto? Estarrecida, retoma a leitura. […] Ao terminar, noite alta, Júlia sente que descobriu um outro país- e um outro pai. Nunca imaginou atrocidades dessas no Brasil (KUCINSKI, 2020, p. 45).

Por meio dessas cartas, a bióloga descobre que fora adotada por sua família. Esse fato a deixa muito aflita. Isto porque ela percebe que vivera uma farsa durante toda a sua vida, no entanto, mesmo angustiada por saber que era filha adotiva, a personagem decide ir em busca de sua verdadeira história.

Nesse percurso pela busca de seu passado, Júlia encontra Magno, um delegado da Polícia de Santos, que ajudava o pai da bióloga tanto com o repasse de informações acerca de alguns presos políticos, quanto em atividades contra o governo. Através desse homem, ela conhece Paula Rocha, uma jornalista bastante conceituada na área do jornalismo, a qual havia sido perseguida durante o regime, devido a algumas reportagens sobre o tráfico de bebês praticados por membros religiosos, em parceria com militares.

Por meio do contato com a repórter, a jovem bióloga toma conhecimento de que é fruto de um relacionamento extraconjugal entre seu pai e Maria do Rosário, uma jovem enfermeira e ex-militante, criada pelas madres do Orfanato e Casa Maternal São Vicente de Paula.

Além disso, a personagem descobre não só que a sua mãe biológica havia sido presa, torturada e morta pelos agentes da repressão, mas também que a sua avó materna, de nome Maria das Dores, havia sido abusada sexualmente por Felipe Mesquita, um agente colaborador da ditadura.

Desse estupro, essa mulher engravida e, assim que tem a criança, é forçada pelo seu agressor a deixar o bebê em um orfanato. Vejamos: “– Foi o patrãozinho que me forçou, o mais taludo deles o Felipe, a depois nem não quis saber do bebê. […] era para entregar pras madres” (KUCINSKI, 2020, p. 95-96).

Essa criança, a qual a mulher havia entregue no orfanato, era Maria do Rosário. Inclusive, na página final da narrativa, há um trecho bastante significativo que serve de pista para o leitor compreender a violência traumática e autoritária sofrida tanto por Júlia, por Maria do Rosário, quanto por Maria das Dores. Vejamos: “Em vez de encontrar a mãe, encontrou uma tragédia, que também era sua, que passava a ser sua. Uma tragédia atravessando três gerações” (KUCINSKI, 2020, p.181). A narrativa termina com a bióloga indo atrás de sua avó para contar- lhe que a filha por quem chorava tanto, tornara-se uma moça linda, inteligente, boa e que teve uma vida curta.

Através de uma linguagem simples e bastante cativante ao leitor, Kucinski aborda um passado que permanece com suas feridas abertas, pois ao trazer para o centro da narrativa uma jovem, em busca de sua história, o autor mostra-nos a necessidade de olharmos para esse passado, a fim de não só conhecê-lo, mas também de analisar criticamente a densidade simbólica da violência autoritária vivida pelas vítimas da ditadura e seus familiares, pois como bem afirma Gagnebin (2006, p. 47):

A rememoração também significa uma atenção precisa ao presente, em particular a estas estranhas ressurgências do passado no presente, pois não se trata somente de não se esquecer do passado, mas também de agir sobre o presente. A fidelidade ao passado, não sendo um fim em si, visa à transformação do presente.

Ao dialogar com a pensadora acima, percebe-se que o autor, ao resgatar esse passado traumático na narrativa em estudo, busca tirar do esquecimento fatos que se pretendeu não só silenciar, mas também apagar da nossa história, a fim de levar o leitor a refletir sobre a violência autoritária praticada àqueles que lutaram pela utopia de um país mais democrático.

À medida que Kucinski configura o horror perpetrado durante a ditadura em sua obra, também mostra que “[…] enquanto a sociedade não assimilar e superar inteiramente a dor do que viveu, suas perplexidades e fragilidades serão estendidas” (GINZSBURG, 2004, p. 56). Na narrativa em estudo, as marcas desse passado dolorido e violento atingem não somente os pais de Júlia e a sua avó Maria das Dores, mas também a própria personagem, pois ela é vítima de um “trauma sequencial3 ”, ou seja, a personagem carrega as cicatrizes provocadas por esse passado violento.

Outro ponto perceptível, na obra de Kucinski, é a naturalização da violência como um grave sintoma social. Isto porque, quando olhamos a história de Maria das Dores e de sua filha Maria do Rosário, percebemos que a impunidade das agressões sofridas por essas duas mulheres provoca “[…] uma sinistra escalada de práticas abusivas por parte dos poderes públicos, que deveriam proteger os cidadãos e garantir a paz” (KEHL, 2010, p. 124).

Enfim, Júlia: nos campos conflagrados do Senhor insere-se num conjunto de narrativas ficcionais que busca “[…] contestar o discurso oficial nunca totalmente desmentido e de impedir o apagamento coletivo com o qual órgãos oficiais pretenderam e ainda pretendem camuflar a história” (PEREIRA, 2020, p.123). Ao apontar para o dever de memória, o autor convida o leitor a (re)pensar sobre essa grande ferida histórica que ainda permanece aberta e impede de termos uma sociedade mais justa, democrática e menos violenta.

Nota

3 Trauma sequencial é “[…] uma experiência histórica de violência que não atinge apenas os que estão imediatamente vinculados a ela. Na mediada em que essa experiência não é superada, por vários caminhos mediados, suas marcas se prolongam para as gerações seguintes” (GINZSBURG, 2004, p.56-57).

Referências

BENJAMNIN, Walter. Rua de mão única. Obras escolhidas II. São Paulo: Brasiliense, 2000.

GAGNEBIN, James Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Ed. 34, 2006.

GINZBURG, Jaime. Ditadura e estética do trauma: exílio e fantasmagoria. In: CORREIA, Francisco José Gomes; VIANA, Chico (Orgs.). O rosto escuro de Narciso: ensaios sobre literatura e melancolia. João Pessoa: Ideia, 2004.

KEHL, Maria Rita. Tortura e sintoma social. In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir (Orgs.). O que resta da ditadura: a execução brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010.

KUCINSKI, Bernado. Júlia: nos campos conflagrados do Senhor. São Paulo: Alameda, 2020.

PEREIRA, Helena Bonito C. Exílio e deserção em Azul Corvo, de Adriana Lisboa. In: Narrativas brasileiras contemporâneas: memórias da repressão. GOMES, Gínia Maria (Org.). Porto Alegre: Polifonia, 2020.


Resenhistas

Francisca Luana Rolim Abrantes –  Doutoranda em Linguagem e Ensino pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Mestra em Linguagem e Ensino pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). E-mail: [email protected] Lattes: http://lattes.cnpq.br/2815636040264614

José Edilson de Amorim –  Professor Titular de Literatura Brasileira da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Doutor em Letras, área de Literatura, pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Mestre em Letras na mesma área de concentração. Atua no PPGLE/UFCG e desenvolve pesquisa sobre literatura e ditadura no Brasil. E-mail: [email protected]  Lattes: http://lattes.cnpq.br/6524195105007515


Referências desta Resenha

KUCINSKI, Bernardo. Júlia: nos campos conflagrados do Senhor. São Paulo: Alameda, 2020. Resenha de: ABRANTES, Francisca Luana Rolim; AMORIM, José Edilson de. Memória e ditadura em Júlia: nos campos conflagrados do senhor, de Bernardo Kucinski. Literatura, História e Memória. Cascavel , v. 18, n. 31, p. 415-418, 2022. Acessar publicação original [DR]

Estilo Avatar: Nestor Macedo e o populismo no meio afro-brasileiro | Petrônio Domingues

Petronio Domingues
Petrônio Domingues | Foto: INFONET/Acervo pessoal

Em 2019, o livro Irmã outsider, da feminista negra estadunidense Audre Lorde (1934-1992), foi publicado no Brasil. Reunindo escritos das décadas de 1970 e 1980, a obra é, segundo Cheryl Clark (1947-), seu “trabalho em prosa mais importante”[1]. Um dos textos mais avassaladores da obra é Aprendendo com os anos 1960.  Bem, mas o leitor ou a leitora poderá estar se perguntando se este texto não é uma resenha sobre o livro do historiador brasileiro Petrônio Domingues – docente da Universidade Federal de Sergipe (UFS) –, Estilo Avatar. Sim, exatamente.

A leitura desta obra fez-me refletir sobre o conceito de militância presente no texto supracitado de Audre Lorde. Como mulher negra, lésbica, poeta e escritora, ela defendeu que a militância é, entre outras coisas, “trabalhar ativamente pela mudança, às vezes sem nenhuma garantia de que ela esteja a caminho. Significa fazer o trabalho tedioso e nada romântico, ainda que necessário, de formar alianças relevantes, significa reconhecer quais alianças são possíveis e quais não são”[2].

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Estados Unidos. Uma História | Vitor Izecksohn

Vitor Izecksohn é professor do Instituto de História da UFRJ e pesquisador do CNPq e tem tido, nos últimos anos, uma trajetória dupla. De um lado, é autor de vários estudos relacionados à história militar brasileira, especialmente no diálogo com a história social. Destacam-se, nessa produção, seus trabalhos relacionados ao exército imperial: a formação do corpo de oficiais, o recrutamento, a organização das milícias, etc. De outro, ele é um especialista na história dos Estados Unidos, especialmente a história militar, entre a independência e o final da Guerra Civil, ou seja, entre 1776 e 1865. Leia Mais

Cidadãos e Contribuintes | Wilma Peres Costa

Cidadãos e Contribuintes: Estudos de História Fiscal, de Wilma Peres Costa, mais do que uma compilação de textos importantes da autora, é o retrato da sua trajetória acadêmica engajada com questões de fundo sobre a história do Brasil. A obra retoma artigos de peso para os debates em que foram inseridos, que se apresentam revisitados e com atualização das suas discussões. Os textos nesta edição, que veio à luz no outono de 2020, ganham mais em profundidade e importância, reunindo a pesquisa desenvolvida no campo de estudos desde sua publicação original. Como todo esforço de pensamento, pertence ao seu tempo e responde a questões centrais para a realidade brasileira vivida, porém sempre relacionada com os desejos da sociedade que se quer construir. Não apenas os textos refletem uma agenda de pesquisa, mas, nas palavras da autora, “reverberam também o forte engajamento político que nos animava, pois tratava-se da democracia que procurávamos reinventar e das desigualdades sociais que urgíamos combater” (p.15).

Mais uma vez, uma grande tragédia nos interpõe questões à realidade vivida. Para os autores que estimularam as discussões contidas nos trabalhos da autora – Marx, Schumpeter, Weber e Keynes – a realidade do início da Era da Catástrofe impunha um debruçar sobre as crises e a estrutura do Estado no passado. Hoje, em 2021, a pandemia do COVID19 ainda desafia a compreensão de suas proporções.3 O pleno entendimento desse fenômeno parece distante e como já habitual do debate nas últimas décadas – e mais nos últimos anos -, o papel do Estado retoma lugar no debate público. A interação com as crises e as formas de norteamento dos dispositivos de arrecadação estão mais uma vez colocadas à prova. Aprender com as crises só é possível a partir do momento em que o entendimento do passado se coloca, de fato, como um pré-requisito, algo que não parece nortear os poderes centrais deste Brasil em que (sobre)vivemos. Quais lições e de quais momentos poderíamos retirar perguntas para construir um futuro? Leia Mais

Geografia das ciências, dos saberes e da história da geografia | Larissa A. de Lira, Manoel F. de Souza Neto e Rildo B. Duarte

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Larissa Alves de Lira | Foto: Epistasthai

Geografia das ciencias dos saberesGeografia das ciências, dos saberes e da história da geografia aborda a história das ciências e das técnicas a partir de vários temas ligados à geografia. Isso porque é a coleção de diversos artigos escritos por diferentes pesquisadores (salvo um historiador, todos geógrafos) a partir de suas pesquisas atuais. Esse livro pode ser interpretado como um convite e uma provocação aos historiadores das ciências e das técnicas, especialmente os que se dedicam à pesquisa sobre história da geografia.

Quando se fala em uma geografia do Brasil, por exemplo, costuma-se visar a uma ciência geográfica própria aos geógrafos brasileiros ou realizada a respeito do território brasileiro, ou, também, originada pela atividade desses geógrafos nacionais ou nesse contexto territorial. Assim, o livro de Lira, Sousa Neto e Duarte (2020) nos convida a interpretar as implicações dessa identificação coletiva com um dado espaço geográfico e nos provoca a considerar o fazer científico nessa condição espacial. Leia Mais

Oliveira Lima e a longa História da Independência | André Heráclio do Rêgo, Lucia Maria Bastos P. Neves e Lucia Maria Paschoal Guimarães

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Lucia Maria Bastos P. Neves e Lucia Maria Paschoal Guimarães | Fotos: A Hora e CocFioCruz.br

NEVES Oliveira LimaHá uma intrigante expressão popular na língua inglesa que sempre desafia o sujeito na direção da curiosidade e da investigação. Cito-a aqui no original: “more than meet the eye”. Ao que tudo indica, trata-se de uma expressão idiomática cuja origem histórica é difícil de rastrear, mas que nos brinda com uma imagem deveras interessante e ilustrativa: a do olhar em movimento, que se desloca na direção de algo com a intenção de “encontrar” o que não lhe parece óbvio, o que pode ainda ser revelado, elaborado, e portanto compreendido.

Cai como uma luva, no meu humilde entender, para dialogarmos nesta breve resenha, acerca da imensa contribuição intelectual e historiográfica, que podemos despreocupadamente constatar em cada página da obra Oliveira Lima e a longa história da Independência, organizada por André Heráclito do Rêgo, Lucia Maria P. Neves e Lucia Maria Paschoal Guimarães. Leia Mais

Estilo Avatar: Nestor Macedo e o populismo no meio afro-brasileiro | Petrônio Domingues

A pesquisa em história social do pós-abolição ampliou-se consideravelmente no país nos últimos anos. Expoente dessa historiografia são os trabalhos do autor resenhado. Petrônio Domingues aborda diversos temas ligados ao estudo do pós-abolição, como o associativismo e a imprensa negra, os projetos educacionais da Frente Negra brasileira, além de diversas biografias e trajetórias (coletivas e individuais) de sujeitos que lutaram, resistiram e escreveram a história negra desse Brasil. Apesar do país continuar racista, os sujeitos revelados pela escrita do historiador Domingues ganham vida ao saírem dos documentos investigados e trazem à tona a pluralidade de personagens históricos: homens e mulheres negros que participaram de diversos e distintos movimentos políticos na sociedade brasileira. Este é o ponto auge da obra de Petrônio Domingues em Estilo Avatar, na qual aborda de maneira relevante a trajetória do ativista afro-brasileiro Nestor Macedo, conhecido como o “Rei do Baile” e fundador da Ala Negra Progressista. Também atuante como cabo eleitoral de Adhemar de Barros, um populista da nossa República democrática nos anos 50 e 60. É crível que Domingues aborde de maneira muito competente e articulada a história dos afro-brasileiros na sociedade pós treze de maio com o tema sobre o populismo. Pode soar estranho aos leitores essa simbiose, mas não o é, pois Petrônio Domingues tem um trabalho expressivo de cruzamento de fontes, tais como: documentos policiais, jornais e atas do clube negro, evocando a participação dos negros na construção da democracia brasileira no período político marcado pela tônica populista. Leia Mais

Escrevendo a história do futuro: a leitura do passado no processo de independência do Brasil | Cristiane A. C. dos Santos

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Cristiane Alves Camacho dos Santos | Foto: LabMundi-USP |

O livro de Cristiane Camacho dos Santos, adaptação de sua dissertação de mestrado (SANTOS, 2010), se propõe a identificar e analisar a utilização política de leituras sobre o passado da colonização portuguesa da América mobilizadas nos debates travados na imprensa luso-americana, entre 1821 e 1822. A autora argumenta que dentre os diversos sentidos atribuídos à colonização portuguesa da América, seu entendimento como empresa “exploradora” e “opressiva” balizou algumas das alternativas disponíveis aos agentes políticos durante o esfacelamento da unidade da monarquia portuguesa. E, em sendo assim, delineou os limites daquilo que era percebido como possível para alguns dos projetos políticos voltados ao futuro da América portuguesa, dentre os quais a ruptura política com Portugal e a independência do Brasil. Essa experiência do tempo, prossegue a autora, ocorreu concomitantemente à politização da identidade coletiva daqueles entendidos, gradualmente, como “brasileiros”. Em suma, trata-se da conversão do passado da colonização portuguesa da América em instrumento político de sustentação de projetos que inseriram a independência do Brasil no horizonte do possível, dando os contornos para a politização de uma nova identidade coletiva.

O livro é estruturado em três capítulos balizados por uma introdução e um epílogo. O primeiro capítulo versa sobre a experiência do tempo durante a crise do Antigo Regime em Portugal vivenciada por diferentes identidades políticas da América portuguesa. Nesse capítulo, ressalta a constituição da história luso-americana como uma parte específica e complementar da monarquia lusa, entre os séculos XVI e XVIII, a nova dignidade adquirida pelo território português da América com a transferência da Coroa em 1808 e sua correspondente inauguração de novas expectativas. No bojo dos acontecimentos ensejados pelo início da dissolução dos impérios ibéricos, constitui-se uma oposição semântica entre “colônia” e “nação” que encontrava respaldo concreto nas experiências engendradas a partir de 1808 e que delineavam a percepção de um “novo tempo” (SANTOS, 2017, 151-152). O capítulo dois debruça-se sobre as disputas semânticas acerca da presença portuguesa na América, cuja lógica de complementariedade, vigente no reformismo ilustrado, perde sua estabilidade na percepção contemporânea da valorização dos territórios americanos no início do século XIX. Neste capítulo analisa, a partir de cotejamento historiográfico, a importância da imprensa periódica na delimitação dos espaços públicos em 1821, seu potencial para investigações sobre identidades políticas em período de profunda transformação e, por fim, como a colonização portuguesa da América subsidiou a representação de certa unidade desses territórios, embora fosse cenário para disputas semânticas ambíguas. O terceiro e último capítulo, baseado em sólida análise documental, fornece respaldo à hipótese do uso político do passado durante o esfacelamento das condições de reciprocidade e compatibilidade entre Portugal e a América portuguesa, sobretudo a partir da conjuntura ensejada pelos decretos das Cortes de Lisboa de setembro de 1821. Aponta que o mês de dezembro daquele ano demarcou, nos periódicos analisados, a conversão do topos dos “trezentos anos de opressão” em leitura difundida do passado da colonização portuguesa da América como denúncia das arbitrariedades associadas à condição colonial (SANTOS, 2017, 199). Essa significação da experiência, exprimida nos jornais, tensionava identidades coletivas divididas entre “metropolitanos” e “colonos”, desdobradas, posteriormente, na oposição entre “portugueses” e “brasileiros”. Essa forma discursiva, portanto, sintetizava trezentos anos de história – sinal de encurtamento da experiência – sobre o denominador comum da “opressão” vinculada à condição colonial, cuja manutenção era, paulatinamente, associada aos interesses de portugueses peninsulares.

Em termos de método, Santos procede a uma análise de evocações do passado mobilizadas por diferentes impressos das províncias do Rio de Janeiro, Pará, Bahia e Pernambuco – com ênfase na primeira – que deram os contornos a diferentes características e aspectos dos usos políticos do passado pelos periodistas. A intenção da autora é inferir uma experiência do tempo a partir de elaborações e interpretações do passado que, exprimidas em jornais, integraram o debate político de múltiplos grupos e indivíduos da América portuguesa. Do ponto de vista teórico, Santos qualifica essas formulações sobre o passado como fontes capazes de indicar a tensão entre a experiência e a expectativa dos atores políticos, ou seja, permitem diagnosticar um certo passado e futuro presentes que desempenharam a função de guias parciais das atuações políticas. Além disso, concebe que a organização da tensão entre um conjunto de sentidos atribuídos a um passado e às perspectivas abertas de um futuro parcialmente novo contribuíram para a definição e politização de uma nova identidade coletiva, a “brasileira”, e a recomposição de outras preexistentes.

Por essas razões, Santos articula-se a diferentes campos historiográficos reunidos, principalmente, sob o escopo de uma teoria do tempo histórico e das identidades políticas coletivas. A principal teoria a subsidiar atualmente pesquisas sobre a experiência do tempo histórico é, direta ou indiretamente, tributária dos escritos do historiador alemão Reinhart Koselleck. De acordo com Koselleck, o tempo histórico é o produto da tensão, estabelecida na modernidade, entre experiência e expectativa, tensão que permite interpretar o entrelaçamento interno entre o passado e o futuro cuja dinâmica baliza as histórias vislumbradas pelos agentes sociais como sendo possíveis (KOSELLECK, 2006, 305-327). Em segundo lugar, outra tradição historiográfica à qual a autora se vincula refere-se à consolidada utilização de periódicos, ou jornais, como fontes históricas capazes de traduzir e produzir fenômenos políticos no passado (MOREL; BARROS, 2003, 11-50). Em terceiro lugar, Santos parte de premissas acerca da criação e transformação de diferentes identidades políticas elaboradas por autores como Tulio Halperín Donghi (DONGHI, 2015), José Carlos Chiaramonte (CHIARAMONTE, 1997), István Jancsó (JANCSÓ; PIMENTA, 2000) e João Paulo G. Pimenta (PIMENTA, 2015). Por fim, no relativo ao debate sobre as diferenças entre o Estado e a nação, adere às perspectivas adotadas por Anthony Smith (SMITH, 1997), em oposição à Eric J. Hobsbawm (HOBSBAWM, 1990), ao definir que o Estado não teria sido um demiurgo da nação, esta última seria o resultado da recombinação de elementos preexistentes – recordações históricas partilhadas, mitos de origem comuns, elementos culturais diversos, associação a um determinado território e etc. – que, em determinado momento histórico, teriam sido “outorgados” como sinais diferenciadores de uma nacionalidade (SANTOS, 2017, 210-213).

Essa arquitetura teórica e metodológica, informada por ampla historiografia, permitiu que os periódicos fossem considerados como vetores simbólicos das disputas políticas, portadores de discursos sobre o passado que, ao organizar seus significados, delimitaram o futuro possível da ação política, então conduzida por agentes cuja identidade coletiva era simultaneamente reposicionada mediante a sua experiência temporal. Esse complexo processo correspondia às dialéticas conflituosas da formação do Estado e da nação concomitantes à modificação do estatuto e da qualidade da História, doravante entendida como capaz de legitimar projetos políticos. Observando-se a sua trajetória de pesquisa, Santos associa-se diretamente ao ambiente intelectual ensejado pelo projeto coletivo denominado Formação do Estado e da nação, organizado no início dos anos 2000 e coordenado pelo Prof. Dr. István Jancsó, no Departamento de História da Universidade de São Paulo.

Embora o resultado atingido pela autora seja louvável, sobretudo em função de seu rigor teórico e analítico, algumas questões permaneceram irresolutas. A primeira delas refere-se a um aspecto cronológico relativo à dialética entre Estado e nação. De acordo com Santos, a independência do Brasil inaugurou o período de construção do Estado nacional, o qual, segundo afirma, prolongou-se de modo conflituoso até a década de 1850 (SANTOS, 2017, 208). Qual teria sido, então, o marco histórico a delimitar o fim do caráter “conflituoso” da relação entre o Estado e a nação? A importante demonstração de que a história colonial não foi o desenvolvimento natural da nação – ou de que a independência não foi seu resultado obrigatório -, mas sim parcialmente produto do manejo político do tempo, uma construção simbólica durante o acirramento das incompatibilidades de grupos da monarquia portuguesa, deixa em aberto a questão do corpo social. Noutros termos, os contornos iniciais da identidade política coletiva nacional “brasileira”, delineada nas trepidações políticas dos anos de 1821 e 1822, não buscou integrar a totalidade da população e, desse modo, aponta para uma das condições de compatibilidade entre a formação dos “brasileiros” e a manutenção reinventada da escravidão após a independência. Seria pertinente especificar os conjuntos sociais abarcados por esse uso político do tempo para, assim, diagnosticar os excluídos de uma identidade seletiva emergente que provavelmente condicionaria diversos conflitos entre o Estado e a nação. Por fim, observo que a ausência da incorporação da dissertação de mestrado de Rafael Fanni (FANNI, 2015), elaborada após a dissertação de Santos e antes de sua readaptação em livro – e que é abertamente tributária da interpretação de Cristiane Camacho dos Santos -, prejudicou a possibilidade de aprofundar o rigor e expandir a envergadura das constatações da autora.

Teórica e metodologicamente bem estruturado, o livro de Cristiane Camacho dos Santos representa uma contribuição historiográfica importante aos estudiosos da história social do tempo e da formação do Estado e da nação do Brasil. Um estudo acadêmico que, embora concentrado em cronologia curta, é capaz de demonstrar a espessura temporal subjacente aos discursos políticos veiculados em jornais durante o processo de independência do Brasil. Em suma, e utilizando o vocabulário de Koselleck, trata-se de uma boa demonstração acadêmica da interrelação entre a temporalização da política e politização do tempo devidamente mediadas por identidades políticas coletivas, cuja investigação é plenamente realizável através de periódicos contemporâneos.[1]

Nota

1. Esta resenha foi concebida durante os debates do núcleo de pesquisa “História do Tempo: teoria e metodologia”. <http://labmundi.fflch.usp.br/historia-do-tempo> Agradeço a Edú T. Levati pela correspondência das citações.

Referências

CHIARAMONTE, Jose Carlos. “La formacion de los Estados nacionales en Iberoamerica”. InBoletin del Instituto de Historia Argentina y Americana Dr. Emilio Ravignani, 3ª serie, 1º semestre de 1997.

DONGHI, Tulio Halperin. Revolucao e guerra: formacao de uma elite dirigente na Argentina criolla. Sao Paulo: Hucitec, 2015.

FANNI, Rafael. Temporalizacao dos discursos politicos no processo de Independencia do Brasil (1820-1822). 164 p. 2015. Dissertacao (Mestrado em Historia Social) – FFLCH, USP, Sao Paulo.

HOBSBAWM, Eric J. Nacoes e nacionalismos desde 1780. Rio de Janeiro: Terra e Paz, 1990.

JANCSO, Istvan; PIMENTA, Joao Paulo G. “Pecas de um mosaico: ou apontamentos para o estudo da emergencia da identidade nacional brasileira”. InRevista de Historia da Ideias. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, v. 21, 2000, p.389-440.

KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuicao a semântica dos tempos historicos. Rio de Janeiro: PUC-Rio, Contraponto, 2006.

MOREL, Marco; BARROS, Mariana Monteiro de. “O raiar da imprensa no horizonte do Brasil”. InPalavra, imagem e poder: o surgimento da imprensa no Brasil do seculo XIX. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p.11-50.

PIMENTA, Joao Paulo G. A independencia do Brasil e a experiencia hispano-americana (1808-1822). Sao Paulo: Hucitec , 2015.

SANTOS, Cristiane Alves Camacho dos. Escrevendo a historia do futuro: a leitura do passado no processo de independencia do Brasil. Sao Paulo: Alameda, 2017.

SANTOS, Cristiane Alves Camacho dos. Escrevendo a historia do futuro: a leitura do passado no processo de independencia do Brasil. 186 p. 2010. Dissertacao (Mestrado em Historia Social) – FFLCH, USP, Sao Paulo.

SMITH, Anthony. A identidade nacional. Lisboa: Gradiva, 1997.

Thomáz Fortunato – Departamento de História da Universidade de São Paulo – São Paulo, SP, Brasil. Mestrando em História Social pela Universidade de São Paulo. Membro do Laboratório de Estudos sobre o Brasil e o Sistema Mundial e do grupo Temporalidad (Iberconceptos). Pesquisador da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. E-mail: [email protected]


SANTOS, Cristiane Alves Camacho dos. Escrevendo a história do futuro: a leitura do passado no processo de independência do Brasil. São Paulo: Alameda, 2017. Resenha de: FORTUNATO, Thomáz. A politização do tempo histórico na Independência do Brasil1. Almanack, Guarulhos, n.27, 2021. Acessar publicação original [DR]

 

O triunfo da persuasão: Brasil/ Estados Unidos e o Cinema da Política de Boa-Vizinhança durante a II Guerra Mundial / Alexandre B. Valim

Bandeiras Brasil x EUA
Bandeiras – Brasil x EUA

VALIMNa obra “O triunfo da persuasão: Brasil, Estados Unidos e o Cinema da Política de Boa- Vizinhança durante a II Guerra Mundial”, o autor Alexandre Busko Valim nos apresenta uma discussão sobre o uso do cinema na política de aproximação entre Brasil e Estados Unidos no contexto da Segunda Guerra Mundial. Buscando estabelecer influência tanto no Brasil quanto em outras repúblicas da América Latina, os Estados Unidos desenvolveram a Política da Boa- Vizinhança, que foi aprofundada e inovou nos métodos de controle e dominação durante a Segunda Guerra Mundial. Nesse novo quadro essa política era relevante pois visava garantir aos Estados Unidos: o potencial mercado latino-americano, o apoio do Brasil que possuía posição estratégica no cone sul durante o conflito bélico e por último – e importante – garantir o acesso a matérias primas essenciais para o esforço bélico dos Aliados.

O objetivo de Valim, possuindo como base teórico-metodológica a História Social do Cinema, é analisar os usos do cinema que objetivava o estreitamento das relações entre Brasil e Estados Unidos no contexto da Segunda Guerra Mundial. Uma das originalidades do livro é a abordagem escolhida pelo autor para tratar do tema; ele não busca fazer uma análise dos filmes produzidos, ou seja, reconhecer seus significados e representações, que é o comum dentro da bibliografia que trata do cinema na Política de Boa-Vizinhança. Indo além, busca se explicitar como se deu a estruturação da OCIAA (Office of the Coordinator of Interamerican Affairs) e a implantação das regionais no Brasil, e mais a frente à fundação da Brazilian Division (a sessão brasileira do Office). Abrangendo a parte burocrática da ação, analisando também o papel do DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) no período. Focando sua discussão em apresentar como se deu a criação e o planejamento das atividades do Office no Brasil, analisando como os grupos dirigentes se decidiam, quais eram seus objetivos e suas ações, mais que isso, quais foram os entraves burocráticos encontrados no Brasil e quais foram as soluções realizadas. Chama atenção para a necessidade de se conhecer os processos de concretização do Office para dessa forma não colocarmos o período como uma mera consequência do imperialismo onipotente norte-americano.

Outro ponto original da obra se remete as fontes utilizadas pelo autor, sendo elas documentos depositados na National Archives em College Park, nos Estados Unidos (NARA II).

Essas fontes são um conjunto de memorandos, relatórios, cartas que circulavam entre as instituições (regionais, Brazilian Division, Office). O conteúdo delas variavam, desde aviso sobre decisões tomadas, relatórios qualitativos e quantitativos, preocupações compartilhadas pelos grupos, demandas, interesses, impasses e etc. Sendo assim, essas fontes são cruciais para se entender como se deu a idealização, organização e ação das atividades do Office no Brasil.

Utilizando o conceito de “zona de contato”, Valim também contribui originalmente ao propor uma análise onde observa os conflitos culturais existentes nos espaços sociais conjuntos construídos durante o contexto estudado. Dirigindo atenção a atores sociais que não possuíam destaque dentro das instituições oficiais, atores esses que foram peças chaves dentro da estruturação do Office e realização de suas atividades. Dessa forma, ele coloca sob o holofote estes que por muito foram ignorados pela historiografia do tema, mas que tiveram papel essencial no período.

Partindo para a estruturação da obra, tirando a introdução e as considerações finais, o livro apresenta seis capítulos no total, e em cada um deles os argumentos são articulados para com sua ideia principal. Na introdução são apresentados os objetivos gerais do livro, como também é explicitada qual metodologia será utilizada e qual documentação foi acessada para construção da obra. Em linhas gerais é abordado o contexto da Política da Boa-Vizinhança, suas bases e seus ideais, e também é apresentado um breve debate historiográfico sobre as produções que abordam esse período. Um breve histórico da criação do Office e da Motion Picture Division é exposto, além de apontar o porquê do interesse dos Estados Unidos na América Latina, em específico o Brasil. O autor segue e explicita os conceitos de persuasão e propaganda, e argumenta do porquê da escolha do cinema como instrumento de aproximação entre os países. Outro ponto importante abordado é sobre os entraves causados pelo governo brasileiro, no âmbito do DIP, que serão mais bem analisados nos capítulos seguintes.

No primeiro capítulo, intitulado “The Brazilian Division: a chegada do Office no Brasil”, o autor foca em apresentar como se deu a estruturação do Office no Brasil e a criação da Brazilian Division. Aponta as limitações legais encontradas no país e as ações tomadas para burlar o governo varguista que era lido possuindo um teor “muito nacionalista”, que não agradava o Office. Seguindo, é apresentado dados sobre quem seriam os responsáveis do Office, da Brazilian Division e das regionais instaladas. O capitulo é uma extensa explicação sobre a estrutura política do Office, suas divisões, cargos e tarefas; é a apresentação da parte técnica e burocrática do mesmo. O segundo capítulo, “Aliados precisam ter atitudes amigáveis: propaganda, oportunidade e lucro”, é desenvolvido a parte do embate entre a legislação brasileira e os desejos do Office, nesse caso, em relação à taxação dos filmes estrangeiros. São elencados quais eram as obrigatoriedades da Brazilian Division em relação à produção e divulgação dos filmes. Discorre-se sobre os esforços de se extinguir os filmes do Eixo. Por fim, ele pincela um pouco sobre a tentativa de se conseguir ajuda da Motion Picture Division para produzir filmes nacionais, e também sobre os esforços da Brazilian Division em treinar com eficácia os técnicos para produção e divulgação dos filmes.

Já o terceiro capítulo, intitulado “O show precisa continuar: o cinema da boa-vizinhança adentra o país” é focado em discutir sobre as dificuldades de expansão das exibições para o interior do Brasil. É explicada as dificuldades técnicas que envolviam disponibilidade de material, equipe treinada e transporte, por exemplo. Para, além disso, o capítulo aborda a recepção dos filmes no interior a partir de relatórios das equipes envolvidas. Aponta algumas situações onde ocorreram impasses com as autoridades locais no que tange permissão para as exibições, e debate sobre como esses embates eram retirados dos relatórios que eram enviados ao Offiice, numa tentativa de não manchar a atuação do mesmo no país o que poderia pôr em risco a continuação das suas atividades.

A argumentação sobre a recepção dos filmes pelo interior segue no quarto capítulo, “Acenando as cabeças para filmes extraordinários: os maiores hits do cinema da boavizinhança”.

É abordada a preocupação no quesito mensagem do filme vs. receptor, ou seja, a atenção dispendida em relação aos efeitos que as histórias dos filmes causavam no público, onde houve casos que não eram agradáveis porque não se identificavam com a realidade apresentada nas obras. Ainda nesse capitulo, é discutido sobre alguns requisitos relacionados a filmagens realizadas no Brasil, como por exemplo, o ponto de evitar pobres e negros nas cenas gravadas. Um pouco mais a frente, é abordado um pouco sobre a relação de Disney e a política da boa-vizinhança, abordando alguns filmes que o mesmo realizou no período diretamente relacionado a política de aproximação. Por fim, discute também a censura realizada pelo DIP aos filmes que seriam exibidos no país, as diretrizes para o cinema no Brasil, e elenca filmes proibidos que eram considerados simpáticos aos alemães e a URSS.

O quinto capítulo, “Caçando com os melhores cães: os projetos de cinema do Office”, a partir de três projetos chamados: William Murray Project, John Ford Project e o Production of 16mm in Brazil, o autor aborda as ideias do Office no que tange exibição e produção cinematográfica em âmbito nacional. Analisa toda a parte burocrática, que seria o orçamento, equipe técnica, parcerias privadas e públicas que permeavam essa empreitada de se investir na produção cinematográfica brasileira. Aponta também os argumentos daqueles que foram a favor e contra ao investimento estadunidense na indústria cinematográfica local e quais foram os desfechos. O sexto e último capítulo, chamado “Mais dramático que qualquer ficção as múltiplas fronteiras exploradas pelo cinema da boa-vizinhança”, analisa as ações para incentivar a produção da borracha para os esforços de guerra a partir da relação entre cinema e a “batalha da borracha”, além disso, também discute os estereótipos que associavam o Brasil a um local exótico e selvagem, e por último aborda novamente a discussão sobre a construção de uma indústria cinematográfica nacional a partir de investimentos norte-americanos.

Como é possível ver a partir das sínteses dos capítulos, o autor desenvolveu sua ideia principal de acordo com a evolução da obra. Utilizando as fontes da NARA II, Valim destrincha uma parte que até então não recebia muita atenção da bibliografia, que é a idealização e estabelecimento do Office no Brasil. As questões burocráticas que se desenrolaram, os impasses entre governo estadunidense e brasileiro. Salienta o embate entre ideais do governo varguista e os ideais propagados do ‘american way of life’, de liberdade e democracia pelos estadunidenses.

