Creer en la historia | François Hartog

Hartog es un académico francés cuyas inquietudes abarcan el tiempo y su vinculación entre las categorías de pasado, futuro y presente. Sus especialidades abarcan el mundo de la Antigüedad y tocan temas como la representación del Otro en Heródoto, o la memoria en el mito de Ulises. Fundamental en Creer en la Historia, notaremos las conexiones desde lo más antiguo con ideas de Grecia clásica, hasta las definiciones más contemporáneas, de mano del giro lingüístico y su propuesta para la historia presente y del presente. A partir de conceptos como patrimonio, memoria, identidad y tiempo, el autor nos introduce al panorama de la historia en el siglo XXI. El autor enuncia el cisma del paradigma historiográfico en el periodo de la Segunda Guerra Mundial, momento en que la disciplina pierde su sentido, deteriora el acto de pronunciarse sobre su contexto y cuestiona su rol en el tribunal del mundo, en los juicios de la Historia (esa con mayúsculas, con un sentido anterior y guiada por el Progreso). Uniendo la historia con la literatura, mayormente francesa, los cruces intentan demostrarnos que creer en la historia es algo que no sólo viene desde nuestro campo, sino también en la experiencia de época. Leia Mais

El archivo y el campo. Historia/ antropologia/ modernidade | Saraubh Dube

En una entrevista decía Perla Ramos, escritora argentina, que una antología (aunque en este caso se refería a las antologías literarias) podía dar lugar a dos movimientos. Uno, evidenciar los patrones de repetición (incluso de los errores) y los recurrentes “trucos” de escritura -y en ese caso dejar al autor en evidencia ante el paso del tiempo condensado en una mónada, la antología, o segundo, dar luz sobre un mecanismo, una gramática autoral: la que funciona como una genealogía (no como una sedimentación), la que recurre a preguntas elegidas pero con trucos nunca transparentes, la que, en definitiva, compone obras que en la misma mónada, se evidencian fundamentales.1 Intentaré argumentar por qué este texto pertenece a este segundo grupo.

El libro consta de seis partes, 13 capítulos y un epílogo. Desde las modulaciones diferentes del subalterno en la historiografía crítica, pasando por las conformaciones disciplinares de espacio y temporalidad; casta, poder y género -una parte fundamental para comprender cómo se tejen los estudios de diferenciación y política junto con las premisas que delinean las nociones de género en la historia y en la antropología-, colonialismo, conversión y traducción (un segmento medular en la trayectoria de Saurabh Dube que le permitió pensar de qué manera es en los procesos de “traducción”, de producción impura de equivalencias y sentidos, donde por un lado se conforma la subjetividad moderna en India pero también se evidencia la parroquialidad y la inestabilidad del proyecto colonial), ley y legalidades (donde la norma aparece siempre como un referente prístino pero interdicto por las prácticas de la historia cotidiana), “modernidad e identidad” que recupera parte de la reflexión central de Dube sobre la eficacia de los mundos encantados, sobre la plena convivencia de la modernidad racional con los encantamientos de la diferencia; y la última parte sobre antropología y arte, que puede sonar bastante díscola respecto a las reflexiones anteriores dicho así, pero no lo es en absoluto. Centrada en textos sobre la obra de Savi Sawarkar, un artista amigo del autor, este último “compás” de la antología permite, si no un cierre, sí una pausa (y por eso me parece un acierto de edición que esté al final). Más allá del erudito análisis de Saurabh sobre los dalit (intocables) y de un repaso de su propio trabajo, hay en esta parte de la antología una especie de reflexión sobre los límites de la escritura y del lenguaje (disciplinar y académico) para “significar” la diferencia: las historias de opresión, exclusión y jerarquización. El arte de Savi no es nunca una “coda” del razonamiento ni tampoco una “ilustración a modo de ejemplo” de los poderes de casta. Es en todo caso una advertencia. Quizá la advertencia sobre la que escribió Michel de Certeau cuando analizó la palabra de la posesa: sólo existe el relato de lo mismo. Pero hay algo que está fuera de ese texto y que, sin embargo, se nota en él, impide su cancelación.2 Interrumpir ese texto, trabajarlo como ruina en permanente desmonte, es justamente lo que el arte de Savi parece producir para la propia obra de Saurabh, y es por eso mismo imprescindible su inclusión en la antología. Leia Mais

A História (in)Disciplinada: teoria, ensino e difusão do conhecimento histórico. | Arthur Lima de Avila, Fernando Nicolazzi e Rodrigo Turin

Fernando Nicolazzi História
Fernando Nicolazzi | Foto: Canal História da Ditadura

No dia 27 de abril de 2020, Jair Bolsonaro vetou integralmente o projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional que previa a regulamentação da profissão de historiador. Entre muitos aspectos que podem ser explorados a partir da análise dessa ação controversa, um deles se refere ao concorrido campo da história. Longe de ser uma “ciência dedicada aos mortos”, a história – e o direito de enunciá-la ou de interditá-la – é ponto de embate ideológico, além de um importante instrumento político, intrinsecamente vinculado a questões do nosso presente. Leia Mais

Uma introdução à história da Historiografia brasileira 1870-1970 / Thiago Nicodemo, Pedro Santos e Mateus de Faria

NICODEMO Thiago Lima História
Thiago Lima Nicodemo / Foto: Jornal da Unicamp /

NICODEMO T et al Uma introducao a historia da historiografia brasileira 1 HistóriaO título é chamativo: Uma introdução à história da historiografia brasileira (1870-1970). O texto oscila entre o inventário das concepções de historiador ideal e a transmutação do objeto “historiografia” ou “história da historiografia”, na duração de um século: de reflexão dispersa em necrológios e artigos de jornal à disciplina curricular da formação universitária em História.

Thiago Lima Nicodemo (Unicamp), Pedro Afonso Cristovão dos Santos (UNILA) e Mateus Henrique de Faria Pereira (UFOP), os autores, são jovens pesquisadores da área de Teoria e História da Historiografia. Tentaram se livrar da história da historiografia brasileira como inventário de homens e livros em ordem cronológica, mas enfrentaram dificuldades comuns entre os que, em grupo, querem conciliar pensamentos e práticas historiográficas díspares na exposição de um discurso sobre a matéria. Leia Mais

História & Distopia: a imaginação histórica no alvorecer do século 21 / Julio Bentivoglio

É revelador o aumento das pesquisas sobre as condições que envolvem o fazer historiográfico. Interessantes trabalhos têm sido produzidos em âmbito nacional e internacional por diversos pesquisadores que buscam questionar os mais distintos fundamentos que circunscrevem o discurso histórico[1]. Como, por exemplo, as estruturas temporais e as dimensões ética, estética, linguística e performática. Isso indica uma mudança substancial na maneira com que o historiador encara seu ofício, desvinculando-se de um espaço naturalizado e legitimado previamente por seu lugar social e seus métodos estabelecidos. Se por um lado, revela esse desejo em tensionar o lugar da disciplina história no mundo contemporâneo, sua rigidez metodológica e seu alcance social; por outro, demonstra que a matriz histórica cientificista, fundada sob a égide da modernidade, divide agora seu lugar hegemônico com outras formas de conhecer e produzir reflexões sobre o passado.

Uma rápida pesquisa na base da língua inglesa do Google Ngram Viewer –   ferramenta que permite ao seu usuário a busca e análise de dados dentro da plataforma de livros digitalizados do Google Books – nos permite identificar um crescimento exponencial no uso do vocábulo dystopia a partir dos anos 1960[2]. Em certa medida, o aumento no interesse pela ideia de distopia, pode ser visto como um reflexo do desencantamento com as promessas emancipadoras de futuro, sustentadas pelas metanarrativas do progresso. Esse aumento coincide também com um momento decisivo do pensamento ocidental, no qual a recepção dos esforços em torno da constituição de uma crítica ao projeto filosófico/político da modernidade são igualmente crescentes[3].

Na atualidade não faltam produções culturais que exploram o tema da distopia. Na literatura é notório o interesse por revisitar alguns clássicos da ficção científica, como as HQ do enigmático V de Vingança, e os romances de Philip K. Dick, George Orwell, Isaac Asimov, entre outros. No cinema destacam-se, desde a década de 1980 até o presente, uma quantidade exorbitante de produções aclamadas entre os espectadores, dentre as quais estão Blade Runner (1982), Matrix (1999), e as recentes séries, Black Mirror (2011-2019), Dark (2017-2020), e The Handmaid’s Tale (2017 – ). É certo que tais manifestações culturais são um sintoma de uma inédita experiência histórico-temporal, que coloca em xeque nossa relação amigável com o futuro e as possibilidades mais significativas de mudanças na vida social. Mas de que maneira a historiografia responde (ou pode responder) a essa configuração da realidade? Quais horizontes são abertos para o conhecimento histórico reformular algumas noções como narrativa, historicidade, temporalidade, e consciência/imaginação historiográfica?

É a partir dessas e outras evidências e perguntas, que Júlio Bentivoglio[4], em seu instigante livro História & Distopia, fornece uma importante contribuição aos estudos históricos. O trabalho de Bentivoglio é relevante no momento em que sua intenção principal não se limita a desarticular os mitos fundadores do saber histórico (algo que vem sendo feito há um bom tempo), mas, para além disso, em propor novas categorias fundamentais de observação da prática historiográfica. Nesse sentido, o texto trabalha em duas preocupações indispensáveis da pesquisa histórica: refletir sobre o mundo no qual estamos inseridos e as condições que definem nossa historicidade; e questionar, até mesmo desestabilizar, os clichês nos quais a escrita da história se desdobra. A erudição do livro está justamente em não ser apenas uma redundante observação das fissuras que atingem a historiografia, mas em avançar e propor novas abordagens a partir dessa constatação.

Bentivoglio, animado pelas reflexões de Hayden White sobre a imaginação histórica e a nova filosofia da história (Cf.: WHITE, 2002), argumenta que uma inédita consciência historiográfica emergiria no alvorecer do século XXI, notoriamente pós-moderna e distópica. Isso significaria dizer, que a forma pela qual o historiador trata, enreda, e apresenta o passado que lhe é disponível, seria resultado de uma experiência da história determinada pela produção de um lugar deslocado, impróprio, fora do eixo e hostil, sendo analiticamente sintetizado pela noção de deslugar. O passado, longe de responder a uma verdade absoluta, é desprendido das coerções praticadas pelo método da ciência histórica, para se deslocar em diversos sentidos que lhe são atribuídos por narrativas, representações e simulacros.

Minha hipótese é a de que acompanhamos a emergência de um novo paradigma poético-linguístico, pré-crítico e meta-histórico. E que esse paradigma, no século XXI, é eminentemente distópico. Ou seja, a atual consciência na historiografia é um modo preciso de pensamento, cuja pré-elaboração do enredo de início é, em si mesma desconfiada, seja das capacidades científicas da história, seja das realizações da historiografia, seja das evidencias ou da materialidade do passado, seja das verdades produzidas pela história a ele. O passado tornou-se deslocamento, deslugar (BENTIVOGLIO, 2019, p. 58).

Tal definição de distopia como deslugar, é uma abertura para pensarmos a própria temporalidade do conceito, rompendo sua definição mais comum e imediata, que o coloca como o contrário da utopia. Nesse sentido, distopia não é apenas uma relação temporal distante entre futuro e presente, mas pode se caracterizar como uma irradiação de forças que deslocam um imaginário compartilhado sobre o passado irrevogável, admitindo dessa maneira, sua interferência assombrosa e fantasmagórica no presente. Considera-se, portanto, que a distopia na história remete a espectralidade de um passado-presente (cf: HARTOG, 2013; HUYSSEN, 2014). “A distopia não é uma antiutopia, ela é um deslugar, que não se encontra exatamente no futuro, mas, que pode estar em qualquer lugar, inclusive no presente e no passado” (BENTIVOGLIO, 2019, p. 96).

O trabalho de Bentivoglio, ao revisitar a formação da ciência histórica no século XIX, demonstra que a consciência historiográfica moderna estaria marcada por uma “tensão entre os objetivos utópicos e a adoção de práticas disciplinares distópicas” (BENTIVOGLIO, 2019, p.26). Esse conflito viria à tona com as reflexões epistemológicas que são caracterizadas como pós-modernas – como os passados práticos de Hayden White – que admitem uma ampla circulação do passado, destituindo assim, o próprio privilégio da historiografia em organizar arbitrariamente o passado. Bem como, as reflexões de Foucault sobre as condições de possibilidade que fundam a ciência histórica moderna.

Contudo, se o caráter distópico da moderna historiografia residia no método, hoje a distopia se autonomizou como imaginação histórica (o impacto dos sentidos da experiência da história sobre os modos de pensar) e consciência historiográfica (os artefatos e técnicas usados para conferir forma a uma narrativa). Nesse cenário, portanto, seria possível afirmar que assim como a utopia estava para a modernidade, a distopia está para a pós-modernidade. A história utópica, que transcorre sobre a racionalidade moderna, seria uma tentativa arbitrária de produzir sentido as metanarrativas do progresso e disciplinar o passado em um único regime de verdade. No sentido que submete o passado ao controle único do historiador sob as premissas de um regime de cientificidade de pretensão realista. O autor observa que a noção de objetividade do projeto historiográfico ocidental, caracteriza esse desejo da narrativa histórica em conhecer o passado como ele realmente foi ou de reconstruí-lo o mais fielmente possível através de modelos (métodos) científicos. A diferença decisiva entre uma história utópica e uma história distópica seria então que a natureza distópica da história de algum modo acaba por abalar não somente o mito fundador do passado, como o próprio mito de fundação científica da história na modernidade, porque se patenteia a existência de tantos passados quanto as obras de histórias serão capazes de produzir” (BENTIVOGLIO, 2019, p. 30).

Num panorama geral, o pequeno livro oferece uma densidade admirável. A quem interessar a leitura, encontrará um percurso de investigação que passa pelas raízes da literatura distópica; pela formação da ciência histórica no século XIX; pela crise de representação e o esgotamento das filosofias especulativas da história (o já conhecido debate sobre o fim da história). Tal caminho, que ao primeiro olhar pode parecer desconexo, é uma tentativa bem-sucedida de ilustrar que há sobre a historiografia, uma incidência de outro tipo de imaginação histórica, que se distancia do conceito moderno de história. Alguns aspectos dessa distinção podem ser abordados pela passagem do passado lugar ao passado deslugar; do regime de cientificidade ao narrativismo; da verdade absoluta aos confrontos de sentido sobre o passado; do modernismo ao pós-modernismo; do futuro aos passados-presentes; do otimismo ao ceticismo; enfim, da utopia à distopia.

O trabalho em questão também é importante pois se torna uma base teórica imprescindível para que a historiografia possa alcançar novos objetos de pesquisa. O objeto não deve ser apenas aquilo que esgotamos em análises exaustivas, como se fosse algo cristalizado no tempo e no espaço; uma historiografia que tem a distopia como parte fundamental de sua prática deve transformar o objeto naquilo que nos leva ao caminho do pensamento, da reflexão filosófica sobre nossas bases epistemológicas, e que principalmente, propõe questões ao tempo presente. Tais objetos não-convencionais fazem parte desse movimento de produzir a partir do estranhamento, de enxergar soluções a partir da catástrofe que se aproxima. É pensar o mundo contemporâneo de um lugar, ao mesmo tempo, perigoso e privilegiado. Somente assim, enxergando o passado a partir de outras perspectivas, poderemos conferir espessura a um presente fraturado e pensar sobre o que o futuro poderá vir a ser.

O livro de Júlio Bentivoglio, reforça que a distopia deve ser encarada como uma noção organizadora dos fenômenos do tempo presente. Não podemos mais acusa-la de extrapolar os limites da ficção e do real. É justamente essa preponderância em trazer à tona o absurdo, que constitui seu lugar como um potente meio de crítica ou de reflexão em relação ao nosso presente. Trata-se de questionar o real, tensionar o cotidiano e as relações socias já estabelecidas. Esse incomodo que é provocado pela agressividade da imaginação distópica deve assumir-se como um despertar para a historicidade que atravessa, dentre outras dimensões, o saber histórico. Perceber a relevância de elementos da vida contemporânea como a tecnologia, a vigilância, e a catástrofe, é interrogar, mas sobretudo, encarar os sentidos que compõem a experiência da história hoje.

Por fim, fica o convite à leitura desse livro que se torna uma referência de maior grandeza para aqueles interessados, principalmente, nos estudos em Teoria da História. Para além de sua amplitude argumentativa, o livro cumpre um papel importante na afirmação do protagonismo brasileiro como importante centro de pesquisa e reflexão teórica sobre a historiografia. Nele o leitor poderá encontrar as discussões mais atuais das pesquisas na área, juntamente com uma originalidade teórica, que confere ao texto aquilo que alguns historiadores ainda não entenderam muito bem: teorizar não é se limitar a comentar teorias alheias, mas sim traçar um diálogo sólido com a tradição e arriscar novas propostas e conceitos que movimentem a historiografia de seu lugar-comum.

Referências

HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

HUYSSEN, Andreas. Culturas do passado-presente: modernismos, artes visuais, políticas de memória. Rio de Janeiro: Contraponto; Museu de Arte do Rio, 2014.

WHITE, Hayden. Meta-história. São Paulo: Edusp, 2002.

Notas

1. Podemos citar teóricos da história como Ewa Domanska, Berber Bevernage, Sanjay Seth, Dipesh Chakrabarty, Ethan Kleinberg, Ivan Jablonka, Zoltán Simon, entre outros. No Brasil destaca-se a organização de pesquisadores em torno da Sociedade Brasileira de Teoria e História da Historiografia (SBTHH), algo que tem promovido um avanço qualitativo nas pesquisas da área. Além do trabalho de Bentivoglio, devemos destacar as recentes pesquisas de Valdei Araujo e Mateus Pereira sobre o atualismo, e o importante livro A história (in)disciplinada, organizado por Arthur Ávila, Rodrigo Turin e Fernando Nicolazzi.

2. O gráfico pode ser visualizado neste link. Acesso em: 18/06/2020.

3. Podemos citar como exemplo dois movimentos principais que percorrem a filosofia do século XX, são eles: o pós-estruturalismo e o esclarecimento da Escola de Frankfurt.

4. Simultânea a escrita desta resenha, foi lançada a série de entrevistas Crise & Historicidade – uma iniciativa de LETHIS-UFES e do NIET-UFMG, em parceria com a HH Magazine: humanidades em rede – que tem como segundo episódio uma entrevista do professor Júlio Bentivoglio sobre a relação entre história, distopia, e crise. Ela está dividida em duas partes, as quais podem ser acessadas através dos seguintes links:

Episódio 02, Parte 01: https://www.youtube.com/watch?v=AzKFECirBIk

Episódio 02, Parte 02: https://www.youtube.com/watch?v=dGG-5ufAUs0

Ricardo Mateus Thomaz de Aquino – Graduando em História pelo Instituto de Ciências Humanas e Sociais (ICHS) da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Tem interesse nas áreas de Teoria da História, História da Historiografia e História Intelectual. Atua como bolsista voluntário no projeto de extensão HH Magazine: humanidades em rede, história pública democrática.

História e Ficção em Paul Ricoeur e Tucídides | Martinho T. M. Soares

Em sua tese de doutoramento na Universidade de Coimbra, Portugal, Martinho Soares aborda uma lacuna relevante na história da teoria contemporânea da historiografia: o papel do paradigma historiográfico de Tucídides nas reflexões do filósofo Paul Ricoeur; o primeiro uma referência clássica que resiste pertinente e atual há milênios, o segundo talvez quem melhor sintetizou a polêmica sobre a relação entre histórica e ficção ao longo do séc. XX. O objetivo é em si problemático: Soares está ciente que Ricoeur cita Tucídides apenas em notas, não dedica nem uma página para análise específica de sua obra, e não apresenta indícios de conhece-la a fundo, para além de alguns de seus comentaristas modernos mais ilustres (SOARES, 2014, p.23). No entanto, Tucídides é um marco inaugural, exercendo inegável influência em intelectuais com quem Ricoeur dialoga, principalmente historiadores e teóricos modernos que o viam como paradigma de historiografia antiga. Se o filósofo moderno foi a pedra angular nos intensos debates do séc. XX sobre história e ficção, os estudos sobre a fortuna crítica da obra História da Guerra do Peloponeso extrapolam o próprio ambiente acadêmico, como demonstram os constantes apelos às lições tucideanas em situações geopolíticas contemporâneas2. Para cumprir tal tarefa Soares divide seu livro em duas partes: a primeira, mais longa, dedica-se exclusivamente à Ricoeur; a segunda aborda Tucídides, mas seguindo uma estrutura organizacional estabelecida com base na leitura da obra ricoeuriana.

A primeira parte é a própria sistematização da contribuição do filósofo francês que, nas palavras de Soares (2014, p.18), serviu de “pretexto para uma compilação, inédita em Portugal, de teorias (e pensadores), ora complementares ora antagônicos, sobre história e ficção”. Em quatro capítulos, Soares refaz o longo percurso da contribuição ricoeuriana: começa em Histoire et Vérité (1964) no capítulo I, passando pelos três volumes de Temps et Récit (1983- 1985) nos capítulo II e III, e finalmente se concatena em La mémoire, l’histoire, l’oubli (2000) no último capítulo desta primeira parte do livro de Soares.

No capítulo I são abordadas as primeiras reflexões de Ricoeur sobre objetividade e subjetividade na interpretação histórica, que desembocam no capítulo II sobre a dialética entre explicação e compreensão histórica. Este segundo capítulo refaz o percurso duplo de Ricoeur que perpassa, de um lado, o eclipse da narrativa histórica, o qual envolve tanto a historiografia francesa dos Annales quanto o modelo nomológico de língua inglesa; e de outro lado, as teses narrativistas que, oriundas da filosofia analítica e da crítica literária, focam no papel da narrativa na historiografia, cujos nomes mais conhecidos são Hayden White e Paul Veyne.

A concepção narrativista, que pode ser simplificada na máxima “narrar já é explicar”, torna opaca a fronteira entre história e ficção, o que certamente serve de gatilho para a maior parte das reflexões de Paul Ricoeur. Contra ambas tendências – rejeitar a narrativa histórica em prol de seu caráter científico ou ofuscar seu caráter veritativo por conta da sua dimensão narrativa – Ricoeur interpôs sua dialética sobre o papel da compreensão narrativa à explicação histórica, restaurando a função da ficção na configuração narrativa histórica. O saber histórico procede da compreensão narrativa, resguardando seu caráter investigativo alicerçado na interpretação dos traços do passado, prática na qual a intenção do historiador não deixa de ter sua marca subjetiva, sem negar seu caráter epistêmico (SOARES, 2014, p.53, 76). Assim, Soares revisita as teses de Ricoeur de forma a sedimentar os instrumentos de análise com o qual abordará a obra tucideana.

Se a história precisa de narrativa para ser compreendida, a última não deixa de definirse pela sua relação com o tempo. O capítulo III de Soares concentra-se no itinerário de Ricoeur sobre o tempo desde a dimensão fenomenológica (tempo vivido) até histórica (tempo histórico e narrado). Soares sintetiza ideias já conhecidas de Ricoeur sobre a distentio animi de Agostinho de Hipona, a teoria das três mimeses e as abordagens da ficção do século XX sobre as aporias do tempo vivido, de forma a desembocar no axioma de que o tempo se torna humano na medida em que é articulado de modo narrativo. Deste longo percurso, Soares retém a narrativa enquanto tríplice mimese da prefiguração ética, configuração narrativa e refiguração receptiva (ou leitura). Tal tríplice noção de narrativa organiza a leitura que Soares faz da História da Guerra do Peloponeso na segunda parte da obra. Na fase final da vida intelectual de Ricoeur, o prestígio da narrativa havia se restabelecido na historiografia francesa, devido a fatores que vão do ressurgimento da história política, e perpassa a micro-história e principalmente a predominância do conceito de representação histórica. Daí que Soares concentre-se no capítulo IV sobre os conceitos de representação e representância, especialmente se a narrativa histórica e seu encadeamento do tempo resolve (ou não) as aporias da representação mnemônica enquanto presença do ausente. A questão envolve debates éticos intensos sobre a possibilidade de representação do holocausto judeu e o risco do fortalecimento do negacionismo histórico, com as teses narrativistas que ofuscam a fronteira entre histórica e ficção. Até aqui, pode-se parabenizar a leitura industriosa que Soares faz de Paul Ricoeur, mas não sem notar o longo percurso percorrido até finalmente concatenar tais reflexões com o texto tucideano.

A segunda parte volta-se para Tucídides em dois capítulos. O primeiro se preocupa com a noção de história e verdade na obra, revisitando discussões já consagradas sobre a noção de “ktema es aei” (tesouro para sempre) e sobre o procedimento de composição dos discursos na História da Guerra do Peloponeso. O segundo capítulo se desdobra na aplicação dos três estádios ricoeurianos da operação historiográfica na obra: a fase documental (prefiguração compreendida como testemunhos, indícios e prova documental), a fase narrativa, (explicaçãocompreensão e configuração narrativa), e a fase da refiguração ou leitura, que concentra-se nas estratégias retórico-persuasivos e seus efeitos de “fazer ver” (SOARES, 2014, p.405-406). Em contraste com Heródoto, Tucídides é lacônico e reticente ao expor suas fontes e procedimentos de investigação, logo Soares admite e enfatiza as dificuldades em abordar a metodologia histórica da obra, bem como sua inadequação para os parâmetros modernos (2014, p.502-504, 545-549). A leitura de Soares, portanto, desenvolve-se melhor quando aborda as estratégias persuasivas do autor ateniense, de forma a encontrar nelas ecos das teses de Ricoeur.

O estudo é industrioso e pertinente, mas desmembrar a análise em duas partes acaba por ser simultaneamente uma qualidade e um defeito da pesquisa. Sua exposição sobre Ricoeur revela excelência e domínio das discussões, por outro lado, alonga-se demasiadamente divorciada do seu segundo objeto de pesquisa. Isto significa que não teremos notícias de Tucídides pelas 360 páginas e 4 capítulos que compõem a primeira parte da obra. Da segunda parte, somente o segundo capítulo propõe interpelação direta entre Ricoeur e Tucídides, ou seja, de um volume de 600 páginas o leitor pode esperar tal confronto apenas na última centena, e ainda assim de forma tímida, ao que se segue uma conclusão extremamente sucinta.

No entanto, as sendas abertas pela pesquisa de Soares são profícuas, por exemplo, na abordagem do método de composição de discursos de Tucídides (I. 22.1-2) à luz das teses ricoeurianas. Desde Heródoto a dramatização (no sentido de “representação da ação”) de discursos e debates oratórios são conectores de acontecimentos que conferem sentido a estes tanto progressivamente (antecipam fatos ainda não narrados) como regressivamente (julgam e explicam fatos já narrados), assim o historiador revela ao leitor as disposições dos agentes históricos frente a uma ação inacabada, bem como expectativas frustradas ou não pelos acontecimentos desenrolados (SOARES, 2014, p.454-455). Ainda que construção subjetiva, os discursos ligam-se à interpretação dos acontecimentos, na medida em que funcionam como narração-explicação do sucesso ou insucesso das ações (SOARES, 2014, p.479). Tucídides na sua escrita não procura a descrição asséptica de acontecimentos, mas enreda-os narrativamente. Tal procedimento revela ressonância evidente com a tríplice mimese ricoeriana, na medida em que exige do historiador uma prefiguração ética na avaliação e seleção das fontes e traços do passado, bem como uma configuração narrativa na forma de ação (discurso e acontecimento), e por fim, subscreve a intenção deste em elementos persuasivos que visam alcançar a refiguração do leitor capaz de reconhecer o que foi ali prefigurado e configurado.

Soares desdobra-se com competência na apresentação destas questões, no entanto, lidar simultaneamente com a tradição milenar da hermenêutica tucideana e a profundidade das discussões de Ricoeur é, de fato, muito trabalhoso, e a pertinência destas fontes acaba por ofuscar a marca autoral de Soares. O diálogo entre duas referências fundamentais para a historiografia, no qual consiste a originalidade da obra, acaba ficando frágil na separação rígida das duas partes do livro.

Soares ressalta especialmente o papel da narrativa como uma forma da história “cativar o público”, “se dar a ler” (2014, p.30), em suma, “uma forma estilizada de apresentar a verdade”, sendo esta a “tese maior” que pretende expor (2014, p.483), e defende enfaticamente a fronteira entre história e ficção, e talvez por isso privilegia a função ornamental e persuasiva da narrativa. Afirmar isto parece subestimar o papel da narrativa na configuração do tempo histórico: as reflexões de Ricoeur e a metodologia de Tucídides apontam que a ficcionalização dos fatos está para além da persuasão e do elemento imagético (ou cor local) da história: ela é a forma privilegiada de expressar o pensamento e a compreensão do historiador sobre as ações humanas no tempo, resolvendo poeticamente o embaraço da distentio animi agostiniana e a própria noção aristotélica de história enquanto narrativa episódica, sem vínculo com o provável e o necessário. Sua discussão do confronto entre a Poética aristotélica com a obra de Tucídides (2014: p.552-565) faz excelente balanço bibliográfico da questão, mas não responde se Tucídides almejava configurar um tempo histórico nos moldes ricoeurianos a partir das suas generalizações, ou se ele de fato tentava se aproximar do cronista imaginado por Aristóteles que narra indiscriminadamente o que “Alcibíades fez ou sofreu”. Soares opta por descrever Tucídides como parte poeta e parte historiador (2014, p.561-565), e por fazer eco às teses que Aristóteles não reconhecia nele um historiador, mas sim um pensador político (2014, p.552- 558).

