A história ou a leitura do tempo | Roger Chartier

Fruto das pesquisas de Roger Chartier sobre as mutações da disciplina da história, realizadas desde o final dos anos de 1980, A história ou a leitura do tempo apresenta um panorama da historiografia nas três últimas décadas. O ensaio aborda os principais debates recentes da disciplina da história, desde seu estatuto de verdade, passando por sua aceitação social, a difícil relação entre história, memória e ficção, até o surgimento do livro digital e as novas formas de apresentação do texto historiográfico. Desde seu primeiro livro publicado no Brasil, A história cultural entre práticas e representações (1990) e seu célebre artigo “O mundo como representação”, publicado na revista dos Annales em 1989, o historiador vem se mostrando atento às reflexões teórico-metodológicas da disciplina. Em estudos posteriores, o autor buscou aliar a crítica textual à história do livro e da cultura, além estudar o recente impacto da cultura digital sobre a tradição escrita.

Em A história ou a leitura do tempo, Chartier tem como objetivo discutir a suposta “crise da história”. O ensaio se fundamenta nas questões postas por três livros seminais, publicados na década de 1970, que questionavam o estatuto de verdade da historiografia: Como se escreve a história (1971) de Paul Veyne, Meta-história (1973) de Hayden White e A escrita da história (1975) de Michel de Certeau [2.]  As questões suscitaram grande debate, que tinha por um lado a defesa da disciplina da história enquanto uma ciência produtora de verdade, e por outro como uma narrativa embasada métodos ficcionais.

Só o questionamento dessa epistemologia da coincidência e a tomada de consciência sobre a brecha existente entre o passado e sua representação, entre o que foi e o que não é mais e as construções narrativas que se propõem ocupar o lugar desse passado permitiram o desenvolvimento de uma reflexão sobre a história, entendida como escritura sempre construída a partir de figuras retóricas e de estruturas narrativas que também são as da ficção (p. 12).

O debate inclui o italiano Carlo Ginzburg, que recorre aos conceitos de Aristóteles para esclarecer que retórica e prova são indissociáveis, de modo que para o historiador, a historiografia possui uma verdade específica pautada nos vestígios do passado. Michel de Certeau apresenta postura similar, segundo ele, para que o discurso histórico possua credibilidade há a necessidade de se buscar referências no passado, como a citação das fontes. Para de Certeau, historiografia é, a um só tempo, narração e ciência, conhecimento e relato.

De acordo com Chartier, as instituições e técnicas que norteiam a disciplina da história devem ser consideradas em seus contextos específicos. E fazendo uso da sociologia de Pierre Bourdieu, o autor salienta que existem leis, determinações do campo que ditam o que é ser historiador, “a “instituição histórica” se organiza segundo hierarquias e convenções que traçam as fronteiras entre os objetos históricos legítimos e os que não o são e, portanto são excluídos ou censurados” (p. 18). Deste modo é que no fim da década de 1990 o lugar social da história entra em questão e se torna preciso saber como as sociedades a interpretam.

Atualmente a disciplina da história não é vista como a única forma de relação com o passado, há ainda a memória e a ficção. Em um amplo estudo, Paul Ricoeur se dedicou a analisar as diferenças entre memória e história. Para ele, a historiografia tem um compromisso de busca da veracidade, enquanto a memória costuma ser entendida como se fosse naturalmente verdadeira. Em A memória, a história, o esquecimento, Ricoeur distingue o trabalho historiográfico em três fases distintas: o estabelecimento da prova documental, a construção da explicação, e a apresentação em forma literária. Mas, salienta Chartier, “A epistemologia de verdade que rege a operação historiográfica e o regime de crença que governa a fidelidade da memória são irredutíveis, e nenhuma prioridade, nem superioridade pode ser dada a uma à custa da outra” (p. 24).

A respeito da relação da ficção com o passado, o historiador nos diz que a escola do Novo Historicismo nos permite perceber que determinadas obras literárias formaram representações coletivas do passado, que muitas vezes são mais eficientes que a narrativa historiográfica. É o caso de certas obras de Shakespeare, que remontam a história inglesa. Recentemente, a ficção se apropriou de métodos da disciplina histórica, como o uso de fontes e a referenciação, isso dificulta ainda mais a distinção. Entretanto, Chartier nos alerta que em meio a construções identitárias é necessário estabelecer critérios de verdade histórica, para evitarmos distorções e construções ficcionais.

Discutindo os estudos culturais, o autor destaca que apesar de ser a área com maior número de pesquisas atualmente, o campo da história cultural é bastante difícil de ser delimitado devido às múltiplas concepções de cultura.

Conforme suas diferentes heranças e tradições, a história cultural privilegiou objetos, âmbitos e métodos diversos. Enumerá-los é uma tarefa impossível. Mais pertinente é, sem dúvida, a identificação de algumas questões comuns a esses enfoques tão distintos (p. 35).