Para, além disso, destrincha a imagem estereotipada e até mesmo idealizada produzida sobre o Brasil, ressaltando inclusive o interesse do governo nacional nessa retratação que ignorava as desigualdades e mazelas sociais. Um fator interessante levantado na obra é sobre como em alguns casos funcionários estadunidenses se compadeceram mais pela causa brasileira e passaram então defendê-las, como por exemplo, dentro do projeto John Ford, onde os funcionários possuíam interesse de produzir filmes sobre a cultura do Brasil, sobre as músicas, o samba, mas foram inibidos porque isso ia de encontro com os interesses do Office.

A obra de Valim, lançada em 2017, se posiciona em um momento onde se faz muito necessário reconhecer a força e influência que os canais de comunicação possuem sobre a formulação da opinião pública. Como dito anteriormente, a obra não foca em analisar os signos representados nos filmes da época, mas se propõe a um estudo mais aprofundado sobre a natureza das atividades do Office e da sua relação com os grupos dirigentes do país. A partir de sua argumentação, é possível perceber como a Política da Boa-Vizinhança aprimorou os métodos de controle e dominação. “O Triunfo da Persuasão” não se mostra original apenas nos documentos que utiliza como fontes primárias, mas na abordagem que busca observar a relação entre dois países com poderes assimétricos, conseguindo, dessa forma, demonstrar as limitações da suposta onipotência norte-americana no contexto. Este livro se coloca enquanto leitura essencial para aqueles interessados em História Social do Cinema, sobre uso do cinema no contexto da aproximação do Brasil e dos Estados Unidos durante a Política da Boa- Vizinhança, além de abrir inúmeras possibilidades de pesquisas dentro da temática que aborda.

Carolina Machado dos Santos – Graduanda pela Universidade Federal Fluminense no curso de História (Licenciatura).


VALIM, Alexandre Busko. “O triunfo da persuasão: Brasil, Estados Unidos e o Cinema da Política de Boa-Vizinhança durante a II Guerra Mundial”. 1. Ed. São Paulo: Alameda, 2017.Resenha de: SANTOS, Carolina Machado dos. Cinema e política da boa-vizinhança. Cantareira. [Niterói], v.34, p.675-678, jan./jun. 2021. Acessar publicação original [IF].

Cultura e poder entre o Império e a República: estudos sobre os imaginários brasileiros (1822-1930) | Ana Beatriz D. Barel e Wilma P. Costa

livro Cultura e poder entre o Império e a República: estudos sobre os imaginários brasileiros (1822-1930), organizado pelas historiadoras Ana Beatriz Demarchi Barel e Wilma Peres Costa, é uma coletânea de trabalhos que pesquisadores de diferentes instituições do país apresentaram durante o “Seminário Internacional de Estado, cultura e elites (1822-1930)”, na Fundação Casa de Rui Barbosa, em 2014. A obra tem como recorte cronológico o chamado “longo século XIX” no Brasil, que, segundo as próprias organizadoras, foi marcado pela “intensidade das transformações que atravessaram a experiência humana no Velho e no Novo Mundo” (p. 7).

Através da análise de objetos variados e trajetórias individuais, o livro apresenta as disputas travadas no interior do processo de definição da identidade nacional brasileira, um itinerário complexo marcado pela construção do Estado e pela consolidação da nação. Para a elite letrada brasileira, o desafio consistia em estabelecer símbolos que fossem importantes para o público interno letrado do país e para os leitores do velho continente. Seu objetivo era integrar o Brasil no sistema cultural das nações europeias, ao mesmo tempo que era necessário distingui-lo das demais nações do Novo Mundo.

Os projetos nacionais para o Brasil, a fundação de instituições culturais, a composição da sociedade letrada, a relação entre Estado e cultura, tudo isso está presente ao longo dos doze capítulos que compõem as duas partes da obra. Os da primeira parte abordam especialmente a propagação da cultura escrita no país, destacando-se algumas figuras importantes que conduziram os debates sobre a nação através da produção de obras, organizações literárias e disputas dentro das próprias instituições do país. Na segunda parte do livro, observamos a importância e o impacto da difusão da imagem, em particular dos retratos e da fotografia nas décadas que compreendem a segunda metade do século oitocentista até o início da república brasileira. Em ambas as partes, as disputas pela construção de narrativas para o país, bem como a relação tensa entre cultura e poder, constituem o eixo de análise dos capítulos.

O primeiro capítulo da obra, “Espaço público, homens de letras e revolução da leitura”, do historiador Roger Chartier, fornece a chave para compreender as tensões entre o Estado, as elites e a constituição da cultura nacional exploradas em diferentes momentos do livro. Chartier desenvolve aí a genealogia de três noções, a de espaço público, a de circulação de impressos e a de constituição do conceito de intelectual. Desenvolvidas durante o movimento iluminista, essas noções apresentaram variações no desenrolar do mundo contemporâneo e influíram decisivamente nas nações a surgir nas Américas, entre elas o Brasil.

A construção de um imaginário para a nação a partir do olhar estrangeiro do viajante, tema clássico mas sempre atual nas discussões sobre o Novo Mundo, é apresentado no segundo capítulo do livro, de Luiz Barros Montez Barros. O texto analisa os objetivos da produção dos relatos do alemão Johann Natterer a respeito de sua viagem ao Brasil entre os anos de 1817 a 1835. Como sugere Barros, conhecer novas terras possibilitava a elaboração reflexiva sobre a cultura dos países de origem dos próprios viajantes. Essa produção, além de prezar pela objetividade científica das informações, resultava em avaliações eurocêntricas que ressaltavam a “afirmação da supremacia do modelo civilizacional e técnico” dos países capitalistas emergentes (p. 49).

O estudo de Wilma Peres Costa sobre a figura de um dos intelectuais mais importantes do século XIX brasileiro, Alfredo d’Escragnolle Taunay (1843-1899), também explora a temática da construção da identidade nacional brasileira em sua complexa relação com o Velho Mundo. A autora observa a complexidade de um personagem que pertencia à linhagem francesa e vivenciava o contexto desafiador de criação de um campo literário e artístico no Brasil oitocentista. Através da análise do processo de mudança do próprio nome do literato, aponta que Taunay, em oposição à maioria dos intelectuais brasileiros, buscava se distanciar das referências francesas e se aproximar das de Portugal e do nativismo brasileiro. Assumindo a condição de uma “dupla cidadania intelectual”, o letrado revelava em suas obras, com destaque para A Floresta da Tijuca, o projeto de construção de uma memória e história vinculadas ao poder do Imperador e da monarquia no Brasil.

O esforço pela construção do Estado e pela busca da estabilidade política monárquica no Brasil também se materializou na fundação das instituições literárias na primeira metade do século XIX, como o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), criado em 1838. Naquele momento, a elite letrada do Brasil se inspirava nas instituições francesas – o Instituto Histórico de Paris havia sido fundado alguns anos antes (1834) e contava com a presença de representantes do Império brasileiro em suas sessões iniciais. A preocupação do homem do século XIX, dos dois lados do Atlântico, era com o registro histórico para a composição e conformação da memória nacional.

Dois capítulos do livro se ocupam dos temas relacionados à composição social dos membros do IHGB e às escolhas de temas nas publicações de sua Revista, na primeira metade do século XIX. A historiadora Lucia Maria Paschoal Guimarães analisa como a seleção de acontecimentos históricos e suas respectivas narrativas, junto à composição social dos membros do IHGB desde a sua fundação até o ano de 1850, apontam para o esforço considerável de construir um passado nacional legitimador do Estado monárquico. A defesa da monarquia e da figura do Imperador era necessária diante das conturbações e pressões vividas naquele momento. “O passado acabaria então por converter-se em ferramenta para legitimar as ações do presente.” (p. 62).

Tamanho esforço também poderia ser observado na busca pelo estabelecimento dos cânones literários brasileiros na Revista do IHGB, dado que os escritores nacionais a figurar entre as referências literárias também foram definidos no interior do próprio Instituto. Conforme nos indica Ana Beatriz Demarchi Barel, a seção da revista intitulada “Biographia dos Brasileiros Distintos por Letras, Armas, Virtudes, &” tinha a finalidade de apresentar ao público os nomes de personalidades nacionais (escritores, advogados, diplomatas, navegadores, inquisidores) dignas de elogios, e dentre elas é possível observar a indicação de quais nomes deveriam pertencer ao panteão dos escritores da literatura nacional, em diálogo com as referências europeias. Assim, “a RIHGB conforma-se como instrumento de propaganda da política alavancada pelas elites e do poder de um monarca ilustrado nos trópicos” (p. 83).

O historiador Avelino Romero Pereira abordou a música no Império como um campo de prospecção e definição de um projeto cultural nacional. Propondo refletir sobre suas características “aproximando-a da literatura e das artes visuais” (p. 100), o autor destaca que, a exemplo dos gêneros literários, a produção, a circulação e o consumo musical estiveram permeados de tensões. O mecenato exercido pelo imperador nessa área não reduziu a música a um caráter meramente oficialista do Império, como se os artistas fossem “marionetes a serviço do poder pessoal do Imperador e da construção de um projeto exótico de Império nos trópicos”. (p. 93) Araújo Porto Alegre seria um dos representantes da multiplicidade de ideias contrapostas à visão de unicidade nacional.

As trajetórias individuais iluminam as contradições, oposições e alianças estabelecidas no processo de formação de campos discursivos culturais no Brasil, como se pode ver no capítulo de Letícia Squeff. A autora nos apresenta o caso do pintor Estevão Silva, negro, que se indignou ao receber a medalha de prata como artista das mãos do Imperador, em 1879, Academia Imperial de Belas Artes. Squeff aponta a tensão que esse episódio gerou, intensificando, inclusive, o momento de crise vivido dentro da instituição e, também, acentuando ainda mais o descrédito público da figura do Imperador. “Foi percebido como atitude potencialmente revolucionária, numa monarquia que já vinha sendo sacudida por debates e discursos republicanos” (p. 294).

Ricardo Souza de Carvalho também traz à tona uma importante trajetória individual ao analisar a atuação do abolicionista e monarquista Joaquim Nabuco em duas instituições de peso, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e Academia Brasileira de Letras. Como dito, o IHGB se vinculou, durante todo o período do Império, à figura do Imperador e à Monarquia, enquanto a Academia Brasileira de Letras, fundada na última década do século XIX, marcou as necessidades relacionadas aos dilemas da construção do início da República no Brasil. Carvalho estuda a presença de Nabuco nessas instituições para mapear as relações tensas entre instituições culturais e política no fim do Império.

A relevância social das imagens na segunda metade do século XIX aparece no capítulo de Heloisa Barbuy, dedicado à organização de uma galeria de retratos na Faculdade de Direito de São Paulo no século XIX. O retrato ganhava ares de prestígio no momento em que a fotografia ainda não era tão glorificada. Retratar significava eternizar uma memória, dando início a uma “cultura de exposições” na segunda metade do século XIX que se ligava à construção de narrativas nacionais e, também, ao estabelecimento de personalidades como figuras de referência. Barbuy indica a relação entre a formação do Estado Nacional, em particular o seu sistema jurídico, e a escolha de determinadas trajetórias de “homens públicos-estadistas e governantes” para figurar uma sala de retratos. “Homenagear alguém com o seu retrato em pintura, em telas de grandes dimensões, era a expressão máxima da admiração reverencial que se desejava marcar.” (p. 223).

O capítulo de Ana Luiza Martins aborda a importância da iconografia para demarcar a preponderância do café na economia imperial brasileira. A ideia de que o “café dava para tudo” é problematizada através da análise de inventários e das obras literárias sobre os cafeicultores do Vale do Paraíba. As dificuldades encontradas com o declínio do tráfico negreiro e as oscilações do mercado ficaram, durante muito tempo, submersas na imagem do poder que a economia cafeeira proporcionava, imagem construída em grande medida pela iconografia. Os casarões dos proprietários das fazendas de café estavam retratados em telas pintadas por artistas de renomes da corte, o que representava o “poderio econômico e político” dos cafeicultores mesmo no momento em que a produção da região já não estava em seu auge.

Analisando a arquitetura do Vale do Paraíba, Carlos Lemos aponta para as transformações da cultura material nas residências da região. Lemos salienta que o material para construção das residências não variava e que o Estado não teve influência na constituição de suas características. As questões estéticas das casas, ao longo do Paraíba no século XIX, não eram primordiais. O tamanho das casas era o fator que diferenciava a classe social e econômica e é nesse aspecto que podemos perceber o esforço de diferenciação social que ocorreu através da monumentalidade dos casarões dos cafeicultores. “O que interessava aos ricaços era unicamente o tamanho de suas casas de dezenas de janelas” (p. 168).

O simbolismo de poder existente nas construções grandiosas, nas imagens e em suas exposições também ganharam aspectos novos com o advento e difusão da fotografia no Brasil. A chegada de fotógrafos europeus, a partir da segunda metade do século, possibilitou que aspectos da nossa sociedade fossem retratados com base em uma nova materialidade. Ao analisar a trajetória do fotógrafo alemão judeu Alberto Henschel, Cláudia Heynemann observa que, no momento em que o retrato a óleo ainda se restringia a uma minoria economicamente favorecida, a fotografia, através do desenvolvimento do formato carte de visite, possibilitou que outros setores da sociedade também tivessem acesso ao consumo de suas próprias imagens. O álbum privado, que trazia imagens de “famílias brasileiras, abastadas, das camadas médias em ascensão, de libertos, de escravizados, gente de todas as origens”, se tornou uma febre social (p. 258). A respeito de Alberto Henschel, a autora ainda destaca a diversidade de seus trabalhos, inclusive inúmeras fotografias que retratava os negros brasileiros, marcando um novo momento da história visual do Império e da sociedade escravista.

A diversidade de abordagens apresentada nos capítulos que compõe Cultura e poder entre o Império e a República nos permite compreender, com mais acuidade, o panorama múltiplo das relações entre as elites brasileiras e o Estado Nacional ao longo de mais de cem anos. A leitura de cada capítulo dá densidade a esse relevante tema de investigação. À medida que nos detemos em um determinado personagem ou em algum contexto mais específico, nos aproximamos das mais variadas formas de produção e circulação de ideias que fizeram parte da construção do imaginário nacional de um país monárquico cercado de repúblicas e profundamente marcado pela herança da escravidão.

Referência

BAREL, Ana Beatriz Demarchi; COSTA, Wilma Peres. (Orgs). Cultura e poder entre o Império e a República: estudos sobre os imaginários brasileiros (1822-1930). São Paulo: Alameda, 2018.

Lilian M. Silva – Universidade Federal de São Paulo. São Paulo – São Paulo – Brasil.


BAREL, Ana Beatriz Demarchi; COSTA, Wilma Peres. (Orgs). Cultura e poder entre o Império e a República: estudos sobre os imaginários brasileiros (1822-1930). São Paulo: Alameda, 2018. Resenha de: SILVA, Lilian M. Relações de poder na cultura escrita e visual no “longo século XIX” brasileiro. Almanack, Guarulhos, n.24, 2020. Acessar publicação original [DR]

Cultura e poder entre o Império e a República: estudos sobre os imaginários brasileiros (1822-1930) | Ana Beatriz Demarchi Barel e Wilma Peres Costa

Os estudos em torno da Nova História Cultural têm proposto interessantes abordagens sob a perspectiva da mediação e circulação de ideias entre espaços culturais, simbólicos e nacionais, ao longo do século XIX. A partir desta ótica, as complexas transformações socioculturais, que ocorreram devido ao intenso desenvolvimento técnico, têm sido alvo de revisão historiográfica, sobretudo com grupos temáticos de pesquisa que visam responder às grandes questões em torno dos eventos ocorridos ao longo desta extensa centúria. Este é o exemplo do Seminário Internacional Estado, Cultura e Elites (1822-1930) realizado na Fundação Casa de Rui Barbosa em 2014 e que resultou na obra Cultura e Poder entre o Império e a República – Estudos sobre os imaginários brasileiros (1822-1930) organizada por Ana Beatriz Demarchi Barel (Universidade Estadual de Goiás) e por Wilma Peres Costa (Universidade Federal de São Paulo) e lançada em 2018 sob o selo da editora Alameda. Leia Mais

São Paulo restaurada: Administração/Economia e Sociedade numa capitania colonial (1765-1802) | Oller Mont Serrath

O livro de Pablo Oller Mont Serrath (2017), São Paulo restaurada: administração, economia e sociedade numa capitania colonial (1765-1802), com 316 páginas, publicado pela Editora Alameda, resulta da dissertação de mestrado do pesquisador, defendida em 2007 no Programa de Pós-Graduação em História Econômica da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP).

Dividido em três partes, cada uma tratando dos aspectos indicados no subtítulo do livro, ou seja, administração, economia e sociedade, o autor discorre sobre esses temas com vistas a compreender os fundamentos da São Paulo Colonial da segunda metade do século XVIII. O recorte temporal vai do ano em que São Paulo retomou sua autonomia administrativa (1765), após 17 anos subordinada à Capitania do Rio de Janeiro, até o ano em que as reformas definidas pela Coroa Portuguesa para a capitania paulista foram finalizadas (1802). Leia Mais

Escravo, africano, negro e afrodescendente: a representação do negro no contexto pós-abolição e o mercado de materiais didáticos (1997-2012) – GARRIDO (FH)

GARRIDO, Mírian C. M. Escravo, africano, negro e afrodescendente: a representação do negro no contexto pós-abolição e o mercado de materiais didáticos (1997-2012). São Paulo: Alameda, 2017. 203p. Resenha de: SILVA, Jonatan Gomes dos Santos. A representação do negro nos materiais didáticos. Faces da História, Assis, v.6, n.2, p.11-27, jul./dez., 2019.

O Brasil possui o maior programa de distribuição de livros didáticos do mundo. Só em 2017 foram gastos 1.295.910.769,73 de reais em 125.570.649 livros. Tais cifras ajudam a entender a importância dos livros didáticos no ensino do país, sendo uma das bases para a configuração dos currículos escolares e do planejamento de aulas. O processo de avaliação e distribuição desses livros é complexo, devendo ser feito com diálogo entre o Estado, as editoras, a academia e as demandas sociais.

O livro Escravo, africano, negro e afrodescendente, de Mírian Cristina de Moura Garrido, analisa essa relação na produção dos livros didáticos cujo conteúdo tem grande impacto na formação da identidade dos alunos. Para isso, propõe em seus três capítulos a análise das representações dos negros nos principais livros didáticos de história distribuídos nas escolas brasileiras entre os anos de 1997 a 2012, tendo como foco o tema pós-abolição. A autora não analisa apenas o seu conteúdo, mas também as etapas a serem cumpridas até a sua distribuição nas escolas, colocando em pauta a indústria de materiais didáticos e sua relação com o Estado, seu principal cliente. O livro foi publicado em 2017 pela editora Alameda, sendo fruto da dissertação de mestrado em História da autora, realizado na UNESP (campus de Assis) entre os anos de 2008 e 2011. Doutorou-se pela mesma instituição em 2017, também realizou estágio de pesquisa na University of Pittsburgh (Estados Unidos) e pesquisa de campo em Maputo (Moçambique). Atualmente, Garrido é pós-doutoranda em História pela Universidade Federal de São Paulo, desenvolvendo pesquisa sobre as memórias da independência moçambicana.

No primeiro capítulo “O livro didático: contexto”, Garrido contextualiza os livros didáticos brasileiros a partir dos aspectos econômicos, editoriais e historiográficos, traçando um panorama do que sua obra discute. Para analisar essa relação entre representação e o complexo processo de criação do livro didático, a autora utiliza o PNLD (Programa Nacional do Livro Didático). Este é o responsável por avaliar e disponibilizar os livros didáticos das escolas brasileiras. A partir de seus editais de convocação, em geral lançados dois anos antes da circulação do livro na escola, é possível estabelecer todas as exigências a serem cumpridas pelas editoras e obras didáticas que desejam negociar com o Estado, as condutas dos livros didáticos e suas editoras, bem como os critérios de análise estabelecidos. Na última etapa do edital PNLD aparece o Guia de Livros, Garrido também o usa como fonte, pois ele fornece auxílio ao professor na escolha do livro didático, expondo os princípios e critérios de avaliação das obras didáticas e as resenhas dos livros aprovados.

O PNLD na obra de Garrido também é fundamental para seleção dos livros utilizados como fonte, uma vez que formula seus critérios:  a aprovação dos autores na versão 2008 do Programa Nacional do Livro Didático destinado ao Ensino Médio; a presença deles no mercado de didáticos antes do início das avaliações governamentais para o segundo ciclo do ensino fundamental, portanto, 1997 (PNLD 1999); e a representatividade desses autores entre docentes. Traçado esse perfil, três nomes emergiram: Gilberto Cotrim, Antonio Pedro e Mario Schmidt. (2017, p. 12)  A formação profissional desses autores diverge. Cotrim tem uma ampla e diversificada formação: graduação em História, Direito, Filosofia, e mestrado em Educação, Arte e História da Cultura. Também foi presidente da Associação Brasileira de Autores de Livro Educativo (ABRALE). Antonio Pedro tem uma carreira mais ligada à universidade, possui graduação em História pela Universidade de São Paulo (USP) e doutorado em História Social pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) em conjunto com a Columbia University. Schmidt, estranhamente, não tem formação comprovada, mas alega ter graduação em História na Alemanha Oriental, bem como ter iniciado os cursos de Engenharia e Filosofia sem completá-los, e ainda assim é uma grande referência no mercado de didáticos.

A autora articula o PNLD com a lei 10.639/03. Esta é fundamental para a representação do negro nos livros didáticos enquanto sujeito histórico, porque expõe a conquista de uma das mais antigas demandas do movimento negro contemporâneo: a incorporação de conteúdos sobre História da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional nos currículos escolares. Não é uma simples incorporação de conteúdo, o que “está em pauta é o repensar de atitudes e valores, de ressignificação do ensino enquanto instrumento de valorização da identidade.” (GARRIDO, 2017, p. 175)  No segundo capítulo, “Livros do Ensino Médio aprovados no PNLEM: Cotrim; Schmidt; Pedro”, Garrido analisa os livros das duas gerações (1997 e 2008) dos autores selecionados. O método utilizado é a análise do conteúdo, portanto, a autora primeiro realiza a “desmontagem dos textos, fragmentando o corpo do texto para obter unidades lógicas; em seguida, essas unidades serão confrontadas com outros referenciais bibliográficos” (GARRIDO, 2017, p. 79), objetivando a emergência de novos significados. A desmontagem do texto inicial resulta em um segundo texto, um metatexto capaz de pluralizar a captação de significados do texto original. Assim, é possível ampliar as interpretações de leituras possíveis e evitar uma leitura superficial.

Os referenciais bibliográficos que Garrido utiliza para confrontar as fontes dialogam com uma revisão historiográfica que ocorre a partir da década de 1980, e que ainda perdura, propondo uma nova interpretação sobre o sujeito histórico. De forma geral, pensando na questão da representação do negro, pode-se dizer que essa historiografia emergente recusava “a predominância de um enfoque socioeconômico e estrutural passando a privilegiar abordagens que ressaltavam variáveis políticas e culturais, para um melhor entendimento das relações sociais construídas entre dominantes e dominados.” (GOMES, 2004, p. 159).

Portanto, as reflexões de Sidney Chalhuob (1990) e Walter Fraga Filho (2004) se destacam na obra de Garrido. Eles sustentam que o negro, escravizado ou livre, como agente ativo socialmente, é partícipe das transformações sociais mesmo com as limitações que lhe são impostas. Ocorre, pois, a sua valorização enquanto sujeito histórico, diferente da ideia de passividade e anulação pelo dominador que era propagada por modelos, marxistas ou não, que privilegiam os aspectos estruturais, resultando na coisificação do negro. Para isso, são empregados métodos e fontes que aproximam o historiador ao cotidiano da população negra – como as memórias, os processos criminais, testamentos –, documentos que de alguma forma dão voz à ela ou nos relatam sua participação na sociedade. Dessa forma, apesar das limitações sociais, é possível apreender as redes familiares e de solidariedade construídas por esse segmento social, os meios criados para a sua participação no mercado de trabalho, as negociações entre negros e ex-senhores. Além disso, como os autores trabalham com regiões diferentes, Rio de Janeiro e Bahia respectivamente, o diálogo entre eles possibilita contestar generalizações. Essa mudança teórico-metodológica, portanto, nos permite apreender o afro-brasileiro de forma dinâmica, participando ativamente da sociedade através de diversas formas de resistência.

A partir da análise do discurso focando na representação dos negros no pós-abolição, a autora se debruça sobre os livros didáticos de 1997 e de 2008 dos autores escolhidos, constatando que nas poucas páginas dedicadas, os conteúdos sobre o tema não estavam de acordo com a produção historiográfica em voga, isto é, não valorizavam o negro como sujeito histórico, tornando invisível sua participação na sociedade.

Nos livros didáticos da segunda geração (2008), Garrido considera que ocorreram melhorias, contudo foram poucas. Schmidt e Cotrim, no que tange à seção dedicada ao pós-abolição, fizeram mudanças pontuais nos textos da década de 1990, tentando se adequar aos requisitos do edital do PNLD 2008. Mas toda a argumentação da primeira geração continua intacta. O texto de Antônio Pedro é ainda mais preocupante, pois a única alteração no texto de 2008 é o acréscimo de uma palavra.

A parte reservada às imagens e às atividades foi aprimorada, com destaque para Cotrim, que elaborou atividades para resgatar o conhecimento prévio dos alunos, não se limitando aos exercícios de memorização. Apesar das diferenças entre os conteúdos dos livros serem sutis, a autora destaca que Cotrim põe em xeque a liberdade dos negros, mas sem levar em conta, entre ex-escravizados, a plural significação desse conceito. Para entender essa condição para os egressos da escravidão, Garrido entra em concordância com Chaulhoub (1990) que defende que ser livre poderia significar autonomia de movimento e a constituição de relações afetivas. Com o texto de Walter Filho (2004) é possível sair do Sudeste e pensar essa relação na Bahia, onde a liberdade pode ser analisada pela forma como a interferência senhorial não foi tolerada, ela também aparece nas intensas negociações para manter e ampliar direitos que foram conquistados no período da escravidão.

Em seus livros, Schmidt, conhecido por sua posição marxista ortodoxa, busca evidenciar conflito entre os grupos sociais, porém trabalha com uma leitura que privilegia aspectos estruturais, não conseguindo “expressar percepções que singularizem o processo como estratégias e táticas de sobrevivência além da morte, do suicídio ou fuga, nem admitir outras formas de resistências que ocorram no cotidiano.” (GARRIDO, 2017, p. 103).

Sem dúvidas, Antonio Pedro foi o autor que mais recebeu críticas, pois praticamente não ocorreram mudanças em suas obras. Assim, além de conter generalizações, reedita a tese da anomia de Florestan Fernandes ao não considerar o negro como sujeito histórico quando argumenta sobre a marginalização, reforçando o mito do negro “indisciplinado e ocioso”, o que é totalmente nocivo à representação do afro-brasileiro.

Garrido dedica o terceiro capítulo, “História, Educação e Identidade: por um ensino aprendizagem possível”, à reflexão sobre as perspectivas e possibilidades para uma educação que não negligencie o debate sobre o racismo e a discriminação. A autora constata que a questão da valorização do afro-brasileiro está presente tanto na historiografia atual, quanto na base da Lei da 10.639/03 e nos editais de convocação do PLND, contudo os livros didáticos ainda não se atualizaram. Para compreender essa nociva permanência, Garrido primeiro problematiza as lacunas do PNLD e conclui que, por mais que os seus editais tenham se aprimorado com o passar dos anos, a falta de um critério de desqualificação referente a não incorporação de conteúdos atualizados gera uma brecha, permitindo a aprovação de livros desatualizados.

Em seguida, a autora reflete sobre o uso e a produção dos livros paradidáticos. Este gênero emerge entre as décadas de 1970 e 1980, quando ocorre uma expansão do saber acadêmico acompanhada de uma renovação do livro didático devido às novas propostas curriculares.

Num primeiro momento, o paradidático tinha como principal consumidor alunos da rede privada de ensino e alunos de graduação, mas com a criação do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) em 1997, a clientela tem se reconfigurado, pois livros de diversos gêneros literários, entre eles o paradidático, passam a ser comprados e distribuídos nas bibliotecas de escolas públicas. Através dessa ação, o programa tem como principal objetivo incentivar a formação do hábito de leitura nos alunos da rede pública, modificando a histórica restrição à cultura letrada, propiciando “melhores possibilidades de acesso a essa cultura aos estudantes de escolas públicas do país” (GARRIDO, 2017, p. 161). O PNBE tem uma estrutura de funcionamento similar ao PNLD, inicialmente são lançados os editais de convocação, em seguida os livros são avaliados e selecionados por professores universitários, professores do ensino básico e profissionais de múltiplas experiências.

A obra de Garrido constata que os livros paradidáticos após 2003, se ocupam em explicar a África e suas relações com o Brasil e a herança dos afro-brasileiros, contemplando as exigências da lei 10.639/03. Vale ressaltar que os livros paradidáticos envoltos na temática “história e cultura africana e afro-brasileira” foram vencedores do Prêmio Jabuti na categoria didáticos e paradidáticos nos anos de 2007, 2009 e 2010, o que torna explícita a qualidade do conteúdo do segmento paradidático.

O que chama a atenção de Garrido é o fato de as editoras produzirem livros didáticos carentes de incorporação de conteúdos sobre o tema “África e afrodescendentes”, ao mesmo tempo em que têm em seus catálogos livros paradidáticos suprindo essas carências. Isso pode ser explicado como uma estratégia “na qual as editoras lucram com as compras governamentais duas vezes, no PNLD e no PNBE” (GARRIDO, 2017, p. 165). Para a autora, essa estratégia escancara a lógica da relação entre editoras e Estado, ou seja, enquanto estas buscam deliberadamente o lucro, as políticas públicas devem fundamentar a educação que pretendem efetivar através dos recursos disponíveis. Outro obstáculo, pois, para a valorização da população negra.

Portanto, a obra de Mírian Garrido traz importantes contribuições para a reflexão da representação do negro nos principais livros didáticos do país. Ao questionar o que vem sendo ensinado nas instituições de ensino sobre o pós-abolição, a autora aponta que a incorporação de conteúdos que valorizem o negro enquanto sujeito histórico reflete na construção da identidade negra. Também é importante que as políticas públicas se atentem à necessidade de promover dentro das escolas uma constante discussão da relevância e legitimidade de uma educação que não negligencie nenhuma das identidades.

Nenhum dos livros didáticos analisados pela autora renovou os conteúdos já consagrados, não se atendo a atual historiografia sobre o pós-abolição, tampouco sobre a demanda social da Lei 10.639/03. O ex-escravo continuou fadado à marginalização por sua passividade ou submissão. Essa postura conservadora pode ser entendida como uma opção dos autores e editoras. Apesar disso, ainda ocorreram melhoras significativas no material do produto didático e em certos “setores” dos livros: exercícios, textos complementares e no tratamento com imagens.

Pouco pode ser considerado de negativo na obra de Garrido. O conceito de memória, que é importante na discussão da autora, poderia ser mais desenvolvido, mas sabendo que o livro é fruto de sua dissertação de mestrado, espaço limitado e de prazo curto que tende a priorizar certos aspectos, essa carência torna-se compreensível. Além disso, não compromete a reflexão sobre a importância da representação valorativa do afrodescendente nos livros didáticos.

Referências

CHALHOUB, Sidiney. Visões de Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhada da liberdade: Histórias e trajetórias de escravos e libertos na Bahia, 1870-1910. 2004. 363 f. Tese (Doutorado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2004.

GARRIDO, Mírian C. M. Escravo, africano, negro e afrodescendente: a representação do negro no contexto pós-abolição e o mercado de materiais didáticos (1997-2012). São Paulo: Alameda, 2017. 203p.

GOMES, Ângela de Castro. Questão social e historiografia no Brasil do pós-1980: notas para um debate. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 34, p. 157-186, jul./dez. 2004.

Jonathan Gomes dos Santos – Graduado em História pela Universidade Estadual Paulista – UNESP, Assis, estado de São Paulo (SP), mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em História da UNESP, Assis (SP), Brasil. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected].

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Historiadores pela Democracia – O golpe de 2016: a força do passado | T. Bessone, B. G. Mamigonian e H. Mattos

RC Destaque post 2 11

“A humanidade caminha Atropelando os sinais A história vai repetindo Os erros que o homem traz O mundo segue girando Carente de amor e paz Se cada cabeça é um mundo Cada um é muito mais”.

(Lenine, 2010) Dois mil e dezesseis. Ano marcado por muitas disputas narrativas acerca dos eventos históricos que ganharam relevo nos cenários brasileiro e mundial. Esses eventos se difundiram pela política, pela economia, pela educação, pela cultura; puseram em destaque as tensões que envolvem os três Poderes da República, que se tornaram o epicentro das disputas; expuseram as fragilidades institucionais e de conduta de vários segmentos de nossa sociedade; suas ressonâncias reverberaram no cotidiano de cada um de nós. Fantasmas de diferentes tempos evidenciam sua fertilidade e passam a amedrontar o presente; traumas e lacerações de nossa história irrompem novamente e insistem em doer. A história – ah, a história! Mais uma vez passa a ser responsabilizada pela instabilidade humana! Mas ela própria sabe-se fruto dessa ação e, como tal, traz consigo o germe da luta entre o instável e o perene; entre as tradições e o novo; entre o provisório e o eterno. Isso, por si só, a absolve de qualquer peso que a sobrecarregue.

Essa efervescência, contudo, traduz a inquietude gerada pela onda reacionária que insiste em se alastrar pelo nosso país e pelo planeta. Essa guinada retrógrada parece querer varrer nossa lucidez! A intolerância manifesta-se em diferentes territórios e sob variadas formas. Diferentes posições; variadas narrativas para descrever um enredo de tensões, para traduzir as fraturas na maneira de perceber a história recente. Afinal, a diversidade dos testemunhos acerca da história é quase infinita. Mas há elementos na história que se subvertem contra qualquer amarra ou controle que pretenda direcioná-la para uma interpretação que ameace contradizê-la em sua incontingência. Racionalidade e irracionalidade flertam entre si; ora enamoram-se, ora dilaceram-se em explícito combate. Leia Mais

Da cidade e do urbano. Experiências, sensibilidades, projetos | Stella Bresciani

As questões urbanas, isto é, aquelas que dizem respeito às cidades e à vida de seus habitantes, são apenas um dos muitos assuntos urgentes que as sociedades contemporâneas enfrentam. Isso deriva de uma razão quantitativa: o século 21, como evidenciado pelos resultados do programa das Nações Unidas sobre assentamentos humanos, é o século das cidades. Decorre também do fato de que as cidades desempenham papéis centrais na vida dos seres humanos do ponto de vista simbólico, político, cultural, social, econômico e pessoal/individual. Este livro/coletânea que reúne textos da historiadora Maria Stella Bresciani introduz o estudo das principais teorias e linhas de interpretação da cidade, apresentando experiências, exemplos e oferecendo descrições que vêm da História e de outras disciplinas que lidam com o fenômeno urbano.

O objeto de estudo, como explicita o título do livro, é a reflexão Da cidade e do urbano, a partir de dezessete textos selecionados. Inicialmente, há uma preferência explícita por parte da curadoria em examinar os textos da autora levando em consideração suas reflexões a partir de uma vertente temática por sedimentação: Leia Mais

O Triunfo da persuasão: Brasil, Estados Unidos e a Política da Boa-Vizinhança durante a II Guerra Mundial – VALIM (RTA)

VALIM, Alexandre Busko. O Triunfo da persuasão: Brasil, Estados Unidos e a Política da Boa-Vizinhança durante a II Guerra Mundial. São Paulo: Ed. Alameda, 2017. Resenha de: CARNEIRO, Ana Marília. Cinematógrafos de guerra: cinema e propaganda estadunidense no Brasil durante a II Guerra Mundial. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.11, n.26, p.635-640, jan./abr., 2019.

A obra que temos em mãos trata de um tema caro às experiências bélicas do século XX: a propaganda como arma de guerra e instrumento de persuasão na formação de consenso em torno da hegemonia estadunidense na América Latina. Em contraste com a barbárie e a violência emergentes dos confrontos da II Guerra Mundial, a máquina de guerra mobilizada para conquistar mentes, corações e aliados em meio ao campo de batalha consistiu em uma das expressões mais extraordinárias e fascinantes da cultura contemporânea: o cinema.

O livro de Alexandre Busko Valim, O Triunfo da persuasão. Brasil, Estados Unidos e a Política da Boa-Vizinhança durante a II Guerra Mundial, publicado em 2017, dedica-se ao estudo da dinâmica da produção e difusão da propaganda estadunidense por meio do cinema no Brasil, alvo estratégico e privilegiado da campanha dos aliados em meio ao turbulento cenário da II Guerra Mundial. Resultado de uma pesquisa de fôlego, a obra é amparada no valioso e robusto acervo de fontes documentais referentes ao Office of the Coordinator of Inter-American Affairs – Office, consultadas no National Archives dos Estados Unidos. Ainda pouco exploradas pela literatura dedicada às relações interamericanas, as fontes — e, sem dúvida, a habilidade do autor aliada a um fecundo diálogo com a bibliografia especializada — permitiram a construção de uma narrativa potente, permeada de relatos surpreendentes e informações impactantes.