Esta indefinição, no entanto, tem implicações. Por exemplo, Soares afirma, com base em A. W. Gomme (1954), que os contrastes dramáticos de Tucídides residem nos próprios acontecimentos que “se sucedem no tempo, sem nada de relevante entre eles” (SOARES, 2014, p.492), o que faz parecer que o historiador apenas revela os acontecimentos sem precisar configurá-los narrativamente. Isto deixa em segundo plano a configuração narrativa que Ricoeur extrai da Poética de Aristóteles (“um por causa do outro” ao invés de “um depois do outro”) e faz parecer que Tucídides seguia uma sucessão natural dos eventos, e nãos os compôs e enredou numa síntese do heterogêneo. Tucídides poderia ter apresentado outros eventos menores entre a sucessão, poderia ter-se dado às digressões tipicamente herodoteanas, mas é na disposição das ações que reside o efeito dramático alcançado, que não se pode atribuir aos próprios acontecimentos sem subestimar o papel da configuração narrativa, que Soares claramente não ignora de todo, mas ao longo do texto dá mais ênfase ao seu papel ornamental e persuasivo, especialmente na sua discussão sobre o “fazer ver” o passado, sua exposição sobre os conceitos de enargeia e ekphrasis (2014, p.582-595).

Em conclusão, Soares faz justíssima representação das teses ricoeurianas e das principais discussões em torno da obra de Tucídides, mas na hora de enredá-las em conjunto na sua própria configuração narrativa, oferece ao leitor uma interpretação que, por vezes, subestima a complexidade da configuração narrativa histórica enquanto síntese do heterogêneo e ordenador do tempo humano e histórico, ao menos no que diz respeito na sua interpelação das teses ricoerianas com o texto tucideano. Esta característica não apaga o brilho das conquistas de Soares, pois o leitor da sua obra pode esperar excelente abordagem da contribuição de Ricoeur sobre história e ficção, bem como uma expedição competente aos debates em torno da obra tucideana, cuja sombra projetou-se desde as teorias positivistas e metódicas da história do séc. XIX até as teses narrativistas que agitaram o debate historiográfico no séc. XX.

Nota

2. Para um estudo de dois casos relevantes nos quais o paradigma tucidideano foi invocado em contextos geopolíticos contemporâneos ver PIRES, Francisco Murari. “O General Marshall em Princeton, Tucídides na Guerra Fria”. História da Historiografia n. 2, 2009, pp. 101-115.

Referências

GOMME, A. W. The Greek atitude to poetry and history. Berkeley: University of California Press: 1954

RICOEUR, Paul. Histoire et Vérité. Paris: Seuil, 1964 (2003).

______. Temps et Récit – Tome I. Paris: Seuil, 1983 (2005).

______. Temps et Récit – Tome II. Paris: Seuil, 1984 (2005).

______. Temps et Récit – Tome III. Paris: Seuil, 1985 (2005).

______. La mémoire, l’histoire, l’oubli. Paris, Seuil, 2009.

SOARES, Martinho T. M. História e Ficção em Paul Ricoeur e Tucídides. Fundação Eng. António de Almeida: Porto, 2014, 638 pp.

Denis Renan Correa – Professor Adjunto II na área de História Antiga e Medieval na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e estudante de doutoramento da Universidade de Coimbra.


SOARES, Martinho T. M. História e Ficção em Paul Ricoeur e Tucídides. Porto: Fundação Eng. António de Almeida, 2014. Resenha de: CORREA, Denis Renan. História e Ficção em Paul Ricoeur e Tucídides por Martinho Soares. Aedos. Porto Alegre, v.11, n.24, p.388-393, ago., 2019.Acessar publicação original [DR]

Historisierung der Historik. Jörn Rüsen zum 80 – SANDKÜHLER; BLANKE (ZG)

SANDKÜHLER, Thomas; BLANKE, Horst Walter (eds.). Historisierung der Historik. Jörn Rüsen zum 80. Geburtstag, Wien ; Köln ; Weimar : Böhlau , 2018. WAGNER, Helen. Zeitschrift für Geschichtsdidaktik, Berlin, v.18, p. 214-218, 2019.

Acesso somente pelo link original

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Geschichte im Internet – DANKER; SCHWABE (ZG)

DANKER, Uwe; SCHWABE, Astrid. Geschichte im Internet. Stuttgart : Verlag W. Kohlhammer, 2017. Resenha de: HODEL, Jan. Zeitschrift für Geschichtsdidaktik, Berlin, v.18, p. 201-202, 2019.

Acesso somente pelo link original

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Historicidade e objetividade – DASTON (HU)

DASTON, L. Historicidade e objetividade. Tradução: Derley Menezes Alves e Francine Iegelski (org. Tiago Santos Almeida). São Paulo: LiberArs, 2017. 143 p. Resenha de: SOUSA, Raylane Marques. Por uma história dos ideais e práticas da objetividade científica. História Unisinos 22(4):702-707, Novembro/Dezembro 2018.

A coletânea de artigos intitulada Historicidade e objetividade, de Lorraine Daston, historiadora das ciências e diretora do Instituto Max-Planck de História das Ciências de Berlim, publicada no segundo semestre de 2017 e correspondente ao primeiro lançamento da “Coleção Epistemologia Histórica”, da Editora LiberArs, constitui-se num desafio de historicização das ciências e num projeto de epistemologia eminentemente histórica. O livro em tela congrega um prefácio, uma apresentação e sete artigos e persegue o propósito que desvelaremos a seguir.

No prefácio, Lorraine Daston anuncia-nos a proposta da obra 1. A autora esclarece-nos que os artigos, com a ressalva de um, enquadram-se numa perspectiva de historicização das ciências e num programa de “epistemologia histórica”.  Se a intenção de Daston é construir um programa de epistemologia histórica, isto é, “a história das categorias e práticas que são tão fundamentais para as ciências humanas e naturais que parecem muito autoevidentes para ter uma história” (p. 9-10), o itinerário argumentativo que ela desenha nas sete investigações em pauta revela-o de forma coerente e original, uma vez que o objetivo embrionário da coleção desses artigos, tendo em conta o excelente esteio bibliográfico em que se sustentam, é justamente mostrar que a objetividade nas ciências, a atividade de observação, a elaboração de um fato científico e as formas de quantificação têm uma história e pensar sobre as especificidades dessa história nos leva “a repensar a história de como sabemos o que sabemos” (p. 10).

Na apresentação, intitulada “História das Ciências, Teoria da História e História Intelectual”, Tiago Almeida e Francine Iegelski (2017) apontam-nos os motivos que os levaram à tradução, à organização e à publicação de Historicidade e objetividade. Os autores esclarecem-nos que a execução desse projeto tem dois objetivos: o primeiro é de colocar o público brasileiro em contato com os debates mais fecundos da historiografia das ciências; e o segundo é de discutir o já consolidado “programa historiográfico” ou a “epistemologia histórica” de Lorraine Daston para a história das ciências. Os autores evidenciam igualmente que o programa ou a epistemologia histórica de Lorraine Daston se distingue dos programas historiográficos anteriores e contemporâneos porque foi capaz de incorporar as contribuições e se desviar dos defeitos das três principais escolas da história das Nas relações que estabeleciam entre o conhecimento e seus objetos, a primeira escola tinha o defeito de ser idealista, a segunda de ser estruturante, e a terceira de se aprisionar ao particular. Desse modo, como frisam os autores, em seu programa ou epistemologia histórica, Daston recusa a ideia, bem acolhida e propagandeada por essas escolas, segundo a qual “historicizar equivaleria a relativizar ou, o que é pior, invalidar” (p. 12), ao mesmo tempo em que recupera o método de comparação entre as ciências, apesar de suas diferentes especialidades. De acordo ainda com os autores, a originalidade da abordagem de Daston para a história das ciências reside no fato de ser um projeto de trabalho conciliador, favorável à reunião de pesquisadores de diversas áreas, dedicado ao estudo de categorias, conceitos, ideias, objetos e práticas basilares da ciência moderna. Além disso, a apresentação retrata que certo número de pesquisadores chegou ao campo da História das Ciências via Teoria e Metodologia da História e História das Ideias e Intelectual, e vice-versa. Tanto o campo da História das Ciências quanto os campos da Teoria e Metodologia da História e História das Ideias e Intelectual se interessam pela historicidade das ciências, pelas relações entre conceitos, ideias, discursos, textos e contextos, e pelas temporalidades e escritas da história. Assim, o fascínio por esses temas acabou por aproximar essas áreas de conhecimento e por favorecer o contato dos historiadores da história com os historiadores da ciência, além de familiarizar os primeiros com os trabalhos de Daston, principalmente aqueles textos que versam sobre a objetividade e seus significados e múltiplas formas de manifestação.

No artigo 1 da obra Historicidade e objetividade, intitulado “Objetividade e fuga da perspectiva”, Daston esforça-se por traçar uma história não linear e contingente da objetividade científica, história essa que vai do fim do século XVIII ao início do século XIX3. O texto inicia com uma explanação concernente aos múltiplos sentidos da palavra objetividade e suas variantes nos idiomas francês (objectivité) e alemão (Objektivität). Nessas duas línguas, a autora explica que a palavra é confusa e refere-se a um só tempo à metafísica, aos métodos e à moral. A primeira referência diz respeito à busca dos cientistas por uma verdade objetiva no conhecimento, a segunda diz respeito aos procedimentos objetivos que sustentam toda pesquisa científica, e a terceira diz respeito à conduta objetiva, imparcial e desapaixonada do investigador. Daston assinala, na continuação do debate do texto 1, que os pesquisadores dos Science Studies têm se interessado bastante pelo conceito de objetividade na atualidade, mas eles continuam focando nos problemas de existência e legitimidade, em vez de problemas históricos. De maneira efetiva, como a autora argumenta, a objetividade tem uma história, e um dos episódios que lhe permite falar de tal história é a emergência, no século XIX, do que ela chama de ideal de “objetividade aperspectivística”, isto é, a tentativa de eliminação de características individuais do conhecimento científico. Assim, é no esforço de compreender o ideal de objetividade aperspectivística que a autora tece uma história crítica desse conceito no primeiro texto. Lorraine Daston sugere também que é possível visualizar o desenvolvimento desse conceito na literatura estética e moral do século XVIII, como no caso dos autores Shaftesbury, Hume e Adam Smith. A autora nos diz que as discussões a respeito da “perspectiva” no século XVIII e XIX procuram a supressão e o distanciamento emocional do indivíduo e colocam afirmações morais e estéticas em lado oposto às afirmações científicas, a exemplo dos pensadores mencionados. Seguindo o seu raciocínio, a autora também procura investigar a situação do conceito nas ciências naturais, opondo as tentativas dos homens de ciência do século XIX de sacrificar os traços pessoais a práticas precedentes. A autora esclarece que as investidas desses homens de ciência de supressão de traços individuais eram como que uma precondição para a criação de uma comunidade científica justa, harmoniosa e coerente, assim como uma garantia de alcançar a verdade científica.

Finalmente, a autora conclui o texto 1 com uma breve reflexão sobre como e por que a história do conceito de objetividade aperspectivística ganhou uma camada moral. Segundo a autora, a objetividade aperspectivística prescrevia certa indiferença e desapego por tudo o que é pessoal. Os cientistas deveriam não apenas abandonar tudo o que lhes é próprio, mas também esquecer todo e qualquer reconhecimento de si mesmos. Ademais, os valores da objetividade aperspectivística contribuíram para que os cientistas pautassem a sua conduta em métodos mecânicos e observações morais. A par dessas informações, o primeiro artigo do livro diz-nos que a objetividade que Lorraine Daston nos apresenta como tendo uma história tem como base as seguintes críticas: em primeiro lugar, a objetividade nas ciências não é um “dado trans-histórico” (p. 16) e que busca “a estrutura última da realidade” (p. 17); e, em segundo lugar, a objetividade não é mecânica e que visa suprimir “a propensão universal humana de julgar e estetizar” (p. 17).

O artigo 2 da obra Historicidade e objetividade, intitulado “A economia moral da ciência”, procura avaliar e desbancar uma antiga tradição que opõe fatos a valores. A espinha dorsal do presente texto é a ideia de que a ciência tem o que Lorraine Daston chama de “economia moral” e esta economia moral constitui o modo de conhecimento científico. Mais especificamente, a autora assevera que a ciência tem “certas formas de empirismo, quantificação e objetividade que não apenas são compatíveis com economias morais, elas exigem economias morais” (p. 38).

Segundo Daston, muito embora a ciência seja um exemplo de racionalidade e facticidade, ela não está isenta de afetos e emoções, valores, ideologias, normas e regularidades institucionais. Consoante a autora, “economias morais, ao contrário, são partes integrais da ciência: de suas fontes de inspiração, suas escolhas de temas e procedimentos, a peneira da evidência e seus padrões de explicação” (p. 42).

Embora as economias morais existam na ciência, para que elas servem e como elas estruturam as ideias-força de como os cientistas vêm a conhecer? Acerca dessas questões, Daston explica que uma economia moral é boa para a quantificação, o empirismo e a própria objetividade. As várias formas de quantificação têm economias morais. Os historiadores da ciência quantificam cientificamente, mas nem todos aspiram à exatidão matemática de suas mensurações, embora a precisão seja uma das virtudes mais observadas e louvadas entre eles. O empirismo também é um elemento fecundo em economias morais. Os três principais aspectos do empirismo da filosofia natural do século XVII, o testemunho, a facticidade e a novidade, apoiam-se e entrelaçam-se em valores e afetos. A objetividade, entretanto, é já uma economia moral. De acordo com Daston, duas de suas variantes mais importantes, ambas oriundas do século XIX, são: a “objetividade mecânica” e a “objetividade aperspectivística” (p. 59). A objetividade mecânica fundamenta-se em uma epistemologia da autenticidade e exige a eliminação de qualquer interferência pessoal no conjunto de observações da natureza. Já a objetividade aperspectivística assenta-se no lema “a visão a partir de lugar nenhum” de Thomas Nagel e combate as idiossincrasias de indivíduos e até de coletivos de pesquisadores em prol da verdade científica. Portanto, o elemento fundamental da discussão de Daston sobre as economias morais do conhecimento científico baseia-se na ideia de que o núcleo da ciência é moral e ressoa a voz do dever moral.

No artigo 3 da obra Historicidade e objetividade, intitulado “Uma história da objetividade”, Daston começa pontuando aspectos das três escolas que dominaram a história das ciências, a saber: a escola filosófica, a escola sociológica e a escola histórica. A escola filosófica é idealista e pensa a história das ciências como “a história da emergência e desaparecimento dos conceitos de natureza, dos sistemas metafísicos e dos quadros epistemológicos” (p. 69). Os historiadores filósofos da ciência associados a essa forma de pensar direcionam sua atenção para as teorias científicas e para a interlocução dessas teorias com outras áreas do conhecimento, como a filosofia e a teologia.

A escola sociológica concentra seu olhar sobre as estruturas sociais (tanto as microscópicas quanto as macroscópicas) da pesquisa científica. Os historiadores sociólogos da ciência que compartilham dessa tendência enxergam a ciência como uma instituição importante inserida na sociedade e que espelha a divisão dos poderes e a produção dos significados culturais. Já a escola histórica foca no local e no singular, aspectos que as outras duas escolas deixaram de lado. Os historiadores aliados a essa forma de pensar a ciência primam não apenas pelas teorias, mas também pelas práticas científicas e pelo trabalho nos arquivos. Outro aspecto basilar desse texto 3 é a apresentação do novo programa de Daston para a história das ciências. A autora finalmente explica o que entende por “epistemologia histórica” (Historical Epistemology): “a história das categorias que estruturam o nosso pensamento, que modelam nossa concepção da argumentação e da prova, que organizam nossas práticas, que validam nossas formas de explicação e que dotam cada uma dessas atividades de um significado simbólico e de valor efetivo” (p. 71). A singularidade da epistemologia histórica de Daston é que ela se relaciona à história das ideias, das práticas, dos afetos e emoções, dos valores e significados que organizam as economias morais das ciências. Daston estabelece novas perguntas para velhas questões. É principalmente nesse aspecto que a abordagem da autora se diferencia das demais que ordinariamente tomam a objetividade científica como desprovida de história.

No artigo 4 da obra Historicidade e Objetividade, intitulado “O que pode ser um objeto científico? Reflexões sobre monstros e meteoros”, Daston explica o que é e o que pode se tornar um objeto de pesquisa científica. A resposta da autora para esse questionamento é uma crítica construída com base na afirmação de Aristóteles de que as ciências se fazem a partir de regularidades: “daquilo que é sempre ou pelo maior período de tempo” (p. 79). Para Daston, porém, somente a regularidade não é suficiente para destacar um item do cotidiano ordinário e torná-lo objeto de investigação científica. É necessário ir além e observar “se uma classe de fenômenos é quantificável, manipulável, bela, experimentalmente repetível, universal, útil, publicamente observável, explicável, previsível, culturalmente significativa ou metafisicamente fundamental” (p. 79). Segundo Daston, esses critérios se justapõem e demonstram que a escolha dos objetos científicos vai além do simples critério de regularidade. Assim, um estudo sério do que é e do que não é objeto para a ciência deve levar em consideração esses critérios e como eles se sobrepõem à experiência normal do cotidiano e destacam alguns fenômenos como objeto de investigação e outros não. O objetivo de Daston nesse texto 4 é exatamente examinar, por meio de exemplos históricos, como e por que os objetos da filosofia preternatural se tornaram objetos de investigação da ciência em meados do século XVI e foram esquecidos no século XVIII. Segundo a autora, os objetos da categoria preternatural/além da natureza (sintetizados em dois grupos, monstros e meteoros) continuaram a existir nesse período, mas não despertaram mais interesse dos cientistas, porque os três princípios (ontológico, epistemológico e sensitivo) que mantinham tal categoria unida e em evidência foram desvelados. Daston defende que os objetos preternaturais foram escolhidos, em primeiro lugar, pelo princípio ontológico, que significa coisas e eventos fora da ordem cotidiana da natureza. Em segundo lugar, eles foram escolhidos pelo princípio epistemológico, que exige um trabalho mais pesado de coleta, explicação e fundamentação.

Em terceiro lugar, eles foram escolhidos pelo princípio da sensibilidade, que dá conta das maravilhas e, até mesmo, dos milagres e prodígios. De acordo com a autora, no entanto, a filosofia preternatural não teve morte espontânea. Os três princípios que a fundamentavam foram incorporados pela filosofia natural do final do século XVII e início do século XVIII. Além disso, a emergência de uma nova metafísica e uma nova sensibilidade dissolveu sua lógica, embora sem eliminar seus componentes, tornando-a irrelevante para os estudos científicos.

No artigo 5 da obra Historicidade e objetividade, intitulado “Sobre a observação científica”, Daston apresenta-nos a observação científica como um gênero epistêmico dotado de historicidade. A autora explica-nos que a observação é a prática científica basilar das ciências humanas e naturais. Embora tal prática não desperte o interesse das ciências enquanto objeto de investigação, alguns filósofos e positivistas lógicos se dedicaram a examiná-la no século XX, mais precisamente com intuito de fortalecer “a visão científica da observação como primitiva e passiva” (p. 91). Já os críticos da postura adotada por tais filósofos e positivistas lógicos defendiam a ideia de que as observações eram inevitavelmente entremeadas de juízos de valor e, por isso, não poderiam oferecer um julgamento imparcial quando entrassem em conflito. Segundo a autora, nas duas situações, a preocupação dos filósofos da ciência era epistemológica e estava assentada na filosofia de Kant, a saber: “haveria ou não haveria algo como uma observação científica não contaminada pela teoria?” (p. 91). No fundo, a preocupação desses filósofos era como higienizar a observação, evitando que ela fantasiasse e distorcesse os dados objetivos. Nesse texto 5, o objetivo de Daston é discutir as bases ontológicas da observação científica especializada, especialmente como esta reconhece e seleciona objetos para uma comunidade de cientistas.

Com efeito, como nos diz a autora, esta discussão ocupa algum espaço “entre epistemologia (que estuda como observadores científicos adquirem conhecimento acerca dos objetos por eles escolhidos) e metafísica (que investiga a realidade última das entidades observadas)” (p. 92). Assim, na perspectiva de Daston, a ontologia é algo como os cientistas preenchem o universo com percepções, retirando objetos do cotidiano comum, classificando-os e tornando-os objetos de investigação científica, e traduzindo- os em formas (textos-imagens-tabelas) ou numa linguagem popular a um coletivo ou a uma comunidade. De acordo com a autora, uma tentativa de historicização da observação científica pode ajudar a trazer à superfície práticas científicas tomadas até então como a-históricas e autoevidentes e conectar a história das ciências à história das sensibilidades e do eu, como também expandir o espaço das experiências científicas. Nesse sentido, o que constitui o mote desse texto 5 é a ideia que assim pode ser sintetizada: não existe ciência sem a prática da observação, e tampouco mundo articulado visível, audível ou táctil.

O artigo 6 da obra Historicidade e objetividade, intitulado “Science Studies e História das Ciências”, constitui-se como um desvio nessa coletânea, como afirma Lorraine Daston no Prefácio. Esse capítulo não explora episódios históricos, mas a situação de aproximação e estranhamento entre duas disciplinas que abordam o mesmo tema, neste caso, “ciência e tecnologia” (p. 109). O objetivo de Daston, nesse texto, é rastrear a situação de interdisciplinaridade e intercâmbio entre os Science Studies e a História das Ciências, bem como o presente e o futuro de ambos os campos. Assim, o texto divide-se em duas partes. A primeira parte traz um curto relato das conexões entre Science Studies e História das Ciências desde 1970. A segunda parte examina como seus caminhos se separaram na década de 1990 à medida que a História das Ciências se aproximava da História e os Science Studies se afastavam. A partir do relato sucinto da conexão entre os dois campos, com foco nos Science Studies, Daston destaca que os objetivos deste último campo se sintetizavam em “humanizar a ciência tornando-a mais social (ou pelo menos sociável) ou domesticá-la, também tornando-a mais sociável (ou pelo menos sociológica)” (p. 111), e se afastar de tudo o que “cheirasse a psicologia” (p. 111). De acordo com a autora, esses objetivos se apoiavam em dois princípios: em primeiro lugar, “a ênfase nas instituições e estruturas, não nos indivíduos e ações” (p. 111); e, em segundo lugar, o destaque de que “o social se baseava fortemente nas estratégias marxistas desmistificadoras da ideologia” (p. 112). Esses dois princípios sugerem, segundo Daston, que os Science Studies seguiram correntes distintas de pensamento: Karl Marx e Émile Durkheim, mas também a sociologia do conhecimento de Karl Mannhein, a filosofia-sociologia de Fleck, entre outras. Mas o componente-chave que estabeleceu o afastamento entre os Science Studies e a História das Ciências foi a leitura da obra A estrutura das revoluções científicas, de Thomas S. Kuhn, lançada em 1962. Assim, enquanto os Science Studies interpretaram a obra de Kuhn como uma exposição do relativismo, os historiadores das ciências, em contrapartida, extraíram lições diferentes e mais próximas da argumentação de Kuhn, a saber, que a História das Ciências não poderia mais ser entendida como progresso constante em busca de um télos e uma verdade última, mas deveria afastar-se das narrativas teleológicas. O ponto de aproximação entre os dois campos seria a crítica a uma visão positivista da história, que se definia por um método mecânico e apartado do social.

A outra metade do artigo 6 é dedicada à exposição dos motivos que levaram ao distanciamento entre os Sciences Studies e a História das Ciências. A começar com o esclarecimento do que é ciência e de como estudá-la, essa segunda parte prolonga a discussão a respeito do estranhamento entre os dois campos. Segundo Daston, os Science Studies se recusavam a aceitar a doutrina científica atual e concebiam as ideias de verdade e falsidade das proposições como insuficientes para sua aceitação. Além disso, eles achavam que uma explicação para ser completa deveria levar em consideração aspectos sociais, políticos e cognitivos. O motivo do distanciamento dos Sciences Studies com relação à História das Ciências foi a transparência dos relatos dos cientistas. Por meio de uma discussão pormenorizada sobre como os historiadores da ciência viam a ciência atual, Daston evidencia que eles eram menos desconfiados no que diz respeito às verdades e às falsidades das proposições, embora fossem extremamente descrentes quanto às narrativas da ciência do passado em relação à ciência presente. De acordo com Daston, talvez o principal motivo que levou ao distanciamento dos Science Studies da História das Ciências na década de 1990 tenha sido o debate acerca da “contextualização da ciência”. Enquanto o primeiro campo levantava a bandeira da “ciência em contexto” e contribuía para o fim da autonomia da ciência no que concerne à sociedade, o segundo campo também hasteava essa bandeira, mas explorava de forma mais detida o contexto histórico e trabalhava para sua ampliação e aprofundamento, incorporando novos conceitos, categorias e práticas das ciências sociais e, principalmente, da história.

No artigo 7 da obra Historicidade e objetividade, intitulado “Objetividade e imparcialidade: virtudes epistêmicas nas humanidades”, encontramos a desmistificação das relações entre as humanidades e as ciências que, por mais de um século, foram marcadas pelas oposições “Geistes versus Naturwissenschaften, ideográficas versus nomotéticas, interpretativas versus exploratórias, orientadas para o passado versus orientadas para o futuro” (p. 127). De acordo com Daston, desde pelo menos o século XVI, as humanidades e as ciências compartilham “métodos, instituições, ideias e virtudes epistêmicas” (p. 127). Imparcialidade e objetividade são duas das virtudes epistêmicas amplamente compartilhadas no século XIX2. Começando com uma sentença lapidar do jovem Nietzsche em sua II Consideração extemporânea: “Objetividade e justiça não tem nada a ver uma com a outra” (Nietzsche, 2017, p. 90), Daston apresenta-nos a crítica que o filósofo fez aos valores da imparcialidade e da objetividade, assim como aos estabelecimentos de ensino de seu tempo que supervalorizaram tais virtudes epistêmicas e as trouxeram para as humanidades. Segundo a autora, quando a história se tornou uma ciência empírica no século XIX, esses valores entraram em concussão e Nietzsche foi quem melhor percebeu os choques. O objetivo de Daston, nesse texto, é mostrar que os valores da imparcialidade e objetividade têm histórias próprias e precisam ser problematizadas.

Assim, Daston faz um esboço dos objetivos da imparcialidade e da objetividade na história, evidenciando como a imparcialidade foi difundida e praticada por historiadores ao longo dos séculos XVIII e XIX, especialmente em favor de uma história dos estados-nação. A autora assinala que, no século XVIII, a história consistia em narrativas dos eventos e das vidas dos grandes homens apresentadas como exemplos para formação do julgamento e do caráter do leitor. Nesse modelo de história, a imparcialidade não significava neutralidade de valor por parte do historiador, mas sim não tomada de partido de nenhuma das partes envolvidas na história – não engajamento político –, com objetivo de alcançar conclusões sólidas acerca de guerras e conflitos políticos do passado. Assim, por exemplo, Leopold von Ranke é um dos mais importantes historiadores associados a essa doutrina da imparcialidade. Heinrich von Sybel e Georg Gervinius, posteriormente, criticaram Ranke por sua imparcialidade e neutralidade. O jovem Nietzsche também teceu duras críticas ao historiador prussiano por sua imparcialidade e autoimposta “objetividade de eunuco”.

A sequência do texto 7 apresenta as técnicas da objetividade aplicadas à história, bem como certos aspectos do historiador objetivo. No centro do sentido de objetividade dos historiadores do século XIX está “o forte sentimento de restrição científica” (p. 133), que julgava até que ponto a evidência em mãos poderia ir. Daston constata que tanto os métodos e as técnicas da crítica histórica quanto certas atitudes objetivas do historiador diante de seu objeto assentam- se na polêmica entre filólogos clássicos e historiadores da antiguidade a respeito das declarações metodológicas de Tucídides em seus discursos. Segundo Daston, as duas principais questões que mobilizaram os estudos acadêmicos sobre Tucídides foram estas: “primeiro, em que medida o próprio Tucídides estava conscientemente aspirando ao padrão de história objetiva?; segundo, ele se manteve fiel a esse padrão, especialmente ao relatar discursos?” (p. 136). A autora explica que as palavras objetividade e subjetividade são produtos de meados do século XIX, logo a importação desses termos para as análises da obra e do método histórico de Tucídides é um equívoco. Daston recupera ainda a crítica de Nietzsche à religião ascética da objetividade que dominou e formatou os historiadores no século XIX. A autora está preocupada em entender como, em tão pouco tempo, o valor da objetividade se tornou uma virtude superestimada entre os historiadores. Nietzsche é a chave interpretativa para essa questão. O filósofo alemão farejou no culto da objetividade um ar de “autoengano”, “superstição” e “mitologia”, uma falsa religião e uma falsa fé. Nietzsche encarava a religião da objetividade e seus sectários como um verdadeiro problema, porque tal religião pregava a autorrestrição, o autossacrifício e exalava um odor desagradável de ascetismo que rapidamente se espalhara pelas instituições de ensino da Alemanha de seu tempo.