Na história do livro, por exemplo, há dois grandes modelos interpretativos, o primeiro se relaciona ao modo de apropriação e recepção das obras, a forma como são lidas pelas diferentes sociedades. Outro modelo se refere à materialidade do texto, a comparação de diferentes edições. Pois a produção de um livro, inclusive sua escrita, é um processo coletivo, sujeito a uma série de balizas contextuais. Além disso, a materialidade do texto, o estudo de seu suporte é fundamental para sua compreensão. A comparação de publicações distantes no tempo e de suas apropriações revelam a importância dos códigos culturais de contextos específicos.

Também a controversa relação entre o popular e o erudito sempre foi um dos focos da história cultural. Chartier destaca novamente dois modelos de interpretação: um no qual o popular é visto como autônomo e independente das elites, e outro no qual o popular depende do erudito. Para o historiador, deve-se buscar distinções menos categóricas, e uma das soluções está nas apropriações que as sociedades fazem, construindo suas próprias representações.

Mas o grande desafio da história cultural é pensar a articulação entre os discursos e as práticas, os meios de produção e a recepção, pois além do discurso, é necessário pensar nas condições e possibilidades de cada contexto.

O objeto fundamental de uma história que se propõe reconhecer a maneira como atores sociais dão sentido às suas práticas e a seus enunciados se situa, portanto, na tensão entre, por um lado, as capacidades inventivas dos indivíduos ou das comunidades e, por outro, as restrições e as convenções que limitam – de maneira mais ou menos clara conforme a posição que ocupam nas relações de dominação – o que lhes é possível pensar, dizer e fazer (p. 49).

Chartier enfatiza a importância do conceito de representação para a história cultural, pois através dele é possível vincular as posições e relações sociais com o modo pelo qual os indivíduos percebem a si mesmos e aos outros.

Outra discussão atual da historiografia destacada por Chartier diz respeito à fragmentação temática das pesquisas. Durante os anos 2000, a micro-história mostrou-se predominante. A resposta crítica foram os projetos de história global e de história comparada, protagonizados pelos alemães Reinhardt Koselleck e Jörn Rüsen. Mas a questão de como fazer um estudo de caráter global ainda não encontrou respostas que possam definir o projeto enquanto história global.

De acordo com Chartier, possivelmente a maior transformação na forma de apresentação da historiografia e na relação entre o leitor e o texto se deve à informática. A textualidade eletrônica permite ao leitor ter acesso às mesmas fontes que o autor, podendo questionar a pesquisa.

Ao permitir uma nova organização dos discursos históricos, baseada na multiplicação de relações hipertextuais e na distinção entre diferentes níveis de texto (do resumo das conclusões à publicação de documentos), o livro eletrônico é uma resposta possível, ou ao menos apresentada como tal, à crise da edição nas ciências humanas (p. 61-62).

Mais que uma resposta à crise, o livro digital pode significar uma alternativa para a publicação de obras rejeitadas pelas editoras devido à falta de interesse comercial. Mas Chartier destaca que se trata de uma tecnologia bastante nova e ainda teremos de nos habituar a ela, sem sabermos se irá superar o livro tradicional.

Chartier conclui seu ensaio dissertando sobre a história ser uma ciência que articula diferentes tempos. Sobretudo desde Fernand Braudel, vemos que os estudos historiográficos devem relacionar curta, média e longa duração. Mas não devemos esquecer que esta relação temporal é uma construção feita por nós mesmos, assim como os sentidos que atribuímos ao passado.

O livro nos traz um interessante panorama da historiografia recente, e as principais polêmicas enfrentadas pela disciplina. Chartier consegue realizar uma síntese dos caminhos traçados no campo da história nos últimos trinta anos. Entretanto há que se destacar que o historiador enfatiza alguns pontos em detrimento de outros, como quando discute as correntes interpretativas da história cultural, destaca os estudos referentes à história do livro, deixando de lado outros objetos também característicos da abordagem cultural, como a música, o audiovisual e as artes plásticas, por exemplo. Além disso, enfoca a importância dos conceitos de representação e apropriação, concepções das quais ele próprio é um dos principais representante. Chartier deixa de mencionar importantes correntes de pesquisa como o contextualismo linguístico de Quentin Skinner e John Pocock, a história social alemã, em especial a história dos conceitos de Reinhardt Koselleck, e o atual destaque que os estudos biográficos vêm apresentando na historiografia. Contudo, mesmo que o historiador destaque alguns aspectos que julga mais relevantes da histografia atual, deixando outros de lado, seu ensaio é bastante esclarecedor e consegue sintetizar os desafios atuais enfrentados pela historiografia.

Notas

2. Estas são as datas de publicação original dos três livros, no Brasil foram publicados em 1998, 2008 e 1994, respectivamente.

Referência

CHARTIER, Roger. A história ou a leitura do tempo. Tradução de Cristina Antunes. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.


Resenhista

Rodrigo Gomes de Araújo – Mestrando em História pela UFPR.


Referências desta Resenha

CHARTIER, Roger. A história ou a leitura do tempo. Trad. Cristina Antunes. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009. Resenha de: ARAÚJO, Rodrigo Gomes de. Intellèctus. Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, 2011. Acessar publicação original [DR]

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