Um dos importantes diferenciais do estudo de Alexandre Valim é sua perspectiva de análise: o autor se esquiva de uma abordagem mais tradicional fundamentada na análise fílmica e pensa o cinema — e a problemática histórica — munido de uma visão mais ampla, como um fenômeno que envolve diversas dimensões. Ou seja, o cinema, como objeto de estudo, deve ser compreendido como um conjunto de práticas sociais que escapa à simples análise das fontes visuais, conduzindo o pesquisador em direção a um tratamento mais abrangente da visualidade como uma dimensão importante da vida social e dos processos sociais (MENESES, 2003, p. 11).

Para além da compreensão do cinema como mero entretenimento e obra estética, um estudo mais denso do âmbito cinematográfico exige que o investigador esteja atento à capacidade de influência, persuasão e encantamento do público através do cinema, ao uso de filmes como veículos de difusão de determinadas políticas, valores e culturas, à análise das suas condições de produção, exibição e distribuição, além da complexa rede de sociabilidades e relações de poder envolvidas na sua realização. Todas essas questões estão presentes no texto de Alexandre Valim, que situa a análise da propaganda estadunidense por meio do cinema atrelada a uma contraofensiva de guerra na qual estava em jogo, para os Estados Unidos, a conquista de parceiros econômicos e aliados políticos na América Latina.

Criado em 1940, por determinação do presidente Franklin Roosevelt, para coordenar as relações comerciais e culturais entre os Estados Unidos e os países latino-americanos, o Office representou, de maneira emblemática, o notável esforço de mobilização da nascente indústria cultural em favor da manutenção da posição hegemônica dos Estados Unidos na América Latina durante a II Guerra Mundial. Dentre os múltiplos âmbitos de atuação do Office, Valim se debruça sobre as atividades de propaganda difundidas através do cinema, um empreendimento posto em marcha pela Divisão de Cinema do Office e pela primeira unidade do Office na América Latina, a Brazilian Division.

Os atores envolvidos nessa trama não pertencem somente ao quadro de funcionários da agência governamental estadunidense; ao longo das páginas, nos deparamos com sujeitos de alta performance como Walt Disney, Nelson Rockefeller, Carmen Miranda, Orson Welles, empresários dos grandes estúdios de cinema de Hollywood, embaixadores dos Estados Unidos e agentes do Departamento de Imprensa e Propaganda do presidente Getúlio Vargas. No entanto, é fundamental recordar: a propaganda possui um alvo privilegiado; nesse caso específico, a plateia. Essa é a audiência que deve ser persuadida.

Um dos plot points da obra é justamente o capítulo intitulado O Show Precisa Continuar: o cinema da boa vizinhança adentra o país. Nesta parte do texto são retratadas as diversas dificuldades e obstáculos enfrentados pelas equipes da Brazilian Division para realizar exibições de filmes nas pequenas cidades do interior do país. As incursões consistiam em verdadeiras sagas, e envolviam o deslocamento dos projetistas e seus pesados equipamentos através de estradas precárias, muitas vezes empregando o transporte de tração animal ou mesmo em lombos de mula, além de pequenos barcos e canoas. Às dificuldades de transporte em um país com as dimensões territoriais do Brasil somavam-se a falta de energia elétrica em muitas localidades, a inutilização dos filmes e projetores devido aos danos causados durante o transporte, às elevadas temperaturas ou à alta umidade, à impossibilidade de reposição de peças eventualmente danificadas durante as exibições, como lâmpadas, cabos, válvulas, transformadores. Todas essas adversidades de logística e transporte enfrentadas pela equipe da Brazilian Division nos ajudam a vislumbrar a dimensão da importância do projeto de disseminação em larga escala da propaganda estadunidense por meio do cinema.

A linguagem visual explorada neste capítulo é evocada de maneira recorrente: a partir de um dos projetos mais ousados experimentados no Brasil, as sessões de cinema realizadas em vagões de trens ou mesmo através dos Unit Mobiles, uma parceria com empresas do ramo farmacêutico que proporcionava automóveis adaptados com telas para exibir filmes, cinejornais e desenhos animados selecionados pela Brazilian Division e, ao mesmo tempo, comercializava, para o público, medicamentos como Leite de Magnésia, Melhoral e Pílulas de Vida do Dr. Ross. As impressionantes imagens fotográficas que acompanham o livro eternizaram as sessões de cinema a céu aberto realizadas em praças públicas de cidades do interior, penitenciárias, escolas, quartéis e até mesmo hospitais psiquiátricos. As exibições — sempre gratuitas — atingiam um amplo público espectador, proveniente não apenas da elite e da classe média, mas também das classes populares, composta muitas vezes por indivíduos que nunca haviam experimentado uma sessão de cinema e que permaneciam encantados por verem pela primeira vez um bombardeio de imagens em movimento.

E se o alvorecer do século XX foi iluminado por uma nova forma de linguagem visual, imagens em movimento difundidas pelos cinematográfos em escala mundial, é necessário refletir sobre o poder desse novo suporte e artefato cultural de gerar imaginários sociais e práticas representacionais. A pesquisa de Alexandre Valim não se debruça diretamente sobre o campo de recepção das películas estadunidenses entre o público brasileiro, entretanto, revela importantes aspectos: o primeiro, a existência de um pesado investimento em propaganda e na produção cinematográfica por parte do governo dos EUA; a grande capilaridade atingida no interior do Brasil através do projeto de popularização das exibições e a larga audiência alcançada, em grande medida formada por um público analfabeto. Certamente, não se deve tomar a esfera de influência do público, provocada pelos filmes de propaganda, de maneira mecânica e em via de mão única, afinal, a consciência não é uma tela em branco, e o campo da cultura é um campo de batalha, permeado por lutas e resistências. No entanto, como afirma Stuart Hall (2003, p. 240), as operações culturais estão ligadas aos mecanismos de hegemonia cultural em jogo, e há sempre posições estratégicas a serem conquistadas ou perdidas. E, como adverte Alexandre Valim (2017, p. 313), embora uma avaliação precisa sobre o cinema de propaganda no Brasil seja uma tarefa extremamente difícil de ser realizada, “o imenso v.de fontes produzidas pelas agências governamentais estadunidenses atuando em território brasileiro sugerem fortemente que esse impacto foi profundo e duradouro”.

Vale ressaltar: o cinema “não é somente um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediatizada por imagens”1. O sucesso de público nas exibições e o grande alcance do projeto propagandístico era fruto de um intenso esforço por parte do pessoal da Brazilian Division, que envolvia a mobilização de uma complexa rede de contatos, negociações e acordos entre autoridades locais, políticos, militares, funcionários do DIP e mesmo entre a alta cúpula do Office, uma vez que “o intenso contato com a realidade brasileira por estadunidenses que estiveram no país fez com que, frequentemente, estes flexibilizassem diretrizes elaboradas em Washington em prol de perspectivas mais humanistas e solidárias” (VALIM, 2017, p. 312).

Se, por um lado, o autor destaca a importância de compreender a diversidade dessas relações, representações e práticas estabelecidas entre os segmentos estadunidenses e latino-americanos, por vezes contraditórias e divergentes, por outro, não hesita em ratificar o imperialismo midiático presente no programa de propaganda estadunidense para a América Latina que perpassa os vários circuitos de relações de poder, reproduzindo e atualizando antigos métodos de controle e dominação. uso do cinema como recurso de aproximação entre os Estados Unidos e o Brasil durante a II Guerra Mundial teve um impacto sem precedentes, e não serviu apenas como instrumento de convencimento e persuasão no campo político-ideológico ou no controle de um estratégico mercado fornecedor de matérias-primas. O American Way of Life difundido através da propaganda no cinema vendia também novos hábitos, estilos, modas, costumes e comportamentos que transformaram de maneira decisiva a sociedade brasileira. Através de uma linguagem simples, o livro de Alexandre Valim traz uma análise sofisticada envolvendo propaganda, cinema e guerra, uma tríade de elementos importantes para a compreensão do poder de persuasão que serve de munição à indústria cinematográfica até os dias de hoje.

Referências

DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. São Paulo: Contraponto, 1997.

HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2003.

MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Fontes visuais, cultura visual, história visual. Balanço provisório, propostas cautelares. In: Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 23, n. 45, 2003.

VALIM, Alexandre Busko. O Triunfo da persuasão: Brasil, Estados Unidos e a Política da Boa-Vizinhança durante a II Guerra Mundial. São Paulo: Ed. Alameda, 2017. 1 A associação cinema-espetáculo foi apropriada de Guy Debord, para quem o espetáculo “não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediatizada por imagens”. Cf. DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. São Paulo: Contraponto, 1997, p. 12.

Ana Marília Carneiro – Doutora em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Belo Horizonte, MG – BRASIL E-mail: [email protected].

As dimensões da resistência em Angoche: da expansão política do sultanato à política colonialista portuguesa no norte de Moçambique (1842- -1910) – MATTOS (AN)

MATTOS, Regiane Augusto de. As dimensões da resistência em Angoche: da expansão política do sultanato à política colonialista portuguesa no norte de Moçambique (1842- -1910). São Paulo: Alameda, 2015. p. 308. Resenha de: PEREIRA, Matheus Serva. Entre experiências, agências e resistências: complexos de interconexões e a coligação contra o colonialismo no norte de Moçambique (1842-1910). Anos 90, Porto Alegre, v. 26 – e2019503 – 2019.

Entre experiencias, agencias y resistencias: complejos de interconexiones y la coalición contra el colonialismo en el norte de Mozambique (1842-1910)  Among experiences, agencies, and resistances: the interconnection complex and the coalition against colonialism in northern Mozambique (1842-1910)

O florescimento e a consolidação de uma dinâmica historiografia africanista produzida no Brasil, nos últimos quinze anos, permitiu a ampliação das temáticas, objetos e espaços pesquisados. Uma das nações africanas que mais viu crescer o interesse de estudantes e investigadores brasilei­ros foi justamente a de Moçambique. Sinais dessa vitalidade podem ser encontrados na recente premiação da tese de Gabriela Aparecida dos Santos, vencedora do Prêmio Capes de Teses 2018, que versa sobre a construção e as redes de poder do Reino de Gaza, existente no século XIX entre as atuais fronteiras da África do Sul, Suazilândia, Zimbabwe e Moçambique. Outros exemplos são os dos sucessivos eventos sobre a África Austral, como o Seminário Internacional Cultura, Política e Trabalho na África Meridional, realizado na Unicamp em 2015, ou a II Semana da África: Encontros com Moçambique, ocorrido em 2016, na PUC-Rio, dedicado inteiramente aos estudos sobre Moçambique e sua História. Nessa ocasião, em específico, pude participar da organização  Entre experiências, agências e resistências: complexos de interconexões e a col igação. . .  2 de 9  do evento ao lado das pesquisadoras Carolina Maíra Moraes e Regiane Augusto de Mattos, esta última autora do livro As dimensões da resistência em Angoche: da expansão política do sultanato à política colonialista portuguesa no norte de Moçambique (1842-1910), publicado pela editora Alameda.

Resultado de sua tese de doutorado, defendida em 2012, na Universidade de São Paulo, sob orientação da professora Leila M. G. Leite Hernandez, o livro é um importante contributo para a História da África. Na obra, as relações políticas africanas no norte de Moçambique, dos diferentes agentes sociais e políticos envolvidos nessas relações e do esforço colonial português no seu desmantelamento, são investigadas a partir da complexidade do conceito de resistência. Nesse sentido, a investigação histórica produzida por Regiane de Mattos emprega esse conceito para refletir sobre as experiências e agências africanas no contexto colonial de promoção e implementação das suas ferramentas de dominação.

A argumentação central presente em As dimensões da resistência em Angoche está no exercício de análise de diferentes grupos sociais africanos como agentes históricos, com objetivos diver­sos, trazendo uma série de questões teóricas e desafios metodológicos que vão sendo encarados na medida em que a autora investiga a existência de universos culturais distintos existentes no norte de Moçambique. Para isso, Regiane Mattos lança mão de uma ampla variedade de fontes, localizadas em coleções documentais no Brasil, em Portugal e em Moçambique. O cruzamento das fontes impressas, como os relatos dos militares e governadores gerais, com àquelas localiza­das, especialmente, no Arquivo Histórico Ultramarino, em Lisboa, e no Arquivo Histórico de Moçambique, em Maputo, demonstram a preocupação da autora em conectar seus alinhamentos teóricos e metodológicos com uma História empiricamente embasada. Existe um trabalho empírico primoroso de recolhimento e de cruzamento de fontes não necessariamente inéditas, mas que são colocadas sob novos caminhos interpretativos. O desafio em trabalhar com uma base documen­tal proveniente de diferentes formatos e objetivos é encarado pela autora com o seu desbravar de textos em variadas línguas, como o português e o árabe-suaíli, salientando, sempre que possível, as múltiplas possibilidades de traduções que os portugueses produziram para os escritos existentes na língua local. Com isso, as vozes africanas que emergem dos papeis do passado são investigadas como contínuos sistemas de conversões de significados, elaborados de próprio punho, traduzidos para o vernáculo português ou existentes nas entrelinhas das palavras escritas pelos portugueses.

A ideia de rede de relações sociais, culturais, econômicas e políticas construída a partir das experiências específicas dos grupos africanos analisados no livro é traduzida pela autora a partir do uso da expressão “complexo de interconexões”. É exatamente a partir dessas interações existentes entre os sultanatos do litoral norte moçambicano, sobretudo o de Angoche, o intenso diálogo desses com sultanatos do Índico, especialmente o de Zanzibar, as chefaturas macua-imbamelas do interior e a presença crescente das forças colonizadoras portuguesas na região, que a autora utiliza para explicar a formação de uma coligação de resistência. Constituída no final do século XIX por um aglomerado plural de chefaturas africanas, que possuíam uma vasta gama de imbricadas relações, organizaram-se com o objetivo concreto de oporem-se à presença colonizadora portuguesa na região.

Ao elencar variados grupos sociais africanos para o centro da interpretação, a autora iden­tifica uma necessária análise das conjunturas sociais, culturais, políticas e econômicas específicas pelas quais foram construídas as alianças entre distintos atores políticos e militares no norte de Moçambique. Essa guinada analítica denota, por um lado, uma constante, por vezes cansativa, mas importante contextualização das formações sócio-políticas africanas. Por outro lado, demonstra   uma capacidade refinada de leitura crítica das entrelinhas de suas variadas fontes, apresentando uma não linearidade da expansão colonial de Portugal sobre o território. O que quero dizer com isso é que Regiane de Mattos consegue, ao longo de sua obra, apresentar a ação colonial como um processo histórico composto por agentes sociais que tiveram que lidar com as debilidades de seus poderes e as rápidas mudanças promovidas pelos conflitos perpetrados pelos portugueses na sua busca por uma efetivação de sua dominação.

Ao promover uma análise das ações desses sujeitos sociais a partir de suas próprias confi­gurações e contextos sociais, culturais e políticos, a noção de resistência que emerge em sua obra se desvincula do exercício de buscar uma linearidade explicativa entre as ações contrárias ao colonialismo. Nesse sentido, o diálogo estabelecido ao longo do livro com a historiografia que se debruçou sobre o sultanato de Angoche está centrada na maneira pela qual essa empregou o conceito de resistência. Chamando a atenção para o pequeno número de pesquisas existentes sobre o norte de Moçambique para o período estudado, Regiane de Mattos apresenta ao leitor um panorama sobre a bibliografia produzida a partir da década de 1970 sobre as respostas africanas nessa região à expansão colonial portuguesa. Diferentemente do posicionamento de Malyn Newit, Nacy Hafkin, René Pélissier, Aurélio Rocha e Liazzat Bonate, autores elencados por Mattos como aqueles que dedicaram especial atenção à temática de sua pesquisa, As dimensões da resistência em Angoche pretende contrapor-se à noção de que a resistência à dominação colonial perpetrada pelas chefaturas islamizadas do norte de Moçambique tiveram como principal e, por vezes, exclusivo objetivo a manutenção de privilégios obtidos com o comércio de escravizados.

Segundo Mattos, essa bibliografia trouxe importantes contributos. Porém, ao problematizar a coligação estabelecida pelos agentes africanos contra os intuitos externos europeus de controle a partir da primazia econômica do desejo de continuidade da produção baseada na escravatura, teriam estabelecido análises anacrônicas ou moralizantes. Pélissier, por exemplo, os interesses econômicos da continuação do comércio de escravos foram o principal fator unificador na região, pois seria inexistente qualquer “consciência étnica”, sobretudo entre os macuas. Numa linha semelhante, Aurélio Rocha diminui a importância da presença do Islã como forma de estabelecimento de laços que fossem para além das elites e, consequentemente, capazes de produzir redes amplas de interesses. Ao mesmo tempo, pressupõe uma correlação causal de efeito entre as razões das revol­tas do sultanato de Angoche contra os portugueses e as ações europeias contrárias ao tráfico de escravos e, com isso, a impossibilidade do uso do termo resistência. Afinal, no sentido empregado por Rocha e Nacy Hafkin, como o mesmo conceito usado para explicar as lutas nacionalistas de oposição ao sistema colonial e que denotava um sentido de libertação poderia ser empregado para compreender ações africanas “até mesmo no sentido contrário ao do nacionalismo”1?

Questionando a existência de conexões lineares entre as ações africanas, de meados do século XIX e início do século XX, contrárias ao colonialismo e as lutas nacionalistas dos anos 1960, consequentemente posicionando-se nos debates sobre o emprego da noção de resistências na histo­riografia africanista, a autora lança novas luzes aos estudos sobre o norte de Moçambique durante o contexto de rápido desmantelamento das sociedades existentes naquela região. A multiplicidade de fontes empregadas, não necessariamente inéditas, é encarada de maneira singular a partir de procedimentos teóricos e metodológicos que lançam novas luzes sobre a formação da coligação de resistência como resultado da própria constituição e fortalecimento do sultanato de Angoche ao longo do século XIX. Regiane de Mattos presenteia-nos com uma consistente defesa da vitalidade 4 de 9  do conceito de resistência para interpretar as ações africanas, sem reduzi-las às dicotomias entre aqueles que colaboraram ou combateram a presença colonial.

Mattos estabelece um diálogo privilegiado com obras clássicas da historiografia africanista especializadas na temática da resistência, como as de Terence Ranger, Allen Isaacman e Barbara Isaacman, e com outras mais recentes que a problematizam, como os questionamentos de Frederick Cooper sobre a vitalidade do conceito ou o repensar da noção de insurgência apresentado na cole­tânea organizada por Jon Abbink, Mirjam Bruijn e Klass van Walraven. Seu intuito, com isso, é o de lançar seu olhar sobre as fontes e a bibliografia especializada para realizar “uma abordagem mais matizada da resistência” (MATTOS, 2015, p. 26). Aproximando-se de uma perspectiva recorrente do uso do conceito pela historiografia brasileira que dedicou especial atenção à história da escravi­dão, do negro e do pós-abolição nas Américas e no Atlântico, resistência é compreendida no livro como “o conjunto de ações, sem elas individuais ou organizadas em nome de diferentes grupos, elitistas ou não, não necessariamente incluindo violência física, como respostas às interferências políticas, econômicas e/ou culturais impostas por agentes externos e consideradas, de alguma maneira, ilegítimas pelos indivíduos que a elas foram submetidos” (MATTOS, 2015, p. 26).

Infelizmente, a autora não aponta para a íntima vinculação existente entre a historiografia sobre o passado africano produzida no Brasil e a noção que emprega ao longo do seu livro sobre a resistência, relação vital para a sua capacidade analítica singular das dinâmicas redes entre os grupos sociais africanos do norte de Moçambique. Dada a centralidade do conceito para a obra e a trajetória da autora, teria sido importante que a Regiane de Mattos indicasse como o crescimento significativo da historiografia africanista produzida no Brasil no século XXI e o seu uso relativa­mente distinto do conceito de resistência em comparação às perspectivas africanistas desenvolvidas em cenários acadêmicos africanos ou europeus deve-se, dentre muitos fatores externos ao meio acadêmico, à proliferação das investigações de trabalhos pioneiros sobre essas temáticas no meio historiográfico brasileiro dos anos 1980 e 1990. As transformações pelas quais os trabalhos de historiadoras e historiadores passaram nesse contexto promoveram uma interpretação de classes, grupos ou indivíduos a partir de perspectivas da História Social que privilegiavam suas perspec­tivas, experiências e ações, em detrimento de análises estruturantes.  Muitos desses trabalhos foram inspirados pelas variadas perspectivas da micro-história ita­liana,2 pelas obras de E. P. Thompson,3 e por uma bibliografia norte-americana sobre as experiên­cias afro-americanas.4 O balanço historiográfico lançado em 1977 por Allen Isaacman e Barbara Isaacman, Resistance and collaboration in southern and central Africa, c. 1850-1920, citado por Mattos como crítico ao emprego do termo resistência, estabelece paralelos que poderiam ser interessantes de serem explorados entre a virada historiográfica brasileira citada anteriormente. Ao analisar as complexas abordagens existentes no campo da História da África a respeito do tema da resistência africana ao colonialismo europeu, Allen e Barbara Issacman apontam para uma percepção sobre o conceito de resistência para analisar as ações diárias de insatisfação dos africanos durante a vigência da dominação colonial europeia, como cabível de ser influenciada justamente por pesquisas reali­zadas nos anos 1970 sobre as ações escravas nos EUA. Citando Eugene Genovese e o livro A terra prometida: o mundo que os escravos criaram, livro lançado em 1974 e de grande alcance no Brasil, comparam as ações dos africanos colonizados com as dos escravizados na América:

Like the slaves in the American South, many oppressed workers covertly retaliated against the colonial economic system. Because both groups lacked any significant power, direct 5 de 9  confrontation was not often a viable strategy. Instead, the African peasants and workers expressed their hostility through tax evasion, work slowdowns, and destruction of European property. The dominant European population, as in the United States, perceived these forms of day-to-day resistance as prima facie evidence of the docility and ignorance of their subor­dinates rather than as expressions of discontent.5

No entanto, o que parece ser relevante para a crítica bibliográfica do conceito de resistência para a análise das ações africanas no passado colonial está relacionado aos processos de construção dos Estados independentes no período pós-colonial. As fundamentais críticas ao eurocentrismo elaborada nos contextos das descolonizações verteram para análises que reduziam as possibilida­des dos africanos de participarem ativamente da confecção de suas histórias a partir de zonas de identificações contextuais que fossem variantes ao longo do tempo e do espaço. Ao mesmo tempo, muitos dos grupos que assumiram para si os desafios de promoção dos Estados africanos após suas independências justificaram posturas autoritárias a partir de narrativas que usavam um suposto passado de resistência ao colonialismo como forma de corroboração das privações de liberdade contemporâneas e formas de repressões a grupos sociais questionadores dos rumos que estavam sendo tomados no período pós-colonial.6

Nesse sentido, diferentemente da historiografia brasileira, a historiografia africanista, sobre­tudo anglófona, dos anos 1990, foi marcada por uma crítica à validade do termo resistência como conceito e como categoria empírica de análise. Seu emprego em interpretações que reduziam o colonialismo a um sistema de dominação promovedor de uma sociedade binária dividida exclu­sivamente entre colonizados e colonizadores ou como limitador das motivações e possibilidades das ações africanas para com as relações de poder instituídas, renegaram-no a uma visão de sua suposta incapacidade explicativa.

Não cabe aqui produzir uma interpretação sobre o itinerário ou a genealogia do emprego do conceito de resistência. Quero apenas destacar que as leituras distintas e, porém, tangenciais, sobre o uso e a validade do conceito são, em determinados círculos acadêmicos, entendidas como um impeditivo de sua aplicabilidade. O consenso atual parece estar na necessidade de evitar análises que retratem de forma monolítica aqueles que dominaram e, principalmente, aqueles que foram dominados. Isso não quer dizer que inexiste um valor da resistência como conceito ou como fenô­meno histórico. Como conceito e como prática, analisar a ação dos “de baixo” a partir da ideia de resistência continua sendo fundamental para promover interessantes e inovadoras análises das experiências de sujeitos, aos quais lhes eram negados terem vozes durante suas vidas, ao mesmo tempo em que movimenta pautas contemporâneas de movimentos em prol de igualdades e da dignidade humana. Seguindo essa perspectiva, Regiane de Mattos privilegia a ação africana a partir de suas interfaces relacionais baseadas em laços de lealdade, parentesco, doações de terras, pelo comércio e pela religião islâmica como pontos focais de sua análise. É na totalidade dessas teias de relações que a autora constitui sua noção de complexo de interconexões. Consequentemente, aproxima-se de uma perspectiva de uma história total sobre as interações entre sociedades africanas e produções de regimes coloniais que orientam sua visão na leitura das fontes selecionadas. Como a autora recorrentemente chama atenção na sua obra, a procura por

[…] elementos de caráter nacionalista na coligação de resistência no norte de Moçambique pode ter provocado uma simplificação da análise dos fatores desencadeadores da resistência 6 de 9  e das formas de mobilização das diferentes sociedades envolvidas, ressaltando-se apenas o caráter econômico dos objetivos dessa coligação. Também pode ter influenciado um tipo de análise mais restrita, que não considera a dinâmica da resistência em seus diversos aspectos e dimensões (MATTOS, 2015, p. 30).

Ao reorientar o olhar analítico sobre a coligação da resistência, Regiane de Mattos distancia- -se das interpretações historiográficas predominantes que a compreendem por meio da primazia econômica como justificativa da configuração dessa associação para promover a oposição política e militar ao colonialismo português. A autora não deixa de lado a importância, ao longo do século XIX, do comércio de escravos para a formação e expansão do poder de Angoche. Porém, graças a sua abordagem teórico-metodológica, identifica nesse aspecto mercantil uma das muitas justifi­cativas para a união das elites locais contra o avançar colonial português e não àquela primordial. Sua leitura detalhada dos documentos, combinada com os campos bibliográficos que cita, também faz com que não seja promovida uma interpretação que entenda a resistência constituída no norte de Moçambique a presença colonial como cabível de uma avaliação moralizante que precisa ser feita sobre uma possível natureza menos nobre existente na coligação. Evitando embaraços con­temporâneos de um passado indigno de ser definido como resistente ao colonialismo, a escravidão e o comércio de escravos são entendidos como elementos constitutivos daquela sociedade que se encontravam em rápida transformação.  Como resposta à prerrogativa econômica de manutenção da escravidão e do comércio de escravos que direcionou as interpretações existentes, o que temos em As dimensões da resistência em Angoche é o estudo primoroso da complexidade das relações sociais e políticas que vão para além do desejo de manutenção, pelos membros das elites africanas, dessa forma de exploração humana. Regiane de Mattos consegue, sobretudo nos três primeiros capítulos de sua obra, quando mergulha sua análise nas relações familiares, de poder e religiosas, apontar para a diversidade de fatores que sustentaram o apoio entre as sociedades macuas do interior e suaílis do litoral.

A necessidade de compreender as dinâmicas específicas dos contextos históricos advogada por Regiane de Mattos pode ser percebida, por exemplo, no seu exame do papel da etnia e de sua incapacidade explicativa das experiências e ações dos africanos do norte de Moçambique. A cate­gorização dessas populações em grupos étnicos estanques, promovida pelo colonialismo, é pouco eficaz para compreendermos as dinâmicas interconexões que terminaram por promover respostas individuais ao colonialismo ou à organização supra étnica da coligação de resistência. A autora identifica os etnômios descritos nas fontes portuguesas como produtos da modernidade. Ou seja, como fenômenos constitutivos e constituintes do final do século XIX e início do XX precisam ser analisados a partir de uma perspectiva histórica não essencializada. Nesse sentido, a construção das características dos macuas e das sociedades suaílis tem sido percebida como a construção de realidades móveis contextuais. Por um lado, o exercício interpretativo existente em As dimensões da resistência em Angoche desconstrói historicamente o objeto étnico promovido pelo poder colonial que, desconhecendo e negando a história, apressado em classificar, nomear e hierarquizar para estabelecer a distinção e a justificativa da dominação, construiu, promoveu e engessou etiquetas étnicas. Por outro lado, de maneira semelhante ao esforço em afastar-se das noções de resistência existentes no período das independências nacionais, a obra de Mattos termina por contrapor-se à apropriação dos clichês da etnologia colonial que foram acomodados pelos Estados independentes africanos, muitas vezes como forma de justificar novas práticas de dominação. Ao historicizar as 7 de 9  etnias do norte de Moçambique, especialmente a macua, Mattos não nega a validade da categoria etnia ou dos etnômios para analisar a maneira pela qual os sujeitos sociais africanos organizavam suas vidas antes e durante a colonização. O que a autora faz é uma abordagem que privilegia uma interpretação das etnias como capaz de auxiliarmos na reflexão sobre as sociedades africanas como inter-relacionais, compostas por sobreposições e entrecruzamentos.

Ao destrinchar a impossibilidade de compreensão plena da resistência em Angoche e no norte de Moçambique como parte de planos para a perpetuação do comércio de escravos e de solidariedades étnicas, outros aspectos tornam-se relevantes para constituírem o que Regiane de Mattos chama de “dimensões da resistência”. A ideia de dimensões presente no livro aparece no sentido de variados fatores que convergiam para uma posição contrária à presença portuguesa, como as relações familiares, sobretudo as baseadas na matrilinearidade, as doações de terras que consolidavam alianças estratégicas e o Islã como aglutinador de práticas e perspectivas. A ação de resistir, portanto, deve ser entendida como uma defesa de uma autonomia política, principalmente no que tange às linhas sucessórias de poder, e, comercial, por meio do controle das trocas econô­micas contra a crescente interferência colonial portuguesa.

Unir-se contra a ameaça da perda de autonomia política e econômica estaria baseado numa leitura africana das conjunturas futuras que se desenhavam naquele presente conflituoso. Ou seja, as ações dos sujeitos e grupos sociais são compreendidas em As dimensões da resistência em Angoche dentro da complexidade do jogo de forças quando da construção do colonialismo português na região. É exatamente ao explorar o processo de edificação das relações de parentesco, da expansão do Islã na região pelas elites e pelas bases daquelas sociedades, das trocas comerciais, ou seja, de toda uma vasta gama de fios que se entrecruzavam para compor uma dinâmica social, operacionalizadas de acordo com as demandas das circunstâncias, que Regiane de Mattos consegue caminhar na contramão da historiografia sobre o norte de Moçambique para esse período histórico. O que a autora consegue evidenciar em sua obra é que a coligação de resistência foi feita com base em um passado de trocas que solidificaram relações que foram acionadas na medida em que o colonia­lismo se projetou como um sistema de dominação. Sua análise da coligação da resistência como uma luta pela preservação daquilo que se encontrava ameaçado pelos “mecanismos de exploração impostos pelo governo português, como o controle do comércio e da produção de gêneros agrícolas e de exportação, a cobrança de impostos e o trabalho compulsório” (MATTOS, 2015, p. 269), características primordiais da dominação colonial portuguesa, é solidamente percebida como base para as redes de lealdade construídas ao longo do século XIX, que culminaram na possibilidade de uma mobilização e formação coletiva contra os avanços dominadores portugueses.  No entanto, uma característica escorregadia existente no conceito de resistência, em deter­minados momentos, escapa da análise existente em As dimensões da resistência em Angoche. As imbricadas relações políticas que ocasionavam conflitos entre as chefaturas africanas, nesse caso, em específico contra a expansão do poderio do sultanato de Angoche, apontam para as diversas direções que o conceito pode trazer consigo. Como a própria autora assinala, a contenda entre a pia-mwene Mazia e o xeque da Quitangonha é emblemática dos conflitos na região. A primeira foi acusada de mandar matar o segundo, em 1875, pois este estaria lhe devendo o pagamento da venda de escravos e impedindo a realização desse comércio. Para a autora, a atitude da pia-mwene deve ser lida pelo prisma da resistência à interferência portuguesa sobre os processos sucessórios de poder e como símbolo da luta pela manutenção da autonomia política. Essa é uma interpretação 8 de 9  sustentada com maestria ao longo do livro, já que o mando do assassinato também teria ocorrido, como é argumentado de maneira sólida, porque o xeque estava buscando ampliar seu poder por meio do apoio dos portugueses. Esse apoio não é compreendido como uma força totalizante capaz de controlar na sua plenitude todas as possibilidades de ações africanas existentes naquele cenário político ou como um plano predeterminado pelo poder metropolitano português que foi sendo implementado, na medida em que a dominação europeia na região superou as resistências locais. Como é apresentado ao longo do livro, os portugueses no norte de Moçambique, pelo menos até a última quinzena do século XIX, possuíam diminuta capacidade de implantar qualquer projeto efetivo de dominação, recorrendo a arriscadas parcerias que desestabilizavam as linhas sucessórias predominantes. Isso não quer dizer que os portugueses atuassem apenas como mais uma força dentro daquele contexto político. A ação portuguesa, em prol do que veio a se constituir numa dominação colonial a partir do século XX, é compreendida e explicitada como um processo que, como tal, precisou lidar com encontros e desencontros decorrentes de uma aplicabilidade prática. No entanto, o que cabe questionar é o porquê de o conceito de resistência ser apenas empregado na relação ou entre as chefias ou populações africanas e o poder colonial português. Afinal, se a agência africana é elevada para o centro da análise, não poderíamos supor que o xeque, que viria a ser assassinado, estava usando o apoio português para resistir ao poder reinante materializado na figura da pia-mwene, que havia sido consolidado pelas relações matrilineares de parentesco entre macuas do interior e suaílis do litoral?

As dimensões da resistência em Angoche é uma obra que solidifica o trabalho de uma pes­quisadora rigorosa, com hipóteses inovadoras e que acrescenta importantes contributos para o debate sobre o conceito de resistência no contexto de dominação colonial europeia na África. Uma característica importante que deve ser salientada e que demonstra a vitalidade da obra de Regiane de Mattos se encontra nas portas que a mesma abre para pesquisas futuras. Ao criticar a bibliografia que entende a resistência do sultanato ao colonialismo como uma “resistência opres­sora” que deve ser renegada por não visar uma ideia específica de liberdade, como a existente na resistência nacionalista da segunda metade do século XX, a autora permite extrapolarmos suas interpretações para buscarmos a compreensão de como outros grupos sociais daquelas sociedades africanas, especialmente grupos excluídos ou marginalizados que não chegaram a ser analisados, como, por exemplo, os escravizados, interpretaram, experimentaram, agiram e engajaram-se no contexto de transformação das estruturas sociais do mundo que viviam, levadas a cabo pelas (in)gerências promovidas pela implementação do colonialismo português na região.

O livro é também o pontapé dado por Regiane de Mattos para o enfrentamento de hipóte­ses históricas que poderão ser estudadas em um futuro que espero não esteja muito distante. A própria autora possui um papel pioneiro e central para que esse desejo se concretize o mais rápido possível, já que, conjuntamente com o seu livro, fomos premiados com a disponibilização online do fantástico Acervo Digital Suaíli,7 um trabalho coletivo de parceria entre Brasil e Moçambique que disponibiliza fontes e bibliografias sobre a costa oriental africana. Projetos como esse tornam possível a continuidade de uma rica produção historiográfica brasileira sobre o passado africano que tomou forma nos últimos quinze anos.9 de 9

Notas  

1 ROCHA, Aurélio. O caso dos suaílis, 1850-1913. In: REUNIÃO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA DE ÁFRICA: RELAÇÃO EUROPA-ÁFRICA NO 3º QUARTEL DO SÉCULO XIX, 1., 1989, Lisboa. Anais… Lisboa: Centro de Estudos de História e Cartografia Antiga, Instituto de Investigação Científica e Tropical, 1989. p. 606 apud MATTOS, Regiane Augusto de. As dimensões da resistência em Angoche: da expansão política do sultanato à política colonialista portuguesa no norte de Moçambique (1842-1910). São Paulo: Alameda, 2015. p. 23.

2 Um balanço sobre a micro-história italiana pode ser encontrado em LIMA, Henrique Espada. A micro-história italiana: escalas, indícios e singularidades. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

3 É fundamental perceber a influência que E. P. Thompson promoveu em variados campos historiográficos ao criticar as interpretações das sociedades em categorias derivadas de modelos estanques que não levavam em consideração contextos específicos a partir das maneiras pelas quais os próprios sujeitos históricos interpretaram e agiram de acordo com suas experiências. Ver: THOMPSON, E. P. Folclore, antropologia e história social. In: THOMPSON, E. P. A peculiaridade dos ingleses e outros artigos. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2001. Ou, THOMPSON, E. P. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1981. p. 17.

4 Dentre muitas obras influenciadoras dessas perspectivas para o meio historiográfico brasileiro, ver: GENOVESE, Eugene. A terra prometida: o mundo que os escravos criaram. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988; FONER, Eric. O significado da liverdade. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 8, n. 16, p. 9-36, 1988; LINEBAUGH, Peter. Todas as montanhas Atlânticas estremeceram. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 3, n. 6, p. 7-46, 1983; LINEBAUGH, Peter; REDIKER, Marcus. A hidra de muitas cabeças: marinheiros, escravos, plebeus e a história oculta do Atlântico Revolucionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

5 ISAACMAN, Allen; ISAACMAN, Barbara. Resistance and collaboration in southern and central Africa, c. 1850-1920. The International Journal of African Studies, v. 10, n. 1, p. 48, 1977.