Por meio da exposição sistemática dos sete artigos que integram a obra Historicidade e objetividade, concluímos que Lorraine Daston compreende a objetividade de forma distinta daquela comumente compartilhada pelas doutrinas objetivistas, que associam à postura objetivista a ideia de que é possível “ver os fatos como eles realmente são”, isto é, conhecer a realidade em si e por si mesma. Daston consegue distanciar-se dessa tendência ao inserir a objetividade em uma perspectiva histórica, em um modo por meio do qual a objetividade não pode ser vista desvinculada de uma interpretação pluralista e multiforme da realidade. Nos sete artigos que constam nessa coletânea, interessa a Daston principalmente dissociar a objetividade – na área da História das Ciências, em particular – de concepções que a tomam como um dado a-histórico. Nesse sentido, no programa epistemológico dastoniano, à noção de objetividade é adicionada uma faceta interpretativa, já que a sua epistemologia histórica se relaciona à história das ideias e das práticas, dos afetos e das emoções, da moral e dos valores. Assim, Daston demonstra que a objetividade da ciência é tanto mais histórica quanto mais ela se mostrar relacionada aos muitos pontos de vista e às interpretações humanas.

Dessa maneira, consideramos essa obra como uma importante contribuição não só para os estudos pertinentes à historiografia, história, filosofia e sociologia das ciências e relacionados à historiografia, filosofia e teoria da história, mas também para clareamento de questões que envolvem o complexo e multifacetado conceito de objetividade científica, abrindo e iluminando o caminho para outras pesquisas, discussões e questionamentos sobre esse tema.

Referências

ALMEIDA, T.; IEGELSKI, F. 2017. História das Ciências, Teoria da História e História Intelectual. In: L. DASTON. Historicidade e objetividade. Tradução: Derley Menezes Alves e Francine Iegelski (org. Tiago Santos Almeida). São Paulo, LiberArs, p. 11-14.

DASTON, L.; GALISON, P. 2007. Objectivity. New York, Zone Books, 501 p.

DASTON, L. 2016. The Truth in the Leaves. Max Planck Research.

ViewPoint_History of Science. Berlin, 26 Apr., p. 10-15. Disponível em: https://www.mpiwg-berlin.mpg.de/content/daston. Acesso em: 18/05/2018.

NIETZSCHE, F. 2017. Segunda consideração extemporânea: Sobre a utilidade e a desvantagem da História para a vida. Organização e tradução: André Itaparica. São Paulo, Hedra, p. 29-146.

Notas

2 A título de esclarecimento, a escolha dos sete artigos que integram a obra em análise não foi feita por Lorraine Daston, mas pelo historiador brasileiro Tiago Santos Almeida. No prefácio, Daston explica que os sete títulos agrupados na coletânea foram escritos em diferentes momentos de sua trajetória intelectual e profissional e que alguns deles não trazem respostas satisfatórias a uma série de desconfortos teóricos e interpretativos suscitados pelo problema da objetividade nas ciências. No entanto, exatamente por essa razão, ela espera que os leitores brasileiros compreendam cada artigo como evidência de uma mente em ação, que se esforça para entender aspectos da história do conceito de objetividade científica.

2 Sobre a certeza, a precisão, a verdade e a objetividade como virtudes epistêmicas fundamentais da ciência, como características particulares que definem a identidade da ciência e a prática científica, ver também Daston (2016).

Raylane Marques Sousa  – Universidade de Brasília. Programa de Pós-Graduação em História. Campus Darcy Ribeiro, Instituto Central de Ciências, Norte, Bloco A, Subsolo (ASS 679-690), 70910-900, Brasília, DF, Brasil.

What is Global History?

Um dos temas mais discutidos nos departamentos de humanidades ultimamente é a História Global. Nos Estados Unidos e no mundo anglo-saxão em geral, tem havido uma proliferação de trabalhos que procuram adotar a história global seja como uma perspectiva, seja como um objeto de estudo. Centros de pesquisa como o Center for Global history na Universidade de Oxford, o Institute for Global and Transnational History na Universidade de Shandong (China) e o centro para História global da Freie Universitat Berlin; publicações como o Global History Journal e o New Global Studies Journal [1] e ainda redes de pesquisadores tal qual a Global History Collaborative e a European Network in Universal and Global History demonstram o crescente interesse pela temática que aqui tratamos [2].

Para o historiador Sebastian Conrad, a História global nasceu da convicção de que os instrumentos que os historiadores vinham utilizando para explicar o passado já não eram mais suficientes. Há duas razões para isso, dois pecados originais das ciências humanas que foram formadas no século XIX. Primeiro, elas foram fundadas a partir de uma ideia de estado-nação, de um “nacionalismo metodológico”, isto é, uma tendência a considerar o Estado-Nação como unidade fundamental de análise. E o segundo pecado original seria o eurocentrismo, ou seja, a tendência das ciências humanas de ver a Europa como o motor da história mundial.

No entanto, não é possível dizer que os historiadores globais foram os primeiros a reagirem a essas limitações. Modelos de História-Mundo já existiam desde Heródoto, Sima Qian e Ibn Khaldun, pois eles produziram narrativas que pensavam a história de seus próprios povos mas também a de outros, mesmo que fossem para constratar civilização com barbárie. Mais recentemente, a História comparada, as teorias de sistema-mundo e os estudos pós-coloniais já desafiavam a compartimentalização arbitrária do passado.

Assim, se temos consciência das origens remotas das formas de pensar globalmente o passado, resta saber o que distingue a Global History dessas outras abordagens? O que, afinal, é a História Global? Essa é a questão que o livro de Sebastian Conrad busca responder.

Sebastian Conrad é professor de História na Freie Universität Berlin, interessado em abordagens de História global e transnacional, em História da Europa Ocidental, da Alemanha e do Japão. Outras publicações conhecidas suas são German Colonialism: A Short History e Globalisation and the Nation in Imperial Germany. Desde 2006, ao menos, o autor vêm publicando artigos, capítulos e livros de cunho teórico-metodológico sobre História global, como o que aqui tratamos, What is Global History?.

No primeiro e introdutório capítulo deste livro, o autor contextualiza brevemente o surgimento dessa abordagem, afinal, provavelmente não haveria História global sem globalização, e disserta sobre o por quê a maneira como os historiadores reconstrõem o passado está mudando, na medida da crescente integração do mundo presente. Além disso, ele aponta três variedades de História Global, a ver: História de Tudo, História das Conexões e História baseada no conceito de Integração.

Na sequência, em “A short history of thinking globally”, ele reconstitui a trajetória das formas de pensar a história para além das fronteiras nacionais, desde as narrativas ecumênicas na Antiguidade e Idade Média, na Época Moderna, a partir da hegemonia ocidental no século XIX, chegando até a World History do Pós-Guerra.

No terceiro capítulo, Conrad mostra como diferentes abordagens mais recentes contribuiram para construir visões do passado que ultrapassam a fronteira do Estado-Nação. Uma delas, a História Comparada, que busca olhar para similitudes e diferenças entre dois ou mais casos, bem como estabelecer conexões entre eles sempre que possível. Ainda, há a História Transnacional, surgida na década de 90, e que pode ser considerada uma mãe da Global History, pois já procurava abertamente transcender a o Estado-Nação. Adicionamos a teoria dos sistemas-mundo que não busca ver a nação, mas blocos regionais e sistemas como unidades primeiras de análise, enfatizando a integração de mercados (economia-mundo) e a integração política em extensos territórios (império-mundo). E, enfim, os estudos pós-coloniais e as modernidades múltiplas que contribuiram, cada um a sua maneira, para crítica ao eurocentrismo.

No capítulo 4, Sebastian Conrad finalmente oferece ao leitor uma definição de História Global enquanto uma perspectiva particular, distinta dos estudos pós-coloniais, da História Comparada e das modernidades múltiplas. Para ele, há um foco nos contatos e interações que marcam os trabalhos dessa corrente. A palavra-chave mais associada a essa linha é a “conexão”, porém a busca por redes e nexos globais não é suficiente para delimitar o que é História global. A Global History, além disso, explora espacialidades alternativas (parte de uma “spatial turn”), busca entender unidades históricas (civilização, nação, família, etc) sempre em relação a outras e é crítica, ou pelo menos auto-reflexiva, quanto à questão do eurocentrismo. No mais, os historiadores globais se distinguem pelo exame de transformações estruturais em larga escala e pela tentativa de rastrear cadeias causais a nível global. Essas são algumas mudança heurísticas que marcam a passagem dos antigos modelos de História-mundo para a atual História Global.

No quinto capítulo, o autor trata da relação entre História e integração global. Deve-se lembrar que História Global não é uma história da globalização, mas a integração global é o contexto em que o historiador, com essa perspectiva, trabalhará. Obviamente, o impacto das conexões a serem estudadas depende do grau de integração de sua época.

Na parte seguinte, Conrad disserta, em dois capítulos, a respeito do espaço e do tempo. Em primeiro lugar, existem algumas espacialidades privilegiadas para historiadores globais. Os oceanos, por exemplo, permitiram interconexões econômicas, políticas e culturais por toda história humana e as redes, enquanto partes amplas de estruturas de poder, são objetos comuns nesses estudos. Mas nem sempre história global quer dizer narrativas planetárias, é possível fazer uma micro- história do global, se quisermos olhar como processos amplos se manifestam localmente. Dessa maneira, uma consequência imediata de se transcender as fronteiras nacionais é ter que adotar uma outra periodização, é preciso periodizar o passado não só localmente, como também globalmente.

Nos três últimos capítulos, o autor se debruça sobre a questão dos “lugares de fala”, ao observar que, mesmo que historiadores queiram contar uma história global, eles sempre o fazem de uma origem geográfica em particular. Além disso, ele mergulha na noção de “world-making” do filósofo Nelson Goodman. E conclui, num dos capítulos mais interessantes do livro, fazendo uma sociologia da Global History, ponderando os seus impactos políticos, seus desafios e horizontes.

Um dos méritos do trabalho de Sebastian Conrad é encontrar a originalidade de cada abordagem que ele trata, sem perder de vista as semelhanças entre cada uma delas. Como é comum nos bons trabalhos de historiografia e História intelectual, ele consegue estabelecer a relação entre os objetivos de cada escolha metodológica (seu programa) e seus resultados nas obras mais representativas de cada uma, às vezes lançando mão de críticas e apontando os limites de algumas perspectivas.

Ademais, Conrad faz um percurso que coloca a História Global ao lado de suas antecessoras, a insere em seu contexto acadêmico e político e a distingue de outras correntes históricas também avessas ao “nacionalismo metodológico”. Neste sentido, podemos dizer que o autor responde a pergunta do livro “ O que é História Global?” tanto diacronicamente, ao investigar as raízes da Global History até as narrativas ecumênicas de Heródoto e de outros, bem como sincronicamente, ao destaca-la de outras formas contemporâneas de narrativas transnacionais.

Por fim, o autor considera e analisa as diferente maneiras de se fazer História Global, na longa e curta duração, na ampla e pequena espacialidade. Ele enxerga a Global History não como uma tentativa de se fazer uma história de tudo, em escala planetária, mas como um perspectiva que não necessariamente exclui outras abordagens históricas como a marxista, a micro- história, os estudos pós-coloniais, etc. Justamente por ser um paradigma abrangente, talvez a História Global possa se consolidar nos meios acadêmicos do Brasil e do mundo. Como Conrad afirmou em tom otimista no final de seu livro: “O gradual desaparecimento da retórica do global irá então, paradoxalmente, assinalar a vitória da História Global como um paradigma” (p.235).

Notas

1. Além disso, revistas importantes como a American Historical Review e a Past & Present têm cada vez mais publicado artigos nesse campo.

2. Nos Estados Unidos, por exemplo, a História global vem respondendo a demandas de inclusão étnica no âmbito do ensino de História tanto nos níveis escolares quanto no superior. As tentativas (nem sempre sem reações) de substituição de cursos de “Civilização Ocidental” e “História dos Estados Unidos” por cursos de “História Global” vão no sentido de construir narrativas que dêem voz a todo o conjunto de imigrantes que construiram o país. Para um panorama desse debate, ver: ÁVILA, A. L. “A quem pertence o passado norte-americano?: A controvérsia sobre os National History Standards nos Estados Unidos (1994-1996)”, Anos 90, Porto Alegre, v. 22, n. 41, p.29-53, jul. 2015.

Filipe Robles – Graduando em História pela Universidade Federal Fluminense. E-mail: [email protected]


CONRAD, Sebastian. What is Global History? Princeton: Princeton University Press, 2016. Resenha de: ROBLES, Filipe. Escrevendo e pensando a História globalmente. Cantareira. Niterói, n.28, p. 235-237, jan./jun., 2018. Acessar publicação original [DR]

 

Conmemoraciones, patrimonio y usos del pasado – PAGANO; RODRÍGUEZ / Episodios de la Cultura Histórica Argentina – EUJANIAN et. al (HU)

PAGANO, N.; RODRÍGUEZ, M. (comp.). Conmemoraciones, patrimonio y usos del pasado. La elaboración social de la experiencia histórica. Buenos Aires: Miño y Dávila Editores, 2014. 192 p. EUJANIAN, A.; PASOLINI, R.; SPINELLI, M.E. (coord.). Episodios de la Cultura Histórica Argentina. Celebraciones, imágenes y representaciones del pasado. Siglos XIX y XX. Buenos Aires: Biblos, 2015. 209 p. Resenha de: ZAPATA, Miguel Hernán. Historia, memoria, patrimonio y celebraciones: nuevos problemas y tendencias en los estudios de historiografía argentina. História Unisinos 21(3):461-466, Setembro/Dezembro 2017.

Desde los inicios del complejo proceso de institucionalización de la historia como disciplina científica en Argentina, el área denominada comúnmente “Historia de la Historiografía” constituyó –siguiendo a las tradiciones intelectuales europeas del siglo XIX– una suerte de materia obligada en la formación general de los futuros historiadores dedicada, en su sentido tradicional de “historia de la historia”, a reflexionar sobre los textos históricos y sus autores. En las últimas décadas, diferentes tendencias, como la espectacular irrupción en la esfera pública de temáticas surgidas desde la “historia del presente” y, de manera más general, la aparición sistemática de las discusiones sobre el pasado en los debates políticos y los medios de comunicación, no solamente hicieron que el interés por la historia de la historiografía haya experimentado un crecimiento notable. Además, el propio campo de temáticas que comúnmente definían el objeto de estudio de la historiografía atravesó un intenso y complejo proceso de reflexión epistemológica, haciendo que este tipo de investigaciones rebosaran sus propios límites como disciplina “espejo”, es decir, como una actividad consagrada únicamente a desentrañar los caminos recorridos por la disciplina histórica hasta su definición y consolidación institucional en el ámbito local. Fue así que los historiadores argentinos especializados en esta área comenzaron a transitar otras posibles vías de indagación historiográfica y, en consecuencia, exploraron distintos procesos sociales e institucionales de activación de memorias y resignificación del pasado.

Ciertamente el campo delineado a partir de esta significativa renovación es demasiado vasto para ser sintetizado, pero es innegable que dos grandes líneas de investigación, que se suelen combinar y entrelazar en muchos casos, recortan los principales y actuales territorios de la historia de la historiografía en Argentina: una primera perspectiva de análisis historiográfica centrada en el desenvolvimiento de la historia como disciplina científica que sirviera de orientación para la investigación y la enseñanza del pasado, más familiar aunque de un modo menos heroico y dogmático, atendiendo a los procesos de profesionalización y combates por legitimar su situación disciplinar en el mundo intelectual y afirmar la concepción del conocimiento histórico como una investigación profesional y científica (metódica, racional y universal) frente a otras producciones sobre el pasado que circulan sobre el curso de las transformaciones políticas y culturales. Y una segunda perspectiva de la especialidad historiográfica, más amplia y heterodoxa, que concibe a la historiografía como un espacio propicio para la reflexión sobre los múltiples y contradictorios modos en que los grupos de una sociedad construyen relaciones con el pasado con miras a la intervención sobre el presente y que conllevan una cierta proyección hacia el futuro. En ese gran proceso se ve involucrada una diversidad de agentes, públicos, productos culturales y fenómenos de distinta naturaleza: el Estado que procura controlar y modelar memorias colectivas; los historiadores y los productos que ofrecían; los medios de comunicación que transmiten representaciones del pasado de todo tipo; las imágenes de ese pasado que elabora la literatura o el cine, los partidos políticos; las lecturas que ensayan los distintos destinatarios de esas imágenes y evocaciones.

Desde esta perspectiva, la historia de la historiografía argentina ha transitado un camino significativo y promisorio, pues, en efecto, de ser considerada un recurso puramente auxiliar de la historia (en tanto recopilación bibliográfica o relación de autores agrupados por temas y escuelas), esta subdisciplina se construyó como una auténtica área de especialización, discusión y producción profesional acerca de la influencia profunda que, desde su nacimiento, ejerce la historia en la experiencia social de una comunidad (desde aquella que le atribuía una función pedagógica a otra que reposaba en sus valores cognitivos, de la funcionalidad política a la cultural, desde la integración de ese pasado con el presente a su negación o abolición) y los problemas derivados de la existencia de distintas memorias, mitos históricos y visiones del pasado dictadas por las emociones, las disputas políticas y la construcción de identidades. En la actualidad, el campo académico argentino cuenta con varios equipos de trabajo consolidados en diferentes universidades y centros de investigación nacionales que conforman un punto de referencia de las investigaciones historiográficas sobre las diferentes representaciones y usos del pasado construidos tanto en los círculos académicos como en los espacios extraacadémicos. Como resultado de esta nueva sensibilidad y ejemplo de los territorios por los que avanza la especialidad historiográfica en nuestro país, aparecen en un primer plano los dos libros que son objeto de esta reseña: por un lado, Conmemoraciones, patrimonio y usos del pasado.

La elaboración social de la experiencia histórica (2014), una compilación de Nora Pagano y Martha Rodríguez, y, por otro, Episodios de la Cultura Histórica Argentina. Celebraciones, imágenes y representaciones del pasado, siglos XIX y XX (2015), organizado por Alejandro Eujanian, Ricardo Pasolini y María Estela Spinelli.

Más allá de la diversidad de temas, actores y períodos que cada trabajo analiza, ambos volúmenes parten del mismo presupuesto general, tomando a las conmemoraciones y a las políticas patrimoniales, así como también a los objetos que los emblematizan, como laboratorios privilegiados para percibir, dentro de las múltiples dinámicas sociales que una comunidad exhibe en un contexto temporal específico, las tensiones que emergen entre distintas interpretaciones y funciones del pasado, construidas acorde con las circunstancias del presente y por un conjunto heterogéneo de actores tanto a través de ciertas prácticas como así también de la valorización de espacios y objetos que genéricamente constituyen otros componentes de la cultura histórica. Una segunda línea que recorre ambos volúmenes, conectada y derivada de la anterior, consiste en conceptualizar a las conmemoraciones y al patrimonio histórico como fenómenos a través de los cuales uno o distintos colectivos sociales en pugna trazan un vínculo con su pasado y, por ende, se instituyen en dispositivos productores de imaginarios sociales con importantes secuelas en otros ámbitos de la sociedad. De ese modo, las diferentes contribuciones se detienen en escenarios políticos y culturales en los que es posible identificar las diferentes modulaciones que asume la constante redefinición de las relaciones entre un saber académico y su transmisión a la sociedad por medio de los otros soportes, esto es, las vinculaciones y tensiones entre erudición y divulgación, aspiración “científica” e intervención “pública”, entre historia y memoria, las diversas mediaciones y –fundamentalmente– los mediadores que posibilitaron esas relaciones.

En esta dirección, los dos libros comparten las huellas de una generación de historiadores movilizados por inquirir sobre este conjunto menos convencional y más amplio de estudios y problemas de la historia de la historiografía, aprovechando de modo renovado los conceptos y herramientas teórico-metodológicas de otros campos disciplinares y asentándose sobre el rico cimiento construido por núcleos de estudiosos del ámbito nacional y extranjero. Por tanto, estos nuevos ejemplares se presentan como excelentes ejemplos y puntos de partida de lo que en la actualidad se está constituyendo en una línea avanzada dentro de los programas de estudio e investigación encarados paralelamente en Estados Unidos, Europa y otros países de América Latina. Sin embargo, las respuestas a las preguntas que se plantean los autores que participan de ambas compilaciones no resultan de una transposición acrítica de modelos teóricos gestados en otros contextos y pensados para otros problemas, sino de una sostenida práctica de investigación, donde los debates importados adquieren su propia densidad a la luz de las preguntas que formulan sobre las modalidades locales que asumen los intentos de diferentes actores por gestar nuevas memorias.

En virtud de las claras líneas conectoras entre ambas compilaciones que hemos señalado supra, hemos decidido evitar realizar un recorrido lineal por cada uno de los acápites siguiendo el orden en que están dispuestos en cada libro y proponer, en cambio, una recensión de los mismos a partir de su agrupamiento en función de coincidencias temáticas y cercanías espacio-temporales, haciendo dialogar inclusive ciertos capítulos de un volumen con los trabajos del otro. Un primer núcleo de artículos se ocupa de las conmemoraciones de la Revolución de Mayo, una problemática no casual dentro de las opciones, puesto que si por un lado el dispositivo celebratorio constituye un objeto de interés legítimo para cualquier estudio historiográfico (pues una adaptación del pasado a las necesidades del presente comprende variadas formas de intervención que operan en la creación o remodelación de memorias e identidades colectivas), el contenido a rememorar, por su parte, condensa un importante entrelazamiento de tensiones y conflictos de más largo aliento sobre los sentidos asignados al acontecimiento para la sociedad argentina.

En efecto, desde la consolidación y expansión del Estado central a fines del siglo XIX, tanto el sistema escolar como los actos públicos contribuyeron a afianzar y difundir un relato fundador de la nación argentina en el que la Revolución de Mayo ocupó el lugar de “mito de los orígenes”, una suerte de semillero de la nacionalidad de acuerdo al historiador José Carlos Chiaramonte, en vistas de la necesidad de dar mayor cohesión y homogeneidad a una población sumamente compleja y diversa (integrada por criollos, indígenas e inmigrantes europeos) que habitaba la geografía nacional. En consonancia, mientras Alejandro Eujanian (in Eujanian et al., 2015) traza un cuadro analítico en el que observa los cambios y continuidades de las fiestas mayas en el Estado de Buenos Aires entre 1852 y 1860, Fernando Devoto (in Pagano y Rodríguez, 2014) nos traslada a los diferentes actos organizados por la clase dirigente argentina a principios de 1910 para celebrar los cien años de la Revolución de Mayo como un tipo especial de acontecimiento festivo con un claro perfil poliédrico.

Por su parte, Antonio Bozzo (in Eujanian et al., 2015) examina con minuciosidad la participación de intelectuales y artistas en algunas de las actividades propuestas por la Comisión Nacional de Festejos del Centenario. Por su parte, el siglo XXI continúa mostrando que las celebraciones continúan siendo una tecnología pedagógica capaz de ser empleada por el aparato del Estado para producir cierto tipo de anclajes identitarios, tal como indican Nora Pagano y Martha Rodríguez en sus acápites (Rodríguez in Pagano y Rodríguez, 2014; Pagano y Rodríguez in Eujanian et al., 2015). Mediante un sondeo original de algunas iniciativas culturales (proyectos editoriales, el mural del Bicentenario, una instalación interactiva y otra audiovisual) organizadas tanto por el gobierno nacional como por empresas privadas en el marco de las conmemoraciones del Bicentenario de la Revolución, las autoras concluyen que en cada una de estas instancias erigidas en ocasión del ritual colectivo se evocan la presencia de los diferentes sentidos del pasado puestos en juego, la multiplicidad de actores intervinientes en el proceso y el carácter de las mediaciones materiales y simbólicas.

Un segundo núcleo de trabajos prosigue en el tratamiento de la matriz instrumental de estos dispositivos celebratorios, pero en arenas que van más allá del Estado –y sus diferentes agencias y niveles– y se adentran en las prácticas de otros actores colectivos de la sociedad civil que, al calor de la vorágine de los sucesos políticos, sociales y culturales que signaban la vida del país y del extranjero, pusieron en marcha algunos mecanismos de intervención pública para fundar tradiciones y legitimar posiciones políticas y librar una lucha –a veces estridente, a veces opaca– por dotar de sentido al pasado frente a las versiones de sus muchos contendientes. Así lo exhibe el estudio de Julio Stortini (in Eujanian et al., 2015), dedicado a indagar el proceso de rehabilitación de la controvertida figura de Juan Manuel de Rosas, desde la década de 1930 hasta inclusive la etapa kirchnerista, por el revisionismo histórico (ese movimiento de corte nacionalista y antiliberal integrado por intelectuales pertenecientes a distintas tradiciones políticas que pretendían promover los estudios históricos), prestando atención a las mutaciones discursivas y reacomodamientos ideológicos en los diferentes contextos políticos durante los gobiernos peronistas. Por su parte, Eduardo Hourcade (in Pagano y Rodríguez, 2014) concentra su capítulo en una coyuntura particular de la saga revisionista: los proyectos destinados a repatriar los restos de Rosas, las polémicas que hicieron difícil su concreción –frente a otros anteriores, aparentemente menos polémicos, de personajes del panteón nacional (como Bernardino Rivadavia, José de San Martín, Domingo F.

Sarmiento y Juan Bautista Alberdi)– y su concreción definitiva en 1989, así como las circunstancias y motivos del fracasado intento por montar conmemoraciones asociadas al evento. En un registro similar, dos primeros textos de María Elena García Moral (in Pagano y Rodríguez, 2014) y Sofía Serás (in Pagano y Rodríguez, 2014) presentan puntualizaciones historiográficas sumamente originales sobre la cultura histórica de las izquierdas: mientras la primera decide comparar lo que se recuerda y cómo se recuerda dentro los grupos socialistas y comunistas en Argentina y Uruguay en diferentes contextos conmemorativos del siglo XX, la segunda autora reconoce –a través del periódico partidario El Obrero– la tensión entre elementos internacionalistas y nacionalistas en la creación y recreación de memorias e identidades colectivas a partir de ciertas imágenes del pasado que se promovían durante las celebraciones socialistas.

Los conflictos políticos de la historia reciente argentina también nos proveen otros ejemplos en los que es posible comprobar que no existen vínculos sencillos, evidentes, obligatorios entre las posiciones políticas de coyuntura y las historiográficas. Asumiendo de modo implícito esa suerte de dictum, María Estela Spinelli (in Eujanian et al., 2015) se adentra en la crisis política abierta a partir del golpe militar que derrocó el segundo gobierno de Juan Domingo Perón –ocurrido en septiembre de 1955– y, en consecuencia, el trabajo puede pensarse como un marco para las restantes contribuciones, puesto que su autora sintetiza, con la maestría de quien conoce el tema con solvencia, la serie de transformaciones, conflictos y proyectos políticos en pugna durante la década de 1960 y que rodearon las celebraciones oficiales del sesquicentenario de la Revolución de Mayo y de la declaración de Independencia. Un segundo trabajo de García Moral (in Eujanian et al., 2015) profundiza los usos del pasado en esa coyuntura político-cultural a partir del análisis de la labor editorial y, en particular, de la producción historiográfica realizada por fuera del ámbito académico por historiadores y/o intelectuales del socialismo y comunismo. Continúan por esta misma senda los aportes de Sofía Seras (in Eujanian et al., 2015), Ricardo Pasolini (in Eujanian et al., 2015) y María Julia Blanco (in Eujanian et al., 2015), aunque prefieren por hacerlo desde una aproximación más individual y personal, centrada en los escritos de los propios protagonistas: si Seras se ocupa de la construcción de la identidad del socialismo argentino a partir de los Recuerdos de un militante socialista del médico y político Enrique Dickmann (1874-1955), Pasolini hace lo propio con el comunismo mediante la interpretación, la crítica y la producción historiográfica de Aníbal Ponce (1898-1938). Por su parte, Blanco recupera las interpretaciones del pasado de la izquierda nacional en los ensayos históricos contenidos en algunos de los 35 libros de divulgación política y cultural que integraron la colección La Siringa publicados por el editor chileno Arturo Peña Lillo (1917-2009) en Argentina entre 1959 y 1963. Aunque los tres autores nos retratan un clima político-cultural que rápidamente nos muestra que todas las visiones del mundo incluyen –casi inevitablemente– visiones de su pasado, los recorridos particulares de estos intelectuales de izquierda también permiten detectar unos lazos más flexibles y menos definidos entre ciertos imagos y ciertas perspectivas historiográficas.

Finalmente, un tercer núcleo de artículos aborda la actividad memorativa de la conciencia histórica generada a partir de las nociones de patrimonio que circulan en el ámbito de la cultura, el poder simbólico de ciertas imágenes y lugares en el paisaje social y las políticas de patrimonialización a través de las cuales se asignan significados a ciertos activos materiales y/o inmateriales.