6 Para uma reflexão sistemática sobre a história da produção historiográfica sobre a África e uma análise crítica da relação entre os movimentos nacionalistas, a construção dos Estados independentes e a produção do passado africano, ver: MILLER, Joseph C. History and Africa/Africa and History. The American Historical Review, v. 104, n. 1, p. 1-32, fev. 1999; RANGER, Terence. Nationalist Historiography, Patriotic History and the History of the Nation: the struggle over the past in Zimbabwe. Journal of Southern African Studies, v. 30, n. 2, p. 215-234, jun. 2004.

7 O projeto pode ser acessado pelo seguinte link: http://acervodigitalsuaili.com.br.

Matheus Serva Pereira – Doutor em História e Pós-Doutorando na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). E-mail: [email protected].

Palavras como balas: Imprensa e intelectuais antifascistas no Cone Sul (1933-1939) – OLIVEIRA (Topoi)

OLIVEIRA, Ângela Meirelle. Palavras como balas. Imprensa e intelectuais antifascistas no Cone Sul (1933-1939). São Paulo: Alameda, 2015. Resenha de: BEIRED, José Bendicho. Para compreender o antifascismo na América Latina. Topoi v.19 n.37 Rio de Janeiro Jan./Apr. 2018.

Durante a Primeira Guerra Mundial, poucos imaginavam que estava em gestação um novo movimento político radical de direita capaz de alterar profundamente a política internacional. Ao tomar o poder na Itália, o fascismo foi a primeira experiência de extrema-direita a mostrar que era possível não só derrotar o status quo liberal mas também barrar a ascensão das forças de esquerda. Em seguida, outros movimentos de direita se alastraram pelo continente europeu, quer tomando o poder quer organizando-se em novos partidos. Para o filósofo alemão Oswald Spengler, vivia-se uma fase histórica em que se divisava a própria decadência do Ocidente. As reações foram tardias, pois apenas nos anos 1930 a direita radical deixou de ser combatida isoladamente pelas forças políticas de cada país e passou a ser objeto de luta de um movimento antifascista internacional que galvanizou um conjunto de forças formado por intelectuais, organizações e órgãos de imprensa.

O livro de Ângela Meirelles Oliveira constitui uma inovadora contribuição para a compreensão do papel da América Latina na cruzada internacional de combate ao fascismo. Com base em minuciosa pesquisa documental realizada em diversos países, o estudo oferece novos elementos a respeito dos movimentos antifascistas do Brasil, da Argentina e do Uruguai por meio de um recorte que privilegia o papel dos intelectuais e a atuação da imprensa. O título da obra, extraído de um verso emblemático – Palabras como balas hay que usar contra vosotros, enemigos! – da poetisa argentina Nydia Lamarque, por si só ilustra o espírito do engajamento que tomava os intelectuais empenhados na causa antifascista.

A metodologia empregada constitui um dos pontos altos da obra. Articulando o método comparativo e a perspectiva transnacional, a autora estabelece recortes criativos, reconstrói conexões e apresenta conclusões que permitem explicar as peculiaridades do antifascismo no Cone Sul e as suas relações com o movimento antifascista europeu. Um aspecto fundamental da abordagem reside no tratamento dos intelectuais como mediadores do processo de circulação de ideias entre os países do Cone Sul e entre estes e a Europa, em especial a França. Sob a vigilância metódica das autoridades policiais, os intelectuais sustentaram a luta antifascista por meio da fundação de entidades, criação de órgãos de imprensa, elaboração de artigos, troca de correspondência, promoção de campanhas e exposições de arte.

Uma tese basilar perpassa o livro pondo em xeque interpretações consagradas na historiografia: a despeito da relevância das organizações europeias e da URSS para o antifascismo latino-americano, este teria se desenvolvido com relativa autonomia em função dos contextos nacionais. Não obstante, a autora reconhece que as organizações criadas na Europa tiveram papel central no engajamento mundial dos intelectuais na luta contra o fascismo. Fundadas por militantes e simpatizantes de esquerda, as organizações europeias gravitaram, não sem tensão, em torno da Comintern e, consequentemente, dos interesses soviéticos em relação à política internacional, a exemplo do Comitê de Vigilância de Intelectuais Antifascistas e da Associação de Escritores e Artistas Revolucionários. Um papel de destaque coube ao Comitê Mundial contra a Guerra e o Fascismo por sua influência na Europa e na América, contando com a participação dos mais renomados intelectuais de então – Máximo Gorki, Bertrand Russell, Albert Einstein, John Dos Passos e André Gide entre muitos outros – sob a direção dos franceses Romain Rolland e Henri Barbusse.

A primeira parte do livro é dedicada ao exame das organizações, intelectuais e órgãos de imprensa antifascistas do Cone Sul. No Brasil, as primeiras a serem fundadas foram os Comitês Antiguerreiros de São Paulo e do Distrito Federal, de filiação comunista; e a Frente Única Antifascista, criada na sede do Partido Socialista Brasileiro, com a participação da Liga Comunista Internacionalista, de perfil trotskista. As tensões entre fileiras fascistas e antifascistas não eram pequenas. Em 1934, ambas confrontaram-se fisicamente quando as agrupações antifascistas se concentraram na Praça da Sé, centro de São Paulo, para protestar contra um comício organizado pela Ação Integralista Brasileira, deixando um saldo de seis mortos e dezenas de feridos dos dois lados.

Vinculado à Frente Única Antifascista foi criado o Clube dos Artistas Modernos, que promoveu a famosa conferência de David Alfaro Siqueiros a respeito da técnica muralista em São Paulo, por ocasião da sua passagem pelo Brasil ao retornar do Rio da Prata para o México. Outras experiências, o Clube de Cultura Moderna e o Centro de Defesa da Cultura Popular, associados à Aliança Nacional Libertadora, visavam ambos ao estabelecimento de contato entre os intelectuais e o grande público para a difusão das artes, da ciência e da literatura. Em busca de espaços alternativos para a promoção das artes, em 1935 o CDCP organizou a I Exposição de Arte Social no Brasil, com a participação de Portinari, Di Cavalcanti, Noêmia Mourão, Oswaldo Goeldi, Ismael Nery e Alberto Guignard. Tais entidades exemplificavam o esforço da geração modernista em conferir à arte um sentido ao mesmo tempo vanguardista, popular e comprometido com as questões políticas. Paralelamente, a imprensa foi outro veiculo fundamental de resistência política e cultural antifascista, cuja atividade esteve concentrada em órgãos tais como Revista AcadêmicaDiretrizes e Cultura, Mensário Democrático, além de jornais como Marcha e o diário A Manhã.

Uma das hipóteses da autora é que o funcionamento das entidades antifascistas dependeu das condições políticas de cada país do Cone Sul. No caso do Brasil, a dinâmica política da Era Vargas foi mais tolerante com as atividades da extrema direita, a exemplo do Integralismo, do que com as correntes de esquerda, objeto de sistemática vigilância, perseguição e prisões. A repressão subsequente ao levante de 1935 e ao golpe do Estado Novo apenas aumentou ainda mais as dificuldades do antifascismo, com o desmantelamento do PCB, prisões, fugas e exílio de militantes e intelectuais. A Argentina e o Uruguai foram os destinos mais procurados pelos exilados brasileiros, que transformaram Buenos Aires e Montevidéu nos seus principais centros de atuação no exterior, a exemplo de Carlos Lacerda na sua fase comunista.

A comparação permite constatar que a Argentina abrigou o movimento antifascista mais significativo da América Latina, traduzindo-se em uma maior quantidade de organizações, pessoas e órgãos de imprensa envolvidos do que em outros países da região. Em 1930 o general José Uriburu desferiu um golpe de Estado que derrubou o governo da União Cívica Radical presidido por Hipólito Yrigoyen e implementou uma ditadura filofascista apoiada pelo exército e por milícias uniformizadas, tais como a Legião Cívica Argentina. Carente de suficiente base política, o poder foi passado aos conservadores, que restauraram o antigo sistema de eleições fraudadas, primeiramente sob a presidência de outro militar, o general Agustín P. Justo, e depois o civil Roberto Ortiz, buscando-se manter uma posição de neutralidade diante da contenda entre o fascismo e o antifascismo. Apesar das perseguições contra militantes de esquerda, havia de qualquer modo mais condições que no Brasil para a atividade política, a organização de movimentos e o funcionamento da imprensa antifascista. Um papel relevante, embora fora do âmbito da pesquisa do livro, foi desempenhado pelas coletividades de estrangeiros, notadamente a italiana e a espanhola, cujas atividades antifascistas foram estudadas no Brasil por João Fábio Bertonha e Ismara Izepe de Souza, e na Argentina, por Mónica Quijada e Andrés Bisso.

A segunda parte do livro dedica-se à circulação internacional das ideias e dos intelectuais antifascistas. A autora confere especial atenção à Agrupação de Intelectuais, Artistas, Jornalistas e Escritores por considerá-la a mais importante associação em prol do antifascismo. Criada primeiramente em Buenos Aires, e em seguida em Montevidéu, tinha como objetivo declarado “lutar pela defesa da cultura”, em outras palavras, combater o obscurantismo embutido não apenas no fascismo internacional, mas também no autoritarismo e na corrupção política praticados pelos governos conservadores. A entidade argentina chegou a contar com 2 mil associados e diversas filiais no interior do país, tendo à frente figuras como Anibal Ponce, Sergio Bagú, Manuel Ugarge, Liborio Justo, Héctor Agosti e Arturo Frondizi, então jovem membro da União Cívica Radical e futuro presidente da nação. O boletim da entidade – Unidad por la defensa de la cultura – somou-se a várias outras publicações regulares que, embora não dedicadas exclusivamente ao antifascismo, o tomaram como causa própria, tais como ClaridadHechos e Ideas, Sur e La Internacional.

Dois interessantes aspectos sobressaem. Em primeiro lugar, a diversidade ideológica das publicações mencionadas – respectivamente socialista, radical, liberal e comunista -, assim como das organizações antifascistas. A autora contesta enfaticamente a tese do caráter essencialmente comunista do antifascismo dos países estudados, assim como do papel determinante da Comintern na sua organização. No lugar disso, identifica a existência de uma matriz liberal no antifascismo argentino e, no caso do Uruguai, aponta uma forte politização, sem vinculação partidária. Em suma, a documentação sugere que o vigor do movimento antifascista nos três países estudados dependeu justamente da heterogeneidade das suas fileiras e da amplitude do arco progressista que reunia liberais, anarquistas, radicais, comunistas, trotskistas e socialistas.

Outro aspecto a destacar é o papel das redes de sociabilidade antifascista que se estabeleceram por meio da imprensa vinculando as publicações da Argentina, do Uruguai e do Brasil entre si e estas com as da França, epicentro internacional do movimento antifascista e sede de revistas como ClartéCommuneVigilance e Front Mondial. O intercâmbio ocorria pela reprodução de artigos e a notificação do recebimento de revistas de outros países, a exemplo de Commune, órgão da Associação de Escritores e Artistas Revolucionários, sediada em Paris, que recebia praticamente todas as revistas antifascistas sul-americanas. No Cone Sul, as revistas da Argentina e do Uruguai trocavam uma considerável quantia de matérias com as congêneres da França, o mesmo não ocorrendo com as revistas do Brasil, que apenas mantinham contato esporádico com as publicações estrangeiras. Quanto ao intercâmbio intelectual entre os países latino-americanos, apenas existiu de modo rarefeito. Parece ter ficado mais no plano das intenções que da sua efetivação material, apesar dos apelos da portenha Claridad e da baiana Seiva em favor do seu incremento.

O Uruguai merece um lugar especial em razão da relevância das atividades antifascistas em seu território. Em 1933, abrigou o Congresso Antiguerreiro Latino-americano de Montevidéu, que, vinculado ao seu homólogo europeu e à corrente comunista, congregou centenas de delegações sindicais, camponesas, estudantis, de artistas e intelectuais. Não deixa de ser notável a marca deixada por uma ilustre brasileira. Pelo prestígio pessoal e proximidade em relação ao PCB, Tarsila do Amaral foi uma das poucas intelectuais convidadas a proferir uma conferência, e, destoando do tom geral do evento, discorreu a respeito das “Mulheres e a guerra”. Encetando uma contundente crítica ao papel destinado às mulheres pelos governos capitalistas e imperialistas, terminou sob aplausos e conclamou-as à luta antiguerreira. A análise do congresso aponta, ainda, para as divisões intestinas da esquerda e os diferentes conceitos de frente política, evidenciados nas críticas aos trostskistas, na expulsão dos anarquistas e na condenação de figuras como Augusto César Sandino e Haya de la Torre.

Às vésperas da Segunda Guerra, Montevidéu acolheu outro importante evento, o Congresso Internacional das Democracias. Composto por delegações de intelectuais dos países americanos, foi patrocinado por um conjunto de partidos políticos uruguaios. Apesar da exclusão do Partido Comunista Uruguaio, a reunião contou com uma ampla participação de delegados de todas as correntes políticas das Américas comprometidas com o antifascismo, incluindo o comunismo. Estiveram presentes personalidades como Pablo Neruda e Juan Marinello, que se reuniram em dezenas de comissões para discutir assuntos políticos, econômicos, sociais e culturais. Também participou uma delegação brasileira não oficial composta por representantes da Universidade Nacional do Rio de Janeiro e das Mulheres Intelectuais do Brasil, além de brasileiros exilados perseguidos pelo Estado Novo, cujo governo buscou impedir sem sucesso a realização. Para a autora, o evento refletia a desilusão com a Europa e representou a inflexão do antifascismo latino-americano em vista do seu alinhamento às diretrizes da política externa norte-americana que enfatizava a boa vizinhança e a união das forças contrárias ao fascismo. O título do discurso do uruguaio Emilio Oribe era emblemático dessa guinada: “Por que a América imita os europeus? Cultura autóctone e universal.”

A autora dedica especial atenção à Guerra Civil Espanhola, conflito de enorme repercussão na América Latina e divisor de posições da opinião pública, que se mobilizou tanto a favor do governo republicano quanto dos rebeldes nacionalistas. Na Argentina e no Uruguai a solidariedade aos republicanos foi especialmente intensa em razão da elevada taxa de imigrantes espanhóis em relação ao conjunto da população. Por sua vez, tais imigrantes estavam organizados em uma vasta rede de entidades associativas e jornais comunitários que impulsionaram iniciativas em favor da República Espanhola. As remessas de alimentos, remédios, dinheiro e roupas constituíram as ações prioritárias da solidariedade aos republicanos, além da acolhida dos exilados e a pressão política pela não intervenção da Itália e da Alemanha no conflito espanhol.

São examinadas as atividades da Agrupação de Intelectuais, Artistas, Jornalistas e Escritores, cuja seção argentina criou a Comissão Argentina de Ajuda aos Intelectuais Espanhóis. As ações de solidariedade dessa comissão tiveram como ponto alto os protestos e as homenagens decorrentes do fuzilamento de Gabriel Garcia Lorca, ato covarde que foi transformado em símbolo da luta da cultura contra a barbárie fascista. Os intelectuais latino-americanos viam a si mesmos como legítimos partícipes das fileiras republicanas deste lado do Atlântico. A uruguaia Clotilde Luisi, perguntando-se quem formava essa retaguarda, esse verdadeiro exército, guardião da alma espiritual do povo, respondia: os homens de ciência, professores, artistas plásticos, atores, escritores e poetas.

Em contraste, para a autora, a solidariedade dos brasileiros aos republicanos espanhóis não contou com a formação de entidades dedicadas especialmente a tal finalidade. Contando com a permanente repressão do governo Vargas, a solidariedade republicana apenas pode tomar corpo por meio de matérias divulgadas na imprensa antifascista e assim mesmo com restrições em vista da censura. Segundo o escritor Álvaro Moreyra, a morte de Garcia Lorca foi noticiada pelos jornais brasileiros com seis meses de atraso em outubro de 1937. De qualquer forma, a Revista Acadêmica foi a publicação brasileira mais empenhada no apoio aos republicanos. Após a vitória dos nacionalistas, expressou a dor da derrota e a consciência dos limites do papel do intelectual por meio de um artigo de Emil Fahrat: “Nossa dor é maior do que a tua, Espanha, porque fomos vencidos sem termos entrado na luta. Perdão Espanha pelo que não fizemos por ti.”

Apesar de atestar o vigor do antifascismo dos países do Cone Sul, o livro se encerra com a melancólica constatação do fracasso do movimento. Por um lado, os intelectuais desmobilizaram-se em razão do Pacto Germano-Soviético e da sua subordinação à Política da Boa Vizinhança. Além disso, eles se mostraram incapazes de enfrentar as medidas autoritárias dos governos brasileiro, argentino e uruguaio. Talvez seja um quadro por demais pessimista que poderia ser repensado se relacionado ao processo mais amplo de construção da democracia na América Latina. Sabe-se que a formação de uma cultura democrática, pluralista e defensora de direitos humanos básicos nos países latino-americanos é um fato inegável da sua história contemporânea. Porém, sob inúmeros percalços, não se manifestou de forma linear e nem da noite para o dia, constituindo antes um processo ainda inconcluso.

O exame do movimento antifascista sugere que ele contribuiu decisivamente para desenvolver uma cultura democrática que serviu de suporte para combater o autoritarismo em suas várias modalidades depois da Segunda Guerra Mundial. Por sua vez, a cultura política frentista, por vezes tão mal compreendida, pode ter justamente no antifascismo uma das suas raízes mais fecundas na América Latina.

Referências

OLIVEIRA, Ângela Meirelles. Palavras como balas. Imprensa e intelectuais antifascistas no Cone Sul (1933-1939). São Paulo: Alameda, 2015. [ Links ]

2Como citar: OLIVEIRA, Ângela Meirelles. Palavras como balas. Imprensa e intelectuais antifascistas no Cone Sul (1933-1939). São Paulo: Alameda, 2015. Resenha de BEIRED, José Luis Bendicho. Para compreender o antifascismo na América Latina. Topoi. Revista de História, Rio de Janeiro, v. 19, n. 37, p. 226-231, jan./abr. 2018. Disponível em: <www.revistatopoi.org>.

José Luis Bendicho Beired – Professor da Universidade Estadual Paulista. E-mail: [email protected].

Resistência: memória da ocupação nazista: memória da ocupação nazista na França e na Itália – ROLLEMBERG (Topoi)

ROLLEMBERG, D. Resistência: memória da ocupação nazista na França e na Itália. São Paulo: Alameda, 2016. Resenha de: GHERMAN, Michel. “Resistência: memória da ocupação nazista na França e na Itália.” Uma perspectiva comparativa acerca do uso da memória. Topoi v.19 n.37 Rio de Janeiro Jan./Apr. 2018.

Em seu livro Resistência: memória da ocupação nazista na França e na Itália, publicado pela editora Alameda em 2016, a historiadora Denise Rollemberg propõe uma reflexão relativamente rara em trabalhos produzidos no Brasil: a análise dos lugares de memória da resistência ao nazismo em países que tiveram distintas experiências em relação à ocupação na Segunda Guerra Mundial, França e Itália.

Sua obra se divide em uma apresentação e em mais duas partes. Na apresentação, capítulo “Resistência: o desafio conceitual”, a autora faz um cuidadoso debate acerca das formas de resistência, de sua historiografia e de seus usos políticos. A Parte I, que trata de “Memória e resistência na França” se divide em dois capítulos.

No capítulo 2, “Museus e memoriais franceses”, é feita a análise de monumentos e museus da resistência francesa, discutindo referências teóricas de história e de memória e suas distintas adaptações nos vários casos dos “lugares de Memória” (p. 92) no país. No capítulo 3, “Em algumas horas vou morrer… As cartas de despedida dos resistentes”, a autora analisa cartas de despedida deixadas por resistentes que seriam, às vezes algumas horas depois de escrevê-las, fuzilados. Interessante notar aqui a tentativa de desconstrução de percepções prévias, por vezes consolidadas na memória da resistência, sobre os “mártires” assassinados pela repressão nazista.

Finalmente, na parte II: “Memória e resistência na Itália”, composta por mais dois capítulos, a autora faz uma reflexão sobre o uso da memória no país. O capítulo 4, “Museus e memoriais italianos” é aberto por um interessante debate sobre a própria construção da história italiana, no que diz respeito à memória da resistência. A partir dessa percepção, a resistência aberta ao nazifascismo, de fato estabelecida a partir da invasão estrangeira ao país (em 1943), teria sido iniciada, segundo a narrativa italiana do pós-guerra, já com a subida de Mussolini ao poder. Aqui, exposições e memoriais analisados parecem tentar estabelecer uma história contínua de resistência ao fascismo a partir da década de 1920. No livro, a autora aponta estratégias usadas na construção da memória sobre a resistência na Itália ao utilizar referências da unificação italiana (risorgimento, em fins do século XIX), como forma de estabelecer uma narrativa nacional contra a invasão alemã e o fascismo (p. 236).

Por fim, no capítulo 5, “Os sete fratelli”, o livro trata dos memoriais em homenagem a sete irmãos, militantes contra o fascismo, fuzilados em 1943. Aqui a autora analisa como os irmãos, simpatizantes do comunismo e moradores do interior da Itália, são alçados, no pós-guerra, à condição de símbolo nacional de resistência ao fascismo no país. Ao refletir sobre memoriais e museus em homenagem aos “sete fratelli”, a historiadora estabelece uma reflexão sobre a construção de uma memória sacralizada (p. 235) que transforma o caso específico de resistência e fuzilamento em referência simbólica da luta contra o nazifascismo na Itália.

O livro Resistência: memória da ocupação nazista na França e na Itália constitui um trabalho importante por estar baseado em duas propostas de análise distintas e complementares. A primeira delas pretende estabelecer um estudo acerca da ocupação nazista em alguns países da Europa ocidental (França, Itália e Alemanha). Nesse contexto, a ideia de “uma resistência europeia” é desafiada. Para isso, a autora tenta historicizar a noção de resistência, ao propor questões determinadas pelas especificidades da política de ocupação em cada país.

A segunda proposta de análise está relacionada com a construção de uma memória da resistência. Aqui, Rollemberg analisa as narrativas sobre a resistência nos países citados. Essa revisitação da história é feita a partir da reflexão sobre os “usos da memória” na França, na Itália e na Alemanha, apresentando importante contribuição para debates acerca da ideia de memória sobre a resistência ao nazismo (p. 40).

O desafio de estudar museus e monumentos em países que tiveram experiências tão diferentes em suas respectivas relações com a expansão do nazismo na Europa demanda extrema habilidade na análise documental (de museus e memoriais), bem como uma perspectiva metodológica que garanta pertinência aos objetos escolhidos. Acredito que o livro de Denise Rollemberg tem muito sucesso em suas escolhas.

Esse sucesso está relacionado à cuidadosa análise que a autora faz do próprio conceito de resistência. Ao propor uma espécie de “dialética da resistência” (p. 20), Rollemberg afirma que o sentido de resistência deve estar menos vinculado, como propunha uma historiografia mais tradicional, com análises reificadas e absolutizadas da resistência propriamente dita. Aqui, a autora busca uma análise mais aprofundada a partir perspectivas mais críticas da própria resistência. Os diversos regimes escolhidos são analisados em conjunto com as respectivas formas de resistências ao nazismo. Nesse contexto, a historiadora propõe uma dinâmica comparativa entre dois (ou três) países com experiências bastante distintas na guerra: França e Itália (e Alemanha). Apesar de regimes diversos e das diversas formas de resistir, é proposto no livro que as referências de comparação podem ser não apenas possíveis, mas devem ser uma importante referência de pesquisa (p. 19).

Em sua pesquisa a historiadora propõe que seja estabelecida uma relação entre “forma da ocupação” e “forma da resistência”. Assim, o livro relaciona os diversos regimes de ocupação nazista às várias formas de resistência. Segundo a autora, onde as expressões do totalitarismo e da ocupação fossem mais pungentes e completas, mais flexíveis e menos específicas seriam as possibilidades de resistência. Nos casos em que o totalitarismo e a ocupação tivessem menos sucesso, as formas da resistência apareceriam de maneira menos ampla e mais objetiva.

Nesse sentido, países onde estruturas do regime fossem efetivamente hegemônicas, como é o caso da Alemanha, as formas de resistência deveriam ser vistas com lentes que dessem a elas maior expressão. Em países como a França (principalmente no norte do país), as análises sobre resistência deveriam ser feitas com mais exigência e fôlego, afinal, haveria, a princípio, maior espaço social e político para formas mais específicas e objetivas de resistência ao regime ocupante (p. 20).

Ao se debruçar sobre o caso francês, a autora faz um estudo de casos sobre “a história da memória” da resistência à ocupação. Se após a libertação a França produziu uma memória de “todos os resistentes”, essa memória se desloca para outro lugar depois das primeiras três décadas depois da ocupação nazista. Aqui, o livro aponta como referência o lançamento do documentário Le Chagrin et La Pitié, como forma de localizar e justificar a mudança da memória francesa no que diz respeito à resistência de todos. A perspectiva do documentário desafiava a memória oficial francesa, justamente por inverter esses sinais. A tese central do filme era de que, na França, todos foram, de uma maneira ou de outra, colaboracionistas (p. 21).

Nesse contexto, o “mito da resistência”, utilizado por governos do pós-guerra, seria substituído pelo “mito da colaboração”. Em um movimento de “contramemória”, os franceses revisitam as experiências do nazismo com, por assim dizer, sinais trocados. A autora defende que as transformações no tratamento da memória da resistência tenham sido um subproduto das manifestações de maio de 1968. Desse modo, a derrubada de heróis (típica da rebelião dos estudantes) chegava à experiência da resistência na guerra. Importante notar, como bem apontado no livro, que a produção dessa contramemória ocorre em um momento em que a geração dos “resistentes”, ou “colaboradores”, ainda estava ativa na França (p. 26).

Nessa dinâmica de memória e contramemória, a autora nota que outro debate começa a consolidar-se historiograficamente justamente após a publicação de uma importante obra que será referência. Vichy, France escrita pelo britânico Robert Paxton, propunha uma análise mais complexa do fenômeno da resistência. Nesse contexto, se buscava fugir das lógicas absolutas fosse da “nação de resistentes”, fosse da “nação de colaboradores”. De fato, o modelo paxtoniano apresenta uma nova abordagem sobre a história da resistência francesa, ou, segundo Rollemberg “entre os dois modelos de memória, ou entre as duas memórias, a historiografia buscou seu caminho próprio” (p. 23).

A partir desse momento, o livro debate modelos “pós-paxtotianos” da historiografia francesa que vão estabelecer critérios mais claros no que diz respeito às formas de resistência e as formas de colaboração. Afastando-se da noção do “homem providencial” (p. 27) e da naturalização da resistência (ou da colaboração) a historiografia francesa estabelece fronteiras e critérios para discutir formas de resistência na história do país.

A partir de então, a autora propõe que, para além de perspectivas “sacralizadas” das vítimas (p. 9), o “giro historiográfico” francês passa também a lidar com referências mais complexas de resistência. Saindo do debate baseado em figuras heroicizadas (no caso de resistentes) ou vilanizadas (no caso de colaboracionistas), a autora propõe análises a partir das “zonas cinzentas” de atuação (usando o conceito que Laborie pega emprestado de Primo Levi) (p. 9). A disputa entre a vítima sacralizada e a produção historiográfica mais crítica ainda está, entretanto, presente nos monumentos e nos debates sobre a memória francesa, como a autora bem demonstra no decorrer do livro (a abertura da obra com o exemplo do memorial de Jean Moullin ilustra muitíssimo bem esse debate) (p. 9).

Na parte sobre a resistência italiana, a autora trabalha a partir da perspectiva comparativa e estabelece características distintas em relação à resistência francesa. A resistência italiana se inicia com a ocupação nazista no país, justamente após a derrota do fascismo. Ou seja, há uma clara definição temporal e política sobre o início da resistência. Em comparação com a oposição contra o fascismo, a relação com os ocupantes nazistas aliados do fascismo era de combate (p. 44).

Esse período se estabelece quando estruturas de poder nazistas (como a Gestapo e a perseguição aos judeus) (p. 45) começam a se apresentar na Itália. Nesse momento, os opositores históricos ao fascismo italiano iniciam a resistência aos nazifascistas. Assim, a resistência italiana teria surgido, conforme propõe a autora, em 1943, junto à ocupação estrangeira.

Como bem coloca a historiadora, o combate e o apoio dos resistentes italianos é mais militar do que político (em comparação com a resistência francesa), apesar dos vários grupos envolvidos no combate aos nazistas (comunistas, democratas cristãos, socialistas, anarquistas etc.) e de suas perspectivas distintas de combate e de vitória sobre nazifascismo (tese das três guerras, p. 47).

Nesse sentido, inclusive haveria dois ocupantes no mesmo momento, os aliados (percebidos como parceiros na luta contra o nazifascismo) e os nazistas (em sua aliança com os fascistas), que teriam se transformado em inimigos e alvo da resistência italiana na guerra.

Nessa realidade, apresentada como referência comparativa ao que ocorria na França, a Itália vai produzir uma rede de memoriais, museus e monumentos muito específicos, como a autora apresenta na última parte do livro.

O último caso comparativo da obra de Denise Rollemberg é o caso da Alemanha, que por algum motivo não aparece no título e nem é alvo de análise quando a autora fala dos monumentos à resistência, na última parte da obra. Bastante diferente dos dois casos discutidos anteriormente, o caso da resistência na Alemanha é único.

Em primeiro lugar por não se tratar de uma resistência a invasão de potência estrangeira. A “resistência” alemã se estabelece no enfrentamento (ou na oposição) a um movimento social e político do próprio país. O segundo ponto importante está relacionado com o caráter do regime. Ao contrário do que ocorria na Itália e na França, a base social, as possibilidades de delação e o diminuto espaço para resistências criavam um tipo muito específico de oposição ao regime. Conforme proposto pela autora, no caso da Alemanha, o estabelecimento de um regime de alto grau de controle demanda que as análises de possíveis resistências sejam mais flexíveis e amplas. É isso que a autora faz.

A resistência alemã ao regime nazista fez com que ao fim da guerra se estabelecesse uma percepção de “grande élan moral e com um engajamento político intenso” (p. 50) que procurava se opor à “tese da culpabilidade coletiva”. Nesse sentido, se pretendia estabelecer uma espécie de lastro político para que “da outra Alemanha” pudesse surgir uma “nova Alemanha” (p. 51).

A ideia de que seria inviável, dado às expressões totalitárias do regime, que houvesse resistências internas na Alemanha foi largamente aceita, conforme mostra a autora, pelos historiadores do pós-guerra. A ideia de impossibilidade fazia com que se buscassem novas formas de compreensão da resistência alemã no contexto do regime nazista.

Essa perspectiva foi desafiada por Martin Boszat já na década de 1970. Para o historiador, a noção de “resistenze” (reações espontâneas, quase naturais) poderiam descrever as formas de “resistência” na Alemanha. Assim, a simples negação de uma saudação nazista, ou a não participação em desfiles do regime, seriam, em última instância, maneiras de resistir ao regime totalitário. Dessa forma, posicionamentos quase que exclusivamente individuais e “funcionalistas” (em oposição à natureza intencionalista da resistência francesa e italiana, p. 53), seriam as referências possíveis em uma Alemanha dominada pelo nazismo.

Na década de 1980, Ian Kershaw vai desafiar as perspectivas propostas por Boszat. Segundo ele, referências individuais e pontuais de “resistenze” poderiam apagar “zonas cinzentas ideológicas” (p. 54) que foram estabelecidas pelo próprio regime. Aqui, Kershaw chamaria a situação de dissidência, mas não utilizaria o conceito de resistência, sob o risco, segundo ele, de produzir-se heroicização de atitudes individuais. A autora faz, então, um levantamento de tentativas de resistência a partir de movimentos políticos coletivos que, apesar de poucos e dispersos, aconteceram na Alemanha nazista.

Esse debate sobre “culpabilidade coletiva”, “outra Alemanha” e sobre formas individuais e coletivas de resistência vai criar outro modo de produção de memoriais e museus que, infelizmente não são tratados no livro, centrado nos casos da Itália e da França.

A publicação no Brasil de um livro sobre a memória da resistência em países ocupados pelos nazistas na Europa é de fundamental contribuição em nosso país, no qual o debate sobre memória e resistência à ditadura parece encontrar novos desafios políticos e historiográficos.

Referências

ROLLEMBERG, D Resistência: memória da ocupação nazista na França e na Itália. São Paulo: Alameda, 2016. [ Links ]

2Como citar: ROLLEMBERG, D Resistência: memória da ocupação nazista na França e na Itália. São Paulo: Alameda, 2016. Resenha de GHERMAN, Michel. Resistência: memória da ocupação nazista na França e na Itália. Uma perspectiva comparativa acerca do uso da memória. Topoi. Revista de História, Rio de Janeiro, v. 19, n. 37, p. 232-236, jan./abr. 2018. Disponível em: <http://www.revistatopoi.org>.

Michel Gherman – Pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected].

Cultura escrita e circulação de impressos no Oitocentos | Tâni Bessone, Gladys S. Ribeiro, Monique S. Gonçalves e Beatriz Momesso

O diálogo da historiografia do Brasil Império com a Nova História Cultural costuma produzir bons frutos, e Cultura escrita e circulação de impressos no Oitocentos não foge à regra. O propósito do livro é interpretar a consolidação da palavra impressa como parte do processo de formação do Estado nacional no longo século XIX, sugerindo que o desenvolvimento de jornais, revistas e livros possibilitaram a circulação de ideias, o estabelecimento de espaços de sociabilidade e a edificação de trajetórias individuais num movimento de condicionamento recíproco entre história política e história cultural.

Organizado pelas especialistas Tânia Bessone (UERJ) e Gladys Sabina Ribeiro (UFF) – cujos percursos intelectuais privilegiaram respectivamente a história dos livros e a história política do Brasil oitocentista – em conjunto com as pós-doutorandas Monique de Siqueira Gonçalves (UERJ) e Beatriz Momesso (UFF), o livro é o resultado de uma ampla empreitada de trabalho intelectual colaborativo. Com a participação de pesquisadores de diferentes instituições do país, ele amplia a discussão dos projetos de pesquisa desenvolvidos desde 2012 no Centro de Estudos do Oitocentos (CEO-UFF), no Laboratório Redes de Poder e Relações Culturais (REDES-UERJ) e, recentemente, na Sociedade Brasileira de Estudo do Oitocentos (SEO), desdobrando, assim, o debate ensejado por coletânea anterior, O Oitocentos entre livros, livreiros, missivas e bibliotecas (Alameda, 2013).

Dividido em quatro seções temáticas, Cultura escrita e circulação de impressos no Oitocentos esteia-se na premissa de Robert Darnton e Daniel Roche de reconhecer a palavra impressa como “força ativa na história”, um “ingrediente dos acontecimentos” capaz de desempenhar não só o papel de fonte de informação, mas também o de intermediação da prática política e social oitocentista.

Em sua primeira seção, “Impressos políticos”, o livro apresenta análises sobre o significado do pensamento liberal no reordenamento da cultura política e na construção de identidades sociais. Destaca como distintos projetos políticos para o Brasil circularam em jornais, a exemplo das propostas de revisão do Antigo Regime possibilitadas pela Revolução do Porto nas províncias da Cisplatina e Bahia e o embate discursivo entre republicanos liberais quando da crise da monarquia.

Opondo-se à tese que considera o processo de independência do Uruguai como resultado de um “Estado-tampão”, Murillo Winter (capítulo 1) expõe os distintos movimentos políticos e identitários na região. Explorando a imprensa cisplatina, ressalta a repercussão dos periódicos na politização da população e na mudança da conotação da identidade oriental, inicialmente associada aos anos de guerra civil e ao projeto confederado de José Gervásio Artigas. De igual maneira, salienta as particularidades do discurso político veiculado na Banda Oriental, focalizando a construção da “orientalidade”, elemento de diferenciação que negava tanto o domínio colonial quanto outras formas de sujeição.

Moisés Frutuoso (capítulo 2), em pesquisa sobre a produção jornalística na vila baiana de Rio de Contas, expõe como os periódicos publicados na Bahia e no Rio de Janeiro foram determinantes para a constituição da Junta Temporária de Governo e para o recrudescimento do antilusitanismo na localidade. Demonstra a atuação dos periódicos como veículos de propaganda de projetos políticos, especialmente liberais, e consequentemente como espaço de debate que confrontava distintos grupos da sociedade em torno da edificação do Estado Imperial, o que pôde ser caracterizado com primazia na Guerra dos Mata-marotos (1831), fruto de intensos conflitos que opunham “portugueses americanos” e “portugueses europeus”.

Ainda na primeira seção, o texto de Daiane Lopes Elias (capítulo 3) privilegia o Segundo Reinado e a atividade dos republicanos liberais a partir da publicação do Manifesto de 1870. Analisando sua composição discursiva, esclarece como a prática vencedora fundamentava-se na adaptação de doutrinas estrangeiras (no modelo americano de República) para “encontrar nelas as ferramentas capazes de instrumentalizá-las na ação de deslegitimação das instituições, práticas e valores imperiais” (p.64), e, por conseguinte, na reinvenção da elite política brasileira.