Por segunda vez la perspicaz pluma de Nora Pagano (in Pagano y Rodríguez, 2014) nos adentra en estas problemáticas con un logrado ensayo en el que reflexiona sobre un fenómeno particular de la administración de la memoria social durante el primer peronismo: la existencia de perspectivas y valoraciones contrapuestas de ciertos episodios y procesos del pasado argentino. De acuerdo a la autora, este fenómeno es producto de la línea patrimonial adoptada por el Estado durante esos años, identificable en las declaratorias de la Comisión Nacional de Museos y de Monumentos y Lugares Históricos sobre los Sepulcros Históricos, y, paralelamente, de las actitudes asumidas por parte de la sociedad durante la conmemoración de los distintos centenarios –del escritor Esteban Echeverría y del pronunciamiento de Justo José de Urquiza (ambos en 1951), de la Batalla de Caseros (1952) y del Combate de la Vuelta de Obligado (1953)– que tuvieron lugar por aquel entonces. La preocupación por la perspectiva patrimonial en los debates colectivos sobre el pasado se repite en el capítulo de Gabriela Couselo (in Eujanian et al., 2015), cuyas páginas sistematizan los antecedentes, particularidades y controversias en la erección del monumento a la Bandera Nacional ideado por la escultora argentina Lola Mora (1866-1936) en la ciudad de Rosario, iniciado en el siglo XIX e incorporado recién en la década de 1990 al Pasaje Juramento –segmento del paisaje urbano vinculado a la bandera donde actualmente se encuentran las esculturas del inacabado proyecto.

Tres trabajos de una de las compilaciones merecen un comentario aparte, ya que si bien sus referentes espacio- temporales no coinciden con aquellos de la mayoría de los capítulos, centrados principalmente en distintos momentos y espacios de la cultura histórica argentina, no deja de ser cierto que insertan legítimamente dentro de la gama de preocupaciones que la historiografía ha considerado en los últimos años. Así las cosas, la italiana Sabina Loriga (in Pagano y Rodríguez, 2014) recorre las cuatro hipótesis sobre el origen de los etruscos y concluye que la opción por alguna de ellas supone la activación en el presente de una serie de enfrentamientos entre ciertos actores y proyectos políticos diferentes y a veces opuestos.

Situándose en España, Javier Moreno Luzón (in Pagano y Rodríguez, 2014) transita las conmemoraciones promovidas por el Estado español entre 1898 y 1918 (el primer centenario de la Guerra de Independencia, el tercer centenario de la publicación de la primera parte de Don Quijote de la Mancha y de la muerte de su autor, Miguel de Cervantes, y la oleada hispanoamericanista que tuvo su eje en el centenario de las independencias americanas de 1810-1811) y, en tal sentido, ofrece un interesante material empírico para realizar un contrapunto con el caso argentino y repensar los mecanismos estatales de nacionalización puestos en funcionamiento a ambos lados del Atlántico hacia las décadas finales del siglo XIX y las primeras del XX. Finalmente, Gabriela Siracusano (in Pagano y Rodríguez, 2014) nos transporta nuevamente a América Latina, esta vez al ámbito andino, en el que descubre –a partir de modulaciones interpretativas cercanas a la sociología e historia del arte– los modos en que la iconografía particular procedente de los colores del arco iris se transfiere, apropia y resignifica socialmente en los Andes en tanto signo que aseguraba metonímicamente su presencia en todas las prácticas sociales de cuño religioso y político.

En conclusión, estas dos compilaciones sobre las interpretaciones del pasado en la historia argentina constituyen un novedoso y relevante aporte bibliográfico para enriquecer las discusiones historiográficas tanto a nivel particular como a un nivel más general. Para el caso argentino, las contribuciones reunidas en ambos volúmenes nos devuelven las preguntas y reflexiones de cada autor suscitadas a partir del estudio de ciertos acontecimientos, rituales y emblemas del pasado nacional, así como su plasmación en actos, fiestas, estatuas y monumentos, mostrando que el interrogante acerca de las complejas y cambiantes relaciones entre historia y memoria continuará siendo imprescindible para conocer otra dimensión de los conflictos que atraviesan a una sociedad y que la apertura de la historia de la historiografía a nuevos terrenos define la vía para avanzar en este tipo de conocimiento. Después de todo, no hay que olvidar que cualquier interpretación del pasado –la del Estado, las de los partidos políticos, las de las comunidades étnicas, las difundidas por la literatura, el cine y el periodismo, e incluso la de los propios historiadores– refleja puntos de vista diferentes de acuerdo a concepciones, valores e ideologías, por lo que no es extraño que cualquier definición del pasado histórico nacional mantenga lazos particularmente estrechos con la vida política y cultural de un país.

Y, en términos más amplios, estas recopilaciones –así como otros libros– pueden ser un excelente pretexto para incentivar la reflexión entre los historiadores sobre los usos de la historia, en especial cuando desde instancias públicas y privadas se los interpela a adoptar un posicionamiento epistemológico respecto de los rasgos que caracterizan las decisiones de los pueblos y sus gobiernos por gestionar la memoria histórica y en función de la profundidad e intensidad de los debates políticos e identitarios que se dibujan en cada escenario y a su alrededor. Mucho más cuando, en las últimas décadas, las conmemoraciones y las acciones de patrimonialización están dibujando un escenario sumamente poliédrico y laberíntico para los historiadores, no sólo por la reflexión teórica que despierta la tarea de diferenciar las intencionalidades –unas abiertamente políticas, otras más académicas– que permean los “usos públicos de la historia” visibles en las prácticas que acompañan los actos públicos y privados, sino también porque deberán asumir los múltiples retos que plantea estar ante experiencias sociales que no pueden reducirse a un simple acto de recuerdo y que, inevitablemente, nos traslada al terreno de los sentimientos, de la emotividad y de la identidad.

Resulta obvio que el “delirio conmemorativo” y la “fiebre monumentalista” responden a un movimiento a nivel mundial, pero en el caso concreto de América Latina ambas tendencias obedecen a las diferentes actividades organizadas por los gobiernos a partir de la celebración de los bicentenarios de las independencias iberoamericanas.

No se puede olvidar que desde el año 2008 la mayoría de las repúblicas latinoamericanas han tendido a construir distintos escenarios conmemorativos, con mayor o menor participación popular, centrados en la exaltación de los hechos y de los protagonistas considerados nucleares para el nacimiento de las nuevas naciones. A pesar de que muchos de los “mitos fundacionales” de los Estados nacionales han comenzado a demolerse por los recientes avances historiográficos, es innegable que esas y otras fiestas patrias continúan siendo aquellas atmósferas en las que ciertos sectores de la política y la sociedad encuentran las claves del pasado necesarias para dotar de legitimidad a ciertas políticas e instituciones de los Estados, o bien para definir el “espíritu colectivo” capaz de articular el presente y el futuro de comunidades nacionales hondamente heterogéneas, desiguales, fragmentadas y diversas.

En consecuencia, resulta sintomático que ciertos sectores de la sociedad continúan sosteniendo la posibilidad de encontrar en la historia cierto eje didáctico-moralizante –según el viejo topos ciceroniano magistra vitae– que les permita entrelazar juicio del pasado, instrucción del elemento tenido por esencial para la configuración de un sentido de comunidad.

Debido a esta situación, siempre latente en el seno de toda sociedad, se torna primordial la necesidad de buscar un enfoque que nos ayude a matizar, cuestionar o simplemente reflexionar críticamente sobre las lecturas del pasado. Es allí donde la historia de la historiografía lleva una gran ventaja, al contribuir con una perspectiva más cautelosa, más aguda, más crítica, en fin, de leer e interrogar las prácticas sociales que evocan ciertos discursos del pasado. Y ello, como lo demuestran las compilaciones aquí reseñadas, no parece ser un aporte menor.

Horacio Miguel Hernán Zapata – Universidad Nacional del Nordeste (UNNE). Instituto Superior de Formación Docente “Profesor Agustín Gómez” (ISFDPAG), Argentina. Uruguay 1483, Paso de los Libres, CP 3230, Provincia de Corrientes, Argentina. E-mail: 1 [email protected].

Manifiesto por la Historia – GULDI; ARMITAGE (PR-RDCDH)

GULDI, J.; ARMITAGE, D. Manifiesto por la Historia. (traducción de Galmarini, M. A. The History Manifesto, 2014). Madrid: Editorial Alianza, 2016. 292p. Resenha de: HERNÁNDEZ, Juan Jesús Botí; GIMÉNEZ, David Omar Sáez. Panta Rei. Revista Digital de Ciencia y Didáctica de la Historia, Murcia, p.141-143, 2017.

La edición de Manifiesto por la Historia que aquí reseñamos es una traducción al castellano de Marco Aurelio Galmarini del original publicado en inglés por la Universidad de Cambridge en 2014. Sus autores son Jo Guldi y David Armitage: Jo Guldi es profesora en la Universidad de Brown, en Providence (Estados Unidos), y ha dedicado buena parte de su obra a estudios sobre la historia de Gran Bretaña y, sobre todo, a la política económica. Por su parte, David Armitage es profesor en la Universidad de Harvard, especialista en historia intelectual e historia del mundo.

Aunque hay quien ha señalado la originalidad del título de la obra, subrayando especialmente el término manifiesto como algo provocador y poco usual, lo cierto es que no se trata de algo novedoso, pues viene a unirse a una serie de títulos que se han publicado en la última década, sirviendo de ejemplo el conocidísimo La utilidad de lo inútil de Nuccio Ordine (2013), que también se publicó con el subtítulo Manifiesto, y que coincidía en algunos aspectos con el contenido de esta obra.

El conjunto del libro consiste en una dura crítica a la hiperespecialización y el cortoplacismo, planteando la Historia como una ciencia que, ante el avance de las nuevas tecnologías y la pérdida de perspectivas a largo plazo para enfrentar problemas como pueda ser el cambio climático, ofrezca respuestas globales y aporte una visión crítica. Manifiesto por la Historia es, por tanto, una dura pero necesaria autocrítica que plantea que los propios especialistas han debilitado la ciencia histórica, haciéndole perder peso e influencia, creando la idea de que ante grandes problemas como crisis económicas, climáticas, bélicas, etc., la Historia no puede aportar nada.

Esta idea, que a muchos les puede parecer absurda, está cada vez más asentada en el imaginario colectivo, y día a día vemos cómo la ciencia histórica, junto a otras disciplinas sociales y humanísticas, va desapareciendo de los planes de estudios, de los presupuestos nacionales, etc. Según los autores, esta pérdida de utilidad pública es culpa de los propios historiadores, que desde mediados del siglo XX han venido constriñendo sus estudios a aspectos cada vez más especializados, contrayendo sus escalas temporales y generando una obra tremendamente compleja y alejada de las necesidades reales de la sociedad, e incluso del entendimiento del gran público.

El libro está estructurado en introducción, cuatro capítulos y una conclusión. Además, viene acompañado de un índice de figuras y un índice analítico que remite a conceptos, autores, acontecimientos históricos, etc.

La introducción, bajo el título ¿La hoguera de las humanidades?, realiza un recorrido exhaustivo por la problemática que ya hemos planteado, describiendo cuáles son esas dificultades que plantea el mundo actual, inmerso en una crisis acelerada. Desde la primera línea la autocrítica está presente y, sirviéndose de la fórmula con que Karl Marx y Friederich Engels introducían su Manifiesto del Partido Comunista, Guldi y Armitage afirman: “Un fantasma recorre nuestra época: el fantasma del corto plazo”. Así, ya en la introducción, los autores hacen alusión a la importancia del papel de la Historia en la sociedad: “La Historia es una espada de dos filos, uno que abre nuevas posibilidades para el futuro y otro que deja atrás el ruido, las contradicciones y las mentiras del pasado”.

El primer capítulo se titula Avanzar mirando hacia atrás: el surgimiento de la ‘longue durée’. En él se deja claro que la historia a largo plazo no es algo novedoso, sino por el contrario algo que viene de mucho tiempo atrás y que fue progresivamente abandonado en las décadas finales del siglo XX. Para ello se exponen las obras y aportaciones de distintos autores, con especial mención a Fernand Braudel como creador del concepto de longue durée. En este capítulo se puede observar una cierta añoranza del pasado historiográfico, haciendo continuas alusiones a la influencia que los historiadores tuvieron en disciplinas como la economía o la política en tiempos pretéritos. Aunque también se exponen los peligros y los errores que supuso en aquellos tiempos, tales como el presentismo. Así, por poner un ejemplo, declaran los autores en relación a los tiempos de Braudel: “La Historia a largo plazo era una herramienta para dar sentido a las instituciones modernas, hacer comprensibles los programas utópicos y concebibles por la sociedad los programas revolucionarios”.

A lo largo de toda la obra son abundantes, excesivas en algún punto, las referencias a la problemática del cambio climático, y quizá en este ejemplo extraído del primer capítulo podamos comprender cuál es el planteamiento acerca de la utilidad pública de la Historia que plantean estos dos historiadores: “el papel de la Historia no debería consistir solamente en vigilar la información sobre la responsabilidad respecto del cambio climático, sino también en señalar las direcciones alternativas, los atajos utópicos, las agriculturas distintas y los modelos de consumo que se han desarrollado mientras tanto”. En este primer apartado se afirma que cada vez más personas miran a la Historia en busca de respuestas a problemáticas a largo plazo como esta, por lo que inmediatamente surge el interrogante: ¿están preparados los historiadores para ofrecer esas respuestas? Guldi y Armitage señalan que la Historia puede ofrecerlas, pero que la visión cortoplacista que ha marcado la investigación y la enseñanza de esta disciplina en los últimos tiempos no.

El segundo capítulo, titulado El pasado breve, o la retirada de la ‘longue durée’, expone cuáles han sido esos cambios que han llevado a abandonar la longue durée de Braudel en favor del cortoplacismo. En él se describe cómo en la segunda mitad del siglo XX la disciplina comenzó a promover una concentración y concreción de fuentes e interrogantes y, por tanto, también del período y materia investigados. De esta manera se propició una hiperespecialización que llevó a saber mucho sobre aspectos cada vez más reducidos, descuidando así los grandes interrogantes, que quedaban sin responder.

Este proceso conllevaba una elitización, quedando así el debate y la exposición de resultados reducidos a pequeños círculos de eruditos, y agravando a su vez la crisis de utilidad social que pudiera tener la Historia. Guldi y Armitage citan a autores que ya en los años ochenta habían puesto en duda la contribución de la excesiva especialización a campos fundamentales como la educación.

El tercer capítulo se titula Lo largo y lo corto. Cambio climático, gobernanza y desigualdad a partir de la década de 1970. En este apartado del libro se analizan las tres problemáticas que le dan título (cambio climático, gobernanza y desigualdad), para concretar todo lo dicho hasta el momento y demostrar cómo la falta de investigación histórica en estos temas en particular ha generado una serie de mitologías e ideas distorsionadas que, a menudo de forma consciente, han condicionado la forma en que hoy la sociedad entiende algunos de ellos. Señalan los autores que la ausencia de historiadores ha propiciado la presencia de especialistas menos cualificados procedentes de otras disciplinas que han asumido la responsabilidad de condensar el conocimiento de siglos y milenios. Así, se cita como ejemplo en el libro la forma en que los economistas han construido un discurso a largo plazo que ha idealizado la economía de libre mercado.

El cuarto capítulo nos trae de nuevo al presente y nos propone un tema de suma actualidad ya desde el título: Grandes cuestiones; big data. Aquí nos plantean los autores que la sobrecarga de información es en sí misma un síntoma de la crisis de pensamiento que venimos padeciendo, y que tanto para el estudio histórico como para otras ciencias y la vida cotidiana se han hecho indispensables las herramientas de búsqueda de información. De hecho, los expertos se han dado cuenta de que para mantener la capacidad de persuación necesitan condensar big data para crear un relato conciso y divulgativo. La utilización de palabras clave es un ejemplo de este fenómeno de recogida de datos, que obviamente se ha expandido a distintos tipos de software (Google Book Search, Paper Machines…). Según los autores, gracias a estas herramientas se facilita la comparación de informaciones cuantitativas, lo que ayuda a producir modelos comparativos de variables a lo largo del tiempo y, por tanto, hace de la Historia “un árbitro de los principales discursos del antropoceno”.

Al fin, llegamos a la conclusión titulada, donde los autores realizan un balance general de todo lo expuesto y concluyen tres líneas a seguir en la escritura de la Historia: la apertura al gran público, haciendo accesibles y comprensibles los relatos elaborados por los historiadores; la atención y empleo de nuevas herramientas de visualización, en especial digitales, por parte de los historiadores; y, por último, la fusión entre lo “micro” y lo “macro”. En relación a este último aspecto, hay que señalar que ya en los capítulos anteriores los autores habían dejado clara su posición favorable también a la microhistoria y, en general, a líneas de investigación más reducidas, tan solo criticaban su generalización, hegemonía y condicionamiento en las tendencias de investigación recientes. En la conclusión vuelven a aclarar esta cuestión defendiendo que lo “micro” representa lo mejor de la metodología del historiador, mientras que lo “macro” plantea los auténticos interrogantes de interés común, por lo que insisten en alcanzar un equilibrio entre ambas concepciones.

No obstante, lo más interesante de la conclusión es el tono optimista que emplea. Se incide en la idea de que desde hace algunos años se vienen publicando estudios que siguen estos criterios, que la ciencia histórica está cambiando y que comienza a corregir errores. Se defiende que no todo está perdido y que, según los autores, los historiadores pueden y deben volver a ocupar el papel de maestros públicos, de guías sociales, que ya ocuparan en tiempos pasados aunque sin renunciar a la rigurosidad. Esto queda especialmente claro en las líneas finales del manifiesto: “¡Historiadores del mundo, uníos! Hay un mundo por ganar, antes de que sea demasiado tarde”.

Nos gustaría terminar diciendo que el manifiesto-ensayo ofrece al historiador un punto de vista novedoso basado en teorías que podrían parecer desfasadas por su antigüedad. Desde nuestro punto de vista, los autores aciertan al buscar en el pensamiento de Braudel un enfoque adecuado para la investigación histórica, pero falla a la hora de plantearlo en su texto. Precisamente por tratarse de un manifiesto, sus ideas no son desarrolladas de manera adecuada, quedan en cierta medida expuestas pero no se profundiza en su entendimiento, con lo que en ocasiones no se termina de comprender el propósito de los autores, o la forma en la que se deberían desarrollar estas ideas. Esto contrasta bastante con otras secciones del manifiesto donde el planteamiento se vuelve farragoso y repite hasta la extenuación algunos conceptos, sobre todo los relacionados con big data y cambio climático. En esos dos apartados es donde los autores, en lugar de incidir en su teoría, se pierden en la explicación de ejemplos que, a veces, no resultan del todo útiles, y quedan como una mera enumeración de ejemplos y casos concretos que no llevan a ninguna parte.

No obstante, debemos incidir en la idea de que el mensaje general que expone esta obra es absolutamente necesario en los tiempos actuales ante la aparente pérdida de utilidad social de la disciplina histórica, y de su progresiva destrucción y marginación por parte de instituciones y autoridades.

Juan Jesús Botí Hernández – Profesor de Secundaria – Ad Absurdum

David Omar Sáez GiménezProfesor de Secundaria – Ad Absurdum

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Teoria da história: uma teoria da história como ciência | Jörn Rüsen

RÜSEN, Jörn. Teoria da história: uma teoria da história como ciência. Tradução de Estevão C. de Rezende Martins., Curitiba: Editora UFPR, 2015. Resenha de: REIS, Aaron. Rüsen e a Teoria da História como ciência. Revista de História (São Paulo) n.176 São Paulo  2017.

Em Teoria da história: uma teoria da história como ciência, o professor emérito da Universidade de Witten-Herdecke (Alemanha) Jörn Rüsen retoma um conjunto de reflexões que, no Brasil, ficou conhecido a partir da trilogia Razão histórica (2001), Reconstrução do passado (2007) e História viva (2007). Na mais recente obra, traduzida para o português por Estevão Chaves de Rezende Martins – professor do Departamento de História da Universidade de Brasília -, o filósofo da história propõe uma revisão de sua teoria, publicada originalmente na década de 1980. Nela, reconhece o pesquisador, não foi possível considerar todo o debate “relevante” e necessário para uma “inovação” de suas ideias. Porém, ao recorrer aos seus próprios trabalhos – aqueles que originaram a trilogia e, também, produções posteriores -, Rüsen nos oferece uma síntese do que há de mais importante e atual em sua obra. Leia Mais

Santos imaginários, santos reais: a literatura hagiográfica como fonte histórica | Ronaldo Amaral

O livro Santos imaginários, santos reais. A literatura hagiográfica como fonte histórica que aqui nos propomos a resenhar levanta problemáticas que concernem a relação entre hagiografia como fonte histórica e o Imaginário. O autor almeja no âmbito das manifestações maravilhosas do imaginário a mesma relevância histórica nas esferas referentes às expressões sociais, econômicas e políticas. À vista disso, Ronaldo Amaral nos propõe reflexões acerca das relações entre a História, a Literatura e o Imaginário, cuidando em seu livro de reafirmar a importância das hagiografias para que possamos vislumbra-las à luz do passado tardo-antigo e medieval, bem como mostrar alguns caminhos para que os historiadores possam recair sobre elas seus olhares e se atentar às riquezas socioculturais que esses escritos compartilham acerca de um imaginário, que bem nos conta o autor, é sempre coletivo.

Portanto, na introdução e no capítulo um intitulado A hagiografia como fonte histórica. O imaginário relegado nos é apresentada, e somos levados a entender, as discussões teóricas no campo da história e do imaginário onde ele se torna, por excelência, em ferramenta teórico-metodológico para análise da História. Os embates que concernem ao uso da literatura, em especifico a literatura sagrada, como fonte histórica foram propiciados pela descoberta de novos métodos e teorias, nesse sentido seria uma heresia não mencionarmos a importância dos bolandistas, que por sua vez, compilavam erudições críticas de textos dedicados a santos, mesmo que naquela instância almejavam dados concretos que afirmassem uma existência real. Amaral também trata neste capítulo a importância de Hippolyte Delehaye ao ampliar os métodos bolandistas em que impunham problemas ao histórico da vida dos santos e buscava fatos verdadeiramente históricos, ou seja, para além do “fictício”. Todavia, já teria esse autor chamado a atenção para a hagiografia como fonte histórica, mesmo que seus métodos o levassem para um viés positivista em almejar a verdade objetiva, por consequência, separando o histórico do imaginário, o que Amaral em seu livro não propõe a separação da vida sociomaterial do imaginário. No entanto, é impreterível analisarmos as inovações de Delehaye a sua época, possibilitando assim entender à hagiografia como fonte histórica.

Ainda neste capítulo o autor trata que a partir do imaginário surgem hábitos, costumes e comportamentos capazes de apresentar a razão humana para o homem medieval onde suas bases fundantes estão arraigadas nas sensibilidades, nas estruturas do pensamento simbólico e analógico ao invés de pensamentos idiossincráticos forjados. Nesse sentido, nos é apresentado críticas por parte do autor aos métodos de tratamento dos santos de existência literária como não históricos. No que tange ao refutamento dos santos criados pelo imaginário dos hagiográficos o autor rebate isso afirmando que todo santo fictício é um santo por excelência, pois cumpre sua razão a ausência que viria a responder, assim sendo, muitas vezes os santos são personagens ideais no caráter personificado da santidade e que os hagiógrafos não puderam lhe escolher, foram assim, impostos por suas circunstâncias espaço-temporais próprias buscando atender as necessidades materiais e mentais de seu período histórico. Desta forma, fica evidente para o autor que sua historicidade concreta pouco importa, mas sim os atributos supra-humanos do santo.

No capítulo dois A emergência do imaginário nas fontes hagiográficas o autor menciona a hagiografia como texto literário capaz de interessar ao historiador por lhe oferecer uma fonte ordenada, cujo estudo linguístico facilita o trabalho que contempla seu contexto dentro do fenômeno histórico. Amaral, tanto neste capítulo como em outros, irá inaugurar um debate historiográfico onde contrapõe historiadores que afirmam o sincero não ser histórico, mas sim o verdadeiro ser histórico. Nessa acepção o autor levará algumas páginas discutindo o que seria a verdade, sobretudo a verdade histórica, e defende que a “realidade” apresentada pelas hagiografias não devem ser julgadas por métodos, mas sim serem entendidas na categoria do verossímil ao invés do sincero e verdadeiro. Assim sendo, por tratar a hagiografia de uma história sagrada seu teor de verdade também não deve ser buscado nas circunstancias e ideários no lugar daquele que fala, senão no lugar do qual se fala. Como afirmação de seus entendimentos o autor nos diz que as realidades fundadas em imagens e situações maravilhosas concebidas pelo imaginário são uma realidade tão verdadeira como a histórica.

Amaral continua por acentuar que à hagiografia interessa ao historiador enquanto o ajude na compreensão da vida social de sua época, embora sempre esteja atrelada a um processo histórico mais amplo, visto que a hagiografia é sempre um “recriar”, no entanto, devem ser vistas para além das estruturas econômicas e políticas, ou seja, deve ser concebida pelo imaginário. No discorrer do capítulo encontramos novas críticas, tanto benévolas como nefastas, a renomados historiadores, como Peter Brown e Santiago Castellanos a exemplo, sendo este último mais questionado, pois é partidário que a hagiografia não atende ao caráter de documento histórico, mas, apenas, pode ser tratada como fonte marginal e ser “desmentida” a partir de documentos ditos “oficiais”. Para isso, o autor nos ensinou que o que se almeja nas hagiografias é uma realidade menos precisa do que a dos documentos oficiais, visto que é menos carregada de ideologias do que tais documentos. Por meio dessas considerações o autor entende que a hagiografia é uma realidade construída e constitutiva por seus autores, uma vez que o autor é sempre o porta-voz de seu meio, concretizando assim a função do imaginário coletivo e dos ideais da comunidade. Após direcionar seus entendimentos, Amaral defende que o imaginário é um modo de apresentar a História.

No capítulo Hagiografia, biografia e história o autor irá questionar em conjunto com Jacques Le Goff, Loriga, Schwob, Pierre Bourdieu e outros autores a realização das biografias antes da modernidade, pois essas não são capazes de apresentar significações históricas gerais no que concerne uma vida individual, nesse viés, o autor nos propõe utilizarmos para investigar o período medieval não a biografia, mas sim intentos biográficos. Assim, no que diz respeito ao “processo biográfico” da vitae dos santos, esse se ocupa mais com as pródigas realizações sagradas do que com o teor laico e a exatidão espaço-temporal, no entanto, Amaral não despreza que as vitae tragam informações de uma existência mais factível dos santos, porém toda informação “factível” nas hagiografias está mergulhada no imaginário, em circunstâncias fundamentadas e objetivadas no fabuloso, milagres, aparições demoníacas, curas e lugares estão ligadas por uma função simbólica que se remete mais a uma realidade transcendente do que factível. É ressaltado por Amaral que a inconsistência histórica acerca do personagem hagiográfico, quando se deseja a biografia, não está na fonte mesma, mas sim na abordagem do historiador, desta forma, a hagiografia trata de homens que deixam de sê-lo ao se tornarem, por sua escrita, santos, ou nas palavras do autor:

“O hagiógrafo cria o santo e para tanto recria sua personalidade histórica, ou seja, aquela, talvez a única, dada a conhecer pela história; assim, haverá na hagiografia sobretudo um santo e, portanto, um homem cuja história ficará, em grande medida, identificada mais com uma existência fabulosa que eminentemente profana” (p.75).

Seguindo esse pensamento, nos é apresentado uma crítica do autor acerca da pretensão da hagiografia como biografia, pois entende que seria algo faltoso, visto que é inviável “resgatar” uma personalidade histórica factível e dá-la a conhecer posteriormente, mesmo munido de fontes. É muito latente no livro a questão de quando nos referimos a vida dos santos devemos nos ater mais ao espírito do discurso do que em sua letra, pois é neste que se emerge significados mais precisos da escrita e é ainda mais arraigado quando investigado pela ótica do imaginário.

O autor utiliza esse capítulo terceiro para assentar seu modus cogitare em que à hagiografia é constituída por verdade, sinceridade e realidade, isso porque, suas narrações se assentam em tempos, lugares e acontecimentos que antes de tudo são representações, portanto, as hagiografias são constituídas de lugares e situações ideais apresentadas por signos de transcendência, estruturas simbólicas e espaços do mítico e não por meros dados factíveis e positivos. Outro ponto fulcral tratado neste livro é quando o hagiógrafo é hagiografado, ou seja, quando descreve a si mesmo, para isso o autor traz exemplos de Valério do Bierzo, monge eremita que atribuía a si virtudes das vidas de outros padres do deserto. Para Amaral, esses eremitas mostravam tanta admiração por aqueles santos de sua mesma profissão monástica que imitá-los seria algo grandioso. Há também que se considerar a apropriação literária no âmbito hagiográfico na Idade Média, que seria mais do que uma subtração de textos e palavras das fontes, seria o que o autor chama de “aggiornamento” com adequações do lido e apropriado pelo autor vivido.

Referente ao capítulo quatro A natureza do tempo e do espaço na hagiografia, é explicitado a percepção do tempo e espaço profano/sagrado no imaginário de monges primitivos onde as noções de espaço geográfico – deserto, árido ou floresta – é mais do que um lugar, é um não lugar, isto é, um lugar que rompe com lugares humanos e seu próprio mundo temporal. Desta forma, os lugares assentados nas hagiografias sempre se remetem a imagens de caráter divino transcendental do que propriamente em espaços geográficos materiais. Portanto, o autor vislumbra que os lugares mais importantes nas hagiografias são os lugares da santidade, os lugares se tornavam santos pela presença do santo propriamente dito que não carregava consigo pecados e por essa sua santidade tornava os lugares sagrados. Nesse intento, somos levados a entender que os lugares apresentados pelas hagiografias são mais do que descrições de lugares concretos passam a ser símbolos que revertem significantes profanos os tornando sagrados com efetiva participação dos santos, como os desertos.

Nos é apresentado ainda neste capítulo o quão os espaços geográficos de desconhecimento dos homens medievais eram concebidos por uma dimensão mítica e fabulosa, com isso, o autor quer ressaltar em sua obra que o espaço era pensado mais em totalidade do que parcialidade. Amaral diz ser “auspicioso” buscar nas hagiografias um estrito espaço geográfico exato, visto que na Antiguidade Cristã os espaços serviam para separar o eremita da sociedade, portanto essa cisão de espaços dentro das hagiografias é interpretada como uma cisão para com a realidade cósmica. Nesse sentido, Amaral defende neste capítulo que os santos conseguem romper com o tempo ordinário ao se transportar miraculosamente no tempo e no espaço presenciando assim lugares distintos e longínquos em tempo curto. Desta forma, cabe ao escritor da vida do santo solitário demonstrar o lugar que ele não está, ou seja, extramundano, longe da sociedade e do pecado. O autor encerra este capítulo com a reflexão em que a vida e feitos de santos se desenvolvem em uma temporalidade da santidade, e não obedecem uma dinâmica aberta, portanto, os santos estão acima e além do espaço mundano.

No que concerne ao quinto e último capítulo Hagiografia: a tradição da escrita, a escrita da tradição, o autor nos coloca como latente a perícia que historiador tem para fazer emergir de um texto uma realidade, todavia, isso é possibilitado, e Amaral defende essa possibilidade, por meio de uma interpretação hermenêutica dos textos onde se objetiva atingir e extrair o espírito do texto, ou seja, a “vivência subjetiva do autor” que corresponderia ao seu meio sociocultural e mental. Nesse sentido, entendemos que para compreensão de um texto ou uma fonte deve-se levar em consideração todas as suas possibilidades de interpretação, ou seja, a intenção do leitor, a do próprio texto e a do autor. Outro pródigo ponto do capítulo são os apontamentos acerca da dificuldade de apreender o fato histórico em si, ou seja, compreende-lo em sua essência, pois cada apreensão, seja do leitor ou do autor, deforma-o, modela-o. Em consonância a isso é discorrido pelo autor que a realidade hagiográfica tem menos uma visão positiva e materialista da história, pois não almeja suas análises dos fenômenos religiosos por meio historicista, mas sim por meio de seus símbolos, metáforas, alegorias e outros meios que constituem a linguagem religiosa.

Ainda no que diz respeito a este capítulo quinto nos é explicitado que todo santo recriado por uma nova hagiografia, antes mesmo disso, já era um santo consagrado pela tradição, todavia ao ser recriado ganha um novo corpo individual e social ao se inserir em um outro homem histórico e o hagiógrafo fica responsável por inseri-lo em um novo espaço-temporal. Esse processo, segundo o autor, se desemboca por um produto da imaginação que busca alicerçar insuficiências mundanas do presente. Esse modelo de santidade que se almeja é sempre uma construção baseada no coletivo, pois a imaginação é o ato de um ser social e obedece a esquemas de reorganização que são comuns a um grupo. O autor enfatiza que o imaginário gesta as hagiografias e exerce sobre elas um poder de realização, o poder da retomada. Amaral nos conta que todo modelo de santidade, seja qual for, partirá de Cristo, dessa forma a fonte de seu trabalho será as Sagradas Escrituras, portanto, ressalta que na Antiguidade Cristã havia interesses ideológicos, e que os seus contemporâneos leram as Sagradas Escrituras impelidos pelos acontecimentos da época, sobretudo em visões de mundo que estavam permeadas pelo maligno e influídas pela filosofia antiga – neoplatônica e escatológica.

Levando-se em conta o que foi observado, podemos entender o quão profícuo é considerar o imaginário como pedra angular de um entendimento mais pleno acerca da Antiguidade Cristã, visto que o imaginário é interdisciplinar e compreende a vida humana em seu sentido mais amplo e profundo, pois tece seu entendimento no simbólico. Portanto, essa obra de Ronaldo Amaral enalteceu as considerações, maneiras de pensar, críticas e novas caminhos para pesquisas no campo da História. Nesse sentido, sua obra torna-se por si só uma ferramenta teórica aos interessados em vislumbrar as razões sensíveis dos homens nas hagiografias, sobretudo vistas à luz do imaginário.

José Walter Cracco Junior – Graduando do curso de História da UFMS-CPTL, bolsista do Programa Institucional de Iniciação à Docência (PIBID).


AMARAL, Ronaldo. Santos imaginários, santos reais: a literatura hagiográfica como fonte histórica. São Paulo: Intermeios, 2013. Resenha de: CRACCO JUNIOR, José Walter. Cadernos de Clio. Curitiba, v.7, n.1, p.129-138, 2016. Acessar publicação original [DR]

Teoria da História: uma teoria da história como ciência – RÜSEN (RHH)

Importante autor na área da teoria da história e da didática histórica, Jörn Rüsen, professor emérito da Universidade de Witten/Herdecke na Alemanha, procura, neste livro, retomar e somar novas perspectivas e reflexões à teoria da história estabelecida em sua obra, especialmente na trilogia publicada no Brasil com os títulos Razão histórica (2001), Reconstrução do passado (2007) e História viva (2007). Segundo Rüsen, a história é parte do cotidiano social e individual, em sua formatação tanto científica quanto não científica. Procurar alguma realização por meio do pensamento histórico é um esforço antropológico, uma constante humana – o saber histórico auxilia na relação com as dimensões do tempo, buscando explicar, compreender e planejar. Os seres humanos vivem no tempo e o pensamento histórico se relaciona com a administração da experiência temporal: sempre há carências de orientação. A partir destas noções o autor procura fundamentar e articular a importância do conhecimento histórico científico, especializado e profissional, na perspectiva existencial do ser humano frente a outros saberes, históricos ou não. Leia Mais

Ce que peut l’histoire. Leçon inaugurale au Collège de France – 17 décembre 2015 | Patrick Boucheron

Patrick Boucheron, spécialiste du Moyen Âge et de la Renaissance, plus particulièrement en Italie, a été nommé à la chaire d’Histoire des pouvoirs en Europe occidentale, xiiie-xvie siècle, comme pro­fesseur titulaire au Collège de France depuis la rentrée 2015, avec une leçon inaugurale intitu­lée « Ce que peut l’histoire ». Pour les enseignants d’histoire et leurs élèves, c’est l’exemple d’un historien savant qui met à leur disposition une Histoire-Monde bousculant les périodisations et les approches entendues, pour une meilleure intel­ligibilité du présent par le recours aux ressources du passé.

Dans les années 1330, la Commune de Sienne est mise en péril par la « seigneurie », ce pouvoir personnel qui subvertit les principes républi­cains de la cité. Comment contrarier la tyrannie, asphyxier le foyer de la guerre et réapprendre l’art de vivre ensemble ? La commune politique doit convaincre: le meilleur gouvernement n’est pas la sagesse des préceptes qui l’inspirent, mais ses fruits concrets, tangibles pour chacun. Ces aspects étu­diés dans un ouvrage paru en 2013 emblématisent la position de l’intellectuel1.

Une leçon inaugurale est un exercice convenu, avec ses passages obligés. Mais cela ne suffit pas au chercheur, à l’expression bien choisie. Il conver­tit le moment en credo: l’Histoire ne doit pas se contenter de relater la manière dont les pouvoirs se sont ancrés (les rois, la formation des États), mais aussi – et surtout – évoquer les tentatives expérimentales d’une autre organisation de la cité, même si elles ont échoué. Ces « expérimen­tations politiques », fourmillantes dans l’Italie des Trecento et Quattrocento, l’historien s’y montre attentif. Elles lui disent d’autres mondes possibles: « Ce que peut l’histoire, c’est aussi de faire droit aux futurs non advenus, à ses potentialités inabouties. »

Après les attentats qui ont choqué la France, Patrick Boucheron s’exprime en citoyen. Dans un engagement renouvelé, il convie à la vigilance contre de funestes usages civiques, transformés en artillerie politique inhumaine ou en appareil de répression. Il reprend une pensée centrale dans consacré à Sienne: « Avoir peur, c’est se pré­parer à obéir. »

Que peut l’histoire pour aujourd’hui ? L’interrogation l’habite. Le professeur cite Michel Foucault, avivant sa « mise en alerte toujours brûlante qui per­met de se prémunir contre la violence du dire, de ne pas se laisser griser par sa puissance injuste », mais aussi Victor Hugo et sa foi dans la chose publique: « Tenter, braver, persister, persévérer, être fidèle à soi-même, prendre corps-à-corps le destin, étonner la catastrophe par le peu de peur qu’elle nous fait, tan­tôt affronter la puissance injuste, tantôt insulter la victoire ivre, tenir bon, tenir tête, voilà l’exemple dont les peuples ont besoin et la lumière qui les électrise. » Rien n’est plus mortifère que de réduire l’Histoire à une machine à confectionner des démonstrations de désespoir. « Comment se résoudre à un devenir sans surprise, à une histoire où plus rien ne peut survenir à l’horizon, sinon la menace d’une conti­nuation ? Ce qui surviendra, nul ne le sait. »

Son ambition ? Rendre le passé habitable, repla­cer l’histoire dans le débat intellectuel, la rendre tonique, réconcilier érudition et imagination, opposer une histoire sans fin aux chroniqueurs de la fin de l’Histoire, bousculer les divisions tempo­relles (« Une période est un temps que l’on se donne »), réorienter les sciences sociales, et surtout rafraîchir les problématiques du passé en les mettant en réso­nance avec celles du présent.

Pour Boucheron, la Renaissance n’est qu’un épi­sode dans une séquence plus ample: il observe les continuités entre les xiiie et xvie siècles. Adoptant le point de vue de l’histoire globale, il avait repéré dans le xve siècle une invention du monde2. De Tamerlan à Magellan, des steppes de l’Asie jusqu’à la saisie de l’Amérique en 1492, s’est accomplie une première mondialisation. Mais la geste de Christophe Colomb est tout sauf une aventure fortuite: elle est précédée, rendue probable et pensable, par une dynamique globale et séculaire d’interconnexion des espaces, des temps et des savoirs. Elle ne se laisse en rien délimiter par ce que l’on baptisera l’occidentalisation du monde: les commerçants de l’océan Indien, les marins de l’amiral Zheng He partis du fleuve Bleu, mais aussi les envahisseurs turcs, ont un plein rôle dans cette geste des devenirs possibles du monde, où rien n’est encore inscrit.

Militant, il convie à revisiter ses certitudes, son confort intellectuel, prétendant rechercher les moyens de « réconcilier en un nouveau réa­lisme méthodologique l’érudition et l’imagination. L’érudition car elle représente cette forme de préve­nance dans le savoir qui permet de faire front à l’en­treprise pernicieuse de tout pouvoir injuste consistant à liquider le réel au nom des réalités. L’imagination, car elle est une forme de l’hospitalité et nous permet d’ac­cueillir ce qui dans le sentiment du présent aiguise un appétit d’altérité ». En cette période où le dialogue interculturel est en terrain défavorable, le propos doit être souligné. Et l’historien, revendiquant son statut de pédagogue, d’affirmer qu’il « faut se donner la peine d’enseigner […] pour convaincre les jeunes qu’ils n’arrivent jamais trop tard. Ainsi, travaillera-t-on à demeurer redevable à la jeunesse ».

[Notas]

1 Boucheron Patrick, Conjurer la peur. Sienne, 1338: essai sur la force politique des images, Paris: Seuil, 2013, 285 p.176 | Didactica Historica 2 / 2016 le livre

2 Boucheron Patrick (dir.), Histoire du monde au xve siècle, Paris: Fayard, 2009, 892 p.

(*) Voir: Truong Nicolas, « Ce que peut l’histoire », extraits de la Leçon inaugurale de Patrick Boucheron au Collège de France, in Le Monde, 02-04.01.2016.

Postface des extraits du Monde: prononcée le 17 décembre 2015, la Leçon inaugurale de Patrick Boucheron est téléchargeable en format audio et vidéo sur le site du Collège de France (http:// college-de-france.fr). Elle sera publiée sous forme numérique sur OpenEdition Books (http://books. openedition.org/cdf/156) et sous forme imprimée (coédition Collège de France/Fayard) au prin­temps 2016.

Pierre Jaquet – Gymnase de Nyon.

BOUCHERON, Patrick. Ce que peut l’histoire. Leçon inaugurale au Collège de France – 17 décembre 2015.* Resenha de: JAQUET, Pierre. Didactica Historica – Revue Suisse pour l’Enseignement de l’Histoire, Neuchâtel, v.2, p.175-176, 2016. Acessar publicação original

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Encontros com Moçambique / Regiane A. Mattos, Matheus S. Pereira e Carolina G. Morais

“Encontros com Moçambique” é um livro fruto de apresentações e debates realizados durante a II Semana da África: Encontros com Moçambique, na PUC do Rio de Janeiro, entre os dias 21 e 23 de março de 2016. Se há uma década os colóquios e seminários reuniam pouco mais de uma dezena de pesquisadores interessados na grande área de História da África, abrangendo assim um amplo recorte temático e temporal de estudos, este livro é o retrato de como, hoje, encontramo-nos em um novo momento. Regiane Augusto de Mattos, Carolina Maíra Gomes Morais e Matheus Serva Pereira apostaram que seria possível organizar uma obra que reunisse pesquisas cujo tema principal fosse Moçambique. A investida não apenas se concretizou como é prova, como afirma Valdemir Zamparoni em seu prefácio à obra, de “um amadurecimento ímpar da área de estudos africanos”2 no Brasil.

Com a maioria dos trabalhos delimitados pelo período colonial ou que perpassam o período em sua análise, o livro conta com 10 artigos divididos em 3 unidades: Deslocamentos, conexões históricas e conflitos; Narrativas; e Agendas de um Moçambique contemporâneo. Na primeira parte, um ponto de união entre os textos são os fatores condicionantes e as consequências de deslocamentos, forçados ou não, em diferentes períodos históricos, além do uso de fontes oficiais, trabalho etnográfico ou registros de imprensa para as análises, com acurado rigor metodológico no uso da documentação.

O artigo de Regiane Mattos, “Aspectos translocais das relações políticas em Angoche no século XIX”, contempla as relações entre sociedades litorâneas e interioranas do norte de Moçambique, destacando os contatos não hierárquicos entre o sultanato de Angoche e as elites muçulmanas de outras localidades, em especial no Zanzibar. Mattos parte de um evento principal para orientar sua pesquisa e desafiar a interpretação tradicional da historiografia: a viagem do comandante militar de Angoche, Mussa Quanto, e seu parente sharif, em 1849. A autora, a partir desse deslocamento, avalia a formação de uma rede comercial e cultural no oceano Índico em consonância com o aumento da presença da religião muçulmana nesses territórios. Mais do que realizar a análise histórica de uma questão localmente específica, interessa a Mattos averiguar as conexões a partir da perspectiva da translocalidade, conceito desenvolvido pela historiadora Ulrike Freitag e central na abordagem proposta no artigo. Muito bem explicado no texto, o conceito ampara a pesquisa em seu objetivo de destacar as interconexões entre lugares e atores, abrindo espaços para ressignificações de aspectos globais em âmbito local.3

No artigo seguinte, “Algazarras ensurdecedoras: conflitos em torno da construção de um espaço urbano colonial (Lourenço Marques – 1900-1920)”, Matheus Serva Pereira aborda, a partir de notícias na imprensa local, a difícil relação entre o projeto urbano colonial português para Lourenço Marques, cuja área central de Maxaquene foi delimitada para a ocupação de famílias brancas europeias, e a insistência – e resistência – dos “batuques” da população local. O argumento de Serva Pereira é que, a despeito do projeto colonial urbano, do uso da violência física e simbólica no deslocamento forçado das comunidades para a periferia, as notícias veiculadas na imprensa da época põem em xeque o sucesso de tal empreitada. Pereira atesta que os batuques, como práticas culturais, revelam uma atuação “longe de passiva em relação as instituições criadas para regular e fiscalizar o perímetro urbano de Lourenço Marques”4, estabelecendo assim um diálogo estreito com as premissas teóricas de Frederick Cooper sobre a noção de resistência em espaços coloniais5. Do mesmo modo, o autor esforça-se em defender uma organização social não totalmente polarizada na cidade, ao recompor o espectro social dos batuques nas cantinas de Lourenço Marques, onde não era incomum a convivência, num mesmo espaço de diversão, de figuras oficialmente opostas na lógica colonial e urbana.6

Ainda sob a premissa dos deslocamentos e seus conflitos, o capítulo que encerra o primeiro conjunto de textos, “Saúde além das fronteiras: doenças, assistências e trabalho migratório ao sul de Moçambique (1930-1975)”, de Carolina Maíra Gomes Morais, analisa de que maneira a imigração de trabalhadores para a África do Sul, no período colonial, além de atender a uma demanda econômica, trouxe consequências sensíveis no âmbito da saúde e das relações pessoais em Moçambique. Para acessar as condições desse movimento migratório, Morais faz uso, sobretudo, de fontes oficiais de relatórios de inspetores administrativos e se questiona de que maneira se davam as relações entre medicina “oficial” e “tradicional”. Pela disponibilidade das fontes, há uma comprovação mais substancial em relação à atuação dos Serviços de Saúde do que ao recurso à medicina tradicional. Interessante é notar a fluidez de fronteiras entre Moçambique e África do Sul sugerida pela autora para os saberes e medicinas tradicionais, proporcionada pelo trabalho migratório, além da ampla modificação nas relações pessoais em Moçambique, quando do retorno dos trabalhadores.

Na segunda unidade do livro, composta por trabalhos de pesquisadores provindos de diferentes áreas do conhecimento, os artigos têm em comum o estudo de uma obra ou do conjunto da obra de moçambicanos. Nesta unidade, que traz fontes interessantes e pouco convencionais nas pesquisas sobre Moçambique, como a fotografia e o cinema, cumpre enfatizar como nota comum o superdimensionamento do contexto histórico nas abordagens. Nos trabalhos, o contexto é instrumentalizado de modo a legitimar as narrativas ficcional ou visual presentes na documentação, utilizada muitas vezes como mero exemplo comprobatório da realidade colonial. Não resta dúvida quanto ao esforço teórico de todos os textos da unidade, mas, de um modo geral, a metodologia utilizada para a análise da relação entre ficção e História, literatura e História e visualidade e História nesses trabalhos limitou o uso mais abrangente das fontes, negligenciando, em certa medida, as narrativas criativas das próprias obras como propositivas e autoras de discursos formadores do social.

Em “O cinema em Moçambique – história, memória e ideologia: análise dos filmes Chaimite, a queda do Império Vátua (1953) e Catembe: sete dias em Lourenço Marques (1965)”, Alex Santana França realiza uma interpretação sócio-histórica e comparativa entre os filmes Chamite… e Catembe…, ancorando-se na perspectiva teórica de Francis Vanoye. Com a análise sobre Chaimite, o autor demarca as principais características do cinema de propaganda portuguesa, que se dispunha a responder, na época, à crítica internacional sobre o colonialismo luso. Catembe…, ao mesmo tempo em que demonstra o empenho português em conformar uma imagem oficial das colônias, comprovado pelos diversos cortes impostos ao filme, é considerado pelo autor como um exemplo de crítica à colonização.

Em “Não Vamos Esquecer! A propósito da fotografia ‘Marca de gado em jovem pastor’ de Ricardo Rangel”, Isa Márcia Bandeira de Brito busca analisar uma imagem feita pelo fotógrafo moçambicano em 1973, na qual um menino havia sido ferido a ferro na testa por seu patrão, por ter deixado fugir um animal. O prisma da autora na interpretação da imagem, no entanto, não favorece uma análise aprofundada e complexa do objeto, já que toma a imagem como exemplo das relações de violência colonial de maneira generalizada e dicotomiza as relações colonizador/colonizado, enfoque do qual vem se distanciando a historiografia mais recente, amparada nos estudos pós-coloniais, como são exemplos trabalhos consagrados, como os de Frederick Cooper, Homi Bhabha e Mary Louise Pratt7. A autora, vale frisar, mobiliza uma bibliografia interessante para a teorização do objeto no campo das visualidades e o trabalho dimensiona possíveis significados simbólicos da fotografia.

Em “A poesia contestatória de Noémia de Sousa e a situação colonial em Moçambique (1948-1951)”, Gabriele de Novaes Santos se propõe a compreender como a imprensa se ofereceu como veículo para a poesia de contestação colonial da escritora moçambicana Noémia de Sousa. O trabalho de Gabriele Santos é ainda inicial e, portanto, muito promissor, uma vez que a autora abre, no próprio texto, possibilidades de pesquisa interessantes sobre a obra da moçambicana. Por fim, o texto que encerra Narrativas é de autoria de Fatime Samb, com o título “A mulher moçambicana e as práticas culturais”. Ainda no primeiro parágrafo, a autora atesta sua proposta de fazer uma análise sobre o livro Niketche: uma história de poligamia e sobre o papel da mulher na obra de Paulina Chiziane. Samb faz uma importante recapitulação sobre as relações de gênero em Moçambique e a posição social da mulher na “sociedade tradicional” moçambicana, além dos impactos da independência nas relações de gênero e atuação política feminina a partir do comando da Frelimo, um tema ainda pouco conhecido e abordado em pesquisas sobre Moçambique.

A terceira e última unidade do livro, Agendas de um Moçambique contemporâneo, é formada por três artigos, sendo que dois estão em profundo diálogo a respeito da inserção internacional moçambicana, e provêm de duas áreas de formação distintas: Administração e Antropologia. Elga Lessa de Almeida e Elsa Sousa Krayachete, em “Moçambique e a cooperação internacional para o desenvolvimento”, fazem um retrospecto sobre as relações bilaterais estabelecidas por Moçambique com seus parceiros internacionais, demarcando a diferença entre cooperações verticais e horizontais, estas firmadas por países em desenvolvimento, como África do Sul, China e Brasil. O estudo de Elsa de Almeida e Elga Krayachete e o de Fernanda Gallo, “(Des)encontros do Brasil com Moçambique: o caso da Vale em Moatize” complementam-se diante do leitor atento às investidas e consequências da presença brasileira no país. Com um interessantíssimo trabalho antropológico, Gallo busca a vivência da população diante das transformações provocadas pela chegada das empresas multinacionais, em especial a mineradora Vale, e pergunta-se se há alguma relação entre esses megaprojetos para o país e a retomada crescente dos conflitos com a Renamo e ataques a trens. A antropóloga, munindo-se das comprovações de seu trabalho de campo, torna evidente ao leitor o desrespeito das empresas sobre as relações das pessoas com seus locais de origem, ao decidirem, unilateralmente, os locais para reassentamento, por exemplo, e deixa às claras o descompasso entre o discurso oficial da solidariedade e a prática de maximização dos lucros das empresas estrangeiras no país.

O livro se encerra com o capítulo desafiador de Vera Fátima Gasparetto, no qual a autora se dispõe a discutir as possibilidades de uma pesquisa interdisciplinar feminista a partir de uma análise sobre a questão da veiculação da imagem feminina na mídia, comparando a atuação feminina sobre essa questão no Brasil e em Moçambique. A autora traz um panorama sobre a composição e atuação das mulheres em seus espaços de organização nos dois países, como o Fórum Mulher e a Rede Mulher e Mídia. De um ponto de vista feminista e das novas epistemologias no Sul, em diálogo com Boaventura de Sousa Santos, por exemplo, Gasparetto faz ainda uma crítica interna a algumas teorias feministas que essencializam africanas, fazendo do trabalho acadêmico também um trabalho militante na investida de produzir “[…] uma investigação interessada em conhecer a partir das mulheres, conceituadas como sujeitas conhecedoras e conhecíveis.”8

O livro sem dúvida é uma referência importante e necessária para quem deseja se aprofundar em alguns temas moçambicanos e os trabalhos são, em conjunto, uma contribuição valiosa que demonstra um país repleto de possibilidades de pesquisa e com múltiplas fontes possíveis para análise. Mostra-se especialmente interessante nessa obra organizada o diálogo bibliográfico entre os trabalhos e, sobretudo, os diferentes exercícios teóricos e metodológicos que ultrapassam as barreiras temáticas e configuram-se como inspiração aos pesquisadores leitores. Assuntos e referências atravessam alguns capítulos do livro, como o conceito de colonialidade de Aníbal Quijano9, mais profundamente abordado no artigo de Vera Gasparetto, a discussão de gênero, de trabalho e a noção de resistências, no plural, ao longo da história moçambicana. Esse é um livro que, sem dúvida, deve ser consultado para se conhecer mais e melhor sobre Moçambique.

Taciana Almeida Garrido de Resende – Doutoranda em História Social – USP. São Paulo, SP-Brasil. E-mail: [email protected].


MATTOS, Regiane A. de; PEREIRA, Matheus Serva; MORAIS, Carolina Gomes (Org.). Encontros com Moçambique. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2016. 286p. Resenha de: RESENTE, Taciana Almeida Garrido. Desafios metodológicos, interdisciplinaridade, História: Encontros com Moçambique. Outros Tempos, São Luís, v.13, n.22, p.238-243, 2016. Acessar publicação original. [IF].

A fascinação weberiana: As origens da obra de Max Weber – MATA (AN)

MATA, Sérgio da. A fascinação weberiana: As origens da obra de Max Weber. Belo Horizonte: Fino Traço, 2013. 236p. Resenha de: CUNHA, Marcelo Durão Rodrigues. Anos 90, Porto Alegre, v. 21, n. 39, p. 417-426, jul. 2014.

Na linha de estudos atuais no campo da história intelectual e das ideias, o professor Sérgio da Mata realiza em A fascinação webe­riana: as origens da obra de Max Weber um trabalho que, dentre outros objetivos, busca elucidar as bases do encantamento intelectual, da sedução que a obra de Max Weber suscita na comunidade acadê­mica em todo o mundo.

A “fascinação” – termo cunhado na década de 1950 por Nelson Werneck Sodré – denota, segundo o historiador mineiro, um tipo de tentação intelectual que, de forma ambivalente, poderia levar ao mesmo tempo à obliteração da autonomia da obra de um autor, bem como à sua consequente abnegação no campo das ideias.

Na contramão deste caminho entre fascinação e sacrifício do intelecto, Sérgio da Mata traz um instigante estudo acerca do legado weberiano, desde a dívida do intelectual para com a Escola Histórica Alemã até os caminhos e as fronteiras da recepção de sua obra em terras brasileiras.

Ancorados num extenso trabalho de pesquisa em arquivos e bibliotecas alemãs, os estudos reunidos pelo Weberforscher brasileiro baseiam-se em uma melhor compreensão dos chamados “anos de aprendizagem”, de formação histórico-jurídica do intelectual alemão, antes do seu tardio sociological turn, ao fim da primeira década do século vinte.

 Com o princípio metodológico básico de analisar apenas o que antecede esse marco, preocupando-se com o “início” e o desen­volvimento progressivo da vida intelectual weberiana, o autor evita a tendência a panoramas retrospectivos ou a um tipo de teleolo­gismo muito comum em abordagens sobre obra de Weber, ainda perceptível em trabalhos recentes, como os de Francisco Teixeira e Celso Frederico (TEIXEIRA; FREDERICO, 2011), ou no artigo de Gerhard Dilcher (DILCHER, 2012).

Tendo como pressuposto a elevação feita pelo próprio Weber da ciência histórica à categoria de Grundwissenschaft, o pesquisador enxerga na formação intelectual do autor de A ética protestante uma perspectiva que seria sempre e decididamente histórica. Essa ideia de um approach weberiano às ciências históricas – que há alguns anos causaria estranhamento a leitores desatentos – é a base do argu­mento de Mata em boa parte de sua obra.

Em um exercício de história contrafatual, o autor chega mesmo a sustentar que, caso a carreira de Weber tivesse se encerrado em 1909, este dificilmente estaria situado entre os fundadores da moderna sociologia alemã.

É em tal provocação que reside a tentativa por parte do histo­riador de reconstrução da trajetória de Weber dentro daquilo que denomina a “era de ouro do historicismo”. Discordando de interlo­cutores que tendem a observar na virada do oitocentos ao século vinte o germe de uma crise da ciência histórica, Mata vê, pelo contrário, na fundamentação epistemológica do historicismo – realizada por Dilthey, Schmoller, Bernheim, Windelband e Rickert no período – uma indissociável gênese da obra e da metodologia weberianas.