A segunda seção do livro, “Impressos periódicos”, enfoca o debate sobre caminhos políticos e artísticos embasados nas ideias liberais que se formataram no país na crise do Império. Para tanto, reúne estudos que, valendo-se da investigação de dois importantes periódicos publicados nas décadas de 1870 e 1880, analisam críticas ao governo e a específicas esferas da sociedade imperial visando reconhecer os obstáculos à chegada da modernidade ao Brasil.

Alexandre Raicevich de Medeiros (capítulo 4) empenha-se no reconhecimento das redes de sociabilidade proporcionadas pela Casa Arthur Napoleão & Miguez, responsável pela publicação da Revista Musical e de Bellas Artes e pela venda de instrumentos e edição de partituras. Destaca a especificidade do público leitor da revista – o que incidiu em sua curta trajetória – e as distintas temáticas que explorava dentro do campo cultural, como resumos de história da arte, notícias estrangeiras, comentários de obras literárias e de peças de teatro. Igualmente, salienta o tom crítico e de denúncia ensejado em seus textos, como a defesa do Theatro Imperial, cuja situação de penúria era atribuída ao descaso do governo, e o debate sobre a evolução das artes plásticas no Brasil.

Também explorando a crítica e o enfrentamento, desta feita por intermédio do humor engajado a surgir das páginas do caricato O Mosquito, Arnaldo Lucas Pires Junior (capítulo 5) estuda as denúncias das ilustrações veiculadas no periódico à chegada da modernidade ao Brasil. Explica como as caricaturas representavam o imaginário social de uma parcela da elite ilustrada que se identificava com o modo de vida europeu, mas que se via emperrada pelas barreiras da realidade nacional, a exemplo da escravidão, do posicionamento dos políticos e das relações entre Estado e Igreja.

Na terceira seção, “Impressos e trajetórias biográficas”, o livro contempla pesquisas dedicadas a percursos individuais de importantes figuras políticas do Império, demonstrando as possibilidades do fazer biográfico oportunizada pela palavra impressa.

Vislumbrando o reconhecimento de ideias antiescravistas no pensamento do escritor e político liberal Joaquim Manuel de Macedo, Martha Victor Vieira (capítulo 6), analisa a obra As Vítimas-Algozes: quadros da escravidão (1869) para caracterizar o empenho de uma parcela da elite política na superação do trabalho escravo e o consequente receio enunciado pelos senhores escravocratas. Com base nos argumentos evocados por Macedo, que objetivavam convencer o público a alinhar-se com a proposta de abolição gradual, a pesquisadora identifica em seu texto “indícios de um traço comum com outros escritos dos homens de letras da primeira geração do romantismo e do IHGB, os quais concebiam a história como ‘mestra da vida’” (p.137).

Utilizando manuscritos e impressos do final do século XIX e início do XX, Samuel Albuquerque (capítulo 7) dedica-se à figura de Antônio Dias Coelho e Mello, barão da Estância, visando à reconstituição de viagem empreendida pelo político sergipano entre Aracaju e o Rio de Janeiro. Tendo por base esse caso, analisa as distâncias percorridas pelos políticos do Império entre as províncias e a Corte para demonstrar as transformações no modelo familiar, a divulgação do padrão de civilização europeu no seio da elite e os espaços de sociabilidade da alta sociedade na capital do Império, em destaque a rua do Ouvidor.

O texto de Rafael Cupello (capítulo 8) investiga as distintas representações existentes sobre Felisberto Caldeira Brant Pontes de Oliveira e Horta, marquês de Barbacena, renomado político do Primeiro Reinado. No intuito de reconhecer quais artifícios foram utilizados na edificação de suas memórias, reconstrói a trajetória social do personagem, bem como suas redes de sociabilidade, esclarecendo, por meio de vasta pesquisa, quais elementos foram privilegiados nas biografias do marquês e como eles instituíram sua identidade histórica.

Na última seção, “Impressos e espaços de sociabilidade: as bibliotecas”, a obra se debruça sobre a circulação de ideias proporcionada pelos “espaços de saber” em diferentes momentos do Oitocentos. Enfatiza o papel das bibliotecas e clubes literários na construção do conhecimento escrito, na consolidação da cultura leitora no Brasil e na manifestação do pensamento político.

Juliana Gesuelli Meirelles (capítulo 9), em estudo sobre a Impressão Régia e a Real Biblioteca do Rio de Janeiro, privilegia as transformações da cidade ao longo do governo joanino. Enfatiza a diversidade de publicações do período – de anúncios a obras de História Natural – e o papel do bibliotecário na circulação dos impressos. Retrata também o processo de edição das publicações, além de sugerir que a implantação da tipografia foi determinante para a firmação da prática de leitura no período, momento em que o espaço público era marcado pela oralidade. De igual maneira, destaca a função desempenhada pela Biblioteca e seu acervo: espaço de saber e status da Idade Moderna.

Karulliny Silverol Siqueira Vianna (capítulo 10), empenha-se em pesquisa sobre a cultura impressa na província do Espírito Santo nos anos de 1880. A autora lança luz sobre a criação de clubes literários e bibliotecas, locais caracterizados não apenas enquanto espaço de leitura, mas também de intenso debate político e científico. Explorando o conteúdo de exemplares de periódicos e de relatórios, Vianna mostra que a construção de redes intelectuais que discutiam e propagavam ideais de novas correntes políticas no Espírito Santo, como no caso da propaganda republicana, ajudou a operar “a exclusão política de alguns grupos na província” (p.216).

Por fim, Carlos André Lopes Silva (capítulo 11) analisa a biblioteca da Academia dos Guardas-Marinha, vinda ao Brasil com a Real Família Portuguesa em 1808. Seu estudo demonstra como a organização de um corpo de livros pode fornecer ao historiador rico instrumento para apreender a sistematização do saber institucional. Privilegiando a atuação de seu organizador, o capitão de fragata José Maria Dantas Pereira, Lopes Silva estuda o papel dos manuscritos e impressos na instrução dos alunos da Academia, atendo-se aos volumes que compunham a biblioteca e à estrutura de funcionamento dela. Em sua análise, é fácil perceber que livros raros de distintas áreas do conhecimento, como matemática, química, botânica e história natural, constituíram referências relevantes para a ciência militar e para divulgação do conhecimento.

Ao abordar de maneira meticulosa as possibilidades da utilização de impressos como fontes ou objetos de pesquisa, Cultura escrita e circulação de impressos no Oitocentos contribui com o importante debate historiográfico sobre as práticas de leitura e escrita e sua imbricação com a formação nacional, enriquecendo o conjunto de estudos que se dedicam aos aspectos políticos e culturais do Oitocentos. Outrossim, ao compor-se de textos de pesquisadores de diferentes níveis de formação e diversas instituições universitárias do país, indica o importante diálogo aberto pelos grupos de trabalho que se empenham no reconhecimento da palavra impressa como instrumento de manifestação da cultura política escrita no Brasil. Ainda, ao abordar as variadas dimensões do universo da imprensa, Cultura escrita e circulação de impressos no Oitocentos evidencia como a divulgação de ideias, valores e costumes estava associada à circulação de jornais, revistas e livros, ou ao “fogo do céu” e à “fórmula da nova ideia” (p.7) evocadas por Machado de Assis.

Referência

BESSONE, Tânia; RIBEIRO, Gladys Sabi-na; GONÇALVES, Monique de Siquei-ra; MOMESSO, Beatriz (Orgs.). Cultura escrita e circulação de impressos no Oitocentos. 1.ed. São Paulo: Alameda, 2016.

Eduardo José Neves Santos – Mestrando. Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). E-mail: [email protected]


BESSONE, Tânia; RIBEIRO, Gladys Sabina; GONÇALVES, Monique de Siqueira; MOMESSO, Beatriz (Orgs.). Cultura escrita e circulação de impressos no Oitocentos. São Paulo: Alameda, 2016. Resenha de: SANTOS, Eduardo José Neves. “O fogo do céu” e a “fórmula da nova ideia”: escrita, leitura e impressos no Brasil oitocentista. Almanack, Guarulhos, n.18, p. 502-507, jan./abr., 2018. Acessar publicação original [DR]

A Construção Biográfica de Clóvis Beviláqua: memórias de admiração e de estigmas | Wilton Silva

Nas duas últimas décadas, a tradição dos estudos biográficos no Brasil alcançou avanços consideráveis. Dissertações e teses surgiram com todo vigor, problematizando personagens principalmente no campo das letras e da historiografia. Um exemplo desta expansão no campo historiográfico é a publicação do livro “A Construção Biográfica de Clóvis Beviláqua: memórias de admiração e de estigmas”, do historiador e sociólogo Wilton Silva, fruto de sua tese de livre docência, apresentada em 2013, na Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho (UNESP), Campus de Assis, em São Paulo. Publicada em livro em 2016, pela Editora Alameda, a obra traz uma apresentação da antropóloga Suely Kofes (UNICAMP) e o prefácio do historiador Durval Muniz de Albuquerque Jr. (UFRN).

Wilton Silva pretende no livro analisar como se consolidou a memória do jurista cearense Clóvis Beviláqua (1859-1944), problematizando as distintas matrizes narrativas, com especial destaque para as dimensões grupais e institucionais que atuam em processos de afirmações e construções da memória e do esquecimento deste personagem. Para isso, o autor investigou quatro biografias sobre o jurista, publicadas entre as décadas de 1950 e 1990 no Brasil: “Clóvis Beviláqua”, de Lauro Romero (1956); “Clóvis Beviláqua”, de Raimundo Menezes e Ubaldino de Azevedo (1960); “Clóvis Beviláqua na intimidade”, de Noêmia Paes Barreto (1989); e por último “Clóvis Beviláqua: sua vida, sua obra” de Silvio Meira (1990). O autor justifica a escolha pelos méritos historiográficos e aspectos conjunturais em que foram produzidas as biografias ou ainda pelas divulgações que obtiveram em suas respectivas épocas de lançamentos. Leia Mais

A greve de 1917 – Os trabalhadores entram em cena | José Luiz Del Roio

José Del Roio constrói sua narrativa a partir da leitura de historiadores especialistas em História Política, Social e Econômica, ligados ao movimento dos operários no Brasil, como Michael Hall e Suely Robles Reis de Queiroz a militantes intelectuais que viveram no período, como Everardo Dias e Astrojildo Pereira. Além disso, utiliza em seu arcabouço historiadores como Edgar Rodrigues, que se dedicaram aos estudos do anarquismo no Brasil, um campo que ainda carece de estudos e debates, sendo subjugado por uma memória oficial. Neste sentido, Del Roio dará voz a esses sujeitos anarquistas em seu livro “A greve de 1917 – Os trabalhadores entram em cena”, (São Paulo: Alameda, 2017).

Com relação às fontes empregadas pelo escritor, mas antes propriamente de indicá-las, é necessário relatar a relação entre o autor e elas. José Del Roio, radialista, ativista do Partido Comunista Brasileiro (PCB) na década de 60 e fundador, junto a Carlos Marighella, da Ação Libertadora Nacional (ALN), foi um dos que possibilitou a preservação do acervo de Astrojildo Pereira, durante o regime de ditadura militar. O acervo contém vários documentos reunidos sobre o “Movimento operário no Brasil”, folhetos, reportagens de jornais da época, canções, convocações e comunicados do Comitê de Defesa Proletária (CDP), que hoje permanecem no Centro de Documentação e Memória (CEDEM), em São Paulo e que foram utilizados como fontes para o livro.

Diante disso, em meio a um cenário brasileiro contemporâneo, marcado por passeatas, greves gerais e paralisações de várias categorias, no qual há luta por mais transparência política e direitos básicos dos trabalhadores, o livro escrito por José Luiz Del Roio cumpre papel relevante na divulgação de um acontecimento. Fenômeno que há cem anos sinalizaria o início das movimentações sindicais e da organização popular em torno de melhorias nas condições de trabalho do operariado paulista. O autor nos leva, através de sua interpretação, à análise e imaginação ao mundo dos trabalhadores nos bairros Brás, Mooca, e outros de São Paulo, que para ele representou a máxima do movimento sindicalista revolucionário, mas também o início de sua decadência.

Em sua obra, dividida em cinco capítulos, que totalizam cerca de 130 páginas, José Luiz Del Roio busca traçar, inicialmente, os elementos históricos que antecedem a eclosão dos protestos, modificações sociais em São Paulo que, desde o final do século XIX, possibilitaram um crescimento demográfico e industrial na cidade. Decorrente dessas transformações há consequências fundamentais ao contexto da greve. A vinda de imigrantes europeus após a abolição da escravatura, que circunscreveu a formação de uma mão-de-obra ainda com resquícios da escravidão e que, portanto, foi submetida muitas vezes ao trabalho compulsório, fator que elevou ainda mais a pauperização das relações de trabalho. Simultâneo a isso, o aumento e mudança de produção para suprir demandas durante a Primeira Guerra Mundial, o crescimento desordenado destas fábricas e das condições precárias impostas aos trabalhadores acabam propiciando o surgimento de movimentos anarquistas e anarcossindicalistas como resistência a este panorama, tornando-se alvo de discussão do autor no capítulo dois. Segundo o autor, o anarcossindicalismo, apresentando-se como uma cisão anarquista dos sindicatos socialistas, obteria uma atuação mais ampla e direta a favor do operariado através de uma luta mais insurrecional.

No capítulo três há uma maior ênfase na descrição pormenorizada destes protestos e de casos e indivíduos específicos que atuam no desenrolar das paralisações. O autor traz luz às dificuldades e toda a repressão que os grevistas passaram por parte do Estado. Também ganha destaque do escritor a contribuição dos jornalistas à greve, inclusive nas intermediações das negociações, uma vez que a maioria dos diretores do Comitê de Defesa Proletária eram vinculados a estes meios, a exemplo de Edgard Leuenroth, condutor de um meio de comunicação anarquista, a Plebe.

Por fim, nas últimas duas divisões do livro há elaboração de um balanço do movimento, entretanto, se por um lado são destacados os ganhos que o operariado adquiriu e a repercussão que a greve teve em outras regiões do país, por outro são elencadas as sucessivas ações repressivas que sofreram os líderes grevistas após julho de 1917, a estruturação de um sindicalismo moderno advindo da cisão do movimento anarquista no Brasil, além do montante de mortos e desaparecidos nos conflitos, dados que só podem ser discutidos pelo escritor por meio de fontes extraoficiais, visto que os anúncios e denúncias de desaparecidos geralmente eram publicados somente nos jornais anarquistas.

A resistência contra o Estado e a oficialidade dos fatos é algo marcante que permeia toda a obra de José Del Roio. Ele coloca os trabalhadores de 1917 como sujeitos ativos na luta pelos seus direitos e que resistem às forças em contraposição ao seu movimento. O autor faz parte dessa resistência que ainda permanece, também pela escolha de uma documentação não oficial. Apesar de não haver muito sobre as personagens femininas que participaram da greve – o que o autor reconhece e justifica devido à falta de uma documentação – elas são mencionadas como significantes, e as fotografias trazidas ao final do livro as mostram atuantes nas manifestações. Ele não as esquece, assim como também os anarquistas ou os mortos em confronto com a polícia. Logo, a história a contrapelo torna-se aqui presente.

Por fim, torna-se relevante neste trabalho de Del Roio o resgate da greve de 1917 a partir da demonstração das relações deste fenômeno histórico com o movimento anarquista. Evidenciar a relevância desta influência, que adveio da Europa, principalmente através dos imigrantes italianos, ressalta as relações culturais e sociais entre estes e o operariado brasileiro, corroborando o ecletismo dos trabalhadores paulistas no início do século XX. Atitude metodológica que apresenta esses sujeitos históricos de forma complexificada, demonstrando como compreendiam e sintetizavam os ideais anarquistas, aplicando-os em suas visões de mundo e no cotidiano em prol da luta social.

Deste modo, a obra atende bem ao seu propósito, pois a condensação das ideias em um livro menor e a utilização de uma linguagem acessível acabam permitindo uma exposição da greve de 1917 para além do âmbito acadêmico, atingindo um público mais amplo. Da mesma forma, o anexo de fontes ao final do livro, que contém de imagens à recortes de jornais anarquistas, também agrega para um maior envolvimento da obra com um público mais leigo, que talvez não fosse ter acesso a tal documentação por outros meios. Portanto, mesmo o autor não sendo historiador, sua experiência de vida, aliada à apresentação recorrente das fontes pelas quais Del Roio não se abstém, enriquece seu trabalho como pesquisa.

Kauana Silva de Rezende – Estudante do 7º período do curso de História (Licenciatura e Bacharelado) na Universidade Federal do Paraná

Pâmela de Souza Oliveira – Graduada em História (Memória e Imagem) pela Universidade Federal do Paraná.


DEL ROIO, José Luiz. A greve de 1917 – Os trabalhadores entram em cena. São Paulo: Alameda, 2017. Resenha de: REZENDE, Kauana Silva de; OLIVEIRA, Pâmela de Souza. Cadernos de Clio. Curitiba, v.8, n.2, p.135-139, 2017. Acessar publicação original [DR]

Entre o Doce e o Amargo: Memórias de exilados cubanos, Carlos Franqui e Guillermo Cabrera Infante | Barthon Favatto Júnior

Lançado em 2014 pela editora Alameda, Entre o Doce e o Amargo, de autoria do historiador Barthon Favatto Júnior2 , tem por meta apresentar uma leitura historicizada dos livros de memórias do jornalista Carlos Franqui (1921-2010) e do escritor e crítico cinematográfico Guillermo Cabrera Infante (1929-2005).

Neste livro, o leitor é convidado a acompanhar as trajetórias desses dois intelectuais cubanos que protagonizaram, por meio de suas ações e projetos, papéis relevantes para o enriquecimento do universo cultural de seu país. Ganha voz neste trabalho, temas que, na historiografia cubana oficial, são sumariamente abordados como, por exemplo, o exílio do intelectual cubano de esquerda e o estreitamento da política cultural na Ilha após 1959. Leia Mais

No mar e em terra: história e cultura de trabalhadores escravos e livres | Jaime Rodrigues

Esta resenha começa com uma advertência, figura literária comum (como os modernistas tão bem sabem) em obras de autores pós-tridentinos, que a incluíam essencialmente para se exonerarem de responsabilidades, ao sustentarem a sua boa ortodoxia e ao afastarem de si e da sua obra todas as suspeitas de heresias religiosas ou políticas que pudessem fazer tremer trono e altar.

A minha humilde advertência não se rege pelas necessidades políticas ou religiosas, mas pela honestidade intelectual. A resenha que se segue é de autor cujo trabalho se centra no estudo da história religiosa nas vertentes institucional, cultural e das mentalidades, pelo que se afasta do perfil conhecido do nosso caríssimo Jaime Rodrigues.

Aproxima-nos a dedicação ao Atlântico enquanto espaço histórico de análise, e o interesse dedicado aos povos africanos (afinal tivemos por denominador comum a pertença ao Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto) e ao seu papel neste mundo definido pela língua portuguesa. A minha leitura é pois de alguém que, não sendo especialista nas áreas trabalhadas, está no entanto familiarizado com tema e com o autor e como tal atreve-se (humildemente) a resenhar. Perdoe o leitor (e o próprio autor) as limitações e as falhas de tal processo.

O primeiro contacto pessoal que tive com o autor de No Mar e em Terra – História e Cultura de trabalhadores escravos e livres foi no ano de 2013, quando de uma conferência que este proferiu na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Jaime Rodrigues teve então o ensejo de nos deliciar com a apresentação do seu projeto de pesquisa sobre a marinhagem escrava e liberta nos navios Atlânticos dos séculos 18 e 19.

Recordo não apenas o entusiasmo do palestrante sobre o tema que então o ocupava, mas também o daqueles que tivemos o privilégio de o ouvir dissertar, mesmo os que vindos de outras áreas de investigação (como eu próprio) e que rapidamente foram contagiados pelo interesse e novidade do que era apresentado. Jaime Rodrigues demonstrou a importância da pesquisa para um melhor conhecimento da marinhagem atlântica lusófona, em particular o papel quase ignorado dos escravos e libertos e das questões complexas que se lhes punham no tabuado dos navios portugueses que cruzavam o Mar Oceano.

Ao modernista que o ouvia foi difícil não ouvir o apelo de uma pesquisa que procurava recuperar o papel dos africanos neste universo tão particular e que foi elemento estrutural num Estado com características talassocráticas como o era o português da Época Moderna. Particularmente fez-me recordar, como ressonância longínqua, as linhas de Rui de Pina em que descreve a chegada de Diogo Cão ao reino do Congo e de como “…os negros da terra se fiavam delle, e seguramente entravam, já nos navios…” que os trariam a Portugal e à corte de D. João II. Dura ironia certamente.

Três anos passados sobre tal apresentação, e ao folhear o mais recente fruto do trabalho de Jaime Rodrigues (aquele que aqui se tenta resenhar), tive a felicidade de reencontrar (como capítulo terceiro do livro) o tema daquela apresentação de projeto, agora já convertido num produto final. O capítulo, antecedido por um sólido trabalho de enquadramento e de problematização, oferece ao atual leitor as mesmas premissas que nos tinham sido apresentadas em 2013 e a que se juntam agora os passos de pesquisa, os dados por ela coligidos e que sustentam a validade e a importância das conclusões.

O rigor científico e a erudição do trabalho do autor, não apenas neste como nos demais capítulos do livro, e que são naturalmente apanágio de um investigador e docente que conta com uma trajetória sólida e reconhecida, são o garante da qualidade do que nos é oferecido.

Como o prefácio de João José Reis e a própria apresentação do autor esclarecem, No Mar e em Terra é uma coletânea de diferentes artigos produzidos ao longo dos anos e dos quais resultam os sete capítulos da obra. Procurou o autor reunir num só volume trabalhos que andariam dispersos mas cuja afinidade de temas aconselhava a congregar, com toda a coerência, num único volume. Como já o prefaciador salienta, a atualização de bibliografias e a reflexão paralela que Jaime Rodrigues faz sobre a validade dos resultados do seu trabalho à luz da mais recente pesquisa histórica colocam-nos perante um livro que não apenas reúne como atualiza a pesquisa que o autor vem desenvolvendo ao longo do seu percurso profissional.

Com um arco temporal de abordagem que vai do século inicial da expansão marítima portuguesa até ao ainda muito próximo século 19, estes trabalhos encontram o seu fio condutor comum na geografia atlântica e no enfoque nas questões sociais geradas em torno das questões do trabalho (no mar ou em terra) e do papel e lugar dos escravos e libertos africanos neste mundo Atlântico lusófono.

Desde meados do passado século que as historiografias portuguesa e brasileira (e não só) têm dedicado um olhar cada vez mais interessado e aprofundado à importância econômica e social do mundo Atlântico português. O campo tem-se revelado vasto e fértil, as abordagens são múltiplas e vão-se renovando sistematicamente. Ultrapassadas as tradicionais abordagens de história essencialmente política, cujas vicissitudes do devir histórico faziam acentuar as diferenças, tornou-se possível aos acadêmicos compreender a importância dos elementos comuns.

Este é aliás o postulado do autor, bastante notório na introdução ao 2º capítulo, onde sustenta precisamente que uma análise histórica que tenha por foco o Atlântico não deve simplesmente fechar-se na experiência histórica dos homens do norte Atlântico (como fará a historiografia anglo-saxônica) mas perceber o que no conjunto dos territórios mediados por este oceano é elemento comum e pode ser analisado como tal.

Trabalho de um historiador representante de uma academia situada no sul Atlântico, como o Brasil geograficamente se situa e culturalmente se entende (pelo menos de um modo geral), a pesquisa de Jaime Rodrigues evita a tentação de centrar geográfica e humanamente a pesquisa na “sua” metade do Oceano.

Ainda que correndo o grave risco de cair em anacronia, seria interessante equacionar o entendimento que Jaime Rodrigues (bem como os historiadores que partilham do seu entendimento) tem do mundo Atlântico, como uma geografia histórica que é unida, e não separada, pelo oceano, com a visão que a civilização Romana tinha do mar Mediterrânico, o de um mar que mais não era que uma plataforma distribuidora que unia os limites do mundo latino que o rodeavam, e não a fronteira líquida em que se converteu a partir do século 7 e da expansão do mundo islâmico.

A amplitude da perspectiva na abordagem histórica, que também é perceptível na internacionalização do autor (já mencionei a sua participação num centro de investigação ligado à Universidade do Porto), é reforçada pelas fontes e pela bibliografia que utiliza na elaboração dos diversos trabalhos que formam este livro.

Será o caso da utilização que Jaime Rodrigues faz dos fundos dos arquivos históricos portugueses, onde trabalha com documentação que lhe permite contribuir para uma melhor percepção desse espaço Atlântico que é o cenário da sua pesquisa, e que se nos apresenta como um saudável desafio à própria academia portuguesa para que aprofunde os estudos sobre a questão laboral dos africanos nos contextos do mundo lusófono Atlântico.

É uma forma de acentuar o diálogo enriquecedor que o autor já mantém com os investigadores e os centros de investigação portugueses, onde as pesquisas focadas no universo marítimo estão em crescimento, nomeadamente – no que à Universidade do Porto e ao seu Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória (CITCEM) respeita – com pesquisas em torno dos estudos dos portos e das comunidades marítimas, ou das redes comerciais dos primeiros séculos da modernidade, em que o comércio transatlântico tem um papel nada desprezível.

Também uma rápida leitura da listagem bibliográfica utilizada permite alargar esta compreensão do diálogo e inserção internacional do autor, ao colocar-nos perante bibliografia ampla e significativa para os temas abordados (aliás, como já mencionado, foi especialmente atualizada para esta edição), com uma notória e expressiva presença de bibliografia portuguesa e anglo-saxônica da mais recente produção.

Salienta-se o entendimento preciso que o autor tem sobre o universo que trabalha, bem como a diversidade e relevância das fontes e bibliografia que utiliza, para acentuar o fato de esta obra não ser de interesse circunscrito e localizado. Jaime Rodrigues organizou esta sua coletânea de textos numa gradação variável de perspectivas de âmbito geográfico e cronológico que nos permitem, sob a mesma linha de entendimento, ver diferentes graus de abordagem.

O autor aborda desde pesquisa que poderemos designar como de história local e regional (o estudo centrado na Fábrica de Ipanema, no capítulo sexto), ou com uma natureza temporal muito precisa (como o estudo sobre os escravos que tentaram obter a sua liberdade por recurso à Constituinte Brasileira de 1823, capítulo quarto), a estudos bastante mais dilatados no espaço e no tempo.

Com uma orgânica que segue inteiramente o plasmado no título, o livro pode-se dividir entre os capítulos que situam a sua análise no Mar Atlântico (os três primeiros capítulos) e os que a situam em Terra (capítulos quarto a sétimo).

O primeiro conjunto de artigos que supra se menciona apresenta três diferentes abordagens ao universo dos marinheiros Atlânticos e a questões culturais, materiais e laborais que se desenvolviam em alto-mar.

O primeiro capítulo introduz um interessante estudo no domínio da cultura marítima criada pelos marinheiros Atlânticos, que se apresentam como criadores, promotores e conservadores de patrimônio imaterial, num estudo dedicado aos ritos de passagem do equador, analisados entre os séculos 16 e 20, com testemunhos de autores oriundos das mais diversas nações que cruzam o mar Atlântico.

O capítulo sequente introduz-nos a uma das questões materiais mais relevantes na vida marítima, com consequências diretas na própria sobrevivência dos mareantes: Jaime Rodrigues oferece-nos um estudo sobre a relação entre alimentação e saúde a bordo dos navios que cruzavam o Atlântico, erguido sobre a análise cruzada das descrições de viajantes europeus e dados recolhidos em arquivos portugueses.

Salienta-se, num tema já tratado anteriormente pelo autor na sua tese doutoral e que agora retoma, a sua abordagem (no ponto III) à questão do conhecimento empírico gerado pela experiência de mar, uma verdadeira cultura prática marítima colocada ao serviço da preservação física dos homens do mar (nomeadamente no tratamento do escorbuto), e a importância desse conhecimento contra o qual se levantava a desconfiança dos oficiais médicos. Uma experiência aliás que transpunha para a alimentação a bordo todo o conhecimento novo que se obtinha de alimentos desconhecidos dos europeus pré-modernos e que as viagens de navegação Atlântica somaram à sua cultura material.

O terceiro capítulo, fruto da pesquisa que se menciona no início desta resenha, encerra o conjunto de trabalhos especificamente dedicados ao universo marítimo, cedendo passo aos trabalhos “terrestres”, conjunto de quatro trabalhos que têm por elo comum os trabalhadores escravos e libertos.

O capítulo quarto introduz-nos às tentativas de escravos de obterem a sua liberdade por recurso à primeira constituinte brasileira, cuja memória o autor recupera dos fundos do arquivo parlamentar. Demonstra materialmente como a retórica que acompanhou a emancipação política do Brasil teve eco entre a população escrava, que do recurso ao judicial e às novas autoridades políticas procurou obter a sua liberdade, anseio que soçobra ante o primado (próprio de um regime liberal) do direito à propriedade.

Se o quinto capítulo analisa e contextualiza criticamente a proposta teórica apresentada por um acadêmico do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, logo nos primeiros anos desta instituição, em que defende a substituição da mão de obra escrava africana (que advoga incivilizável e até fonte de barbarização) por indígenas brasileiros “civilizados”; já o sexto capítulo vai no sentido oposto, passando dos debates teóricos sobre a natureza do trabalhador escravo africano à materialidade da situação do trabalhador africano livre em contexto industrial.

Com um artigo sobre os africanos que alcançavam a liberdade quando compreendidos na lei de 1831 que proibia o tráfico de escravos para o Brasil, Jaime Rodrigues analisa como a adoção de uma prática comum em estados com tradição histórica de escravatura, de colocar homens livres na condição de trabalhadores forçados, se desenvolve na fábrica de ferro de Ipanema, em São Paulo, análise que insere numa aprofundada contextualização e que termina urgindo por maiores pesquisas sobre o tema.

O último artigo desta coletânea avança numa direção diferente, e apresenta uma reflexão diacrônica sobre o modo como o preconceito contra África e os africanos assumiu um importante papel na construção de um discurso historicamente duradouro que atribui ao continente e aos seus filhos, muitas vezes transportados forçadamente e na pior das condições, a condição de fonte epidêmica, uma leitura que Jaime Rodrigues situa inicialmente no presente, para recuar nos séculos e demonstrar a sua constância.

Reunindo textos publicados entre 1995 e 2013, esta coletânea encontra um fio condutor que nos conduz à reflexão da importância comum do mundo Atlântico, e do papel que na sua construção tiveram os africanos, escravos e livres, e de como esse papel foi sendo acompanhado de incríveis demonstrações de preconceito e processos de subalternização; reflexão que o autor situa muito bem entre os trabalhos produzidos por esta área de pesquisa em constante expansão.

Ao mesmo tempo que nos apresenta os resultados do seu competentíssimo esforço, Jaime Rodrigues apresenta novas interrogações e apresenta linhas possíveis de pesquisa que apenas nos faz desejar que prossiga, sem mais demoras, o seu trabalho.

Nuno de Pinho Falcão – Universidade do Porto, Porto, Portugal. E-mail: [email protected]


RODRIGUES, JAIME. No mar e em terra: história e cultura de trabalhadores escravos e livres. São Paulo: Alameda, 2016. Resenha de: FALCÃO, Nuno de Pinho. O Mar que nos une: trabalho, escravos e libertos no Atlântico Moderno e Contemporâneo. Almanack, Guarulhos, n.15, p. 371-376, jan./abr., 2017.

Acessar publicação original [DR]

O Cavaleiro Negro: Arlindo Veiga dos Santos e a Frente Negra Brasileira – MALATIAN (FH)

MALATIAN, Teresa. O Cavaleiro Negro: Arlindo Veiga dos Santos e a Frente Negra Brasileira. São Paulo: Alameda, 2015. Resenha de: NACHTIGALL, Lucas Suzigan. Faces da História, Assis, v.3, n.2, p.261-264, jul./dez., 2016.

A seguinte resenha visa analisar o livro O Cavaleiro Negro: Arlindo Veiga dos Santos e a Frente Negra Brasileira, da historiadora Teresa Malatian, cujo objetivo central é abordar a participação de Arlindo Veiga dos Santos na Frente Negra Brasileira, desde sua fundação em 1931 até sua dissolução com o estabelecimento do Estado Novo em 1937. Ademais, o livro, lançado no ano passado, aborda também a formação do intelectual e sua atuação em movimentos sociais pelo fim da segregação e pela inclusão do negro na sociedade brasileira.

Sua constituição de pouco mais de trezentas páginas é dividida em vários pequenos capítulos, nos quais são dissertados aspectos da vida e da obra de Arlindo Veiga dos Santos e, consequentemente, das lutas, jornais e associações negras do final da década de 20 e 30.

Após um breve, porém pertinente, prefácio da professora Maria de Lourdes Monaco Janotti2, o livro segue trabalhando a história de Arlindo Veiga dos Santos, ferrenho militante negro, católico e monarquista, que atuou vivamente no Estado de São Paulo durante as décadas de 20 e 30, militando a favor da inserção do negro e pela instauração, no Brasil, de uma monarquia corporativista católica ultraconservadora, distinta dos monarquistas tradicionais, reformistas e liberais.

O livro inicia com a narração dos primeiros anos da formação de Arlindo Veiga dos Santos e seu irmão, Isaltino Veiga dos Santos, ressaltando sua origem de uma família humilde, cujos pais eram cozinheiros, mas que, apesar de terem poucos recursos financeiros, faziam questão de que seus filhos homens estudassem e tivessem uma boa educação.

Posteriormente à conclusão de seus estudos no Colégio São Luiz, de ensino caracteristicamente jesuíta, Arlindo Veiga dos Santos conseguiu, junto de seu irmão, estudar na Faculdade de Filosofia e Letras de São Paulo (hoje parte da PUC-SP), onde concluíram seus estudos.

Durante a faculdade, bem como no colégio que estudara anteriormente, Arlindo Veiga dos Santos recebeu uma formação em filosofia e em oratória, que foi de grande relevância para sua carreira. Foi também neste período que entrou em contato com o neotomismo, vertente filosófica construída a partir do pensamento de Tomás de Aquino e que, politicamente, advogava por uma visão de mundo medieval, notadamente antiliberal, antidemocrática, antiparlamentar, e que se colocava como alternativa ao socialismo, ao comunismo, ao anarquismo e à democracia liberal. Essa vertente filosófica marcaria, então, o cerne de suas obras e militância, e o intelectual se inspiraria também em movimentos políticos autoritários, como o fascismo italiano, para formular seu modelo de regime monárquico católico e corporativista e sua defesa da inclusão social do negro.

O livro segue contextualizando Arlindo Veiga dos Santos diante da intelectualidade negra nos anos 20, abordando as relações sociais dos negros no período e suas redes de sociabilidade construídas em torno de um associativismo cultivado a partir e em torno da recreação e de eventos como bailes e festividades.

Nesse contexto, teve início a ação panfletária de Arlindo Veiga dos Santos, fomentando o surgimento e o crescimento de diversos movimentos negros, como o Centro Cívico Palmares, que funcionava como uma escola, uma biblioteca, assim como, um centro comunitário e um espaço doutrinário de sociabilidade dos negros. Ali também eram confeccionados jornais escritos para a população negra, onde os “irmãos Santos” eram assíduos colaboradores, panfletando pela integração do negro na sociedade dentro de sua perspectiva católica.

Pouco depois da malsucedida tentativa de se estabelecer o Congresso da Mocidade Negra, um núcleo que centralizaria a militância negra, Arlindo Veiga dos Santos participara da formação da Frente Negra Brasileira (FNB), onde atuaria ativamente até sua extinção em 1937. Malatian discorre, então, sobre a constituição dessa frente, dos embates ideológicos internos ao grupo, especialmente entre Arlindo Veiga dos Santos, monarquista de direita, e Correia Leite, ligado a grupos socialistas e comunistas, onde Arlindo Veiga dos Santos assume, impondo sua liderança ao grupo.

Com a vitória de Arlindo Veiga dos Santos, a Frente Negra cresce, estendendo seu alcance muito além dos negros da classe média e congregando muitos populares, tanto na capital como pelo interior, onde diversas sedes foram abertas. Com isso, foi possível promover campanhas pela educação dos negros, bem como outras, como as que defendiam a necessidade de sair do aluguel e adquirir a casa própria e a admissibilidade de negros na Guarda Civil de São Paulo.

Simultaneamente, o livro também trabalha a face política da Frente Negra, desde a participação de negros na Revolução de 32, enquanto o movimento se mantinha neutro, denunciando o caráter oligárquico das elites revolucionárias, as aproximações de Arlindo Veiga dos Santos e, com ele, a FNB, com o integralismo de Plínio Salgado, que estreitaram muito as relações em vários momentos durante a década de 30.

Essa face política culminou com a candidatura de Arlindo Veiga dos Santos para a Constituinte de 1933 e, após o fracasso da candidatura, o lento afastamento do intelectual da presidência da Frente Negra Brasileira, onde ele permaneceria como membro atuante até 1937, quando suas atividades foram encerradas pelo Estado Novo.