É justamente fugindo da sombra da sociologia de Max Weber que o autor inicia todo um capítulo acerca daqueles anos de apren­dizagem em Heidelberg, Göttingen e Berlim – “três templos da ciência histórica oitocentista” (MATA, 2013, p. 35) –, quando o jovem “jurista” formar-se-ia em um ambiente intelectual ampla­mente influenciado pela Weltanschaung histórica.

Mata busca aqui identificar algumas das figuras que mar‑caram o início da trajetória intelectual do estudante oriundo de Erfurt para concluir que Weber foi, nem mais nem menos que qualquer contemporâneo seu, o resultado dos estilos de pensamento histórico

 

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Anos 90, Porto Alegre, eentão vigentes. Seus laços familiares com o eminente historiador Hermann Baumgarten, a simpatia inicial pelo trabalho de Heinrich von Treitschke, além do convívio do jovem Max com o círculo de Theodore Mommsen, são alguns dos muitos indícios que corro­boram a tese do autor.

Desconstruindo a ideia de que Weber teria rejeitado, ou mesmo se oposto à ciência histórica de seu tempo, o historiador nos prova o contrário a partir de um olhar atento sobre a pouco estudada primeira fase da carreira do intelectual germânico. Considerando a perspectiva trazida por Mata nesse primeiro capítulo, torna-se fácil concordar com sua assertiva, segundo a qual “Max Weber começou a tornar-se o Max Weber que conhecemos no berço esplêndido do historicismo alemão” (MATA, 2013, p. 35).

Mas, longe de limitar a ascendência intelectual do jovem autor aos domínios da Ciência Histórica, Mata fornece-nos o panorama de toda uma constelação de ideias e relações intelectuais que teriam influenciado a formação do economista e historiador do direito Max Weber.

A partir da leitura sincrônica de alguns dos mais importantes estudos históricos e econômicos publicados pelo autor até 1905, Mata é capaz de identificar um padrão metódico comum na obra do então professor de Heidelberg. Ao tratar em especial da concepção plural das relações de causalidade e, ao mesmo tempo, da tendência de Weber a enfatizar determinadas macrodeterminações em função do problema específico elucidado, o pesquisador contesta aquelas leituras que tendem a exagerar a perspectiva “idealista” do autor alemão.

É este apurado exame dos primeiros trabalhos de Weber que permite ao historiador chegar a duas conclusões gerais: primeiro, que Weber (ao menos na primeira fase de sua carreira) não teria proposto nem se tornado refém de uma “teoria” histórico-social abrangente. Segundo, que somente o desconhecimento em relação à obra weberiana explicaria por que se chegou a ver no autor de Erfurt uma versão idealista de Marx. E são justamente as preocu­pações práticas que permitem ao historiador identificar uma “clavis weberiana” – especialmente nos vinte primeiros anos da trajetória intelectual do autor. Por trás da inteligência teórica, Weber falaria sempre em uma intenção prática.

 

 

Na trilha do que persegue nas digressões teóricas de um Weber prematuro, Mata procurará, entretanto, nas publicações tardias do intelectual turíngio, sinais de uma possível concepção filosó­fica da história. Principalmente no que tange à sua percepção do processo de racionalização ocidental e no caráter inexorável que atribui ao conceito de Rationalizierung, o autor brasileiro irá buscar no resultado das investigações empíricas weberianas possíveis liga­ções com a obra do historiador escocês Thomas Carlyle.

Por sua “extraordinária força ética” e pelo ideal de reforma social em harmonia com a recusa a toda alternativa que implicasse a subversão violenta da ordem, Carlyle tornara-se bastante sedutor aos olhos da intelectualidade alemã do fin-de-siècle. Do autor de Past and Present, Weber herdara, por exemplo, aquela ampla dimensão atribuída ao trabalho na modernidade e as idiossincrasias da noção de “heroís‑mo carismático” no cerne do processo de burocratização ocidental.

Exercício semelhante é feito pelo autor no que diz respeito à dívida weberiana ao pensamento do filósofo neokantiano Hein­rich Rickert. Distanciando-se da apressada leitura de Ivan Domin­gues (DOMINGUES, 2004) e dos equívocos cometidos por Fritz Ringer (RINGER, 2004) na análise de tal relação, Mata insiste na necessidade de entendimento dos pressupostos rickertianos para melhor compreensão dos fundamentos do pensamento histórico de Weber. Do autor de Os limites da formação de conceitos nas ciências naturais, Weber extraíra a ideia de que as pré-condições à caracteri­zação de um trabalho de história como científico seriam: objetivi­dade, contextualização e imputação causal. Weber teria expressado bem esta preocupação de Rickert ao observar que o historiador que abre mão dessas pré-condições comporia “um romance histó­rico, não uma verificação científica”.

Além disso, do filósofo prussiano, teria sido importante para o economista político aquele abrangente conceito de cultura – segundo o qual o cultural seria qualquer realidade investida não apenas de sentido, mas de valor – e o seu ideal de “verdade” como um valor do qual a ciência jamais poderia abrir mão. Longe de expressar um relativismo, o perspectivismo histórico weberiano, como exposto por Mata, estaria muito mais próximo daquele modesto ideal de verdade defendido por Rickert. 420  Marcelo Durão Rodrigues da Cunha.

Abertas tais perspectivas críticas quanto à análise das origens do pensamento histórico weberiano, Sérgio da Mata amplia o debate no quarto capítulo, ao tratar da discussão em torno da “teoria” dos tipos ideais, desenvolvida por Weber. É realizando uma história do próprio conceito em tela que o autor relativiza a originalidade da tal aspecto do pensamento teórico-metodológico do intelectual alemão.

Expressando uma tentativa de fundamentar a perspectiva tipologizante nas ciências naturais, o autor alerta que a noção de “tipo” havia se tornado um jargão na Alemanha entre fins do século dezenove e início do vinte. Como reverberação da Methodenstreit entre economistas alemães e austríacos – envolvendo nomes como Gustav von Schmoller e Carl Menger (RINGER, 2000) – e do debate, igualmente intenso, que contrapôs historiadores políticos a historiadores culturais (ELIAS, 1997, p. 117), Mata verifica a percepção de alguns daqueles limites do historicismo que contri­buíram para a reformulação epistemológica da disciplina histórica na Alemanha guilhermina. Nas discussões entre Eberhard Gothein, Dietrich Schäfer e Ernst Troeltsch, seria perceptível o embate acerca da utilidade de categorias tipológicas que visassem a extrapolar os limites do singular na representação de fenômenos históricos.

É também na ciência jurídica e na ligação de Weber com o jurista Georg Jellinek que Mata identifica como o autor do artigo sobre a “Objetividade”, de 1904, teria feito uso dos “tipos empíricos” de Jellinek, invertendo seus polos – os denominando “tipos ideais” – de modo a se distanciar de seu elemento propriamente normativo, – aproximando-os do que classificava como “ciências da realidade”.

A dívida de Weber para com a teologia – e aqui destacam-se as formulações de Ernst Troeltsch – é ressaltada como igualmente importante naquilo que se tornaria tão central em sua obra. Como uma espécie de conceito jurídico “desnormativizado”, o tipo ideal weberiano representaria uma forma de compromisso entre o aban­dono e a conservação da filosofia da história, sendo, nesse sentido, uma “forma resignada da filosofia da história”. Mais do que simples‑mente comprovar que não há originalidade na “teoria” weberiana dos tipos ideais, Mata é capaz de trazer novamente à tona uma série de debates entre eruditos que outrora padeciam em um longo período de esquecimento.

Ao tratar de outro controverso aspecto da obra de Weber, a “isenção de valor” ou “neutralidade axiológica” (Wertfreiheit) do conhecimento histórico social, o autor opta por reconstruir a evolução de tal sentido na obra de Weber, contrapondo a posição do intelectual às de alguns de seus contemporâneos. Em trabalhos como o ensaio sobre a “Objetividade” ou em A ética protestante, além do diálogo com as obras de Rickert e Schmoller, o histo­riador evidencia, em um primeiro momento, que há na obra de Weber uma preocupação com o “dever ser” (Sollen) do erudito que extrapola o campo propriamente epistemológico, estendendo-se também à ética da prática pedagógica.

Mata conclui que Weber sustenta a opinião segundo a qual o historiador, o jurista e o sociólogo podem e devem ter sua própria visão de mundo, sua ética e suas convicções políticas, mas não a ciência histórica, o direito e a sociologia enquanto tais. Weber afir­maria querer se afastar dos adeptos de uma neutralidade axiológica “radical”, para quem a historicidade dos postulados éticos deporia contra a importância histórica destes. Ao mesmo tempo, julgaria que não cabe à ciência empírica valorar positivamente uma ética só por ela ter dado forma a épocas e culturas inteiras. Nesse sentido, a neutralidade axiológica weberiana residiria, em última análise, numa transposição da ética da convicção para o campo gnosiológico.

Apontando o caráter estritamente formal da solução weberiana para o problema dos valores, além de sua posição pouco conse­quente do ponto de vista filosófico, Mata joga luz sobre o tão atual debate acerca das relações entre ciência e consciência moral.

Dando prosseguimento ao debate acerca da influência do pensamento weberiano na ciência histórica, o pesquisador ambi­ciona, no sexto capítulo, compreender os motivos do amplo desco­nhecimento a respeito da obra de Weber – tanto no Brasil quanto no exterior – e do seu legado para o ofício dos historiadores.

Dedicando-se ao entendimento de alguns importantes aspectos da visão de Weber sobre a ciência histórica, Mata analisa a opinião do intelectual frente aos escritos de três relevantes historiadores – Leopold von Ranke, Karl Lamprecht e Eduard Meyer – de modo a melhor aproximar-se de sua própria visão a respeito do tema.

Em tal exercício, o historiador conclui que tudo parece afastar as posições de Weber, sobretudo, do segundo desses autores. Os argumentos apresentados na polêmica com Meyer levam-no, toda‑via, a concluir que entre a história “positivista” de Lamprecht e a história compreendida como “ciência cultural” de Weber existiam evidentes afinidades eletivas. Mata percebe que ambos se reconhe­ciam como representantes de uma história cultural que desafiava abertamente os rígidos cânones historiográficos vigentes.

A aproximação com o trabalho do Weber historiador no atual momento do que classifica como “crises de sentido intersubjetivas” seria, segundo Mata, profícua na medida em que – distanciando-se de uma perspectiva de exagero do ficcional – este versaria sobre uma ciência preocupada com os desdobramentos do real.

Nos capítulos seguintes, o autor reitera tal posição referente à relevância da Weberforschung no presente, ao analisar o uso do conceito de “despotismo oriental” e o debate acerca da existência de uma posição religiosa e de uma teologia política na obra de Max Weber.

No primeiro caso, em um pequeno excurso complementar, Mata empreende uma elucidativa avaliação dos escritos weberianos acerca da situação política na Rússia do início do século vinte. Em sua análise, o autor conclui que Weber surpreendentemente mantém sua opinião a respeito do suposto imobilismo russo – de forma coerente com o que era pensado pelos fundadores do mate­rialismo histórico em sua noção de “despotismo oriental”.

No segundo, Mata reserva dois capítulos inteiros para debater a complexa relação do autor em tela com a teologia e a prática reli­giosa. A partir de uma perspectiva própria à história das ideias, o historiador enaltece a importância do homo religiosus Max Weber para o “estudioso da religião Max Weber”. Em uma minuciosa análise da trajetória dos estudos teológicos de sua família, além das rela­ções do jovem jurista com seu primo Otto Baumgarten, o autor percebe que, longe do que era pregado por Friedrich Schleierma­cher, Weber entendia que vida religiosa interior e ação transforma­dora no mundo não deveriam nem poderiam se contradizer.

Mais adiante, ao discutir a existência de uma teologia política por trás da Ética protestante, o autor traz – em recurso a elementos sociopolíticos, acadêmicos e biográficos do contexto de produção da obra – uma surpreendente interpretação do mais conhecido trabalho do intelectual alemão. Levando em consideração elementos biográ­ficos, além da posição do autor diante da política de seu tempo, Mata é capaz de perceber no estudo de história cultural weberiano tanto a expressão tardia do Kulturkampf1 quanto um tratado de teologia política.

Tratando ainda do clássico estudo de Weber, o historiador irá desconstruir no capítulo seguinte o que considera a formulação do mito de A ética protestante e o espírito do capitalismo como obra de socio­logia. Considerando a forma pela qual o autor emprega as categorias de “tipos ideais” – “uma construção mental destinada à medição e caracterização sistemática de conexões individuais, isto é, impor­tantes devido à sua especificidade” (WEBER apud MATA, 2013, p. 180) –, Mata percebe em tal recurso heurístico a tentativa por parte do autor de facilitar a identificação e a análise de realidades percebidas como singulares, que seriam, em última instância, histó­ricas. Além disso, declarações do próprio Max Weber e uma análise do contexto de produção historiográfica do período corroboram a tese do historiador mineiro, segundo a qual A ética protestante teria sido concebida, antes de tudo, como um estudo de história cultural.

Uma última e relevante preocupação de Mata em seu traba‑lho diz respeito à recepção da obra de Max Weber entre historia­dores brasileiros desde o início da difusão de seus escritos em terri­tório nacional ao longo do último século. De uma favorável leitura de suas ideias durante as décadas de 1930 e 1940 – em interlocu­tores como Sérgio Buarque de Holanda e José Honório Rodrigues – à crítica e incompreensão de sua “interpretação espiritualista da História” Mata busca em nossa historiografia aquele “elo perdido” entre a obra weberiana e sua interpretação por interlocutores locais.

Neste caminho de reconstrução de itinerários e desmistifi­cação de noções há muito atreladas à herança weberiana, o autor brasileiro erige novas perspectivas úteis à apreciação do “mito de Heidelberg” e de sua obra. Como alternativa a uma ótica dema­siado contextualista, Mata opta por trabalhar com a noção de cons­telações intelectuais e suas delimitações (HEINRICH, 2005, p. 15-30) – ou “espaços de pensamento”. Tal esforço metodológico, conforme buscou-se demonstrar no curto espaço desta resenha, é coroado pelo sucesso da análise do autor em combinar contextos e insights biográficos, fornecendo-nos um panorama das principais conquistas da obra histórico-sociológica de Max Weber.

Se um dos objetivos de Sérgio da Mata – conforme exposto em suas últimas digressões – estava associado à compreensão de um autor dedicado à história como ciência da realidade, pode-se considerar que seu trabalho cumpre à risca a intenção de trazer à tona tal debate. De posse daquela “coragem diante do real” e diante da recente tendência à “ficcionalização de tudo”, Mata é capaz de perceber em seu estudo o quanto o legado de Max Weber se mostra cada vez mais relevante ao entendimento do real enquanto vocação e profissão também no mundo contemporâneo.

Notas

1 Política implementada pelo chanceler Otto von Bismarck entre 1871 e 1878 com o objetivo de secularizar o Estado alemão e eliminar a influência da Igreja Católica Romana sobre a cultura e a sociedade germânica do período.

Referências

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DILCHER, Gerhard. As raízes jurídicas de Max Weber. Tempo social, v. 24, n. 1, p. 85-98, 2012.

DOMINGUES, Ivan. Epistemologia das ciências humanas. São Paulo: Loyola, 2004.

ELIAS, Norbert. “História da cultura” e “história política”. In:______. Os ale­mães: A luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.

HEINRICH, Dieter. Konstellationsforschung zur klassischen deutschen Philo­sophie. In: MUSLOW, Martin; STAMM, Marcelo (Hrsg.). Konstellationsforschung. Frankfurt am Main: C.H. Beck, 2005.

HÜBINGER, Gangolf. Max Weber e a história cultural da modernidade.

RINGER, Fritz. O declínio dos mandarins alemães: a Comunidade Acadêmica Ale­mã, 1890-1933. São Paulo: Edusp, 2000.

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TEIXEIRA, Francisco José Soares; FREDERICO, Celso. Marx, Weber e o mar­xismo weberiano. São Paulo: Cortez, 2011.

WEBER, Max. Ciência e política: duas vocações. São Paulo: Cultrix, 1968.

______. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

Marcelo Durão Rodrigues da Cunha – Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em História Social das Relações Políticas da Universidade Federal do Espírito Santo. Bolsista Fapes. E-mail: [email protected].

O conceito de História. | Reinhart Koselleck, Christian Meier, Horst Günther e Odilo Engels

O historiador, filósofo e político italiano, Benedetto Croce (1866- 1952), inspirou-se na filosofia hegeliana para sua concepção teórico-metodológica da história. Aqui nos interessa aquele aspecto do pensamento de Hegel que concebe o conceito como um “universal-concreto”, no sentido de estabelecer “a ligação entre as concretas particularidades do mundo empírico e os princípios gerais do Pensamento” (CONSTANTINO, 2013, p. 286). Assim, temos que o Idealismo croceano perceberia o conhecimento sempre como “conhecimento de conceitos e por meio de conceitos” (CONSTANTINO, 2013, p. 286).

No entanto, este pressuposto não redundaria em uma história dos conceitos. Mais que mera expressão, a Begriffsgeschichte trata-se de uma disciplina que deve determinada parcela da intelectualidade alemã (historiadores, filósofos, linguistas, juristas) seus primeiros empreendimentos de vulto já em meados do século XX. Prevaleceria aqui uma preocupação com “as mutações de termos e significados em sua relação com o invólucro sociocultural” (ASSIS; MATA, 2013, p. 10). Nesse sentido, o “conceito” seria compreendido não propriamente na acepção hegel-croceana, uma vez que o filósofo alemão, assim como Dilthey, era passível de críticas pela “baixa contextualização de ideias e conceitos utilizados no passado, no anacronismo daí derivado e na insistência metafísica da essencialidade das ideias” (JASMIN, 2005, p. 31). O “conceito” seria, antes, compreendido como “resultado de um processo de teorização” na descrição de uma “experiência histórica concreta” (KOSELLECK, 1992, p. 135-136). Desse modo, teríamos um conceito que guardaria em si uma experiência empírica que lhe seria correspondente, da qual decorreria “seu caráter único articulado ao momento de sua utilização” (KOSELLECK, 1992, p. 138). Daí que, para entendermos o conceito de história (ou, precisamente, a história do conceito de história), devemos entender as variações de seus usos e significados ao longo do tempo. Leia Mais

História e Psicanálise: entre ciência e ficção | Michel de Certeau

“O que fabrica o historiador quando “faz história”? Para quem trabalha? Que produz?”2. Essas são as questões que norteiam a célebre obra de Michel de Certeau A Escrita da História onde aponta as principais características da “operação historiográfica” e os caminhos traçados pela historiografia no século XX. O autor, porém, não se limitou a esse trabalho, produziu uma vasta bibliografia resultante de sua reflexão sobre a elaboração do conhecimento histórico. Por volta de 1982 buscou dar continuidade a esse livro, através de uma coletânea que comporia um segundo tomo que nunca chegou a ser publicado pelo próprio autor3. Nesse volume reuniria vários artigos que tratariam da relação entre a história e a psicanálise. Após sua morte, em 1986, esse projeto foi retomado numa obra póstuma juntamente com outros artigos de sua autoria, todos já publicados, e que tratavam da mesma temática. Assim, em 1987 foi publicado em francês, pela editora Gallimard, a primeira edição de Histoire et psychanalyse entre science et fiction. Em 2002 foi lançada na França uma nova edição, revista e aumentada, com a introdução de Luce Giard. Essa edição foi traduzida para o português por Guilherme João de Freitas Teixeira sob o título História e Psicanálise: entre ciência e ficção, publicada em 2011 pela Autêntica Editora.

Nessa obra Certeau utiliza-se da literatura, da literatura psicanalítica, da historiografia e de vários estudiosos das mais variadas formações para estruturar seu pensamento. Encontramos nos seus textos estudos das obras de Freud como A ciência dos sonhos (1900), Totem e tabu (1912-1913), Mal-estar na civilização (1930) e Moisés e o monoteísmo (1939), bem como os diversos textos publicados por Jacques Lacan. E várias referencias de pensadores como Pierre Nora, Lévi-Strauss, Nietzsche, K. Popper, Todorov, Paul Veyne, Roland Barthes, Deleuze e especialmente Michel Foucault.

Neste livro, além das notas de rodapé do próprio autor, encontram-se várias notas do organizador da edição em francês, Luce Giard, geralmente para explicar onde foi inicialmente publicado cada texto e para fazer referências cruzadas ou referencias com outras obras do próprio Certeau. Existem também notas do tradutor quando há dificuldade de encontrar equivalentes entre o francês e o português, quando a tradução não garante todo o significado que existia no significante da língua original, ou nas diversas vezes em que o autor faz trocadilhos. No fim da coletânea nos é apresentada toda a bibliografia de Michel de Certeau. Em seguida, referências de estudiosos do pensamento do autor e por fim as referências bibliográficas das obras citadas no decorrer do livro, tanto pelo autor, quanto pelo organizador. Termina-se o livro com um índice onomástico.

A presente coletânea é composta pela introdução de Giard Um caminho não traçado em que percorre a relação de Certeau com o tema – história e psicanálise – bem como considerações acerca das obras e da vida do autor. Em seguida, uma série de dez capítulos, que foram publicados inicialmente de forma isolada e por diferentes meios, correspondendo a artigos científicos, capítulos de livros e conferências. Existe, contudo, unidade e sentido entre os textos, não apenas pela temática comum que os perpassa, mas também pela possibilidade de ponderar sobre a própria metodologia de Michel de Certeau e de perceber como suas ideias se imbricam em uma trama. Cada capítulo contribui para a maior compreensão do pensamento do autor, não de forma progressiva, pois não existe uma hierarquia entre os textos, mas passamos a perceber como os diferentes textos corroboraram na edificação de uma teoria coerente e complexa. Assim, à medida que os textos nos falam sobre a Escrita da História eles mesmos nos servem de modelo dessa escrita.

Os três primeiros capítulos – A história, ciência e ficção; Psicanálise e história; e O “romance” psicanalítico. História e Literatura – mostram a relação construída pelo autor entre a história e a psicanálise. Todavia, Certeau faz isso de modo cauteloso, sem misturar ou confundir as identidades de cada disciplina. Seu lugar de fala é a história, e deixa isso bem claro. Embora fosse membro participante e ativo da École Freudienne de Paris desde sua fundação, por Jacques Lacan, nunca se fez psicanalista profissional. Percorria por ambas as disciplinas, gostava da fronteira, mas não residia fora de sua formação. Não procurou construir uma epistemologia geral. Sua reflexão como epistemólogo origina-se de seu trabalho enquanto historiador da mística dos séculos XVI e XVII. Ao traçar relações entre a história e a psicanálise, não a faz por simples atração, capricho ou fruto de um insight. Certeau atravessava as disciplinas por necessidade, quando um saber não respondia suas inquietações, buscava satisfazê-las em outra, mas sempre orientado pela história. Desse modo tramitava pela filosofia, teologia, linguística, literatura, antropologia e especialmente a psicanálise.

O autor não busca historicizar a psicanálise, nem pretende criar uma explicação social e histórica para a sociedade contemporânea a partir de uma leitura psicanalista. A novidade do trabalho de Certeau reside na reflexão que realiza das empreitadas de Freud como historiador. De até aonde cabe, ou não, de até aonde soma, ou não, a teoria e metodologia da psicanálise aplicada à operação historiográfica.

Volta-se para o antigo debate entre a história e a ficção. Segundo Michel de Certeau ao realizar a crítica documental o historiador consegue diagnosticar o erro/falso nesses documentos. Esse erro é a ficção, que é transferida para o campo do irreal. O que resta acreditam os historiadores ser o real e, portanto, a verdade, que se dá pela denúncia do falso. Mas o discurso histórico utiliza-se da ficção: a econometria histórica (a suposição do que poderia ser); o uso de metáforas; a possibilidade de mais de uma interpretação. Todavia, o discurso do historiador não se torna uma mentira por se utilizar da ficção, nem abandona o status de ciência, mas é real na medida em que se considera uma representação dessa realidade. O problema reside na lógica adotada pelas ciências positivas que relacionam ficção ao irreal e apenas com Freud que essa relação é revista.

Freud não foi um historiador profissional, mas escreve sobre História, e faz isso com um toque de suspense do romance policial e a inquietação do romance fantástico. No seu fazer histórico ele desorganiza tudo o que os historiadores acreditavam estar arrumado. Ele foi o único autor contemporâneo capaz de criar mitos, no sentido de criar romances com funções teóricas. A psicanálise e a história percebem o tempo e a memória de modos distintos. Contudo, os problemas que apresentam são análogos: tornar o presente capaz de explicar o passado, compreender as diferenças e as continuidades entre as organizações antigas e atuais, construir uma narrativa explicativa. Assim, a questão que vem à tona é: qual o impacto do freudismo nas discussões sobre as relações entre história e literatura?

A literatura é para a história o que a matemática é para as ciências exatas – a forma que torna o discurso inteligível. Mas no discurso freudiano é a ficção que fornece a seriedade científica. A narrativa produzida pela psicanálise, o “romance”, deveria combinar os sintomas da doença (a coleta de dados) com a história de vida/sofrimento do paciente (historicizar seu problema). O estudo tradicional, científico, não acrescentava a historicidade do caso clínico à coleta de dados, portanto dentro do discurso dito científico não entrava a história. Essa historicidade vem para superar o modelo teórico vigente. O “romance” então supera a ciência, pois além da coleta de dados (o factual) ele historiciza o caso. Em Freud, torna-se possível pensar história e ficção.

Os capítulos IV-VI: O riso de Michel Foucault; O sol negro da linguagem: Michel Foucault; e Microtécnicas e discurso panóptico: um quiproquó apresentam os problemas levantados por Foucault em diálogo com as teses de Certeau sobre a história e a psicanálise. Não uma ingênua apresentação das ideias de Foucault, nem mais um dos comentários sobre sua obra, mas uma reflexão do próprio Certeau a partir da leitura de Foucault, de quem não era apenas amigo íntimo, mas um admirador de seu trabalho. As obras de Foucault que alicerçam essa parte da obra são fundamentalmente As palavras e as coisas (1966), Arqueologia do saber (1969) e Vigiar e punir (1975).

Envolvido num certo tom de ironia, Foucault descarta as certezas que o evolucionismo pretende, mostrando certo desprezo pelo postulado de um progresso contínuo. Para ele, todo sistema cultural é uma aposta, por ser incerto e não saber precisamente aonde vai chegar, mas mesmo assim, busca dar um sentido, uma ordem à vida, elaborando um modo de enfrentar a morte. Foucault critica essa ideia de progresso porque ela pressupõe que uma cultura caminha sempre para frente, acumulando e superando a anterior, hierarquizando-as. Contudo, cada cultura oferece ao nosso pensamento um mundo de ordem, o exótico de um pensamento é o limite de compreensão do nosso. E nessa relação de alteridade, percebemos as diferenças culturais e transformamos nossa relação com nossa própria cultura. Nosso mundo de certezas desmancha-se, marcando o fim de um sistema cultural e o início de outro. Nesse processo, palavras e ideias são utilizadas para pensar teoricamente esse novo sistema, e embora tais palavras e ideias existissem nos dois sistemas elas podem alterar o significado por estarem inseridas em ordens de pensamento diferentes.

Dessa estrutura do pensamento de Foucault, Certeau detêm-se em algumas questões de ordem metodológica: a análise histórica deve ser estrutural, ou seja, fazer uma adequação entre significante e significado, pois o significado das palavras é construído historicamente; a noção de periodicidade perpassa erroneamente a ideia de continuidade, de progresso, assim, necessitamos confrontar nosso objeto com outras obras contemporâneas ao próprio objeto, não se concentrando demais no pensamento anterior (as “influências”) e no posterior (nossas próprias ideias, teorias).

Os últimos capítulos: História e Estrutura; O ausente da história; A instituição da podridão: Luder; e Lacan: uma ética da fala/palavra [parole] apresentam a perspectiva teórica de Michel de Certeau pensada em seu próprio objeto de pesquisa, a espiritualidade dos séculos XVI e XVII. Não encontraremos nesses artigos um estudo sistemático sobre essa temática tal como o faz em La Fable mystique: XVIe et XVIIe siècle (1982), por exemplo. O que norteia a composição da obra são as questões de ordem teórica e metodológica. Aqui, Certeau se detém a essas questões mostrando como elas se relacionam ao seu tema de pesquisa, é uma intervenção sobre seu próprio fazer historiográfico.

Certeau ao apresentar seu objeto lembra-nos que essa escolha – não apenas a sua, mas a de todos os historiadores – é uma escolha orientada por uma busca de identidade. Olhamos para o passado buscando algo do presente. Nesse primeiro momento encontramos com o outro por meio de nossa imaginação, reconstruímos um mundo que nunca conheceremos de fato, aí existe um erudito e não um historiador. Nossa busca é como a de um catador, que revira o lixo buscando os restos e sonhando com a casa que nunca terá. O pesquisador permanece o mesmo. Em seguida, com o contato maior com a documentação, numa relação de força, há um estranhamento com o outro e um afastamento de seu mundo. Percebemos que esse mundo nos escapa, que não é como imaginávamos ou como sonhávamos. O objeto de pesquisa se torna um outro, um estranho. Mas o que mudou com relação a nosso primeiro olhar não foi o passado, mas sim a maneira como olhamos para ele, uma mudança do próprio pesquisador diante de sua pesquisa, é nessa transformação que o erudito se torna um historiador. Fazer história é mais que produzir narrativas históricas, é ter consciência de que algo se passou, está morto, e é inacessível como vivo.

O trabalho do historiador deve fazer aparecer a alteridade. A história direciona nosso olhar para o passado a fim de se aproximar do estranho, do “selvagem” que habita as origens. O discurso histórico nos revela essa presença ameaçadora, tal qual a psicanálise, embora se utilizando de diferentes procedimentos. Assim, a concepção de história de Freud não é de uma permanência, mas de uma tensão que organiza uma sociedade ou um discurso.

Michel de Certeau é sem dúvidas um grande erudito e historiador do século XX e suas contribuições para as discussões acerca da teoria da história e metodologia da operação historiográfica estão para além do que conseguimos mapear. Encontramos nessa coletânea um compêndio de vários exercícios intelectuais do autor, uma verdadeira lição de como “fabricar” história. Certeau é comedido em sua escrita, mostra-nos como fazer a relação da história com as várias disciplinas que utilizamos como auxiliares. Escreve sobre teoria, mas preocupado em como essa serviria para resolver problemas do fazer historiográfico. Sua abordagem metodológica busca um entremeio [entre-deux] entre os eruditos do século XVII, os tratados de método do século XX e os pensadores pós-modernos. O caminho que traçou não busca responder definitivamente a toda problemática da Escrita da História, antes, porém insere mais questões para refletirmos e tomarmos consciência do que realmente fazemos ao escrever história, tomarmos consciência da nossa própria narrativa, e assim, como na psicanálise, trazer a tona o que está escondido/ ou o que escondemos no nosso ofício.

Notas

2. CERTEAU, Michel de. A escrita da História. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. p. 65.

3. GIARD, Luce. Um caminho não traçado. In: CERTEAU, Michel. História e Psicanálise: entre ciência e ficção. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011. p. 37.

Maicon da Silva Camargo – Mestrando em História. Universidade Federal de Goiás. E-mail: [email protected]


CERTEAU, Michel de. História e Psicanálise: entre ciência e ficção. Trad. Guilherme J. de Freitas Teixeira. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011.  Resenha de: CAMARGO, Maicon da Silva. Aedos. Porto Alegre, v.5, n.13, p.294-298, ago./dez., 2013. Acessar publicação original [DR]

História e psicanálise: entre ciência e ficção | Michel de Certeau

Michel de Certeau (1925-1986) nasceu em Chambéry região camponesa da França. Intelectual de Inteligência brilhante e inconformado com a realidade, Certeau caminhou por vários caminhos de saberes, formou-se em Filosofia, História, Teologia e Letras Clássicas, e ainda caminhou por tantas outras disciplinas, como a Antropologia, a Linguística e Psicanálise. Michel de Certeau comuns de sua época [2]. Sua trajetória intelectual pode ser pensada como uma procura constante da palavra do outro, uma procura pelo outro e suas ações. Sua simplicidade lhe permitia perceber as artes e as criações nas coisas mais simples do cotidiano (o caminhar, o ler, o morar, o cozinhar, etc.), seu olhar nos levou a entender o sujeito como criativo, capaz de subverter a disciplina. Em linhas gerais, podemos identificar que o sujeito é o grande personagem de seus trabalhos [3]. Sua produção mostra enorme erudição, uma produção que vai do inicio dos anos 1960, até 1980. Religioso, foi ordenado sacerdote na Companhia de Jesus em 1950 e, fiel aos princípios de sua ordem, permaneceu padre e assim viveu até a sua morte.

Certeau subverte lugares. Inquieta o leitor, e ao mesmo tempo proporciona um diálogo com ele. A leitura de seus textos nos faz pensar a simplicidade do cotidiano de uma forma diferente, como um espaço de conflitos, de lutas capilares, quase imperceptíveis. Certeau nos mostra através de poucas palavras o barulho da estratégia e o silêncio da tática. Sua preocupação ainda se destaca na problematização no que se diz respeito ao conhecimento histórico e os meandros de sua produção, ao escrever “A escrita da História”, Certeau lançará questões de grande importância para a historiografia, descortinando o que está por traz do texto histórico, as suas limitações, as suas possibilidades e suas interdições. Afinal quem produz e como é produzido o texto do historiador? Quais os limites e as aberturas impostas pela sociedade dos historiadores? Quem julga a qualidade, e a validade do texto histórico. Arrisco em afirmar que A Escrita da História é um texto fundamental para se pensar o oficio, e para ser historiador.

Um dos mais importantes momentos da produção de Michel de Certeau é sua aproximação com a Psicanálise que se dá, sobretudo, por sua participação nos seminários de Lacan, de quem era grande admirador. Tendo tido uma relação direta com os textos de Freud, Certeau chega a destacar a influência do pensamento freudiano na historiografia, intervenções que ele chamará de “cirúrgicas”, essa influência permeará grande parte de seus textos. Participará ainda da Escola Freudiana de Paris, até a sua dissolução nos anos 1980.

Publicado pela primeira vez no Brasil em 2011, pela editora Autêntica, a coletânea de textos, “História e Psicanálise: entre ciência e ficção”, reúne textos que, mais uma vez, trazem à tona a heterogeneidade do pensamento de Michel de Certeau, dez capítulos que tratam desde a relação, muitas vezes conflituosa, entre história e ficção, da relação da própria história com a psicanálise, bem como três belíssimos textos sobre o pensamento e a pessoa de Michel Foucault, a quem Michel de Certeau admirava e reconhecia a força de sua produção e de seu pensamento. Porém, os temas abordados por Certeau vão mais além, abrem um leque de possibilidades para se pensar o conhecimento histórico. Trata-se de um rico material, onde é escancarado o pensamento múltiplo e fecundo de Certeau. Certeau fez de seu percurso “Um caminho não traçado”.

Inspirada na vida de Certeau, em suas práticas de esgrima e montanhismos nos Alpes da Savoia, Luce Giard, abre a coletânea de textos com um belíssimo ensaio sobre a vida e a obra do historiador do cotidiano. Usando uma linguagem metafórica, a autora faz um transcurso entre a vida e a produção historiográfica desse jesuíta, um pensador de passos firmes e inconformado com o seu próprio conhecimento, isso fez com que Certeau, caminhasse, buscasse o conhecimento incessantemente. Giard nos faz ver um Certeau simples, pensante, que estava sempre atento a perceber as artes escondidas no cotidiano, um personagem que mesmo tendo ganhado destaque no ciclo intelectual francês permaneceu sem ostentação, sem méritos. Historiador da espiritualidade e dos textos místicos, Michel de Certeau, sempre relia seus textos, demonstrando insatisfação, reavaliando suas posições e seu pensamento. Talvez seja por isso que os textos de Certeau, passados mais de vinte anos, ainda são de uma atualidade impressionante.

O primeiro capitulo trata da relação entre História e ficção, o texto procura fazer reflexões acerca das possibilidades de pensar essa relação. Nesse sentido, Certeau vai pensar o discurso da história a sua pretensão de realidade. Afirma o autor que, o historiador não fala e nem tem a ambição de falar verdades absolutas. O discurso da história, embora deseje um efeito de real, ele não outorga uma verdade sobre o passado. Assim, Certeau, perpassa questões que norteiam o conhecimento histórico, propondo reflexões de caráter teórico e metodológico sobre essa tríade – história, ciência e ficção – um texto que traz para o cenário das discussões temas que norteiam a produção da história e o lugar da narrativa.

Os capítulos II e III se preocupam em estabelecer considerações sobre a História e a Psicanálise. Questões que possibilitam nomear a obra. Os encontros de Certeau com os textos de Lacan possibilitam o autor ampliar seus conhecimentos e suas reflexões sobre as suas pesquisas, rompendo fronteiras, Certeau, ainda pensa, nesses textos a relação entre a História e a Literatura, nessa relação Freud é a grande inspiração do texto, Certeau caminha pela psicanálise buscando entender as suas possíveis relações com a história.

Como dito anteriormente, Certeau nutria profunda admiração pelo filósofo Michel Foucault, a este dedicará três textos da coletânea aqui discutida – Capítulos IV, V e VI – mais do que textos sobre a produção de Foucault, Certeau escreve textos que revelam a sua admiração pela “revolução” causada pelos escritos foucaultianos, sobretudo, por “Vigiar e Punir” que ele considera como uma obra prima. Vale destacar aqui, que alguns comentadores criam uma oposição entre Certeau e Foucault, criando um grande equivoco. Não são pensadores em conflito, trata-se de pensamentos diferentes. Enquanto Michel Foucault busca entender a disciplina e a sociedade disciplinar, Michel de Certeau preocupa-se em perceber a antidisciplina, os meios e as táticas de fuga, de rompimento com a ordem. O texto, “o riso de Michel Foucault”, é um percurso pela personalidade de Foucault, em quem Certeau identifica um “um riso incontrolável”, dois pensadores que se negaram a ocupar um lugar fixo, estático. Foucault e Certeau ainda falam, suas falas habitam o texto. Vozes que escapam o jazigo que é o texto.

Os capítulos VII e VIII, estão relacionados a relação entre história e a escrita da história. Retomam questões, que de certa forma se fazem presentes em “A escrita da História”, contudo, não se afastam da proposta temática da coletânea, continuam ainda traçando caminhos pela psicanálise. Especificamente, o sétimo é uma discussão acerca do estruturalismo, corrente de pensamento de grande repercussão nos anos oitenta. O oitavo traz o ausente da história, é na verdade um texto sobre a escrita da história, ou, a elaboração do discurso histórico, um discurso que busca vestígios, pistas do outro, do passado, para elaborar um texto inteligível.

Concluindo, o capitulo de conclusão da coletânea é dedicado a Jacques Lacan, fundador da Escola Freudiana, de quem Certeau era membro ativo, nesses textos Michel de Certeau identifica nos seminários de Lacan, uma força criadora, (co) movedora de sentidos, Certeau foca sua análise naquilo que Lacan tanto utilizou. A voz, a voz que produz efeitos, gera experiências.

Mas o que Certeau causa em seu leitor? Não tenho respostas. A dúvida talvez seja mais forte e mais criadora do que a certeza. Duvidar faz criar outras respostas, a certeza me prende, me limita. Os textos de Michel de Certeau são como gravações, como pensa Gilles Deleuze, ao ler, o leitor atento, poderá escutar sua voz, suas pausas, suas entonações, a suavidade de sua voz e a força de seu pensamento. Melhor, o leitor atento poderá vê-lo, seu corpo franzino, seu olhar perspicaz, e a força de seu pensamento.

Os textos apresentados em “História e Psicanálise” revelam a sensibilidade e a potência do pensamento de Michel de Certeau, é um texto rico, profundo e povoado de vozes. Vozes de Certeau, de Lacan, de Foucault, vozes de leitores… Em 09 de Janeiro de 1986, uma triste quinta feira, Michel de Certeau morria, porém, não se calaria. Sua voz resiste ao caráter sepulcral do texto. A voz de Michel de Certeau continua ecoando em meio às instituições que legitimam o trabalho do historiador, mas, o pensamento certeauniano não conhece fronteiras, inquieta pesquisadores de múltiplos campos de saber. Certeau, certamente proporcionou uma revolução no pensar, no fazer. Revolucionou a nossa forma de escrever a história e nossa forma de perceber o cotidiano, o sujeito e a nós mesmos. Pois, a experiência do conhecimento de nada adianta se não modificar a nós mesmos, antes de tudo.

Notas

2. Cf. CHARTIER, Roger. Estratégias e táticas. À beira da falésia: a história entre certezas e inquietude. Tradução de Patrícia Chittoni Ramos. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2002.

3. Em “A invenção do Cotidiano” (Vol. 1 e 2.) Michel de Certeau se preocupa em perceber como as pessoas elaboram práticas cotidianas a partir de uma cultura ordinária, o cotidiano passa a ser inventado pelo sujeito através de suas artes, Certeau vê na invenção do cotidiano uma liberdade gazeteira, sorrateira, que age em micro espaços e micro ações.

Silvano Fidelis de Lira – Graduado em História pela Universidade Estadual da Paraíba (2012) e atualmente mestrando em História na Universidade Federal da Paraíba, desenvolve pesquisas sobre memória e sensibilidade. E-mail: [email protected]


CERTEAU, Michel de. História e psicanálise: entre ciência e ficção. Tradução Guilherme João de Freitas Teixeira. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011. Resenha de: LIRA, Silvano Fidelis de. Um pensamento inquieto: os caminhos de Michel de Certeau. Aedos. Porto Alegre, v.5, n.13, p.304-307, ago./dez., 2013. Acessar publicação original [DR]

A História como ofício: a constituição de um campo disciplinar – FERREIRA (RBH)

FERREIRA, Marieta de Moraes. A História como ofício: a constituição de um campo disciplinar. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2013. 464p. Resenha de: RODRIGUES, Lidiane S. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.33, n.66, jul./dez. 2013.

É na ponta de lança da pesquisa atual em história da historiografia que se localiza o livro de Marieta de Moraes Ferreira, recém-lançado pela editora da Fundação Getulio Vargas. Não o afirmo com favor, tampouco por protocolo do gênero resenha.

Qualquer observador sagaz da área nota que o crescimento de pesquisas em seu interior deu-se priorizando ‘grandes homens’ ou ‘grandes obras’, especialmente no que diga respeito aos tempos mais recentes e ao Brasil. Desde os estudos de Manoel Salgado Guimarães, o século XIX ganhou análises que se debruçaram sobre os nexos entre as instituições, sua sociabilidade e as concepções de história nelas correntes e delas decorrentes (Guimarães, 2011). Aos autores do século XX ficou reservado certo enlevo, como se fossem ‘intelectuais flutuantes’ – especialmente aos ensaístas anteriores à virada que deu origem às instituições universitárias que a partir dos anos 1930-1940 concentraram o ensino, e gradativamente a pesquisa, em história.1

Ultrapassamos lentamente tal fase, e A História como ofício: a constituição de um campo disciplinar parece, a um só tempo, colaborar nessa direção e ser sinal dela. O livro está dividido em três partes – a saber: “A História da História no Rio de Janeiro: da UDF à UFRJ”; “Perfis e trajetórias”; “Entrevistas com alunos e professores da UDF, da FNFI e do IFCS”.

Na primeira parte, encontra-se uma minuciosa reconstituição das vicissitudes que atravessaram o estabelecimento do primeiro curso de história no Rio de Janeiro, por meio de um conjunto de fontes diversificado e de uma quantidade considerável de informações: perfil social e intelectual dos professores, grade curricular, programas de curso, decretos federais, textos programáticos.

Na segunda parte, a escala muda, indo do quadro mais amplo de referência apresentado na primeira ao foco mais concentrado nas trajetórias de Henri Hauser, Delgado de Carvalho e Luiz Camillo, assim como da primeira geração propriamente ‘profissional’ do Rio de Janeiro. Vale assinalar a atenção cuidadosa da autora para a figura de Hauser, ligada à preocupação em esquadrinhar os caminhos da memória institucional que foi sobrevalorizando a presença das missões francesas em São Paulo, em detrimento da presença delas na capital (p.86 e 217). São cabíveis, de passagem, duas observações a respeito disso, aliás: Marieta de Moraes Ferreira foi aos arquivos do Ministério dos Assuntos Estrangeiro (MAE), em Nantes, auscultar redes envolvidas no recrutamento de quadros e no interesse da França pelo ensino no Brasil. Para os que não se satisfazem com uma história da historiografia que esconde os bastidores por que passaram os praticantes do ofício antes de brilharem em cena ou durante o espetáculo, a atitude é entusiasmante e abre um leque considerável para novas pesquisas.

Esta observação leva à segunda. Na qualidade de pesquisadora das missões francesas no curso de História e Geografia da Universidade de São Paulo (USP) em seus anos iniciais, encontrei na advertência de que as análises têm “supervalorizado o papel de Fernand Braudel e a influência dos Annales como elementos centrais na formação dos cursos de História” (p.92) a perspectiva aliada, que eu buscava há tempos. Pude, em outra oportunidade, assinalar, como o ‘historiador missionário’ manteve-se sob as rédeas dos laços de amizade mantidos e serviços prestados à sua clientela – a elite mentora da antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, por sua vez em peleja constante com o governo federal. Eram limitadas as possibilidades que tinha de não reproduzir uma ‘historia historicizante’, contra a qual sua obra já vinha sendo elaborada. Padecerá minguando de lastro empírico aquele que ligar imediatamente a recepção dos Annales à presença de Braudel entre 1935 e 1937, e mesmo posteriormente em passagens breves, na USP (Rodrigues, 2012, p.256-276).

A terceira parte, em que são transcritas entrevistas, parece se revestir de especial interesse, lidas à luz da composição do livro. É como se nelas fosse possível encontrar versões alternativas aos conflitos que animam a narrativa da autora e vislumbrar quais foram as saídas que construiu para, simultaneamente, considerar o que escutava enquanto ia colocando, tête-à-tête, versões orais e documentação escrita.

Seria o caso de se assinalar, por fim, um traço peculiar do livro. É sem grandes alardes teórico-metodológicos que ele se apresenta, na contramão da tendência que se dedica a longos introitos e citações de autores momentosos, cujo nexo com a pesquisa desenvolvida, por vezes, fica a desejar. Lidando todo o tempo com noções de institucionalização e autonomização das práticas científicas, que remetem no limite ao conceito de campo, de Pierre Bourdieu, estas são reconstituídas em seu processo de constituição. Dito de outro modo, ganham destaque tanto avanços quanto recuos no percurso de separação entre poderes político e eclesiástico e instituições de saber – daí, para além da óbvia atenção dirigida às intervenções do governo federal no estabelecimento/fechamento das instituições, a atenção ao perfil dos docentes católicos e sua orientação de ensino (notavelmente, p.38-40). Concomitantemente, são objeto de atenção os processos de divisão do trabalho internos a esse mesmo espaço – não exatamente autônomo, mas em constante conflito por autonomia, a certa altura da rotação dos perfis docente e discente (notavelmente, a divisão em dois cursos separados, Geografia e História, e o estabelecimento da disciplina “Introdução aos Estudos Históricos”). Livro com o qual se aprende, livro para se devorar.

Referências

GUIMARÃES, Maria Lucia Paschoal. Debaixo da imediata proteção imperial: Instituto Geográfico Brasileiro (1838-1889). [1995]. São Paulo: Annablume, 2011.         [ Links ]

MICELI, Sergio. Intelectuais à brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.         [ Links ]

RODRIGUES, Lidiane S. A produção social do marxismo universitário em São Paulo (1958-1978). Tese (Doutorado) – FFLCH, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2012.         [ Links ]

Nota

1 Talvez por isso cause algum furor ainda o esquema analítico nem de longe incorporado para o entendimento desses “intelectuais/historiadores desvinculados de instituições” que oferece Miceli, 2001.

Lidiane S. Rodrigues – Centro Universitário Fecap (Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado). E-mail: [email protected].

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Qual o valor da história hoje? – Marcia A. Conçalves, Helenice B. Rocha, Luís Resnik e Ana M. Monteiro

A inquietação que toma a forma de uma questão – Qual o valor da história hoje? – incomoda a todos os profissionais que têm como ofício escrever livros de história ou ensiná-la na educação básica. O Grupo de Pesquisa Oficinas da História colocou esta mesma pergunta aos seus próprios membros e a pesquisadores convidados para o Seminário Nacional O Valor da História Hoje, realizado em maio de 2010 na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Seu objetivo foi problematizar a própria interrogação e pensar respostas múltiplas e provisórias. As instigantes apresentações, enriquecidas pelas profícuas discussões realizadas, deram origem ao livro que transformou o título do Seminário numa pergunta – “Qual o valor da história hoje?” – de maneira a potencializar ainda mais a inquietação que o inspirou. Mas, para entender essa publicação, é preciso contextualizá-la no grupo de pesquisa que a produziu e articulá-la com as contribuições anteriores do Grupo Oficinas.

O Grupo de Pesquisa Oficinas da História dedica-se a pesquisas na área do ensino de história e vem produzindo contribuições importantes para as reflexões acerca desde campo de pesquisa desde a sua fundação, em setembro de 2004. O grupo apresenta um perfil interinstitucional e é composto por vinte pesquisadores que atuam ministrando aulas na graduação e pós-graduação em cursos de educação e de história. O Grupo Oficinas está sediado na Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e a maioria dos seus membros está situada em instituições universitárias desse estado, apesar de alguns deles atuarem em instituições de outros estados. O livro Qual o valor da história hoje? é a terceira publicação organizada por membros do grupo desde a sua criação. A primeira foi o livro A história na escola: autores, livros e leituras1 resultado do projeto desenvolvido entre 2005 e 2007 pelo Oficinas intitulado O Livro Didático como Discurso Historiográfico. A segunda publicação foi o livro A escrita da história escolar: memória e historiografia2 resultado de um projeto mais amplo intitulado Culturas Políticas e Usos do Passado – Memória, Historiografia e Ensino de História, que contou com a participação de alguns membros do grupo Oficinas.

O livro Qual o valor da história hoje?, organizado por Marcia Gonçalves, Helenice Rocha, Luís Reznik e Ana Maria Monteiro, reúne 16 textos apresentados no seminário nacional realizado em 2010. Entre 2009 e 2011, o Grupo Oficinas desenvolveu o projeto Ensino de História e Historiografia que, entre outras iniciativas, organizou o Seminário Nacional O valor da história hoje. Os textos das apresentações no seminário foram reorganizados no livro em três partes: “Formas de escrever e ensinar história”, “Memória e identidade” e “Tempo e alteridade”. Os temas que organizam essas partes são escolhidos em função de sua forma de aproximação de respostas possíveis à questão proposta no título.

O capítulo inicial da primeira parte nos ajuda a situar a questão de acordo com as diversas perspectivas acerca da história. O texto de Durval Albuquerque Junior – “Fazer defeitos na memória: para que servem o ensino e a escrita da história” – faz uma revisão sintética sobre os diferentes regimes historiográficos e a maneira como cada um deles pensou os usos e a função da história na sua dimensão formativa das subjetividades. Revisão audaciosa, que não se limita a resumir, mas interpreta e apresenta uma leitura da possível função do ensino de história hoje, historicizando o tempo presente e utilizando a compreensão da alteridade numa dimensão diacrônica para preparar os contemporâneos para a valorização da diversidade.

Os outros três capítulos que compõem essa parte também investem em reflexões teóricas sobre a escrita da história e o seu ensino. Márcia de Almeida Gonçalves, no texto “O valor da vida dos outros…”, aceita o desafio de pensar a questão título da obra pelo viés que a relaciona ao problema da consciência histórica, discutindo as concepções de sujeito e a produção biográfica. Maria Nazaré de Camargo Pacheco Amaral, no texto “Ciências do espírito: relações entre história e educação”, recupera a concepção de pedagogia defendida por Dilthey, na qual esta é pensada como uma tarefa filosófica e elevada à categoria de ciência do espírito. Por fim, Valdei Lopes de Araujo, no texto “A aula como desafio à experiência da história”, propõe-se a pensar os desafios pedagógicos para o enfrentamento, em sala de aula, da temporalidade em geral, através do diálogo com as contribuições filosóficas de Husserl e Heidegger.

A segunda parte do livro traz seis textos sobre a temática da “Memória e identidade” sob diferentes abordagens e utilizando diferentes referenciais teóricos. Eunícia Barros Barcelos Fernandes, no texto “Do dever de memória ao dever de história: um exercício de deslocamento”, discute os usos da memória frente às inquietações surgidas com a legislação que tornou obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena, a Lei 11.1645/2008, recorrendo ao conceito de consciência histórica. Luciana Heymann e José Maurício Arruti, no texto “Memória e reconhecimento: notas sobre as disputas contemporâneas pela gestão da memória na França e no Brasil”, traçam alguns paralelos entre as controvérsias públicas que envolvem o tema da memória nos contextos francês e brasileiro. Margarida de Souza Neves, no texto “Cartografias da memória: história, memória e ensino da história”, propõe um exercício de interpretação do mapa de Lopo Homem-Reinéis do século XVI como uma maneira metafórica de cartografar o continente da memória de forma a assinalar nesse mapa o lugar das disputas que lhe conferem relevo. Rui Aniceto Nascimento Fernandes, no texto “Uma província na disputa: como os fluminenses lidaram com a memória imperial na década de 1920”, discute as disputas em torno da memória imperial frente aos embates políticos da década de 1920, problematizando o impacto destas no campo das políticas públicas educacionais.

Os dois últimos capítulos da segunda parte enfrentam mais especificamente a temática da identidade. No texto “A história é uma escola: o paradigma do nacional na literatura didática de Viriato Correa”, José Ricardo Oriá Fernandes, utilizando uma concepção ampliada do conceito de livro didático, analisa a presença do nacionalismo nos livros escolares de Viriato Correa, com destaque para a História do Brasil para crianças (1934). Luís Fernando Cerri, no texto “Nação, nacionalismo e identidade do estudante de história”, discute e apresenta alguns resultados do projeto de pesquisa internacional “Nação, nacionalismo e identidade do estudante de história”, que, inspirado nas potencialidades do projeto europeu “Youth and history”, aplicou questionários aos jovens do Brasil, Argentina e Uruguai. Esses dois textos que concluem a segunda parte podem ser articulados com alguns dos textos da terceira parte que tratam do tema da alteridade. Cecilia Goulart, em “Alteridade e ensino de história: valores, espaços-tempos e discursos”, vai discutir o conceito de alteridade no contexto dos estudos da linguagem em perspectiva bakhtiniana, ilustrando-o com situações pedagógicas de diversas origens para, por fim, analisar situações de aulas de história. No texto “A leitura na aula de história como experiência de alteridade”, Helenice Rocha vai discutir a leitura comentada, uma prática comum no ensino de história, mediante a análise de aulas observadas na sua pesquisa. No capítulo intitulado “Do colorido à cor: o complexo identitário na prática educativa”, Júnia Sales Pereira busca discutir as polêmicas e disputas em torno das relações raciais no Brasil e os seus impactos na prática docente daqueles que se veem confrontados com essas questões em sala de aula.

Outra temática especialmente cara ao ensino de história é o objeto de três textos dessa última parte: o tempo. Ana Maria Ferreira da Costa Monteiro, no texto “Tempo presente no ensino de história: o anacronismo em questão”, aborda a questão do presente no ensino de história, recorrendo aos conceitos de regimes de historicidade e de acronia para lançar uma nova luz sobre esse problema. Em “Que passados e futuros circulam nas escolas de nosso presente?”, Carmen Teresa Gabriel aposta na análise de temporalidades recontextua–lizadas no ensino de história apropriando-se especialmente das reflexões teóricas de Paul Ricoeur sobre o tempo e a narrativa. “Aprender e ensinar o tempo histórico em tempos de incertezas: reflexões e desafios para o professor de história”, de Sonia Regina Miranda, aponta alguns desafios contemporâneos enfrentados pelos professores de História ao lidar com a complexa questão do tempo histórico através da análise das representações do tempo encontradas em livros didáticos.

Esta breve apresentação das temáticas de cada uma das três partes do livro e um breve panorama dos objetos e objetivos de cada um dos seus capítulos serve apenas como um convite para aqueles que se interessam pelo ensino de história. O que constitui o maior mérito do livro é a maneira coerente como os diversos capítulos convergem de diferentes maneiras no enfrentamento da inquietação presente em seu título e a atualidade das discussões e referenciais teóricos utilizados. Mas o livro traz outra marca, além da inquietação com relação ao valor da história hoje: a tentativa de lidar com a perda do professor Manuel Salgado Guimarães, citado e mencionado em diversos textos que fazem parte desta coletânea. Os capítulos da obra reconhecem e valorizam a importância das obras de Guimarães para o estudo da historiografia, do ensino de história e da relação entre esses dois campos de pesquisa. O livro Qual o valor da história hoje? acaba por constituir uma bela homenagem à herança intelectual de um colega que fará tanta falta nas oficinas da História e de seu ensino.

Notas

1. ROCHA, H.; REZNIK, L.; MAGALHÃES, M. (Org.). A história na escola: autores, livros e leituras. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2009.         [ Links ]

2. ROCHA, H.; MAGALHÃES, M.; GONTIJO, R. (Org.). A escrita da história escolar: memória e historiografia. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2009.         [ Links ]

Fernando de Araujo Penna – Doutor em Educação (UFRJ), professor de história do Colégio Santo Inácio. R. São Clemente, 226, Botafogo. 22260-000 Rio de Janeiro – RJ – Brasil. E-mail: [email protected].


GONÇALVES, Marcia de A.; ROCHA, Helenice Ap. de B.; RESNIK, Luís; MONTEIRO, Ana M. F. da C. (Org.) Qual o valor da história hoje?. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012. 328p. Resenha de: PENNA, Fernando de Araujo. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.33, n.65, 2013. Acessar publicação original [IF]

A história pensada: teoria e método na historiografia europeia do século XIX – MARTINS (HH)

Teoria da história; Historiografia; Século XIX.

 

MARTINS, Estevão de Rezende (org.). A história pensada: teoria e método na historiografia europeia do século XIX. São Paulo: Contexto, 2010, 256 p. Resenha de: BENTIVOGLIO, Julio. Entre a história e o cânone: a ciência histórica oitocentista e seus textos fundadores. História da Historiografia. Ouro Preto, n. 8, 175-18, abril 2012.