O livro, como é possível notar, possui seu conteúdo centralizado na ação de Arlindo Veiga dos Santos e sua militância negra, monarquista e autoritária, com especial enfoque em sua participação na Frente Negra Brasileira e jornais negros subjacentes, como o Voz da Raça e o Clarim da Alvorada, onde participou junto de seu irmão Isaltino.

Sua postura e governos autoritários são diversas vezes apresentados e ressaltados pela autora, bem como os elementos de inspiração medieval que, aliados à aproximação de ideologias e movimentos autoritários, tornaram ímpar sua atuação no movimento negro das décadas de 20 e 30. Sua campanha pela educação, como mostra a autora, obteve profundos resultados.

O autor pregava a realização de uma “nova abolição”, para combater a “escravidão moral”, que assolava o Brasil após a abolição formal da escravidão, e que a educação traria a redenção para o negro, e divulgava assiduamente a necessidade de escolarizar os filhos. Com esforço conseguiram criar uma escola seriada, com alguns professores, e lutar contra o analfabetismo em crianças e adultos, profissionalizá-los e capacitá-los a combater a desigualdade e o preconceito que os negros enfrentavam.

A visão de Arlindo Veiga dos Santos, como nos mostra Malatian, era maniqueísta, centrada no combate entre o bem (católicos, nacionalistas) e o mal (comunistas, socialistas, anarquistas, liberais, entre outros). Nesse embate, os negros deviam lutar pela integração plena na sociedade brasileira, combatendo pela Pátria contra seus inimigos, como o preconceito e doutrinas perniciosas (socialismo, comunismo, liberalismo) para o progresso da Nação.

O estilo de escrita do livro é bastante característico da autora Teresa Malatian. Como seu livro anterior a respeito do Patrianovismo, Império e Missão: Um novo monarquismo em brasileiro (Editora Nacional, 2001), Malatian aborda a década de 30, com seus movimentos religiosos, sociais e políticos, com bastante familiaridade. Os capítulos, curtos, são apresentados de forma breve e temática, mas sucessiva e bem entrelaçada. Sua redação, que lhe é particular, é muito fluída e agradável, o que facilita a leitura e absorção da quantidade de informação que a autora traz à obra.

São apresentados, nos capítulos, uma quantidade relevante de trechos de artigos jornais, poemas e cartas, o que divulga e disponibiliza o acesso a essa documentação. Ao final de muitos desses capítulos, diversas fotografias relacionadas às temáticas são apresentadas, ilustrando os argumentos da autora (o que tem relevância quando se tratam de escolas, bandeiras, uniformes). Porém, infelizmente, a diagramação delas, na fase da edição, acabou fazendo com que algumas delas, como as imagens 05 e 06 (pág. 48 e 49, respectivamente), ficassem estranhas e demasiadamente pequenas, utilizando uma página inteira em uma foto minúscula. Outras, por conta da impressão, ficaram tão escuras que dificultou a definição do que estava representado, ou distinguir as pessoas. Como são problemas de simples resolução, é possível que seja solucionado em alguma eventual reedição.

Apesar desses detalhes, o livro permanece como uma boa escolha de leitura clara e fluída, acompanhada de uma história consideravelmente rica de conteúdo e informações. Esse conteúdo não trata profundamente acerca da atuação de Arlindo Veiga dos Santos na Ação Imperial Patrianovista Brasileira – tema abordado no livro supracitado da autora, e também no seu mestrado e doutorado – mas contextualiza a ação do intelectual e seu monarquismo católico e autoritário dentro do movimento negro da época, o que carecia de trabalhos dedicados.

Certamente, a obra oferece uma leitura útil para aqueles interessados tanto no movimento negro quanto nos movimentos católicos e de inspiração política autoritária da época, principalmente por contextualizar muito bem Arlindo Veiga dos Santos, seus embates e ideias, no movimento negro, e oferecer um panorama bem abrangente de sua ação como militante negro, católico, monarquista e nacionalista.

A autora do livro, doutora Teresa Malatian, é docente titular do curso de História da Faculdade de História, Direito e Serviço Social da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – UNESP – campus de Franca. Possui titulação de Mestre em História, pela PUC/SP, com a dissertação A Ação Imperial Patrianovista Brasileira (1978) e de Doutora em História, pela FFLCH – USP, com a tese Os Cruzados do Império (1988). Atualmente, desenvolve principalmente pesquisas sobre os movimentos monarquistas no Brasil República, História do Brasil e historiografia.

Notas

2 Maria de Lourdes Monaco Janotti é professora da Universidade de São Paulo (USP), autora do livro “Os subversivos da República” (1986), que abordou os monarquistas e sua militância nos anos iniciais do regime republicano no Brasil.

Referências

JANOTTI, Maria de Lourdes Mônaco. Os Subversivos da República. São Paulo: Brasiliense, 1986.

MALATIAN, Teresa. A Ação Imperial Patrianovista Brasileira. Dissertação (Mestrado em História). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 1978.

MALATIAN, Teresa. Os Cruzados do Império (1988). Tese (Doutorado em História).

Universidade de São Paulo, São Paulo, 1988.

MALATIAN, Teresa. Os Cruzados do Império. São Paulo: Contexto, 1990.

MALATIAN, Teresa. Império e missão: um novo monarquismo brasileiro. 1.a. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2001.

MALATIAN, Teresa. O Cavaleiro Negro: Arlindo Veiga dos Santos e a Frente Negra Brasileira. São Paulo: Alameda, 2015.

Lucas Suzigan Nachtigall – 1. Mestre em História pela UNESP/Assis. E-mail: [email protected].

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Lealdades negociadas: povos indígenas e a expansão dos impérios ibéricos nas regiões centrais da América do Sul (segunda metade do século XVIII) – CARVALHO (RBH)

CARVALHO, Francismar Alex Lopes de. Lealdades negociadas: povos indígenas e a expansão dos impérios ibéricos nas regiões centrais da América do Sul (segunda metade do século XVIII). São Paulo: Alameda, 2014. 596p. Resenha de: MAIA, Lígio de Oliveira. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.36, n.71, jan./abr. 2016.

Índios missioneiros, infieles, “administrados”, “apóstatas”, cabildantes e índios comuns, usados como canoeiros, ferreiros, carpinteiros, “presidiários”, escravos e força militar; aqueles não integrados à política indigenista eram os índios “independentes”, os “bárbaros”: conhecida imagem política e/ou jurídica a justificar ora a guerra ofensiva ora a guerra defensiva. Entre uns e outros e os diferentes sistemas de integração dos povos indígenas em áreas de fronteira em disputa entre Portugal e Castela, nas regiões centrais da América do Sul, os caciques, figuras coloniais que terão novas atribuições com a secularização das missões religiosas a partir da segunda metade do século XVIII, constituíam outras personagens imprescindíveis na formulação das políticas ibéricas. Mas não só. Juntem-se a esse cadeirão cultural nas “raias dos impérios” – como afirma o autor mais de uma vez ao longo da obra – quilombolas, “renegados”, vadios, negros escravos e forros, colonos pobres livres e toda forma arbitrária de identificação de marginalizados, e ter-se-á o elenco da experiência humana daquelas fronteiras setecentistas apresentado em Lealdades negociadas, livro de Francismar Lopes de Carvalho.

Quanto ao cenário, trata-se de espaço fronteiriço entre a capitania de Mato Grosso e as províncias espanholas de Mojos, Chiquitos e Paraguai, no âmbito das indefinições do Tratado de Madri de 1750, impelindo a política de expansão dos impérios ibéricos à promoção de atração de populações indígenas e colonos a partir do princípio da uti possidetis. Nessa perspectiva, missões religiosas, vilas e fortes militares eram planejados e construídos não somente como marcadores de domínio, mas como centros de atração de lealdades em disputa, vassalos de todo tipo que, em maior ou menor grau, tiveram a oportunidade de negociar suas lealdades a um ou ao outro monarca.

Lealdades negociadas deve ser apontada como uma contribuição original a devassar mais uma de nossas “fronteiras” – histórica e historiográfica, vale dizer – pela densa compreensão da configuração espaço-territorial daqueles espaços liminares. Não se trata, contudo, de mera análise comparativa de viés “nacional” bastante conhecida entre nós, historiadores brasileiros, com raras exceções, quando os temas abordados são os limites setentrionais ou meridionais da América portuguesa no âmbito das disputas diplomáticas entre portugueses e outros europeus.2 Caudatário de uma perspectiva mais fluida e dinâmica do conceito de fronteira, em boa medida advinda da historiografia norte-americana, o autor reflete sobre diferentes tipos de instituições coloniais de ambos os impérios, por exemplo, a política indigenista, o recrutamento militar, os sistemas de trabalho e abastecimento, o funcionamento da administração local, a gestão espacial das missões e dos pueblos, as formas típicas de ascensão social etc., naquilo que ele denomina “abordagem relacional da situação de fronteira” (p.35). Graças a esse deslocamento, a política indígena dos “índios submetidos” – por meio de seus caciques nos pueblos e cabildos, no lado de Castela, bem como dos índios principais e câmaras municipais, nas vilas pombalinas -, mas também dos “índios independentes” – ainda não integrados à vassalagem de suas Majestades Católica ou Fidelíssima -, a ação consciente (agency) dessas personagens históricas pode ser mais bem dimensionada em sua extensão mais ampla (p.34).

Quanto a esse último aspecto, basta mencionar que a política indigenista de atração pacífica de povos não integrados dependia da situação política da área em disputa. Contribuição inovadora, ao enfatizar as noções de “fronteira externa” e “fronteira interna” – respectivamente de áreas mais claramente disputadas entre os impérios ibéricos e aquelas já pacificadas -, o autor demonstra que, nessas áreas, governadores ilustrados reformistas e elites locais, em ambos os domínios, tinham pouco ou nenhum interesse na manutenção dessa forma pacífica de aliança com os povos indígenas. Logo, da “fronteira externa à interna, a passagem era também da força do simbólico ao simbolismo da força” (p.183).

Conscientes de que tinham sua lealdade em disputa, os índios Guaykuru, por exemplo, no final do século XVIII, não se fizeram de rogados. Para aceitarem os dispositivos do diretório, no lado português, exigiram de seus interlocutores, autoridades locais, que se lhes fossem dados escravos para iniciarem as plantações de milho e feijão, “porque eles não eram captivos”; quanto à construção das casas na nova vila ou povoação a que seriam transferidos, os mesmos índios diziam “que as madeiras para ellas [casas] eram muito duras, e molestavam os hombros que todos as queriam, mas que lh’as fossem fazer os portugueses”; ainda no âmbito do diretório quanto à promoção dos casamentos mistos, “disseram todos queriam mulher portuguesa; mas com a condição de as não poderem largar até a morte, lhes pareceu inadmissível” (p.311). Esse parecer do comandante Ricardo Franco Serra, em 1803, apontava que a mo- bilidade, a guerra e a aversão dos Guaykuru aos costumes ocidentais eram elementos impeditivos de um aldeamento permanente entre eles.

Altivos, guerreiros equestres e nunca plenamente integrados à vassalagem na forma de quaisquer das políticas indigenistas de ambos os impérios, os índios da família linguística Guaykuru – os Mbayá, na documentação espanhola (p.38, nota 64) – eram exemplos modais quanto às indefinições de fronteira de domínio e de seu próprio efeito na experiência do colonialismo. Da parte dos domínios castelhanos, uma das soluções efetivas foi introduzir 25 famílias Guarani na redução de Belén, em 1760, de modo a garantir o abastecimento agrícola e servir de exemplo a aqueles “índios cavaleiros”, pois sabia-se no Paraguai e nas missões jesuíticas que os Guaykuru “desprezavam o trabalho agrícola” (p.312-313).

Entretanto, nem sempre a política de pacificação precisava culminar numa missão ou redução, pois a integração desses povos numa rede de comércio e mesmo de contrabando não era elemento menos importante em ambas as políticas.

Em Borbón, um dos 27 presídios que existiam no Paraguai no final do século XVIII e um dos dois em que os soldados venciam soldos, por inoperância deliberada da Real Hacienda era bastante comum o uso dos índios como fornecedores de provisões. O mesmo valia para o forte Coimbra, estratégica possessão portuguesa também no vale do rio Paraguai. Assim, a boa relação com os Guaykuru, então “índios amigos”, resultava em fornecimento de gado aos dois lados em disputa; da parte dos índios agricultores Guaná, recebiam porções de milho, mandioca, moranga, batatas, pescado e galinhas. Aos índios eram dados tecidos de algodão, redes e apetrechos de todo tipo, como tesouras, facões, machados etc. (p.435).

Essa dependência dos militares em relação aos índios e aos colonos moradores nas proximidades dos fortes e presídios advinha do precário tipo de “abastecimento das guarnições” (p.457). Aos governadores espanhóis e portugueses, a política de suas monarquias era a mesma: reduzir custos – da Real Hacienda e da Fazenda Real – e impelir seus soldados e oficiais a cuidarem de buscar o próprio sustento (p.471). De maneira mais abrangente, o estabelecimento dos vassalos nos territórios contestados passava pelo uso de dispositivos simbólicos de lealdades e pela transferência de gastos aos colonos (p.486). O autor nos ajuda então a compreender dois outros aspectos a partir dessas dependências: as construções tipicamente militares – fortes e presídios – adquiriram outra função para além da defesa e de postos avançados, pois eram também pontos de atração a colonos e índios não integrados; o segundo as- pecto diz respeito àquilo que o autor denomina “negociação assimétrica de lealdades” (p.30). Ora, mesmo sob condição precária, o serviço militar nunca deixara de ser um mecanismo importante de ascensão social, mesmo nas fímbrias daquela sociedade de Antigo Regime, impelindo quase todas as camadas sociais a, de alguma forma, dela participar. Entretanto, a remuneração real desses serviços tocava de maneira distinta as elites locais e os colonos pobres, homens de cor, mestiços livres e índios: “a Coroa assinalava a certos setores proprietários que não pretendia destruir suas propriedades”, pois, como assinala o autor, o pacto entre as elites locais e o poder central era a própria base da monarquia “de que estavam excluídos os despossuídos” e sobre quem recaía o recrutamento, especialmente aos “vadios” (p.345-346).

Outro ponto dos mais instigantes em Lealdadas negociadas diz respeito à política deliberada – ainda que secreta – de autoridades portuguesas em promover um sistemático circuito de contrabando no império rival. Assim, em 1761, dirigindo-se ao governador do Pará, o secretário de Estado Francisco Xavier de Mendonça Furtado referia-se ao “político uso do commercio” desde que feito “cautelozamente com os padres castelhanos”; ao governador do Mato Grosso, a mesma dissimulação barroca – como se refere o autor – ganha maior dimensão diplomática: “por que assim He conveniente ao Serviço de S. Mag.e; conservando esta ideya no mais inviolável segredo” (citado na p.512).

Vale dizer que desse contrabando, um sucesso da parte da política portuguesa, resultou a construção do monumental Forte Príncipe da Beira, iniciada em 1776 e finalizada na década de 1780, garantindo a presença portuguesa no vale do rio Guaporé à custa de ninguém menos que os próprios vassalos da monarquia rival, uma vez que curas, mercadores, missionários, militares e até governadores colaboravam com esse circuito a ligar as regiões de Santa Cruz de la Sierra, Cochabamba e La Plata, drenando de quebra a produção dos povos indígenas das missões de Mojos e Chiquitos. Logo, a política espanhola de monopólio da produção das missões pós-jesuítas – os religiosos foram expulsos em 1761 -, acabou por estimular sobremaneira a fuga de recursos e produtos do fiscalismo da Real Hacienda.

Ao que parece, a lealdade de vassalos tão distantes de seus monarcas, especialmente em áreas de contestação, passava pelo crivo da experiência histórica de seus inúmeros atores: “as lealdades imperiais em nada se assemelhavam a quaisquer sentimentos ‘nacionalistas’; eram antes noções instáveis de pertencimento resultantes de dispositivos materiais e simbólicos do colonialismo” (p.522).

Diante da exiguidade de espaço, nem de longe foram apontados aqui todos os temas e questões relevantes do livro. A presença dos jesuítas e a história militar da capitania de Mato Grosso – “antemural da colônia” e “chave” do domínio português nas bacias do Amazonas e do Paraguai e Paraná, como constava em uma consulta ao conselho ultramarino, em 1748 (p.45) – são histórias ainda a ser sistematizadas; de maneira mais dirigida, o mesmo vale para as duas expedições espanholas, em 1763 e 1766, destinadas a desalojar os portugueses do Mato Grosso, assunto pouco discutido na historiografia brasileira (p.387, 444-445).

Resultado de 6 anos de pesquisa entre doutorado e pós-doutoramento, Lealdades negociadas recebeu o Prêmio Científico da América Latina/ Santander Totta (Portugal), edição 2014, na categoria de melhor Tese em Ciências Sociais. Abrangendo diferentes tipos documentais em arquivos e bibliotecas em Espanha, Portugal, Brasil, Paraguai e Argentina, além de um denso diálogo bibliográfico com a literatura histórica de língua inglesa e espanhola, essa edição parece ressentir-se apenas de traduções para o português das inúmeras citações presentes no livro. A julgar por nossos alunos brasileiros, quase todos monolíngues, esse aspecto da obra não é nada irrelevante.

Referências

FARAGE, Nádia. As muralhas dos sertões: povos indígenas no Rio Branco e a colonização. Rio de Janeiro: Paz e Terra; Anpocs, 1991. [ Links ]

GARCIA, Elisa F. As diversas formas de ser índio: políticas indígenas e políticas indigenistas no extremo sul da América portuguesa. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2009. [ Links ]

Notas

2 Nesse sentido, o trabalho do autor soma-se a outras pertinentes exceções. Cf. GARCIA, 2009FARAGE, 1991.

Lígio de Oliveira Maia

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Escravidão e família escrava na Zona da Mata Mineira oitocentista | Jonis Freire

A escravidão na América portuguesa e no Brasil Imperial é um dos temas mais instigantes da historiografia brasileira, em virtude de seu impacto na formação da sociedade contemporânea. Por volta dos anos 1980, a história social da escravidão trouxe considerável renovação para a historiografia sobre a escravidão brasileira. Ao empregar novas abordagens teórico-metodológicas e fontes documentais até então pouco exploradas, os estudiosos passaram a investigar de forma profícua as facetas da escravidão brasileira em suas diversas temporalidades e regiões. Além disso, a população cativa passou a ser encarada como sujeita de sua própria história. Escravidão e família escrava, resultado da tese de doutorado de Jonis Freire, defendida em 2009 na Unicamp, insere-se nessa tradição historiográfica.

A obra centra-se na atual cidade de Juiz de Fora, que, “no decorrer do século XIX, possuiu a maior população escrava da província, com uma economia baseada, principalmente, na plantation cafeeira” (p. 28). Os eixos temáticos tratam sobretudo da demografia e família cativas e dos padrões de manumissão das escravarias pertencentes a três grandes cafeicultores, Antônio Dias Tostes, Comendador Francisco de Paula Lima e Capitão Manoel Ignácio Barbosa Lage, no período que abrange as décadas de 1830 a 1880.

Dividido em quatro capítulos, o livro trata, no primeiro deles, da formação da Zona da Mata Mineira e, especialmente, de Juiz de Fora. Analisa, ainda, por meio dos inventários post mortem, a composição da riqueza dos chefes daquelas três famílias bem como o perfil demográfico de seus cativos. Jonis Freire mostra que tais senhores – grandes proprietários de terras, escravos e cafezais – eram típicos representantes da elite cafeeira, destacando-se na economia e na política local.

Os casais Dias Tostes, Paula Lima e Barbosa Lage acumularam fortuna sobretudo a partir da cafeicultura e de empréstimos de dinheiro a juros. Jonis Freire aponta que “todas as três famílias estudadas, em algum momento, fizeram uso das ligações matrimoniais com outras famílias da elite para aumentar não só o seu prestígio social, mas, acima de tudo, os seus cabedais econômicos, {..} bem como seu status político” (p. 62). A maior parte dos patrimônios estava alocada em cativos, imóveis rurais e urbanos e em dívidas ativas.

O perfil demográfico da mão de obra desses cafeicultores sofreu mudanças ao longo do Oitocentos, devido, principalmente, ao fim do tráfico atlântico de africanos em 1850. A posse de Antônio Dias Tostes, composta por 147 indivíduos – a maior escravaria, segundo a lista nominativa de 1831 -, era basicamente constituída por homens (70,8%), africanos (85,7%) e indivíduos jovens/adultos (71,4%), com idade entre 15 e 40 anos. Já em 1837, segundo a partilha de bens de sua esposa, Dona Anna Maria do Sacramento, a posse sofreu ligeiras oscilações: a despeito da expansão da escravaria (185 ao todo), as proporções de homens e jovens/adultos mantiveram-se praticamente inalteradas, ao passo que os africanos reduziram sua participação relativa a 76,6%. Embora o autor não explique, pode-se conjecturar que o término temporário do tráfico atlântico (1831-1835) teria causado essa redução.[1]

A posse do Comendador Francisco de Paula Lima, segundo o seu inventário (1866), composta de 204 cativos, tinha um perfil semelhante à de Tostes: os homens correspondiam a pouco menos de 70% e os jovens/adultos representavam dois terços da escravaria; em 1877, de acordo com o inventário de sua viúva, D. Francisca Benedicta de Miranda Lima, dos 130 escravos, 57% deles eram homens e 45,6% jovens/adultos. Por fim, a posse do Capitão Manoel Ignácio Barbosa Lage, no ano de seu falecimento (1868), tinha 118 cativos: 64,4% deles eram homens, 50% eram jovens/adultos e 20% haviam nascido na África.

De modo geral, os dados atinentes às posses desses casais devem ser inseridos em um quadro de análise mais amplo. Pode-se, assim, entrever dois períodos distintos. No primeiro, que corresponde à primeira metade do século XIX e no qual se enquadra a propriedade do casal Dias Tostes, a escravaria tende a ser composta sobretudo por homens, jovens/adultos e africanos. Nesse período, a oferta elástica de escravos africanos permitia aos senhores adquirir mão de obra relativamente barata, via tráfico atlântico, para manter e/ou ampliar suas posses. Após o término do tráfico, em 1850, inicia-se o segundo período, no qual as propriedades dos casais Paula Lima e Barbosa Lage estão incluídas: a partir desse momento, tem-se uma sociedade escravista madura, cuja população cativa tende ao equilíbrio sexual, à simetria entre crioulos e africanos, e verifica-se, ademais, o progressivo envelhecimento da mão de obra. Há ainda tendência à reprodução via crescimento vegetativo da escravaria.[2]

O segundo capítulo aborda as formas de reprodução da escravaria utilizadas pelas famílias da elite juiz-forana. O objetivo de Freire é determinar o seu impacto sobre a manutenção e/ou ampliação das posses cativas. Para tanto, procura cruzar quatro tipos de fontes: 1) Livros de Registro de Batismo; 2) Despacho de Escravos e Passaportes da Intendência de Polícia da Corte; 3) Inventários; 4) Livros de Notas e Escrituras Públicas.

Com base no exame minucioso das fontes, o autor assinala que os casais Dias Tostes e Paula Lima valeram-se, sobretudo, do tráfico atlântico e do tráfico interno para manter e/ou expandir suas escravarias. Os Barbosa Lage, por sua vez, teriam recorrido, primordialmente, à reprodução natural de seus cativos. Nesse sentido, “conclui-se que as duas opções para o aumento do número de cativos – reprodução natural e tráfico de escravos – parecem não ter sido excludentes na referida localidade, mas complementares” (p. 159). Embora a conclusão se alinhe às ilações de uma parte da historiografia, ele não pôde determinar o impacto efetivo de cada uma das formas de reprodução da escravaria naquelas propriedades rurais.

Sobre a análise dos registros de batismo e dos inventários, podem ser feitas duas considerações. Em primeiro lugar, Freire não pondera que o número relativamente pequeno de escravos levados ao batismo pelos casais Dias Tostes e Paula Lima pode indicar somente que eles teriam sido menos cuidadosos, em relação aos Barbosa Lage, em registrar em cartório os filhos de seus cativos. O que não significa afirmar que apenas os Barbosa Lage tenham sido favorecidos com a reprodução natural de seus escravos. Ademais, nem todos os inventários dos três casais foram investigados, o que não permitiu que se acompanhasse a evolução demográfica das escravarias no tempo. Do casal Dias Tostes, o autor examinou apenas a partilha de bens de D. Anna Maria (1837), além do domicílio do casal na lista nominativa (1831); o inventário de Antônio Dias Tostes não foi localizado. Do casal Paula Lima, ambos os inventários puderam ser consultados. E, do casal Barbosa Lage, somente o inventário do Capitão Barbosa Lage (1868) pôde ser examinado; Freire não informa por qual razão não se analisou o inventário de sua esposa, D. Florisbella Francisca de Assis Barbosa Lage (1882). Vale notar que o objetivo do autor poderia vir a lume caso pudesse investigar os inventários dos herdeiros dos três casais, bem como a matrícula de escravos.

Jonis Freire dedica-se, ainda, à análise das relações familiares dos escravos. A investigação divide-se em duas partes: na primeira, estuda os laços familiares e o perfil desses cativos a partir da lista nominativa; num segundo momento, passa a tecer os enlaces matrimoniais das escravarias pertencentes às três famílias da elite juiz-forana.

No Distrito de Santo Antônio de Juiz de Fora, em 1831, cerca de 30% dos cativos adultos eram casados e/ou viúvos. O perfil dessa escravaria coaduna-se com o que a historiografia vem afirmando nas últimas décadas: a maioria dos indivíduos casados e/ou viúvos era oriunda da África e constituída sobretudo por mulheres jovens/adultas. Além disso, as médias (20 a 50 escravos) e as grandes (51 ou + escravos) posses permitiam aos escravos maiores possiblidades de encontrar um parceiro: “quanto maior o número de cativos num determinado fogo, maior o percentual de homens e mulheres casados” (p. 177).

Valendo-se do método de “ligação nominativa de fontes”, técnica historiográfica que consiste em utilizar o nome de um sujeito como fio condutor na análise do processo social baseada em séries documentais distintas, Freire investiga os vínculos familiares das escravarias dos três casais. Na propriedade dos Dias Tostes, os dados levantados indicam pequenas oscilações nas taxas de matrimônio. Em 1831, “o número de escravos descritos como casados era de 20 (…). A maioria dos casados, homens ou mulheres, era africana, respectivamente 15 e 14; seguidos por 5 crioulos e 6 crioulas” (p. 183). Os números indicam, de forma clara, que, na verdade, a quantidade de escravos casados era de 40 (27,2% do total). Nota-se aí um ligeiro deslize do autor. Já em 1837, o percentual correlato reduziu-se a 25,7%. No caso dos Paula Lima (1866) e Barbosa Lage (1868) as proporções de casados eram maiores: na primeira, o índice igualou-se a 37,2% e, na segunda, a 30,5%.

Um dos gráficos elaborados pelo autor apresenta os vínculos familiares das escravarias dos três cafeicultores. Segundo o gráfico, 13,6% (na verdade, 27,2%, conforme apontei acima) dos escravos pertencentes aos Dias Tostes apresentavam algum tipo de vínculo familiar, em 1831. Na partilha de bens de D. Anna Maria (1837), o índice correlato igualou-se a 26,7%. Por seu turno, no inventário do Comendador Paula Lima (1866), a proporção atingiu a marca de 43,9% e, por fim, na propriedade do Capitão Barbosa Lage (1868), a percentagem era de 64,9%. A partir desses dados, o autor diz o seguinte:

“(…) podemos notar que ele {Gráfico 3} demonstra uma curva ascendente entre os anos de 1831 e 1868. Ao que parece, à medida que os anos se passaram, as possibilidades da existência de algum tipo de laço familiar aumentaram. Porém, talvez o que esse gráfico esteja refletindo seja as estratégias distintas dos ditos proprietários” (p. 190).

O autor levanta duas hipóteses para explicar a “curva ascendente” do percentual de vínculos familiares dos cativos no decurso do Oitocentos. Quanto à primeira, Freire parece estar correto, haja vista o que a historiografia sobre a família escrava vem demonstrando nos últimos decênios. A segunda, entretanto, carece de dados empíricos. Tal hipótese poderia ser elucidada caso o autor tivesse acompanhado a evolução demográfica das escravarias dos três casais no tempo. A análise dos vínculos familiares dos cativos arrolados nos inventários das viúvas de Paula Lima e Barbosa Lage, provavelmente, daria respaldo a sua hipótese.

Outro ponto abordado pelo autor se refere à estabilidade dos vínculos familiares. Freire analisou apenas a partilha de bens de D. Anna Maria (esposa de Dias Tostes), e os inventários do Comendador Paula Lima e do Capitão Barbosa Lage. Concluiu, assim, que todas as famílias existentes nas propriedades dos casais Dias Tostes e Barbosa Lage mantiveram-se unidas após a partilha; ao passo que, das famílias pertencentes ao casal Paula Lima, 69% delas permaneceram juntas. No entanto, o autor não atentou para o fato de que a partilha de bens, realizada nos inventários, não é a melhor forma de detectar se as famílias foram (ou não) preservadas. José F. Motta & Agnaldo Valentin demonstraram que

“(…) os eventuais esfacelamentos sofridos pelas famílias escravas, em alguns casos, poderiam assumir uma natureza meramente “ideal”, ou pouco mais que isso, havendo em seguida à partilha reajustamentos quase imediatos entre os herdeiros, no que tange à alocação dos cativos”.[3]

Para cotejar se a divisão em partilha foi mantida, seria necessário analisar, na ausência de uma fonte mais apropriada, os inventários dos herdeiros dessas famílias e/ou a matrícula de escravos. Desta forma, não se pode concluir, a partir dos casos elencados, se havia (ou não) estabilidade dos laços familiares após a morte dos senhores, embora a historiografia venha evidenciando que boa parte das famílias cativas permaneciam unidas, mesmo antes da Lei de 1869, que proibiu a separação entre casais cativos e entre pais e filhos menores.

A grande contribuição apresentada por Freire se refere especialmente ao exame das práticas de alforria das famílias da elite de Juiz de Fora. Pode-se entrever a novidade em virtude do método utilizado, que consistiu em levantar as alforrias a partir do cruzamento de inúmeras fontes (inventários, testamentos, alforrias em cartório e na pia batismal e prestação de contas testamentárias). O autor assinala que todos os membros das famílias Paula Lima, Dias Tostes e Barbosa Lage alforriaram, respectivamente, 44, 39 e 16 cativos. Cerca da metade das manumissões das duas primeiras famílias foram “concedidas” em testamentos. Os Barbosa Lage alforriaram seus escravos, com mais frequência, em inventários.

Nesse sentido, Freire conclui que:

“(…) apesar de toda a importância da manumissão cartorial, o registro não foi condição sine qua non para a liberdade. Outros documentos tiveram o mesmo peso legal (…). Além da legalidade de tais “ritos jurídicos”, o conhecimento público daquelas manumissões, em inventários, testamentos e na pia batismal, bastava para a confirmação do status de libertos que pensavam na mobilidade geográfica” (p. 312).

O autor evidencia, ademais, que, a despeito do pequeno número de casos investigados (19 proprietários ao todo), as taxas de alforria nas pequenas posses eram mais elevadas, do que nas médias e grandes. Duas hipóteses são colocadas em evidência para explicar esse fenômeno: 1) o relacionamento entre senhores e escravos era mais “próximo” nas pequenas posses, permitindo aos senhores manumitir mais escravos; 2) os pequenos proprietários eram mais vulneráveis que os grandes e, por isso, acabavam cedendo mais na “negociação” com seus escravos, abrindo brechas para que os cativos conquistassem a alforria.

Escravidão e família escrava é uma referência importante para os pesquisadores interessados em aprofundar o conhecimento sobre o escravismo no Brasil. O livro, que apresenta farto levantamento bibliográfico atinente às temáticas abordadas, permite ao leitor situar-se nos debates pelos quais a obra perpassa. Embora Jonis Freire não tenha contemplado de forma satisfatória algumas questões, a exemplo das formas predominantes de reprodução da escravaria, deve-se destacar que os pesquisadores tem à disposição um ótimo trabalho e, dessa forma, poderão esmiuçar os assuntos que não puderam ser examinados a fundo nessa obra.

Notas

1. VOYAGES DATABASE. The Trans-Atlantic Slaves Trade Database, 2009. Disponível em: http://www.slavevoyages.org . Acesso em: 12 jun. 2015.

2. SALLES, Ricardo. E o Vale era o escravo. Vassouras, século XIX. Senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

3. MOTTA, José F.; VALENTIN, Agnaldo. A estabilidade das famílias em um plantel de escravos de Apiaí. Afro-Ásia (UFBA), Salvador, v. 27, p. 161-192, 2002. p. 186-187.

Breno Moreno – Universidade de São Paulo (USP).


FREIRE, Jonis. Escravidão e família escrava na Zona da Mata Mineira oitocentista. São Paulo: Alameda, 2014. Resenha de: MORENO, Breno. Família escrava e alforrias nas fazendas de café da elite de Juiz de Fora. Almanack, Guarulhos, n.11, p. 860-864, set./dez., 2015.

Acessar publicação original [DR]

Justiça do Trabalho – BULLA. A Justiça do Trabalho e sua história – GOMES; SILVA (EH)

BULLA, Beatriz; NUNES, Fabiana Barreto; GHIRELLO, Mariana; MAIA, William. Justiça do Trabalho: 70 Anos de Direitos. São Paulo: Alameda, 2011. 262 pp. GOMES, Ângela de Castro; SILVA, Fernando Teixeira da. A Justiça do Trabalho e sua história: os direitos dos trabalhadores no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 2013. 528 pp. Resenha de : SANTOS JÚNIOR, José Pacheco dos. Justiça do Trabalho: história, domínios e sujeitos. Estudos Históricos, v.27 n.54 Rio de Janeiro July/Dec. 2014.

Exibindo sete décadas de existência, o Judiciário Trabalhista brasileiro entra no século XXI com o vigor de uma instituição que, pela importância e impacto que exerceu e exerce na regulamentação das relações trabalhistas no país, não escapa aos olhares atentos da comunidade intra e extra-acadêmica. PJustiça do trabalhoossibilitadas pelas renovações conceituais e metodológicas vislumbradas pela historiografia nas últimas quatro décadas, e matizadas pela potencialidade que emana da documentação (escrita e oral) da Justiça do Trabalho, duas obras coletivas vêm, num intervalo de dois anos, explorar a história dessa instituição instalada por Vargas à época do Estado Novo e inicialmente vinculada ao Poder Executivo: Justiça do Trabalho: 70 anos de direitos, e A Justiça do Trabalho e sua história: os direitos dos trabalhadores no Brasil, objetos de discussão da presente resenha.

O primeiro livro, gestado sob os auspícios celebrantes dos exatos 70 anos da instalação da Justiça do Trabalho no país, é produção de quatro jornalistas especializados na área jurídica. Em Justiça do Trabalho: 70 anos de direitos, salta aos olhos a bela proposta de articular uma obra que transite pelas sete décadas de atuação do Judiciário Trabalhista e pelas experiências de alguns de seus agentes, como juízes e advogados. Estruturado em três partes e detentor de uma última seção denominada “caderno de imagens”, o conjunto de reportagens se apresenta ao público leitor como uma obra que persegue o objetivo de “rememorar fatos e acontecimentos históricos que conferiram à Justiça do Trabalho o título de ‘Justiça Social do Brasil’” (p.13). Para isso, a primeira parte, assinada por Mariana Ghirello (com reportagens de Daniella Dolme), expõe as principais marcas do cenário político-econômico brasileiro, desde a criação do Judiciário Trabalhista, na década de 1940, até os anos 2000. Na sequência, o cotidiano da Justiça do Trabalho é colocado em debate por William Maia (com reportagens de Thassio Borges). Nesta parte, ganham terreno tópicos como demandas, julgamento e execução dos processos, a informatização na Justiça do Trabalho, além das várias faces do cotidiano da advocacia trabalhista.

O ponto alto da obra se evidencia na reunião de entrevistas organizadas por Beatriz Bulla em parceria com o site Última Instância. Enfatizando as diversas trajetórias e concepções que alguns operadores do direito atribuem à Justiça do Trabalho, nesta terceira seção encontra-se uma importante entrevista com Arnaldo Süssekind, ministro do Tribunal Superior do Trabalho no período da ditadura militar, falecido um ano após a publicação da obra. Por outro lado, apesar dos belos insights expressados, o que deixa a desejar na publicação é a total ausência de referências bibliográficas e notas explicativas, além da rasa exploração do “caderno de imagens”: seção que exibe inúmeras fotografias que, em sua maioria, estão desprovidas de fontes e autores, apenas munidas de breves legendas. Sopesando a ousada proposta aventada, com toda a licença que uma obra jornalística exige, o livro em questão se configura apenas como uma introdução básica, de caráter informativo, aos estudos sobre a história da Justiça do Trabalho.

Sob a coordenação de Ângela de Castro Gomes e Fernando Teixeira da Silva, historiadores que de longa data vêm se dedicando à História Social do Trabalho e em particular à Justiça do Trabalho, a segunda coletânea opera uma cuidadosa análise, materializada em 11 textos que evidenciam os múltiplos traços da relação dos trabalhadores brasileiros com essa Justiça especial e com o mundo jurídico. Debruçado em histórias individuais e coletivas dos trabalhadores de diversos rincões do país, A Justiça do Trabalho e sua história: os direitos dos trabalhadores no Brasil reúne contribuições de pesquisadores de norte a sul do Brasil e de um canadense, todos querendo decifrar sujeitos, reclamações, cotidiano e as diversas estratégias de luta e negociação fomentadas na arena da Justiça do Trabalho.

Ao depositar suas expectativas e reclamações na Justiça do Trabalho, os trabalhadores legaram à posteridade registros que sinalizam uma cultura jurídica (e de classe) que extrapola as fronteiras do “legal institucionalizado” e contempla um delicado campo que compreende costumes e tradições na interpretação das leis, na definição de regras jurídicas, como também na afirmação de mecanismos legais para a resolução de conflitos. Visando interpretar essa seara, as contribuições desta obra distribuem-se em cinco eixos temáticos articulados através de seus propósitos em comum. Primeiramente, Clarice Speranza e Rinaldo José Varussa esmiúçam condições de trabalho e políticas de conciliação de classe no Sul do país em dois momentos distintos da história brasileira. Em um segundo momento, Antonio Luigi Negro e Edinaldo Souza, assim como Benito B. Schmidt, abordam as facetas do poder disciplinar, na Bahia (no caso dos dois primeiros autores) e no Rio Grande do Sul, recorte espacial de Schmidt. Em um denso e cuidadoso trabalho analítico, Fernando Teixeira da Silva explora a natureza do poder normativo nos domínios do TRT de São Paulo no “longo ano de 1963, que termina com o golpe civil-militar de 1964” (p.203), ao passo em que Larissa Rosa Corrêa examina a questão da Justiça do Trabalho e da política salarial entre 1964 e 1968.

Para além dos estudos que focam no eixo Rio/São Paulo e na força de trabalho industrial, ainda predominantes na historiografia brasileira sobre o labor, os capítulos de Antonio Montenegro e do canadense Frank Luce elegem como objeto de investigação as tramas dos trabalhadores rurais e magistrados do Nordeste brasileiro com o Judiciário Trabalhista, tratando de Pernambuco e da zona cacaueira da Bahia. Descortinando temas e privilegiando metodologias ainda pouco usuais nas análises acerca da Justiça do Trabalho, a quinta e última parte da coletânea convida o leitor a refletir sobre temas que compreendem, entre tantos outros discutidos, a regulamentação das relações de trabalho em Franca (SP), a terceirização e o trabalho análogo ao de escravo no Brasil contemporâneo, pontos e categorias dissecados respectivamente por Vinícius de Rezende, Magda Barros Biavashi e Ângela de Castro Gomes.

Indispensável para a compreensão das lutas dos trabalhadores brasileiros na busca por direitos, e, num plano mais amplo, da própria edificação da cidadania no Brasil, A Justiça do Trabalho e sua história revela-se uma contribuição fulcral, ainda que seja uma pequena amostra dos estudos que hoje se dedicam à relação dos trabalhadores com esse ramo do Judiciário – estudos estes que, possibilitados pelo recente contato com os acervos dos tribunais trabalhistas, apresentam a dinâmica das tensões e experiências que até então estavam reservadas ao domínio da esfera privada do mundo do trabalho.

Se alguns dos grandes nomes do mundo jurídicoganham ênfase e voz na obra de Bulla et alii, na segunda coletânea, coordenada por Gomes e Silva, os trabalhadores (com suas disputas, acordos e conquistas) se veem historicizados num canal privilegiado. Todavia, numa época em que o Judiciário se encobre nas brumas do esquecimento, ao manter a política de descarte dos autos findos a partir de cinco anos de arquivamento,1 coletâneas como estas, aqui ligeiramente discutidas em face da limitada dimensão de uma resenha, têm todo o direito de se arvorar em obras-manifesto, mesmo que sem se enunciar enquanto tais.

1. BRASIL. Lei nº 7.627, de 10 de novembro de 1987. Dispõe sobre a eliminação de autos findos nos órgãos da Justiça do Trabalho, e dá outras providências.

José Pacheco dos Santos Júnior – Mestrando em História Econômica na Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador do Laboratório de História Social do Trabalho (LHIST/UESB) ([email protected]).

Macabéias da colônia: criptojudaísmo feminino na Bahia – ASSIS (PL)

Em 1497, os judeus portugueses foram convertidos à força e transformados em cristãos-novos. Apesar disto, uma considerável parcela destes, agora chamados, antigos judeus, continuou praticando e repassando os ensinamentos de seus antepassados às novas gerações, adotando comportamentos e práticas secretas. Porém, com a instauração do Tribunal do Santo Ofício, em Portugal, e a intensificação dos trabalhos inquisitoriais muitos deixaram o território português emigrando para as terras brasileiras. Assim sendo, durante a primeira visitação do Santo Ofício à América portuguesa entre 1591 e 1595 ganhou destaque o número de mulheres cristãs-novas acusadas de práticas judaicas. Isto sinaliza a intensa participação feminina na transmissão e propagação de um chamado judaísmo secreto. 2 Leia Mais

Cativos do Reino: A circulação de escravos entre Portugal e Brasil, séculos 18 e 19 | Renato Pinto Venâncio

Renato Pinto Venâncio é doutor pela Universidade de Paris IV – Sorbonne, onde defendeu, em 1993, a tese intitulada “Casa da Roda: instituition d´assistance infantile au Brésil, XVIII – XIX siècles”. Atualmente é professor da Escola de Ciência da Informação na Universidade Federal de Minas Gerais.

Em seu livro Cativos do Reino, o autor analisa casos em que escravos circulavam de uma região a outra, sendo responsáveis por transmitir valores e tradições nas diversas partes do reino português e suas colônias. Embora reconheça que esses casos não eram comuns, o autor consegue nos mostrar como essa circulação de cativos é importante para compreendermos a complexidade da escravidão da Idade Moderna, muitas vezes analisada de forma simplificada pela historiografia sobre o tema. Leia Mais

História e Energia: Memória, informação e sociedade / Gildo Magalhães

Debatendo os caminhos do setor energético, esta obra propõe reflexões sobre os limites das fontes energéticas, suas transformações em escala mundial e seu campo de estudo no contemporâneo. Problemáticas entre a História, Arquivologia e Cultura Material são alguns dos eixos que compõe este trabalho.

Organizado pelo historiador Gildo Magalhães, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e coordenador do Projeto Eletromemória, a obra resulta de um emaranhado de debates derivados do 3º Seminário Internacional de História e Energia: memória, informação e sociedade, ocorrido em setembro de 2010, na cidade de São Paulo.

Dividido em quatro partes, o conjunto de artigos resulta de conferências, mesas-redondas e debates realizados neste mesmo seminário, mas que remontam às experiências historicamente acumuladas de outros projetos e encontros, que conseguiram nesta obra, por meio de cada temática apresentada, promover considerações sobre políticas de preservação e gestão de patrimônios, a reestruturação do setor ante as privatizações ocorridas assim como desbravar as memórias do setor energético. Ao analisar a atual situação da produção e organização do setor no país, Magalhães destaca que tal acesso às memórias do processo de eletrificação nacional tem grande impulso na década de 1980, por meio de iniciativas públicas visando à preservação de seu patrimônio histórico. Porém, com o processo de privatização instaurado a partir da década de 1990, houve não somente uma fragmentação das atividades, como em transmissão e distribuição, mas também de sua documentação e possibilidades de realização de pesquisas históricas, influenciando diretamente em suas memórias.

A partir de um brilhante prefácio apresentado por Nicolau Sevcenko evidencia-se como o modelo de fonte energética adotado, principalmente no pós Segunda Guerra, influenciou diretamente nas mudanças e crises visualizadas ao longo do século XX. Assim, se a história procura analisar como ciências e técnicas são o resultado da ação dos sujeitos em seu meio, entre necessidades e circunstâncias, devemos ter em mente como estas são percebidas e apropriadas de acordo com os interesses de cada momento histórico. Se mudanças na produção de fontes de energia, transporte e comunicação são fundamentais para compreender as sociedades, visualizar como estas são percebidas e apreendidas em cada momento também o são.

Assim, reúnem-se na primeira parte do trabalho, denominada História e Políticas Energéticas, autores que procuram apresentar direcionamentos, do passado ao presente, dos caminhos do setor energético. Inicialmente, Jonathan Tennenbaum nos oferece uma nova perspectiva de observação para as próximas “revoluções energéticas”, em que, a partir do olhar de estudos da economia física, visualiza-se como a ampliação na distribuição e produção passa diretamente por um processo de desenvolvimento científico, ligado, segundo o autor, à produção de energia nuclear. Neste sentido, o segundo texto, de autoria do organizador da obra, Gildo Magalhães, nos proporciona vislumbrar tal dinâmica analisando o caso paulista, em que demonstra como ao longo do século passado o ritmo da oferta energética esteve atrelado ao desenvolvimento industrial. Dialogando com autores como Rousseau e analisando criticamente as posições malthusianas, evidencia como a falta de oferta de energia esconde-se em meio a dados de crescimento econômico e social, demonstrando como o campo energético paulista passou de um “progresso e desenvolvimentismo alucinante” entre 1950 e 1960, para um “desenvolvimento nulo”, entre 1970 e 1980 a uma espécie de “crescimento sustentável”, em meio ao processo de privatizações da década de 1990.

Na continuidade, os trabalhos de Isabel Bartolomé e Diego Bússola remontam às relações internacionais presentes no setor energético. O primeiro destaca paralelamente paridades e distinções no processo de eletrificação brasileira com Portugal e Espanha. Próximos pela presença histórica do modelo hídrico de geração, estes espaços compartilharam a resultante do crescimento urbano e industrial atrelado à produção energética, sob o manto dos mesmos grupos internacionais. Ao mesmo tempo, seus caminhos entrecruzam-se com regimes ditatoriais e intervenções privadas que direcionam as formas de organização em cada um destes espaços. No segundo caso, Diego Bússola elucida os caminhos de uma multinacional atuante em Buenos Aires no início do século XX. Analisa como a empresa Sofina adotou uma diversidade de princípios de atuação neste local, implementando ações como a ideia de crescimento “em superfície”, visando estimular o aumento de consumidores e outras em que, por um lado, realizavam a diminuição das tarifas e ao mesmo tempo forneciam vantagens na compra de eletrodomésticos, o que ampliava o consumo.

Sem perder o leque diversificado de investigações e interpretações, a obra adentra os marcos da organização energética nacional. Sonia Seger reconstrói o processo de estabelecimento do sistema energético nacional elencando como, ainda no século XIX, regiões como o Brasil foram assimiladas como “zonas de expansão” para empresas elétricas, o que marcou o seu desenvolvimento inicial. Empresas como a Light e Amforp ocuparam tal organização do setor, atuando na virada do século XX em capitais, como São Paulo e Rio de Janeiro e regiões como o Interior de São Paulo. Assim, da criação da Eletrobrás à CESP, das ações do regime civil militar ao período das privatizações, colabora para evidenciar o “desmonte” gradual do setor energético nacional. Seguindo os mesmo caminhos, mas analisando o setor nuclear, Fernanda Corrêa e Leonam Guimarães apresentam em seu texto os dilemas da produção energética nuclear, no qual entre os primeiros estudos e as campanhas contra sua utilização, apresenta-se as potencialidades e riscos de seu uso, estando em foco novos horizontes da produção energética.

Fechando a primeira parte, dois pequenos textos nos conduzem pelas relações entre as empresas energéticas e as experiências participativas. A partir de suas memórias como participante do I Seminário de História e Energia, realizado em 1986, Ricardo Maranhão demonstra como estes eventos foram, e ainda são centrais para ampliar o debate sobre os caminhos da produção energética, bem como redimensionaram a percepção dos aspectos relacionados a este meio, de impactos ambientais a reorganizações sociais. Por isso, complementando este debate, Ildo Sauer ressalta a necessidade de democratizarmos a distribuição e participação nas decisões do setor energético, para além da hegemonia de grupos ou mesmo países.

Compondo um conjunto de trabalhos referentes à memória empresarial do setor energético, a segunda parte do livro apresenta cinco artigos que desvelam o crescimento de trabalhos ligados a historia empresarial, algo não corrente no Brasil até as últimas décadas. Parte desta ausência gestava-se principalmente pelas relações das empresas com seus arquivos, que fica evidente no primeiro texto de Bruce Bruemmer, em que, ao relatar suas experiências como pesquisador e posteriormente como arquivista nos EUA, pontua que elementos como interesses das empresas, limitações na legislação e aperfeiçoamento dos pesquisadores influenciam diretamente na existência destes arquivos.

No caso do Brasil, empresas como a CESP, criada pela fusão de onze companhias em 1966, tornam-se um excelente exemplo de atuação nestes arquivos. Em meio a um emocionante depoimento, Sidnei Martini apresenta suas experiências de atuação junto a uma empresa deste setor, no qual desvela as dificuldades que enfrentou ao buscar criar condições para que houvesse a conscientização da necessidade de criar um arquivo e o centro de memória. Complementado pela transcrição de uma rodada de perguntas, o texto contribui para que visualizemos os desafios ainda a serem enfrentados para o fortalecimento de projetos de preservação documental.

Nesta perspectiva, os trabalhos de Antonio Carlos Bôa Nova e Paulo Nasser vêm a exemplificar os meandros que permeiam tais dificuldades. No primeiro caso, em Paralelos entre culturais organizacionais: CESP e Eletropaulo, o autor demonstra como a própria cultura organizacional das empresas influi diretamente nos meandros da organização de sua memória. Muito próximo ao que retratou em sua obra Percepções da cultura da CESP, Nova deixa claro que mesmo com transformações como processos de privatizações ou fusões empresariais, a cultura organizacional se sobrepõe e influencia diretamente nos meandros de sua imagem, de suas memórias. Por isso, como ressalta Paulo Nasser no texto seguinte, devemos propor ampliar os caminhos de percepção de tais memórias, averiguando como operam sua própria linguagem e operação da empresa, sua comunicação com o público, parte de sua cultura organizacional.

Fechando este debate, Lígia Cabral vem apresentar a importância e atuação do Centro de Memória da Eletricidade, elencando como desde sua fundação, em 1986, projetos, publicações e debates foram gestados em meio a sua existência. Sediado no Rio de Janeiro e fundado pela Eletrobrás, este espaço penetra os caminhos da memória energética nacional, influindo diretamente no que será rememorado e em quais elementos engendram tais memórias. Entre publicações infanto-juvenis e projetos de história oral, este constitui um marco no processo organizacional do setor energético.

Ainda com fôlego e muito a contribuir, a obra adentra a terceira parte denominada Acervo, processos, fluxos documentais e a memória do setor elétrico, e como já denota o tópico, contempla artigos dedicados a arquivologia e questões relacionadas aos demais tratamentos junto à documentação. Por meio das especificidades de cada “operação documentária”, transparecem os desafios de uma área com muito trabalho a ser realizado, e que contribui diretamente em aspectos históricos e culturais das próprias empresas ou instituições. Ao longo de cada trabalho, se evidencia os percalços na conservação, desrespeito à legislação junto às empresas públicas e privadas e o crescente processo de digitalização de documentos, ainda um campo aberto a considerações e reflexões.

Maria Morais apresenta inicialmente suas práticas e experiências junto à organização da documentação de empresas do setor energético (Light e Eletropaulo), e examina, mapeia e diagnostica como o processo de privatização na década de 1990 contribuiu para a dispersão destes documentos, resultando em um quadro em que grande parte da documentação não obedece a critérios técnicos, mas são principalmente arquivados por uma possível função legal. E tal fato fica evidente no texto de Marcia Pazin, quando constata que esta dispersão, mesmo que agravada pelo processo de privatização inicia-se, na maioria dos casos, antes mesmo deste evento. Este debate traz à tona a necessidade de buscarmos conscientizar as empresas e demais segmentos da importância de classificação e manutenção dos arquivos referentes às suas atividades, que em muitos casos acabam descumprindo as próprias medidas legais de preservação e manutenção destes arquivos, como é trabalhado no texto de Maria Izabel de Oliveira. Tal exemplo torna-se elucidativo no trabalho apresentado por Telma Carvalho em relação à realização do projeto Eletromemória.

Os três últimos trabalhos desta terceira parte nos convidam a elucidar as posturas teórico-metodológicas presentes no processo de organização documental, demonstrando como, de forma interdisciplinar, tal área cunhou todo um aparato de instrumentos técnicos e teóricos. E por estes meandros Mario Barité apresenta como a organização do conhecimento está intimamente relacionada aos critérios de classificação, gestão e manutenção de centros documentais e bibliotecas. Dialogando com as ideias anteriores, Fátima Tálamo esboça no texto Informação, conhecimento e bem cultural como esta tríade epistemológica está intimamente relacionada ao fluxo de informações e o desenvolvimento do que chama de “sociedade do conhecimento”. Isto resulta em questões, como demonstra Marilda Lara, no exame entre a denominada Ciência da Informação e sua relação com os processos documentais e fluxos sociais de informação. Para a autora, a relação encontra-se na percepção do documento enquanto produtor e receptor da informação, expressa em diferentes escolas, como a europeia e americana.

Fechando a obra, os trabalhos de David Rhees, Heloísa Barbuy e Renato Diniz apontam como a cultura material da eletricidade e sua preservação fornecem instrumentos para diversas áreas do conhecimento, funcionando como elemento educacional, fonte de documentação e pesquisa. Sua dimensão alcança ares como demonstrado por Rhees, onde um museu nos EUA tornou-se referência no patrimônio de equipamentos eletrodomésticos. São elementos que estão intimamente presentes cada vez mais no cotidiano de cada geração, produzindo uma infinidade de elementos que devem ser observados como resultado da cultura material de cada momento histórico como propõe Heloísa Barbuy, pois de colecionadores a acervos públicos, são objetos que revelam histórias e memórias. Mas para isto, toda a sociedade deve rever as maneiras de entender tais elementos da cultura material, estando no centro de tais debates, o papel que se reserva aos setores públicos e privados na preservação da cultura material e do patrimônio histórico.

Enfim, os artigos apresentados nesta obra buscam apresentar as potencialidades de uma área do saber que cada vez mais amplia seus leques de pesquisa e ensino, contando com grandes referenciais para a continuidade dos debates. Destarte, tal obra, assim como o evento da qual resulta, contribui significativamente para ressaltar como transformações políticas, econômicas e sociais influem diretamente nos caminhos do setor energético, e assim, no próprio rememorar de um grupo ou da sociedade.

Tal empreita, derivada do 3º Seminário Internacional de História e Energia, fornece elementos não somente para compreensão das trajetórias do setor energético, mas dos próprios caminhos da cultura e da sociedade em geral.

Andrey Minin Martin – Doutorando em História. Universidade Estadual Paulista-UNESP. Bolsista FAPESP. Assis/São Paulo, Brasil. E-mail: [email protected].


MAGALHÃES, Gildo (Org). História e Energia: Memória, informação e sociedade. São Paulo: Alameda, 2012. 376 p. Resenha de: MARTIN, Andrey Minin. Os caminhos do Setor energético. Outros Tempos, São Luís, v.11, n.17, p.190-295, 2014. Acessar publicação original. [IF].

Planos para o Império – SOUZA NETO (EH)

SOUZA NETO, Manoel Fernandes de. Planos para o Império: os planos de viação do Segundo Reinado (1869-1889). São Paulo: Alameda, 2012. Resenha de: IORIO, Gustavo Soares. Os planos para o Império e a história da geografia no Brasil. Estudos Históricos, v.26 n.51 Rio de Janeiro Jan./June 2013.

A história da geografia no Brasil é ainda uma temática que não dispõe de vasta bibliografia, mas esse quadro vem mudando. Um verdadeiro campo de estudos está em formação. Artigos, teses e livros têm surgido estabelecendo um diálogo mais próximo com a historiografia, trazendo debates teórico-metodológicos, levantando questões pertinentes à compreensão não só da geografia disciplinar, mas de todo um universo de representações e práticas sociais. Esse avanço é muito positivo para a geografia e para as ciências sociais como um todo, na medida em que a abordagem se volta para a construção e os usos históricos de conceitos e categorias; as formas de consagração das maneiras de ver e classificar o mundo, de qualificar lugares, identificar regiões, ordenar territórios.

O trabalho de Manoel Fernandes, originalmente tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade de São Paulo, é certamente uma das melhores expressões desse processo. Sua obra aborda os planos de viação elaborados no Segundo Reinado, entre os últimos anos da Guerra do Paraguai e a Proclamação da Republica (1869-1889). O autor analisa os planos de viação como interpretações sobre o território, ou melhor, interpretações sobre o território diante dos projetos de nação. Em suas palavras:

Diante desse quadro o que se nos colocou foi: como as elites liam o território a partir dos planos de viação? Como viam a nação a construir, já que propunham banhar os bárbaros do sertão com as águas civilizadoras do Atlântico? Quais problemas identificavam como sendo os mais urgentes do ponto de vista estratégico, comercial ou político para o Estado? Quais as dissensões políticas entre os engenheiros passíveis de serem percebidas nas soluções técnicas apresentadas por eles? Como o discurso técnico em torno das vias de comunicação a construir ganha importância política nas últimas duas décadas do Segundo Reinado? (p. 26)

Num contexto de fé no “progresso” e na “civilização”, expansão mundial do capitalismo em seu estágio imperialista e modernização através de Estados nacionais soberanos e territorialmente delimitados, o Brasil vivia a contradição entre suas heranças coloniais e o imperativo moderno. O ímpeto de se modernizar esbarrava em instituições arraigadas como a monarquia e o escravismo, em problemas estruturais como a dispersão territorial, a debilidade das vias de circulação e o arcaísmo evidenciado com a Guerra do Paraguai. Fazia-se necessário modernizar o Estado e para isso era preciso modernizar o território. É nesse contexto que surgem os planos viários.

Os autores desses planos são os sujeitos sociais da análise. Manoel Fernandes analisa esses sujeitos por três esferas que ele distingue em termos metodológicos (mas que se confundem na vivência objetiva): personagens, instituições e saberes. Ele trafega pela biografia de seus sujeitos,1 identifica os percursos de formação e os exercícios da profissão para caracterizá-los. Todos são homens, engenheiros, estudados em escolas militares (Academia Imperial Militar) e de engenharia civil (Escola Central, que depois veio a ser Escola Politécnica), na maioria das vezes com passagens pela Europa. Todos frequentavam lugares em comum, participavam de associações como a Sociedade Auxiliadora da Indústria (SAIN), o Instituto Politécnico e o Clube de Engenharia. Nesses meios de convivência teciam uma forte rede de socialização, e mesmo um espírito corporativo de uma profissão em ascensão. Projetavam-se como detentores de um saber técnico muito bem delimitado pela fronteira da matemática. Esse era o saber moderno, legitimamente capaz de planejar um sistema de transportes dinâmico, apto a integrar o território nacional para fins militares, políticos e comerciais.

Manoel Fernandes observa com astúcia a inserção social desses engenheiros. Bastante ativos por meio das associações e de seus trabalhos, eles se acomodavam – com algumas tensões – como arautos do progresso no seio da sociedade oligarca, bacharelesca, agrário-exportadora, escravocrata e monarquista no Brasil do Segundo Reinado (o Ministério de Agricultura, Comércio e Obras Públicas era o maior contratante desses profissionais). Este é o ponto forte do livro: a composição de uma trama de sujeitos organizados em uma verdadeira corporação profissional que se põem como portadores de uma “novidade” (o saber técnico, moderno) e únicos na capacidade de concretizá-las. Oriundos das classes médias, misturados entre as elites tradicionais através das associações e atuações profissionais, os engenheiros difundiam as ideias progressistas da modernização, vindas fundamentalmente da Europa, e assumiam para si a competência técnica para conduzi-la. A engenharia se projetava como um saber necessário, e os engenheiros enquanto a personificação das “soluções técnicas”.

Os planos de viação são uma dessas soluções, e também a materialização das ideias e dos ideais que os autores portam no contexto discursivo no qual estão inseridos. Neles as divergências técnicas revelam dissensões políticas, como a opção por qual modal de transporte (ferroviário ou aquaviário) ou tamanho da bitola, no caso das ferrovias. De caráter estritamente técnico à primeira vista, esses debates remetem ao problema de como lidar com os fundos territoriais. Todas as soluções propostas nos cinco planos descritos convergem para a perspectiva de modernização territorial/estatal através de vias de comunicação a proporcionar uma efetiva ocupação do território em pequenas propriedades por colonos imigrantes ou escravos libertos. Como essas ideias contrariavam os interesses da oligarquia instalada, esses planos nunca foram postos em prática, o que de maneira alguma os deslegitima enquanto documentos do debate de um tempo histórico.

Manoel Fernandes se vale de uma base de documentos rica. Além dos cinco planos analisados diretamente, recorre a outros planos para regiões específicas, relatórios do Ministério de Agricultura, Comércio e Obras Públicas, revistas e periódicos de instituições como a SAIN, o Instituto Politécnico, o Clube de Engenharia e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). São dignos de nota os mapas anexados ao livro, tanto os que ilustram os planos quanto outros encontrados no acervo do Arquivo Nacional.

Em suma, neste livro Manoel Fernandes de Souza Neto dá visibilidade a aspectos importantes da sociabilidade nos derradeiros anos do Brasil Império. Particularmente para os geógrafos – sobretudo aqueles envolvidos com o tema da história da geografia – há aqui um significativo avanço qualitativo em termos teórico-metodológicos. Efetivamente, o ponto central é o entendimento que ele nos traz de uma historiografia das ideias sobre o território, com suas respectivas inserções e significados políticos, identificando-as a sujeitos sociais concretos. Certamente uma boa leitura.

1 Os autores analisados, com as respectivas datas de seus planos, são: Eduardo José de Moraes (1869), João Ramos de Queiroz (1874), André Rebouças (1874), Honório Bicalho (1882) e Antônio Bulhões (1882). Foram esses os engenheiros que, no período recortado, publicaram planos que abrangiam todo o território nacional.

Gustavo Soares Iorio – Doutorando do Programa de Pós Graduação em Geografia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e bolsista do CNPq ([email protected]).

Cativos do Reino: A circulação de escravos entre Portugal e Brasil, séculos 18 e 19 | Renato Pinto Venâncio

A obra “Cativos do Reino: A circulação de escravos entre Portugal e Brasil, séculos 18 e 19”, de autoria do professor doutor Renato Pinto Venâncio, foi lançada em 2012 pela editora Alameda. Ao longo de oito capítulos, o autor leva os seus leitores a repensar a escravidão sob uma vertente diferenciada. A perspectiva que se tem é a da movimentação e circulação de escravos. Entendida como um fenômeno referente à transferência de cativos de uma região a outra, em áreas externas ao continente africano, esta circulação envolvia também fatores essencialmente humanos, como o trânsito de valores e as ideias.

Logo no primeiro capítulo Venâncio traça um dos itinerários que irá percorrer em suas reflexões: as rotas de circulação de cativos no interior do império português, especialmente nas Minas Gerais colonial. As Minas foram um lugar de intensa circulação de pessoas e mercadorias pós-descoberta do ouro, lugar em que senhores, acompanhados por seus escravos, vindos de partes distantes do império luso, fixaram residência e buscaram enriquecimento sob influência da quimera aurífera. Leia Mais

Direito à terra no Brasil: a gestação do confl ito: 1795-1824 – MOTTA (AN)

MOTTA, Márcia Maria Menendes. Direito à terra no Brasil: a gestação do confl ito: 1795-1824. São Paulo: Ed. Alameda, 2009. 288p. Resenha de: MOURA, Denise Aparecida Soares. Anos 90, Porto Alegre, v. 19, n. 36, p. 403-409, dez. 2012.

O livro Direito à terra no Brasil aborda as concepções de juristas e memorialistas portugueses sobre a lei de sesmarias e as tensões e conflitos que tiveram lugar na estrutura fundiária da América portuguesa entre 1795-1824.

Essa lei foi promulgada em Portugal no século XIV em um momento de crise econômica e teve o intuito de obrigar o beneficiado com a concessão régia a cultivar a terra recebida.

Como escreveu a autora Márcia Motta, o Brasil foi uma das poucas possessões portuguesas que aplicou a lei de sesmarias, mas com um objetivo diferente do original português. Ou seja, nas terras do Brasil o alvo principal foi o de incentivar a ocupação e nobilitar os colonos que prestavam serviços ao rei.

Para esses colonos, contudo e conforme concluiu a autora, a solicitação de uma sesmaria tornou-se um canal de legitimação de seus status de proprietário diante de um ambiente fundiário indefi– nido e que muitas vezes os obrigava a socorrerem-se nos tribunais régios para defender seus direitos.

Esse livro que trata de uma das questões ainda hoje contundentes na história do Brasil, está dividido em quatro partes distribuídas em pouco mais de 280 páginas. O fio condutor do argumento é a lei de sesmarias e seu tratamento diferenciado em duas conjunturas do intervalo 1795-1824: a do reinado de D. Maria I, marcado pela defesa da lei e o período das cortes constituintes em Lisboa, quando a lei foi condenada e extinta em defesa do direito pleno de propriedade.

Nessas duas conjunturas, na América portuguesa, sesmarias continuaram sendo solicitadas pelos colonos. Do ponto de vista da Coroa, a concessão das sesmarias era uma maneira de garantir a ocupação de territórios situados em área de confl ito e disputa, como nas regiões de fronteira a oeste e sul do Brasil.

Na primeira parte do livro a autora discute o discurso ilustrado de memorialistas e jurisconsultos que defendiam o uso produtivo da terra diante da crise agrária vivida pela sociedade portuguesa no século XVIII. A autora situa essa problematização na crise dos valores do antigo regime português e na emergência de uma consciência individual própria do liberalismo.

Assim, as idéias fisiocráticas de Bernardo de Carvalho Lemos e Domingos Vandelli foram favoráveis à privatização das terras de uso comum e à sua ocupação produtiva e individual, conforme previsto na lei de sesmarias. A autora conclui que os fisiocratas acreditavam que ocorreria a recuperação da economia portuguesa através da aplicação de medidas como essas.

Márcia Motta dá a entender que o avanço do individualismo agrário fez parte do processo maior de reordenamento jurídico da sociedade portuguesa no século XVIII. Nesse caso, a Lei da Boa Razão, promulgada em 1769, determinou que o direito pátrio deveria prevalecer sobre o direito romano. Diante disso, a modernização do direito português em relação à questão fundiária ocorreu pela via da conservação do direito antigo. Uma modernização conser vadora, que consagrou a posse imemorial.

Neste ponto há a explícita inspiração nas diretrizes teóricas de Costumes em comum, do historiador inglês E. P. Thompson. Este mostrou que o argumento da posse comum e imemorial foi usado inclusive em partes da Inglaterra do século XVII pelos ocupantes de terras que enfrentavam o avanço do conceito de propriedade individual.

Do discurso de jurisconsultos e memorialistas a autora prossegue, na parte 2, pelo caminho da legislação régia e pela ação dos homens públicos, guiando-se pelo alvará de 1795 e pelas percepções dos irmãos D. Rodrigo de Souza Coutinho, Ministro e Secretário de Estado da Marinha e Domínios Ultramarino (1796-1801) e Francisco Maurício de Souza Coutinho, governador da capitania do Pará.

O alvará de 1795, revogado um ano depois, surgiu na esteira da reforma do direito português e do avanço das idéias racionais da ilustração que infl uenciaram o reordenamento das relações entre a metrópole portuguesa e sua principal colônia no final do século XVIII: o Brasil.

O intuito do alvará era o de regularizar a concessão de sesmarias, reafirmando seus princípios de ocupação e uso produtivo. Além disto, seu intuito era também o de normatizar o registro das terras para que fossem evitados conflitos que prejudicassem a estabilidade da governabilidade da colônia e do Império. Os irmãos Coutinho entendiam que a consagração do Império ocorreria pela ocupação estável e produtiva da terra. Francisco Coutinho chegou, inclusive, a redigir um minucioso texto sobre o alvará de 1795.

A autora mostra como este governador tinha uma posição mais reticente em relação à Coroa. Ele criticou a tradicional concessão de áreas extensas e defendeu a necessidade de um conhecimento mais racional das áreas a serem demarcadas. Para tanto sugeriu a intervenção de cartógrafos, astrônomos e geômetras. As dificuldades que os irmãos Coutinho enfrentaram para concretizar suas percepções na colônia mostram os limites do poder na administração imperial.

Na terceira parte da obra, o leitor acompanha as metamorfoses da sesmaria no ambiente da colônia. Essas mudanças aconteceram tanto no campo semântico como nos usos e concepções dos próprios colonos, mas em de acordo com as imposições da conjuntura da crise do Império e da independência.

Enquanto a Coroa desejava controlar a ocupação territorial na colônia, por questões políticas e como resposta ao espírito racional cientificista do período, os colonos solicitavam sesmarias diretamente ao rei ou ao Conselho Ultramarino.

As intenções destes, contudo, tornavam-se cada vez mais especulativas, tendo em vista a necessidade de assegurar o direito de domínio e transmissão de seu patrimônio. Ou seja, esses colonos tendiam progressivamente a desejar a legitimação de uma condição de proprietário diante do costume e da existência de uma grande maioria de ocupantes de terra.

De acordo com conclusões da autora, o título de sesmaria, no final do século XVIII já não tinha o valor nobilitador de outros tempos. Porém, permitia ao colono passar da incerta e potencialmente tensa situação de ocupante, para a de legítimo proprietário ou senhor de terra. Mesmo o sesmeiro estava sujeito a ver suas terras invadidas ou ocupadas. Mas o título assegurava-lhe o direito de futuras reivindicações, munindo-o de um registro que o habilitava a buscar os tribunais.

A quarta e última parte do livro retoma a discussão dos ilustrados portugueses sobre as sesmarias, mas na conjuntura das cortes constituintes e independência do Brasil. Naquele momento a defesa da propriedade individual da terra envolveu a condenação do sistema de sesmarias e principalmente do seu princípio de obrigatoriedade de cultivo, que impunha-lhe condições de acesso e uso.

Ainda assim, nesse período, a Coroa procurou firmar sua territorialidade, promulgando decretos e alvarás que garantiam a propriedade, confirmavam as sesmarias, regulamentavam demarcações e instituíam funcionários específicos para tratar do assunto, como os juízes de sesmarias, que deveriam ser indicados pelas câmaras.

A sesmaria continuou sendo invocada por alguns sesmeiros, mesmo com a sua extinção oficial em 1822. Nas considerações finais a autora cita um caso curioso, de um fazendeiro, grileiro de grande extensão de terras no Pará, que recorreu a esse argumento em 2005, para inventar o que ela chama de “ponto zero” na ocupação daquela área.

Márcia Motta já é referência no tema questão fundiária no Brasil pelo menos desde 1998, quando publicou Nas fronteiras do poder.1. Em Direito à terra no Brasil, resultado de suas pesquisas de pós-doutorado realizadas em Lisboa em 2003, a autora inova em relação ao seu trabalho anterior por recuar ao século XVIII e recuperar no reino o sentido das sesmarias na governabilidade do Império e o debate de memorialistas e juristas sobre essa lei em duas conjunturas distintas. Na historiografia portuguesa poucos são os trabalhos sobre sesmarias, destacando-se o de Virginia Rau2.

Na medida em que seu foco é a lei de sesmarias, domínio real e de autoridades régias, como a do governador, encarregado de enviar as solicitações para o rei ou para o Conselho Ultramarino, o problema da terra nas cidades da América portuguesa, um dos mais difíceis na história fundiária do Brasil, ainda permanece sem respostas3.

A autora não deixa de mencionar o papel consultivo da instituição municipal no momento da concessão de uma sesmaria, sugerindo uma possibilidade de reflexão e pesquisa: terras e câmaras na América portuguesa.

Nesse caso, a boa lembrança é o historiador inglês Charles Boxer (286), que chamava atenção para a estabilidade assegurada pelas câmaras, mais do que governadores, bispos e magistrados transitórios, o que significa que aquelas instituições, embora situadas na escala inferior da administração eram peças chave para a estabilidade da colonização e do Império.

Um dos pontos altos de sua problematização é a que se refere ao poder régio como ação que não se limitava à aplicação racional da lei de sesmarias. Em certas circunstâncias a própria Coroa legalizava a posse, dando-lhe status de legítima ocupação territorial. O alvará de 9 de julho de 1767 é uma boa demonstração disso, pois ele definia que ninguém poderia ser tirado de sua posse sem antes ser ouvido (p. 72).

Compreender como o poder funcionava no Império tem sido um dos principais desafios enfrentados pela historiografia portuguesa e estrangeira, e ao concluir sobre o movimento pendular da Coroa, que ora reprimia, ora era permissiva com as ocupações irregulares (p.

261) a autora fornece subsídios para que essa questão seja pensada.

Ao mostrar os zelos das autoridades régias em torno da normatização do acesso à terra na colônia, especialmente a partir do alvará de 1795, a autora fornece argumentos também para que se possa discutir os limites de ação dos vários níveis de autoridade no Império Português.

Essa ação ponderada certamente garantiu um nível mínimo necessário de estabilidade política e longevidade ao Império Português.

Os governadores concediam as sesmarias, mas as câmaras da América portuguesa eram prévia e devidamente ouvidas, para que fossem respeitados os limites de suas áreas de ação e distritos. Com isso os confl itos próprios da duplicação de datas de uma mesma terra poderiam ser evitados.

É certo, portanto e concordando com a autora, que a sesma ria era um instrumento da colonização e de poder (p. 123), provo cador de ódios, desavenças e rancores entre sesmeiros e entre estes e a Coroa. Mas também foi a oportunidade para as câmaras periodicamente se afirmarem como instância legítima de poder.

Posteriormente, na década de 1820, a Coroa criou a função de juiz de sesmaria. Os nomes dos aspirantes a tal cargo deveriam ser indicados pela câmara. Assim, a política de terras no Império e no contexto da independência, além dos confl itos, proporcionava também um mundo de oportunidades de afirmação de poder e legitimidade a instituições imemoriais e de forte tradição portuguesa, como os conselhos municipais.

Na parte 1 o título “As sesmarias: origem e consolidação de um costume”, não parece adequado. No texto, costume se refere aos terrenos baldios ou áreas de pasto comum, condenados por jurisconsultos e memorialistas. Na forma como está a expressão, dá a entender ao leitor que se refere à sesmaria, quando originalmente esta é uma instituição legal. Talvez ficasse mais preciso um título que expressasse a idéia de sesmaria e seus conflitos com o uso costumeiro da terra.

O conteúdo desta primeira parte contribui sobremaneira para o pesquisador brasileiro ter a percepção do quanto o discurso ilustrado da decadência da agricultura era aplicado não somente no Brasil, mas também no Reino.

Na narrativa do problema das sesmarias no Império português o capítulo 4 quebra a continuidade do texto. Das discussões de memorialistas e juristas portugueses no reino, a autora passa para as práticas e concepções dos colonos em torno dessa concessão régia, para no quarto capítulo retornar, em grande medida, aos ilustrados portugueses na conjuntura das cortes constituintes de 1821. Este recurso pode ter sido uma maneira de se ajustar ao recorte cronológico que propôs analisar, ou seja, o período 1795-1824.

Na medida em que o tema do direito à terra foi tratado no âmbito do Império português, o título do livro poderia ter sido mais preciso, pois a abordagem da autora não se restringiu ao território do Brasil.

Direito à Terra no Brasil é um livro recomendável para todo aquele que se interessa pela história fundiária do Brasil. Com ele, Márcia Motta, professora na Universidade Federal Fluminense e coordenadora do Núcleo de Referência Agrária da mesma instituição, mostra que esse incômodo problema político-social, na realidade, tem raízes mais profundas e remonta ao lado português da nossa formação.

Notas

1 MOTTA, Márcia M. Nas fronteiras do poder. Conflito e direito à terra no Brasil do século XIX. RJ, Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro/Vício de Leitura, 1998.

2 RAU, Virgínia. Sesmarias medievais portuguesas. Lisboa, Editorial Presença, 1982.

3 GLEZER, Raquel. Chão de terra. SP, Ed. Alameda, 2007; RIBEIRO, Fernando V. Aguiar. Poder local e patrimonialismo: a câmara municipal e a concessão de terras urbanas na vila de São Paulo (1560-1765). São Paulo, FFLC-USP, Dissertação de Mestrado, 2010; MOURA, Denise A. S. Disputas por chãos de terra: expansão mercantil e seu impacto sobre a estrutura fundiária na cidade de São Paulo (1765-1822). Revista de História. USP, n. 163, 2º. Semestre de 2010, p. 53-80.

Denise Aparecida Soares de MouraProfessora do Departamento de História da Universidade Estadual Paulista, campus de Franca. E-mail: [email protected].

Nem cidadãos, nem brasileiros: indígenas na formação do Estado nacional brasileiro e conflitos na província de São Paulo (1822-1845) | Fernanda Sposito

A temática indígena ainda não entrou de maneira firme na história política do Império. É essa, pelo menos, a impressão deixada por algumas obras coletivas publicadas recentemente. Ao não tratarem dos índios e das nações indígenas, essas historiografias, que se apresentam como visões panorâmicas sobre o século XIX, terminam ajudando a propagar a falsa ideia de que os índios não eram uma preocupação política dos contemporâneos, ou não representavam uma ‘variável’ importante para a análise da experiência histórica brasileira do período. Em Nação e cidadania no Império: novos horizontes, [1] por exemplo, existem 17 capítulos e nenhum deles se dedica aos índios e às suas experiências durante o Oitocentos. O mesmo acontece em Repensando o Brasil do Oitocentos: cidadania, política e liberdade, [2] com 23 capítulos, nenhum dos quais enfocando a questão indígena como eixo central da análise. Não é aceitável, contudo, continuar discutindo a formação do Estado, a consolidação do território nacional e a cidadania, durante o Império, sem considerar de maneira clara, direta e corajosa o problema dos índios, das comunidades indígenas já integradas à ordem imperial e das inúmeras nações independentes que, progressivamente, foram conquistadas ao longo do próprio século XIX. A recente publicação de O Brasil Imperial, coleção em três volumes, com 33 capítulos, um deles dedicado aos índios,[3] é digna de menção, pois representa um avanço significativo. Leia Mais

Açúcar e Colonização – FERLINI (S-RH)

FERLINI, Vera Lúcia Amaral. Açúcar e Colonização. São Paulo: Alameda, 2010, 267p.  Resenha de:  LOPES, Gustavo Acioli. Identidades, mentalidades e sistema colonial. SÆCULUM REVISTA DE HISTÓRIA, João Pessoa, [26] jan./jun. 2012.

Os estudos e pesquisas sobre a história do Brasil colonial têm crescido sobremaneira, tanto do ponto de vista quantitativo, quanto qualitativo, nas últimas duas décadas. Se, em parte, este crescimento pode ser atribuído à multiplicação das pós-graduações, com linhas específicas de pesquisa, também se deve ao renovado interesse que o período vem despertando entre as novas gerações de historiadores. E este, por sua vez, ganhou considerável impulso com os debates que se seguiram às críticas que parte desta nova geração enumerou contra a linha de análise que privilegia o Antigo Sistema Colonial como elemento explicativo principal. Juntamente com a história econômica, esta linha esteve na defensiva nos anos 1990, quando as abordagens totalizantes, em particular as de viés marxista, foram seriamente questionadas (fenômeno que atingiu as Ciências Sociais em todo o Ocidente). No entanto, a partir das críticas e debates que resultaram destas, a abordagem do Antigo Sistema Colonial também se viu renovada, particularmente pela ampliação dos temas abordados e pelo aprofundamento da pesquisa documental, seja em história econômica, seja em história social e cultural.  América portuguesa ou Brasil colônia? Antigo Sistema Colonial ou Antigo Regime nos Trópicos? Colonos/colonizadores ou cidadãos/súditos do império? Leia Mais

Energia Elétrica: Estatização e Desenvolvimento, 1956-1967 | Marcelo Squinca Silva

O impacto do trato com as fontes de energia sobre o crescimento (e desenvolvimento) econômico é ponto mais do que pacífico no debate econômico. Em uma sociedade de mercado, a maneira pela qual se organizem as relações produtivas de determinada fonte energética pode representar a diferença entre o desenvolvimento ou subdesenvolvimento de uma economia. Ao se observar uma economia subdesenvolvida, como a nossa, surgem várias explicações atribuindo as causas de tal condição a distintos fatores, pertinentes às mais diversas ordens.

Dada, retrospectivamente, a criatividade intelectual em vislumbrar problemas inexistentes, questões vazias e falsos dilemas, ora reinventando a roda, ora atribuindo-lhe ângulos que lhe expliquem a aerodinâmica, não é sem grande alívio que recebemos a publicação da Tese de Doutoramento de Marcelo Squinca, que usa um método antigo e simples para analisar as deformações estruturais de nosso setor elétrico: a análise histórico-econômica. Leia Mais

Revoluções do Poder | Eunice Ostrensky

As possibilidades de leituras e interpretações dos clássicos do pensamento político são inúmeras. No entanto, uma das formas de afirmar sua validade foi, durante muito tempo, vê-los como sujeitos que, com seus textos, rompem a própria transitoriedade da história e são capazes de responder a diferentes questões em diversos tempos e lugares. A validade de sua leitura estaria, portanto, nesta capacidade de responder não só a seus problemas e de seus contemporâneos, mas aos nossos também.

Eunice Ostrensky, professora da Ciência Política da USP, parece ir em direção contrária ao caminho exposto anteriormente. Em Revoluções do Poder, fruto de sua tese de doutorado, publicado pela Editora Alameda, a professora não só procura colocar Thomas Hobbes no contexto político da Inglaterra revolucionária no século XVII, mas, através de intensa pesquisa e leitura apurada, procura reconstruir os debates e as diversas interpretações que concorrem em ambiente inglês.

Entretanto, reconstituir o debate em tempos revolucionários, de surgimento de novas teorias e novos grupos, é tarefa árdua que requer familiaridade com a linguagem estudada e capacidade de interpretar “lances” de linguagem, para usar uma terminologia de J. Pocok (2003). Ou seja, usar certo elemento de uma forma diversa, com significados e sentidos diferentes, a fim de persuadir os possíveis leitores/ouvintes de certo discurso. No entanto, o que era óbvio para os contemporâneos de Hobbes, indiscutível para os que com ele partilhavam seu momento, já não é para nós, que nos distanciamos deles pelo abismo temporal. Por isso, as interpretações são abertas, lacunares e passíveis de crítica. Contudo, o caminho proposto pela professora é inovador em terras brasileiras e demonstra, na prática, as possibilidades abertas pelo método da Escola de Cambridge. Ou seja, entender os objetivos dos pensadores em seu momento, inseridos nos debates e diálogos de seu contexto histórico. Nas palavras de John Langshaw Austin, para escritores como Ostrensky, “as palavras também são atos” (AUSTIN, 1990), são elementos de intervenção e ação no debate político.

O livro pretende compreender o período entre 1642 e 1649, chamado pela autora de “períodos fatais” (p. 32), anos de crise da soberania em que surgem debates sobre republicanismo, limites do Estado, poder e liberdade. Esses vocábulos, complexos em sua definição mesmo fora do contexto revolucionário, ampliam suas possibilidades de definição em momentos de embate político. O ápice da “Grande Rebelião”, como era chamada então a Revolução Inglesa, se daria em 1649, com a condenação e execução de Carlos I. “Nunca antes se havia julgado, condenado e executado um rei publicamente. No passado, coroas usurpadas e reis cruéis haviam merecido execuções que se fizeram pelas costas, no escuro, porque nem mesmo os assassinos (…), pensavam em contestar a monarquia” (p. 41).

Na primeira parte do livro, Ostrensky nos apresenta os personagens que irão compor sua narrativa. Isso talvez seja um dos traços mais marcantes de seu livro: as teorias têm dono, nome e data. Os embates, reconstruídos conforme a documentação que chegou até nós são expostos em sua complexidade e dimensão, demonstrando como os que vivenciaram os períodos de tanta transformação entenderam e interpretaram o que então se passava, que significados davam para o que então ocorria e de que maneira procuraram convencer seus contemporâneos com seus argumentos. Composto por seis capítulos, o livro se divide conforme a “ordem cronológica das razões” e temática das teorias que surgiam e caíam na Inglaterra do século XVII.

Nos primeiros capítulos a autora preocupa-se em demonstrar como os realistas costumavam pensar o mundo e sua própria realidade, ou seja, o arcabouço das crenças do período pré-revolucionário a partir do qual as mudanças ocorrem. Curiosamente, tanto parlamentares como realistas costumavam reivindicar seus direitos buscando um passado mais remoto, garantindo que o oponente trazia perigosas inovações que poderiam comprometer “a ordem do mundo”. Pensados em linguagem teológica, com referências bíblicas, os sentidos dos textos sagrados eram vertidos conforme o desejo daqueles que deles se apropriavam. A Reforma, suas contradições e consequências, iriam atingir também o mundo político, suas formas de interpretação e modos de ver o mundo. Paralelo a isso estavam os discursos juristas, relacionados ao constitucionalismo inglês e a validade do commom law acima das leis escritas e da própria vontade do rei e das leis promulgadas pelo parlamento. Esse é o “pano de fundo” (p.118) dos primeiros dois capítulos, panorama conceitual primário que permite e dá as diretrizes para as inovações, que, neste período conturbado, surgiriam.

Frente às críticas ao poder realista, era necessário responder e reafirmar a necessidade do poder soberano para a manutenção da ordem e da paz social. De acordo com a autora, portanto, é necessário entender os argumentos realistas como respostas aos opositores (p. 36), de um lado os jesuítas, de outro os protestantes radicais. Para isso, linguagens diferentes são usadas, a fim de demonstrar a validade dos argumentos frente a públicos distintos, acostumados a vocábulos e sentidos diferenciados.

No capítulo III a autora procura analisar mais aprofundadamente o discurso realista, demonstrando as formas como a prática política de Carlos I aproximava-se da de Jaime I, seu pai. Contudo, nos avisa Ostrensky, embora o desejo de sistematização do pensamento régio seja necessário a fim de nos possibilitar compreensão, é indispensável percebê-los como respostas a diferentes personagens que a questionavam e a faziam justificar sua posição e pretensão. Por exemplo, enquanto Filmer, um dos maiores representantes da defesa do poder divino, escreve direcionado ao publico interno, aos juristas, Jaime I, se direciona ao público externo, formado por jesuítas e protestantes.

No IV capítulo, Ostrensky analisa os discursos e personagens do outro lado da luta: os parlamentares e os defensores desses. Frente à dificuldade em por ferio às prerrogativas régias o Parlamento lançou um argumento inovador até o momento: a separação entre o rei e a pessoa que o exerce. Segundo a autora, esse gesto, embora aparentemente tímido, abriu espaço para a afirmação da autoridade do Parlamento. Na impossibilidade de se julgar o homem, cujo cargo se tinha por sagrado, aboliu-se o cargo. Ela reconstrói e demonstra três linguagens presentes no discurso parlamentarista: o discurso da ordem, o do constitucionalismo inglês e o “populismo aristotélico”, com as noções de participação política como essências do homem. Essa colcha de retalhos que não aparece separadamente nos discursos, nos mostra as formas como a linguagem se sobrepõe, inovando e ratificando vocabulários, perceptíveis ou não aos seus personagens. No entanto, há, mesmo com as diferenças, um ponto comum: as distintas chaves discursivas afirmam que a lei assegura a deposição do monarca como tirano.

No penúltimo capítulo a autora debruça-se em um dos mais debatidos e controvertidos filósofos da modernidade: Thomas Hobbes. Se o pensador é, sem dúvida nenhuma, o grande nome do período, cujas obras chegam até nós e são debatidas com entusiasmo no mundo acadêmico, seus textos não estão “no vazio”, antes se encontram relacionados e imbricados no jogo político de seu tempo, em outras palavras, eles são veículos de intervenção. Como coloca a autora, por exemplo, Elementos da Lei é fruto do debate político das décadas de 20 e 30. Através da análise que a autora faz de um contemporâneo de Hobbes, Digges, é possível esboçar comparações entre o pensador e outras vertentes de pensamento que tiveram ou não (não é possível saber, infelizmente) contato com seu trabalho. O filósofo não firma seus argumentos em pressupostos teológicos e por essa e outras razões não foi bem recebido pelo próprio grupo que defendia a aristocracia. Embora seja possível traçar paralelos entre o pensador e seus contemporâneos, é impossível negar o caráter inovador de seus textos e afirmações, já que suas respostas à crise de soberania vão em direção a um ângulo diverso dos apresentados por seus colegas. A soberania não é direito divino, é fruto do desejo de sobrevivência do homem frente à natureza humana e seu inevitável caminho à morte prematura. Nisso centra-se também sua crítica à oratória ciceroniana, pois sendo o humano variável, é impossível se chegar a um consenso sobre certo e errado, sendo necessária a criação de uma ciência moral e política. Além disso, Hobbes inverte o termo “sedutor”, originalmente usado para os papistas, que seduziriam o rei. No sentido dado ao termo no Behemoth principalmente, sedutores são os que convencem o povo a se indispor com seu soberano. Esse é um dos exemplos da peculiaridade do pensador, que, utiliza-se de palavras usadas por seus adversários com sentido diferente, buscando, desta forma, persuadir seu leitor e mostrar os malefícios que a desobediência ao soberano poderia trazer.

No último capítulo, a autora centra sua análise naqueles que seriam os jacobinos da Revolução Inglesa: os levellers, ainda pouco estudado no Brasil. Para demonstrar como esses seriam os primeiros democratas da história moderna, a autora coloca em destaque as formas que alcançavam a ideia de representação política: tolerância religiosa e liberdade de culto, reinterpretação da lei da natureza e uma teoria dos direitos naturais. A definição de liberdade para eles será diversa da usado por Hobbes, por exemplo, já que não será no sentido de interferência dos outros na liberdade do indivíduo, mas de liberdade em atuar no espaço público. Contrários a falta de limites do poder régio, mas também do Parlamento, os levellers defendem o poder de racionalidade e decisão das multidões.

As críticas aos levellers viriam de várias frentes, principalmente devido ao radicalismo das propostas e a possibilidade de transferir o poder à multidão, vista como destituída de racionalidade. Embora autores como Hobbes não os mencionem, presume-se que seus prováveis leitores os conheceriam e estariam devidamente informados a respeito de sua argumentação, já que defende sua filosofia tendo como base elementos usados pelo grupo rival.

Em sua conclusão, intitulada A Segunda Metade do Círculo, a autora afirma que seu objetivo no livro era acompanhar a mudança da linguagem, o desgaste da visão paradigmática e a predominância da Lei Civil e Natural. Após a queda da monarquia perde sentido o constitucionalismo parlamentarista e a defesa da harmonia entre rei e Parlamento. Outras formas de entendimento, expressos através de palavras, serão usadas e terão, na mente dos leitores e ouvintes, uma entonação diversa da anterior, a base seria outra: o pensamento republicano.

A fim de concluir esta resenha, cabe dizer algumas palavras sobre este livro que é, no mínimo, instigador por sua abordagem. Diferentes dos estudos tradicionais, que buscam, através de intensa leitura, descortinar certo pensador e entender sua filosofia e principais conceitos, Eunice Ostrensky procura contrapor Hobbes com seus interlocutores. Entender o vocabulário político presentes neste momento, os debates produzidos através de um arranjo conceitual comum, mas que ao mesmo tempo esta em mutação, pode ser colocado como um de seus objetivos. Tarefa árdua que requer familiaridade com uma linguagem que se diferencia da nossa no tempo e no espaço. Lacunas existirão, assim como interpretações que certamente seriam contestadas pelos seus autores e não aceitas por eles, como é a preposição de um dos maiores defensores da proposta da autora, Quentin Skinner2 . No entanto, mostrar que filósofos colocados no Panteon pela tradição não fizeram pressuposições fora de seu tempo, mas coladas ao contexto e as possibilidades que esse lhes dava, é um dos méritos dessa proposta. Outro seria demonstrar, como já afirmou Skinner (2000, p.150), que os filósofos não respondem as nossas questões, mas as suas, cabe a nós, portanto, buscar, como eles fizeram anteriormente, respostas aos problemas de nossa sociedade.

Notas

2. Quentin Skinner afirma que um dos seus objetivos era produzir uma interpretação passível de ser aceita pelo próprio autor do texto.

Referências

AUSTIN, J. L. Quando dizer é fazer: palavras e ação. Tradução de Daniel Marcondes de Souza Filho. Porto Alegre: Artes Médias, 1990.

POCOCK, J.G.A. Linguagens do Ideário Político. Tradução de Flávio Fernandez. São Paulo: EDUSP, 2003.

SKINNER, Quentin. Significado e comprensión em La historia de las ideas. Tradução de Horacio Pons. In: Primas – Revista de História Intelectual, Quilmes, nº4, 2000, p.149-191.

Débora Regina Vogt – Licenciada e mestranda pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Trabalha com o livro de história do filósofo político Thomas Hobbes, Behemoth, e desenvolve pesquisa referente ao papel da referência aos antigos em sua obra. E-mail: [email protected]


Ostrensky, Eunice. Revoluções do Poder. São Paulo: Alameda, 2006. Resenha de: VOGT, Débora Regina. Aedos. Porto Alegre, v.3, n.8, p.248-252, jan. / jun., 2011. Acessar publicação original.

A formação da elite colonial. Brasil (c. 1530 – c. 1630) | Rodrigo Ricupero

Os momentos iniciais da efetiva conquista e ocupação dos territórios americanos do império português são de fundamental importância para todo o posterior desenvolvimento histórico do Brasil. Durante estes anos se desenharam os traços básicos da distribuição espacial da América portuguesa, traços que repercutem até hoje nas dinâmicas do país. Vem dessa época também algumas das principais feições sociais do país, bem como uma parcela importante do caldo sociológico que compõe suas culturas políticas. Apesar de sua importância, poucos são os historiadores que ousam mergulhar nestas águas profundas, nesta fase ao mesmo tempo tão longínqua e tão presente de nossa história. As razões para isso em geral giram em torno do problema das fontes. Essa é uma questão que se repete para outros objetos do período colonial, o que faz desta fase a menos conhecida de nossa história, pese seu caráter fundante.

A obra em tela enfrenta estas limitações e ousa incursionar no primeiro século de colonização. Sua baliza cronológica inicial é 1530, momento em que a política da coroa em relação às terras que lhe cabiam pelo Tratado de Tordesilhas “dá um salto de qualidade, com a iniciativa do povoamento das terras da costa do Brasil”. O fechamento do período do estudo é a invasão de Pernambuco pela West Indische Compagnie, em 1630, fase em que a conjuntura externa foi sacudida pela entrada em cena de novas potências e pela crise geral do século XVII. Do ponto de vista geográfico, o estudo abrange toda a área costeira da colônia, salientando o autor, que a repartição do estado do Maranhão somente se efetivou a partir de 1626. Leia Mais

A história na política, a política na história | Cecília H. S. Oliveira, Maria Lígia C. Prado, Maria de Lourdes M. Janotti

A renovação dos estudos sobre política em História, ou simplesmente da História Política, tem sido gradativamente traduzida em artigos e obras inovadoras, iluminados a partir de conceitos, métodos e abordagens diferenciados em relação à História factual e elitista criticada pelo Annales no início do século XX. Por meio de novas pesquisas, a “nova” historiografia política vem mostrando ao historiador o quão vasto e interdisciplinar é seu métier, integrando o tempo – com diferentes ritmos – e fontes das mais diversas origens à cultura, à economia e às sociedades. A coletânea de artigos1 reunida pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade de São Paulo e organizada por três importantes historiadoras é claramente uma manifestação desse quadro de ampliação dos estudos de história política, contendo quatorze artigos em cerca de 290 páginas. O conjunto propõe-se “interrogar os sentidos assumidos pela política na investigação histórica e na historiografia atual” (OLIVEIRA; PRADO; JANOTTI, p.10), dividindo a obra em seis partes, analisadas a seguir. Leia Mais

A Corte e o Mundo: uma história do ano em que a família real portuguesa chegou ao Brasil / Andréa Slemian e João P. G. Pimenta

Integrando a Coleção Passado / Presente, da Editora Alameda, “A Corte e o Mundo: uma história do ano em que a família real portuguesa chegou ao Brasil” insere-se na categoria do chamado “livro de divulgação”, cujo propósito é oferecer ao publico não especializado o conhecimento histórico de qualidade, que incorpore os atuais avanços da pesquisa acadêmica, sem as formalidades desta, tornando a obra acessível ao público em geral.

Uma iniciativa fundamental diante das muitas ofertas no mercado que, atendendo ao atual interesse pela história, publica livros e revistas produzidas por pesquisadores curiosos, muitas vezes com visões ultrapassadas e distantes dos avanços de nossa historiografia. Nesse sentido, é importante apoiar e divulgar a produção de obras de qualidade dirigidas ao público leigo, como também dos livros paradidáticos de história para o ensino fundamental e médio.

Na mesma coleção, os autores publicaram anteriormente “O nascimento político do Brasil: origens do Estado e da nação”, e novamente foram bem sucedidos na dosagem certa entre simplificação e objetividade da escrita, sem que a obra perdesse o interesse proporcionado pela análise histórica.

O ano de 1808 é, ao mesmo tempo, marco cronológico, tema e fio condutor da narrativa. Partindo da instalação da Família Real Portuguesa no Brasil, propõe-se a narrar outros acontecimentos a ele correlatos, observar regiões por ele afetadas, e com isso tentar compreender o que era o mundo ocidental, em 1808. O ano é entendido como crucial porque, dentre outros motivos, nele começaram a surgir as possibilidades históricas que, pouco depois, culminariam no nascimento de um Brasil politicamente independente e soberano. Neste sentido, o livro é um esforço de entender uma história do Brasil articulada a uma história mundial.

Apresentando os anos iniciais do século XIX como produtor de novas condições históricas de transformação, num processo acelerado, com mudanças profundas e de caráter substancialmente político, em torno de 1808, os autores vão agregando diferentes espaços a cada capítulo do livro.

No capítulo 1, o cenário é o de uma Europa remexida pela expansão militar francesa. Ao abordar a Península Ibérica, procura-se destacar as condições que foram tão decisivas para os destinos de Portugal e Brasil e o percurso inesperado para a Espanha, que de aliada passara a inimiga da França.

A narrativa da guerra espanhola e de seu forte envolvimento popular conduz o leitor à reflexão da dramaticidade daquele processo histórico: como seria viver e travar uma guerra, em meio às idéias de abolição de privilégios da nobreza e das formas de organização social aristocráticas, das pressões e imposição de Napoleão para elaboração de uma Constituição Espanhola, numa sociedade onde o rei absolutista era elo de convergência de lealdades e do sentido das coletividades nacionais? Destaca-se a boa síntese feita no capítulo sobre o abolicionismo inglês. Partindo da grande dificuldade econômica da Grã-Bretanha naquele ano, diante dos bloqueios comerciais, da sua tentativa de reação, chega-se ao consenso de suas elites dirigentes em torno da necessidade de abolição do tráfico de escravos como meio de fortalecer uma nova ordem econômica da qual ela seria líder mundial. A bandeira do abolicionismo propiciava um aspecto universalizante muito adequado à estratégia inglesa de voltar-se cada vez mais para outros continentes, uma vez que a Europa estava fechada para seu comércio.

O capítulo 2 enfoca o Rio de Janeiro e sua articulação socioeconômica ao continente africano. Traça os desdobramentos advindos com a vinda da Família Real. A trajetória da cidade do Rio de Janeiro sob o impacto de sediar a Corte do Império Português: as necessidades de novos melhoramentos urbanísticos, de prédios e habitações, a urgência no abastecimento de víveres e outros gêneros, a preocupação com formas de controle de seus habitantes.

Afinal, a partir de 1808, a cidade assistiria à instalação das novas instituições administrativas criadas para o funcionamento do Estado Português, acompanhada de uma complexa massa de órgãos governativos, que “diante do desaparecimento da figura do vice-rei, teriam uma ampla jurisdição, relativa tanto a assuntos da Coroa, como do Império e de todas as capitanias da América”. (p.66).

Entre as instituições criadas no Rio de Janeiro destacou-se a Imprensa Régia. A criação e a atuação da imprensa estavam atreladas ao alargamento de espaços públicos de discussão que, embora já existentes anteriormente, agora seriam alargados, transbordando os tradicionais limites dos círculos cortesãos. Os múltiplos e contraditórios potenciais da imprensa seriam sentidos na América Portuguesa, onde ela certamente contribuiria para manter a ordem, mas poderia também ajudar a subvertê-la. No primeiro sentido, possibilitaria para a monarquia que pretendia sempre reforçar os vínculos dinásticos entre ela e seus súditos, em segundo porque a circulação desses conteúdos em uma escala muito maior implicaria, forçosamente, alterações nos padrões de sociabilidades existentes, o que incluiria discutir política em tempos de revolução.

Ao tratar do alargamento do espaço público, os autores destacam outra dimensão da sociabilidade que foi especialmente tocada com a instalação da Corte na cidade: as representações de nobreza, da relação rei/súditos, a simbologia em torno do rei, de uma Corte antes tão distante e, naquele momento, tão perto do cotidiano da cidade. Como ressaltam os autores: “por ocasião dos festejos públicos, a cidade era cuidadosamente preparada para recriar a mística do monarca e da Corte em sua nova sede americana”. (p.71) Tratava-se do reforço da monarquia e da unidade do Império Português, de reproduzir em terras americanas, a lógica de privilégios e favorecimentos pessoais que emanavam do rei, e era a regra das relações políticas e sociais num ambiente cortesão tradicional como o das monarquias européias. A partir de 1808, essa lógica de privilégios e favorecimentos se desdobraria em verdadeiras disputas por ascensão e influência na esfera da Corte.

Quanto às mudanças econômicas, basta citar que, ainda em 1808, seriam estabelecidos no Rio de Janeiro o Erário Régio, o que significava que a imensa massa de recursos derivada da cobrança de impostos não mais seria enviada para Lisboa, devendo permanecer no Rio de Janeiro.

A renda daí advinda serviria às obras necessárias para adaptação da cidade à condição de sede da Corte, aos melhoramentos de sua ligação com outras capitanias. Foram também criados novos impostos internos em função da abertura dos portos e do estabelecimento dos direitos de importação.

Estes impostos foram introduzidos em todas as capitanias e, mesmo não sendo drenados de forma eficiente para o Rio de Janeiro, geraram muitos descontentamentos. As populações das capitanias se viram oneradas com o aumento das taxas, sobretudo as províncias do norte, onde a presença da Corte na América não compensava a pressão fiscal sofrida. Até porque esse sistema de impostos favorecia muito mais as capitanias do centro-sul, sobretudo São Paulo e Rio Grande, que, “possuindo economias de passagens”, ganhariam muito mais com impostos sobre o trânsito de mercadorias e imóveis. Os efeitos positivos dessa arrecadação vieram exatamente dessas capitanias, estimuladas pela presença da Família Real no Brasil. (p.69) Os agentes envolvidos no comércio marítimo centrado no Rio de Janeiro, articulados principalmente ao Rio da Prata, África e Portugal e às áreas internas do sudeste, vislumbraram a possibilidades de expansão de seus negócios, possibilitando-lhes uma valorização não só comercial como política, e “que se mostraria fundamental para o futuro projeto de independência do Brasil, ainda existente”.(p. 65) A desconexão entre Lisboa e o Rio de Janeiro, provocada pela invasão napoleônica de 1807, ativaria a circulação monetária da segunda, ao frear a desmonetarização e entesouramento típicos da ex-colônia com a interrupção do tradicional circuito de metais preciosos e de afluxos financeiros, que antes seguiam para o Erário Régio em Portugal. Seu resultado imediato seria um aumento, no Rio de Janeiro, da capacidade de importação e da velocidade de difusão de numerário, que se desdobraria num crescimento notável de investimentos. Assim, a partir de 1809, a nova sede do império começou a importar escravos em números especialmente altos.

Nesse sentido a posição estratégica da corte portuguesa em sustentar a manutenção do tráfico, nos anos seguintes a 1808, contemplava os interesses de uma elite mercantil que cada vez mais se atrelava ao Estado, ocupando postos de destaque e defendendo seu prestígio e seus privilégios.

Com a abertura dos portos, o consumo de cativos pela América Portuguesa aumentaria sensivelmente. Além disso, o notável aumento na capacidade de investimentos em decorrência de sua transformação em sede do império propiciaria uma maior importação de africanos, cuja mão de obra era adequada à aceleração da economia no centro-sul.

Dentre as regiões africanas articuladas ao tráfico negreiro, destaca-se o de Angola, que estabeleceu uma relação de complementaridade com a América portuguesa, que remonta aos séculos XVI e XVII. Os autores problematizam a ação portuguesa na região, desde a ocupação costeira, o processo de interiorização da captura de escravos destinados à América por volta da primeira metade do século XVIII e as clivagens entre grupos vizinhos ao Reino de Angola.

Do outro lado do Atlântico, o Rio de Janeiro estava atrelado a essas transformações, pois desde o século XVIII era o principal entreposto do comércio de homens que abastecia o centrosul da América Portuguesa e algumas regiões da América Espanhola. Com o governo de d. João VI, o tráfico não só foi mantido como foi incentivado, incrementado e alargado.

O capítulo 3 traz uma panorâmica do que eram no ano de 1808 os vários Brasis portugueses, ou seja, as várias partes que compunham a América Portuguesa, e que eram bastante diversas, com perfis sociais e econômicos variados, e com distintas vinculações políticas entre si e com o restante do mundo ocidental.

Essa diversidade fora resultado da própria dinâmica da colonização moderna em terras portuguesas, que articulou áreas diferentes à metrópole, à competição européia e aos mercados mundiais, criando formas de reprodução muito variadas.

O impacto da chegada e instalação da Corte no Rio de Janeiro, e sua tentativa de reforço dos laços entre o monarca e os súditos de além-mar, seria desigual nas várias capitanias da América Portuguesa. Os efeitos da mudança da corte foram diversificados nos vários Brasis posto que essas partes não formavam uma unidade político-administrativa e possuíam perfis socioeconômicos específicos, não havendo, portanto um único Brasil que pudesse reagir e sentir ao acontecimento.

Nas primeiras décadas do século XIX, o Brasil era uma designação genérica para um conjunto de territórios que, a despeito de vários pontos de encontro e articulação recíproca, não podiam formar um Estado e uma nação próprios. Assim, embora a designação Brasil já existisse, ela não portava o conteúdo que viria a ter poucos anos depois.

O quarto e último capítulo aborda o restante do continente americano: as consequências para a América Espanhola diante da invasão napoleônica e a ascensão dos Estados Unidos ao cenário internacional.

Para as várias partes da América Espanhola, o ano de 1808 foi especial, pois o Império Espanhol começava a ruir, fomentando as primeiras sementes dos movimentos de Independência que começariam a ocorrer em breve. Também foi especial para os Estados Unidos que, em meio às guerras européias, encontraram novas oportunidades de potencializar seu crescimento econômico e territorial.

O capítulo 4 destaca ainda o encontro dos Impérios Ibéricos em torno do Rio da Prata. Segundo os autores, a região mereceu tratamento especial porque ali, mais do que em qualquer outra parte da América Espanhola, os acontecimentos de 1808 se mostraram ligados diretamente à transferência da Corte Portuguesa para o Rio de Janeiro.

Isso porque, a invasão francesa da Península Ibérica em 1807 criou condições favoráveis ao incremento dos fluxos comerciais para a região do Prata, pois levou à abertura dos portos lusoamericanos, e à redução de tarifas aduaneiras para mercadorias procedentes do Brasil no porto de Buenos Aires. A instalação da Corte Joanina no Rio de Janeiro também incentivou o comércio para que se facilitasse a chegada à Corte de gêneros de abastecimento.

Para os autores, o ano de 1808 foi fundamental por evidenciar as várias mudanças do “turbilhão político do período das revoluções”, por se precipitar nele tantos eventos de forma acelerada, como que envolvidos no “olho do furacão”.

Achamos que o aspecto mais interessante do livro seja a reflexão proporcionada ao leitor sobre a questão das diferentes temporalidades. Sendo endereçado mais ao público em geral, a obra proporciona para este um aprofundamento na percepção dos diferentes tempos sociais, da multiplicidade de visões e perspectivas próprias do mundo social, das diferentes culturas, das diferentes épocas.

Assim, escolhendo o ano de 1808 e as transformações que nele vêm à tona – as idéias da Revolução Francesa, de Constitucionalismo, de libertação dos absolutismos, que significaram “varrer o mundo ocidental com um conjunto de formas políticas, econômicas e sociais que organizavam as vidas cotidianas” (p. 12), os autores conseguem evidenciar como uma cultura política pode apresentar formas e valores sociais compartilhados e, ao mesmo tempo, serem significadas de formas diferentes, em diferentes regiões, em diferentes sociedades. O leitor pode então perceber que o turbilhão político que varria o ocidente ia sendo nuançado, ia tomando sentidos diferentes na Europa, na Corte do Rio de Janeiro, nos outros Brasis, na América Espanhola – um dos aspectos mais fascinantes proporcionado pela abordagem histórica.

Léa Maria Carrrer Iamashita – Doutoranda em História Social-UnB.


SLEMIAN, Andréa; PIMENTA, João Paulo G., A Corte e o Mundo: uma história do ano em que a família real portuguesa chegou ao Brasil. São Paulo: Alameda, 2008, 180 p. Resenha de: IAMASHITA, Léa Maria Carrrer. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.13, p.225-230, 2008. Acessar publicação original. [IF].

A escravidão na Roma Antiga: política, economia e cultura | Fábio Duarte Joly

Resenhista

Rafael da Costa Campos – Mestrando em História na Universidade Federal de Goiás.

Referências desta Resenha

JOLY, Fábio Duarte. A escravidão na Roma Antiga: política, economia e cultura. São Paulo: Alameda, 2005. Resenha de: CAMPOS, Rafael da Costa. Os escravos na antiguidade. História Revista. Goiânia, v.12, n.2, p. 395-399, jul./dez.2007. Acesso apenas pelo link original [DR]