É deveras conhecida a relação intrínseca entre a produção do conhecimento histórico e sua dimensão narrativa. Desde Aristóteles (1989) esta dimensão tem sido pensada em maior ou menor grau por diferentes teóricos e historiadores, de Luciano de Samósata (2009) a Paul Ricoeur (1994). Muito já se escreveu sobre o fato de que a história além de ciência é arte – tal como no célebre texto de Leopold von Ranke, que integra a coletânea aqui resenhada – visto ser ao mesmo tempo reflexão, pesquisa e método, mas, também, escritura.

O que dá forma e confere sentido a todo e qualquer estudo sobre o passado brota da pena dos historiadores, do modo como refiguram os acontecimentos através de narrativas com começo, meio e fim; cujas ações encontram-se ordenadas em torno de uma intriga. Vista sob este ângulo, a ciência histórica e por conseguinte toda a historiografia integram um vasto e instigante conjunto de textos, dentre os quais alguns se destacam, pela qualidade de suas proposições, por sua abordagem, pelo modo como abarcam seu objeto, enfim por sua natureza distintiva.31 O campo da teoria da história, que reúne reflexões epistemológicas, discussões sobre o método, sobre a história da historiografia ou a respeito das filosofias da história, não é indiferente a isso e dele, frequentemente, emergem textos canônicos. Textos que se tornam modelares no conjunto das obras históricas, que são reconhecidos como tal pelos praticantes do ofício. Assim, também os historiadores, em diferentes épocas, reconhecem a presença de seus textos clássicos. Entenda-se aqui um clássico como uma obra especial, um modelo exemplar, uma narrativa que reúne enorme potência criativa, expressando de maneira particular as possibilidades cognoscitivas e estéticas de seu tempo e que, além disso, torna-se referência obrigatória a exercer, direta e indiretamente o que, parafraseando Harold Bloom, poderíamos chamar de angústia da influência (cf. BLOOM 1995). Como negar o peso da tradição rankeana nos estudos históricos? Como não localizar em Buckle, por exemplo, momento vetorial na historiografia anglo-saxã? Autores como estes provocam e estimulam o debate epistemológico posterior, decisivamente. Em outras palavras, clássico seria todo texto cuja capacidade de produzir reflexão impressiona por sua longevidade, atraindo e desafiando leitores. O século XIX, por ser o século no qual se constituiu a disciplina da historiografia no sentido contemporâneo do termo (MARTINS 2010, p. 4), quando se estabeleceu a ciência histórica autônoma, apartada da filosofia e da literatura, foi, não por acaso, bastante pródigo em nos oferecer obras canônicas que constituíram um primeiro corpo de regras e normas para o ofício do historiador, configurando um momento estratégico para se pensar o surgimento da História como um novo saber (cf. BENTIVOGLIO 2009, p. 8-11). É sobre este momento que se debruça esta obra pioneira no Brasil, organizada pelo professor titular de teoria da história na Universidade de Brasília (UnB), Estevão de Rezende Martins – A história pensada: teoria e método na historiografia europeia do século XIX, publicada em 2010.

Membro da direção da Comissão Internacional de História e Teoria da Historiografia, ao lado de Georg G. Iggers, Charles-Olivier Carbonell, Jörn Rüsen, Hayden White e Frank Ankersmit, o professor Estevão Martins reuniu um pequeno conjunto de renomados pesquisadores brasileiros que se dedicam ao estudo da teoria da história para analisar alguns dos textos fundadores da ciência histórica oitocentista europeia, a maioria deles sem tradução em português e outros que já tinham sido traduzidos, mas jaziam em revistas de difícil acesso e pequena tiragem. Iniciativa pioneira entre nós,2 que repete o êxito de obras similares e inspiradoras como The varieties of history de Fritz Stern (1973), lançada originalmente em 1956 nos Estados Unidos, ou ainda Theories of history lançada em 1959 por Patrick Gardiner (2004), que, como se observa, ilustram uma anterioridade significativa. Em solo brasileiro, deve-se mencionar a pequena coletânea organizada por Maria Beatriz Nizza da Silva, Teoria da história lançada em 1976. De qualquer modo, ao contrário da comunidade anglo-saxã, não havia no Brasil a publicação de coletâneas que integrassem a tradução de textos seminais no campo da teoria da história oitocentista, apresentados e discutidos por especialistas. Só isso bastaria para destacar sua importância e sublinhar o mérito da obra em tela. Mas o caráter representativo, em que pese algumas ausências, dos autores e textos selecionados diz muito sobre o estado do campo naquele período. Nesse sentido, não seria ocioso reconhecer o peso da tradição historiográfica germânica na composição do cânone histórico durante o século XIX, bem como nesta coletânea de Estevão Martins: dos dez textos clássicos reunidos, sete são oriundos daquele universo. À primeira vista, portanto, ressalta-se a virtude incontestável deste livro, ao brindar pesquisadores, estudantes e interessados nos estudos históricos em conhecer momentos altos da reflexão historiográfica ocidental, com textos que constituíram os fundamentos da teoria e da metodologia histórica contemporâneas, tratando-se, portanto de obra essencial e obrigatória. Convite mais que justificado para sua leitura.

Não resta dúvida de que Thomas Carlyle, Johann Gustav Droysen, Ernst Bernheim, Wilhelm von Humboldt, Theodor Mommsen, Karl Lamprecht, George Macaulay Trevelyan, Burckhardt, Leopold von Ranke e Thomas Buckle são altamente representativos do momento de definição de um novo campo do saber, em que ocorreu um verdadeiro renascimento dos estudos sobre o passado, na virada do Iluminismo para o Romantismo, por meio de um diálogo fecundo com o historicismo, no qual a reivindicação da pesquisa e da crítica de fontes originais se coadunou com a formulação de princípios teóricos e métodos de abordagem, que conferiram um caráter científico à história (MARTINS 2010, p. 10).

Embora não seja obra exaustiva na seleção de textos e autores representativos daquele processo, A história pensada vale não somente por reunir alguns textos fundamentais, mas, sobretudo pela qualidade analítica das apresentações que situam e discutem aqueles mesmos textos. Sua leitura permite que se faça a conexão dos progressos vividos pela historiografia durante o século XX tendo em vista o diálogo e os contrastes produzidos face à historiografia do século anterior. Outro aspecto favorável do livro reside no fato de seu organizador ter escolhido fragmentos de obras e determinados textos que estabelecem um claro diálogo entre si, lendo-os vislumbra-se um conjunto de preocupações mais ou menos comuns e constantes que são compartilhadas entre os diferentes historiadores oitocentistas. Primeiro ao indagar sobre o que é e como se faz a história. Segundo ao levantar questões que ainda hoje recebem atenção, referentes ao sentido do passado, sobre a peculiaridade do objeto da investigação histórica, sobre o método histórico e, por fim, sobre a natureza da escrita da história.

Ao se debruçar sobre o século da história, em que ocorreu formação das primeiras escolas históricas, vislumbra-se a possibilidade efetiva de localizar um processo de institucionalização daquele saber, que se consolida e se autonomiza como um lugar no interior dos estudos acadêmicos, através do surgimento de inúmeras cadeiras de história nas universidades europeias.

Institucionalização que é acompanhada por outros elementos fundadores, criando espaços de poder em meio à sociedade, detectados em seu reconhecimento pelos Estados, seja mediante sua adesão aos nacionalismos triunfantes, seja através da ocupação de cargos importantes no interior dos governos – muitos historiadores foram ministros, conselheiros, diretores de academias científicas, administradores dos arquivos e instituições de memória.

Esses lugares são acompanhados por um renovado interesse de publicação e leitura de obras históricas. Ou seja, materializam um processo no qual um tipo de saber se configura como um poder, parafraseando Michel Foucault (2002), ao criar uma nova disciplina acadêmica que efetiva dispositivos de validação de seu discurso científico reconhecidos e acolhidos pelos historiadores, que passam a adotá-los e praticá-los, aderindo a determinados regimes de autoridade e de escrita da história.

os mestres do ofício e que configurarão, através do conjunto de artigos publicados e das diretrizes editoriais impostas, uma verdadeira fisionomia para os estudos históricos, indicando alguns traços que permitem reconhecer linhas de força, características e grupos mais influentes, dentre outros aspectos. Nesse sentido, vale a pena lembrar que o século XIX conheceu importantes escolas históricas: como a escola liberal (whig) inglesa, a escola romântica francesa, a escola histórica alemã e suas multifacetadas subcorrentes, em especial a escola histórica prussiana, além da escola metódica francesa de Gabriel Monod e seus discípulos. Evidentemente, este recurso classificatório não se faz sem dificuldades, haja vista a existência de determinadas escritas da história que se inspiram em outros modelos, como é o caso da historiografia portuguesa e sua adesão ao realismo literário que, de certo modo, inspirou Adolpho Varnhagen no Brasil5 ou ainda de alguns historiadores que não se vinculam, pelo menos sem tensão, àqueles regimes de escrita e modelos de abordagem, como é o caso de Karl Lamprecht, por exemplo.

Destacando-se determinados textos que informam caminhos de leitura e de método, constitui-se uma tradição de leituras de ordem teórico-metodológica, com suas diretrizes e reflexões, que se tornam clássicas. E, como afirma Italo Calvino, um clássico é uma obra que nunca termina aquilo que quis dizer, são livros “que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessam” (CALVINO 2001, p. 15). Eles estabelecem uma linhagem, uma genealogia. E são leituras que nos trazem surpresas, que oferecem descobertas, ou ainda nas palavras daquele autor: O clássico não necessariamente nos ensina algo que não sabíamos; às vezes descobrimos nele algo que sempre soubéramos (ou acreditávamos saber), mas desconhecíamos que ele o dissera primeiro (ou que de algum modo se liga a ele de maneira particular). E mesmo esta é uma surpresa que dá muita satisfação, como sempre dá a descoberta de uma origem, de uma relação, de uma pertinência (CALVINO 2001, p. 12).

Assim, como não reconhecer a linhagem historicista nos textos apresentados nesta coletânea em que se evidencia uma forte tradição germânica, observada desde a agenda proposta por Humboldt e Ranke, passando pelas definições teórico-metodológicas de Droysen e Bernheim que se desdobram de maneira lírica em Burckhardt e agônica em Lamprecht? Como não vislumbrar, tal como as discussões promovidas na obra levam a sentir, ou promover a refutação do mito de uma historiografia positivista tanto nos metódicos alemães, quanto em Buckle, em torno da questão do fato histórico? Estas são constatações que surgem tanto nas apreciações críticas introdutórias dos colaboradores, quanto na leitura dos próprios textos desta coletânea. Elas revelam, entre outras coisas, de que maneira aqueles historiadores relacionavam, em suas obras, de maneira complexa, empiria e pragmatismo. Compreender estas questões torna-se tarefa imprescindível para se compreender as críticas posteriores que lhes são feitas, por exemplo, pelos fundadores dos Annales aos metódicos franceses – como Gabriel Monod ou Victor Seignobos, os quais, infelizmente, não figuraram neste volume.

Renato Lopes, professor na Universidade Federal do Paraná, abre o livro com sua apresentação sobre Thomas Carlyle (1795-1881), historiador escocês marcado pelo recurso à retórica e com um estilo primoroso de escrita, que propunha “uma mistura peculiar entre o histórico e o literário, o biográfico e o heroico, o figural e o literal, o histórico e o mítico” (MARTINS 2010, p. 18). Fato compreensível visto ele ter iniciado sua carreira exercendo a crítica literária. Dos românticos alemães e da literatura passou a redigir obras históricas, devotadas às ações de figuras destacadas como Cromwell, Luis XVI, Goethe, ou seja, preservando a mística em torno dos heróis, considerados como uma encarnação do universal. Segue-lhe a tradução de Sobre a história de 1830 e Sobre a história, outra vez de 1833, onde são feitas digressões inspiradas a respeito da relação entre os fatos e a escrita da história, sobre as ações humanas e seus sentidos possíveis, nas quais aquele autor revela que “o evento mais relevante é talvez o que de todos é o menos comentado” (MARTINS 2010, p. 27). De modo semelhante a Ranke, Carlyle postula a existência de uma história universal que não deve desprezar as existências singulares, a homens “cuja vida heroica fora outrora uma nova revelação e um novo desenvolvimento da própria vida. Homens, cuja vida heroica fora um bem comum” (MARTINS 2010, p. 29).

Arthur Assis nos apresenta Johann Gustav Droysen (1808-1884), cuja tradução do texto de 1868, Arte e método ficou a cargo de Pedro Caldas. Devo salientar que esta feliz junção, reuniu os dois maiores conhecedores daquele historiador alemão no Brasil. Lamentavelmente ainda pouco conhecido entre nós, Droysen foi, ao lado de Ranke, um dos maiores historiadores do século XIX e sua obra representa um ponto de convergência metodológica central para boa parte da historiografia germânica posterior. Nas palavras de Assis, A originalidade da teoria da história de Droysen decorre da sua inusitada síntese de filosofia da história, teoria do conhecimento, metodologia, e teoria da historiografia. Tal síntese foi concebida por Droysen no contexto da autonomização da História enquanto disciplina acadêmica nas universidades alemãs (MARTINS 2010, p. 33).

O mérito maior da Historik, obra fundamental daquele autor, reside na clareza com que postula um método e um objeto específico para a história, contrapondo-a aos estudos filosóficos e às ciências naturais. Essa particularidade seria depois desenvolvida pela análise de Wilhelm Dilthey, quando funda as ciências humanas ou do espírito, propondo-lhes um método específico: a compreensão (Verstehen) (DILTHEY 2010). Em Arte e método, Droysen busca demonstrar as tensões e os limites entre a ciência e o diletantismo, este último muito comum naqueles estudiosos do passado que não haviam recebido formação de historiador.

Estava claro para Droysen que o conhecimento da crítica histórica, desenvolvida em Göttingen e materializada na História romana de Barthold Niebuhr era obrigatório. Ao mesmo tempo, ele criticava a presença dos modelos retóricos estrangeiros, tão apreciados pelos alemães. E acentuava a necessidade de se valorizar o lado científico, metodológico e empírico dos estudos históricos.

Ernst Bernheim (1850-1942) e seu Metodologia da ciência histórica de 1908 são apresentados e traduzidos, novamente, por Arthur Assis. Bernheim é famoso por seu Manual do método histórico, publicado em 1889, que serviu de modelo e inspiração para o famoso manual de Langlois e Seignobos de 1898.6 Valorizando o cultivo à erudição e à crítica histórico-documental, Bernheim foi um dos pioneiros na produção de um livro especificamente devotado ao método histórico, filiado à tradição de Johan M. Chladenius e de Johann G. Droysen.

Nele se esforça para sublinhar a relação entre o método de abordagem e a síntese (Auffassung) analítica dos fatos. Esta conexão, já tinha enlevo nas reflexões de Humboldt e Ranke, afinal, “tudo está conectado”, diz este último (MARTINS 2010, p. 67). Singularidade e universalidade, confiabilidade e incerteza, recurso à comparação, desafio ao ceticismo e ao relativismo são ainda momentos importantes do referido texto, cuja tradução é mais que bem-vinda.

Pedro Caldas apresenta Wilhelm von Humboldt (1767-1835) e traduz sua famosa conferência proferida na Universidade de Berlim em 12 de abril de 1821, Sobre a tarefa do historiador. Um dos pilares do historicismo alemão, Humboldt embora tenha escrito pouco a respeito da história, ofereceu uma verdadeira agenda para a historiografia alemã. Aliás, duplamente. Primeiro ao reorganizar uma universidade que, de periférica, se tornaria um centro de excelência e uma verdadeira referência às congêneres alemãs e também europeias, situando Berlim no coração do pensamento europeu oitocentista, reservando à história um lugar destacado junto aos demais campos do saber cultivados e projetando seus mestres em toda Europa, tais como Ranke, Hegel ou Droysen e, também ao indicar o cerne da operação historiográfica: pesquisar, encontrar nexos, compreender e narrar. Humboldt não foi somente estadista, pensador e escritor, mas, sobretudo, o disseminador de um novo espírito, cujos fundamentos se localizam na pesquisa científica e na formação (Bildung) humana. Ler seu verdadeiro manifesto aos estudiosos do passado dissipa qualquer preconceito ingênuo de que os historiadores alemães apenas se limitavam a narrar os fatos como ocorreram, afinal, após a triagem dos fatos o historiador deveria buscar seus nexos, buscar a parte invisível, recorrendo à imaginação e à criatividade, partes integrantes da análise documental e da exposição do passado através da escrita.

Estevão Martins se encarrega de analisar e apresentar Theodor Mommsen (1817-1903) e seu discurso de posse na Reitoria da Universidade de Berlim em 15 de outubro de 1874, O ofício do historiador. Curiosamente mais uma vez aqui temos a confluência entre história, literatura e narrativa – esta última uma verdadeira cicatriz de origem às primeiras –, visto seu livro sobre a história de Roma ter sido agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura em 1902, consagrando-se, duplamente, como cânone: entre literatos e historiadores. O ponto alto daquela obra é o modo como nela se urde o enredo em torno da ascensão e queda de uma figura singular da história romana: Caio Julio Cesar. E no texto traduzido se destaca, mais uma vez, a relação entre história e arte, no qual Mommsen reconhece que “o historiador pertence talvez mais aos artistas do que aos intelectuais” (MARTINS 2010, p. 109). Conforme entende Estevão Martins, a síntese entre os elementos científicos oriundos da crítica documental e o recurso à erudição com a forma da argumentação conferem à história mommseniana sua principal marca. Ou seja, A erudição se alcança, no entanto, ao longo da disciplina metódica da investigação, como projeto de vida e de inserção social e política, é a que habilita à síntese interpretativa, à narrativa histórica e historicizante, cuja riqueza estilística recorre à beleza estética da escrita para dar forma à rigidez da pesquisa das fontes (MARTINS 2010, p. 109).

Karl Lamprecht (1856-1915) e seu História da cultura e história publicado em 1910 são habilmente esquadrinhados por Luiz Sérgio Duarte, professor de teoria e metodologia da história na Universidade Federal de Goiás, na breve apresentação e respectiva tradução, embora deva ser dito que aquele historiador carece de maiores estudos e traduções, pois, representa uma verdadeira inflexão nas ciências históricas alemãs e na própria trajetória do historicismo germânico, rumo a uma nova fase. Como aponta Duarte, Lamprecht é um dos pivôs do Methodenstreit e eu diria que, ao lado de Dilthey, abriu uma nova seara para os estudos sociais e culturais, aproximando-os da psicologia social e promovendo uma interdisciplinaridade mais radical a fim de propor seu conceito de épocas culturais.

Novamente Estevão Martins aparece apresentando George Macaulay Trevelyan (1876-1962) e o seu Viés na história publicado em 1947 e traduzido por Pedro Caldas. E mais uma vez ressurge, tal como preconizava aquele influente historiador britânico, a imagem da historiografia como uma variante da arte literária, visto reivindicar a satisfação do universo de leitores, especialistas ou não, e alimentar sua desconfiança dos historiadores científicos. À sentença de morte declarada por Lord Acton em 1903, quando diz que a história não é um ramo da literatura, muito semelhante aos esforços de Fustel de Coulanges na França décadas antes, Trevelyan reivindica um retorno ao romantismo e “opera com uma noção restritiva de ciência” (MARTINS 2010, p. 135). Se a história não podia pleitear a certeza tal qual as ciências naturais, seria o caso, concorda Martins, de extrair disso a sua força. Não por acaso, definirá o viés como sendo “toda interpretação pessoal de eventos históricos que não é aceitável por toda a raça humana” (MARTINS 2010, p. 139) e afirmará que “os argumentos de Carlyle têm peso não por causa de seu viés, mas apesar dele” graças à sua à genialidade como escritor (MARTINS 2010, p. 142). Neste texto seminal, Trevelyan discute ainda temas candentes da reflexão historiográfica relacionados à objetividade, à imparcialidade, relacionando-os concretamente a grandes escritores como Gibbon, Burke, Tocqueville, Taine, Treitschke e Mommsen. Sobre estes últimos sentencia: “em vão vocês tentarão encontrar tal imparcialidade em Treitschke e Mommsen”. Ou ainda sua consideração quanto às funções do historiador: a) revelar as consequências e permanências das ações do passado no presente e b) identificar sentimentos e interesses humanos no passado, ou seja, compreender como as pessoas viviam e sentiam. De modo mais categórico: “compreender o passado em todos os seus lados” (MARTINS 2010, p. 153).

Em seguida, Cássio da Silva Fernandes, professor da Universidade Federal de Juiz de Fora, traduz e apresenta a introdução da História da cultura grega publicado em 1872 por Jacob Burckhardt (1818-1897), historiador que teve como aluno o futuro filósofo Friedrich Nietzsche e, em seguida a aula inaugural de seu curso de história da arte na Universidade da Basileia intitulada Sobre a história da arte como objeto de uma cátedra acadêmica publicada em 1874.

Ocioso dizer que Fernandes é o maior conhecedor da obra de Burckhardt no Brasil.7 O esforço distintivo para a narrativa histórica e sobre o melhor modo de empreender a exposição do que foi pesquisado é explicitada da seguinte maneira: Fazer a história dos modos de pensar e das concepções dos gregos é indagar quais forças vitais, construtivas e destrutivas, agem na vida grega.

Então, não em forma narrativa, porém muito mais em forma histórica – já que sua história constitui uma parte da história universal […]. O indivíduo particular e o assim chamado acontecimento serão citados aqui apenas como testemunho do universal, não por si mesmos; porque a realidade de fato que procuramos é constituída pelos modos de pensar, também estes são fatos históricos (MARTINS 2010, p. 168).

Preconizando a necessidade da erudição, de leitura dos clássicos e sem descuidar de outros tipos de fontes documentais, Burckhardt convida a discutir a relação entre particularidade e universalidade, pensando a história da civilização grega como uma seção da história da humanidade (MARTINS 2010, p. 173).

Do mesmo modo, pensa a arte como um objeto específico a ser pesquisado pelos historiadores historicamente e não apenas esteticamente.

Ponto alto da obra é o capítulo sobre Leopold von Ranke (1795-1886) de Sérgio da Mata, bem como sua tradução d´O conceito de história universal de 1831. Ali não somente encontramos o maior historiador do século XIX como também uma das melhores análises já feitas a seu respeito, desde a célebre introdução de Sérgio Buarque de Holanda (1981). Com precisão, Sérgio da Mata esmiúça e investiga aspectos centrais do célebre historiador germânico, desmistificando o mito historiográfico construído em torno de sua figura, indicando o percurso de sua formação, bem como suas principais contribuições à ciência histórica contemporânea. Dada a erudição do ensaio, por sinal o mais extenso na coletânea, seriadifícil sintetizar aqui todas suas virtudes, no entanto, forçoso é sublinhar o modo como discute o suposto apartidarismo rankeano, o problema da objetividade, bem como sua complexa faceta política como editor da Revista Histórico-Política entre 1832 e 1836. No texto traduzido, vemos uma lúcida análise de Ranke sobre o ofício do historiador e a operação historiográfica, inscrita criticamente entre o trabalho com as fontes e a exposição narrativa, entre a filosofia e a poesia, afinal “a História não é uma coisa nem outra”, dirá ele, “ela promove a síntese das forças espirituais atuantes na poesia e na filosofia sob a condição de que tal síntese passe a orientar-se menos pelo ideal – com o qual ambas se ocupam – que pelo real” (MARTINS 2010, p. 202).

Fechando a obra em grande estilo há ainda a análise de Valdei Araújo sobre Buckle (1822-1862) e sua tradução da Introdução geral à história da civilização na Inglaterra de 1857, que, de maneira semelhante a Sérgio da Mata no capítulo sobre Ranke, procura romper com o “j’accuse” de Pierre Bordieu em relação à ilusão biográfica (BORDIEU 2005). Ali vida e obra preservam liames, indicam momentos de pertenças e conexões, pois, nas palavras de Valdei Araújo “as explicações de Buckle permanecem no interior do senso comum historiográfico inglês da era vitoriana” (MARTINS 2010, p. 219), embora manifestasse também contrastes. Assim, apesar de compartilhar com a crença excessiva no evolucionismo progressista, no papel modelar da História, ou com o orgulho nacional dos historiadores escoceses, Buckle demonstra sensíveis divergências metodológicas aproximando-se do pensamento de John S. Mill e de Auguste Comte. De maneira arguta, Araújo sublinha a necessidade de uma reavaliação crítica da historiografia oitocentista e de sua heterogeneidade “encoberta por rótulos ingênuos como “tradicional, não crítica ou positivista” (MARTINS 2010, p. 219). E assevera: mesmo esses rótulos, herança de uma história das ideias muito rígida, deveriam ser substituídos por objetos mais capazes de recuperar a complexidade dos fenômenos que neles se escondem, desde a formação de tradições de linguagens político-intelectuais e de conceitos históricosociais até a montagem de instituições e ideologias. Insistir em uma história intelectual internalista e desencarnada pode ser um passatempo louvável, mas pouco contribuirá para a compreensão efetiva da formação de nosso modo de pensar e escrever a história e, por isso, em nossa capacidade de fazê-la avançar (MARTINS 2010).

Penso que essa avaliação resume o tom geral de A história pensada e confirma seu lugar ímpar dentre os livros recentemente publicados a respeito, ao trazer a lume um momento decisivo da historiografia ocidental, localizando autores e problemas fundamentais que foram transformados em clássicos pela tradição, ao mesmo tempo em que nos convida a problematizá-los e questioná- -los, mobilizando e desmobilizando sua força canônica nos labirintos da temporalidade e de sua própria historicidade, a fim de rever rótulos, mitos historiográficos e sugerir novas linhas interpretativas.

Referências

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BENTIVOGLIO, J. A Historische Zeitschrift e a historiografia alemã do século XIX. História da Historiografia, n.6, p.81-101, 2011.

_________________. Apresentação. In: DROYSEN, Johann G. Manual de teoria da história. Trad. Sara Baldus e Julio Bentivoglio. Petrópolis: Vozes, 2009.

BLOOM, Harold. O cânone ocidental: os livros e a escola do tempo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 1995.

BOURDIEU, Pierre. A Ilusão biográfica. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes; PORTELLI, Alessandro. Usos e abusos da história oral. 6ª ed. Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 2005.

CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos? São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

CERTEAU, Michel de. A operação historiográfica. In:_____. A escrita da história.

Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.

CESAR, Temístocles. Quando um manuscrito torna-se fonte histórica: as marcas da verdade no relato de Gabriel Soares de Souza (1587). Ensaio sobre uma operação historiográfica. História em Revista, v.6, p.37-58, 2000.

DILTHEY, Wilhelm. Introdução às ciências humanas. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.

FERNANDES, C. S. Biografia e autobiografia na civilização do renascimento na Itália de Jacob Burckhardt. História, questões e debates, v.1, p.155- 198, 2004.

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

GARDINER, Patrick. Teorias da história. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2004.

HARTOG, François. Regimes d’historicité: presentisme et experience du temps. Paris: Editions du Seuil, 2003.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Ranke. São Paulo: Ática, 1981.

LANGLOIS, C.; SEIGNOBOS, C. Introdução aos estudos históricos. São Paulo: Renascença, 1946.

LUCIANO DE SAMÓSATA. Como se deve escrever a história. Belo Horizonte: Tessitura, 2009.

MALERBA, Jurandir. Lições de história. Rio de Janeiro: Porto Alegre: FGV, Editora PUC-RS, 2010.

MARTINS, Estevão de Rezende. A história pensada: teoria e método na historiografia europeia do século XIX. São Paulo: Contexto, 2010.

RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Tomo I. Campinas: Papirus, 1994.

SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Teoria da história. São Paulo: Cultrix, 1976.

STERN, Fritz. The varieties of history. New York: Vintage Books, 1973.

WHITE, Hayden. O texto histórico como artefato literário. In:_____. Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo: Edusp, 1994.

Notas

1 A referência explícita aqui é Hayden White (2004), ao compreender as narrativas históricas como artefatos literários, que podem ser examinadas em sua forma literária, através das modalidades de urdidura de enredo, segundo princípios estilísticos e à luz das figuras de linguagem.

2 Em seguida acompanhada pela publicação de outra coletânea também obrigatória: Lições de história de Jurandir Malerba (2010).

3 Alguns textos começam a ser vistos como modelos e consagram obras de alguns historiadores como referenciais. Naquele momento surgem também as revistas de história como mais um importante instrumento de institucionalização do campo e, consequentemente, das escolas históricas.4 Esse é o caso da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro criada em 1839, da Historische Zeitschrift de 1859, da Revue Historique de 1876 ou da American Historical Review de 1883, dentre outras. São essas revistas que irão consagrar 3 A esse respeito são exemplares as contribuições de Michel de Certeau (2002) e de François Hartog (2003), pensando o aspecto disciplinar em torno da escrita da história.

4 Em que pese a dificuldade de localizar escolas e delimitar seus integrantes a partir da criação e publicação em periódicos, ver a tentativa que fiz em relação à Historische Zeitschrift e a historiografia alemã no século XIX (BENTIVOGLIO 2011).

5 Tal como demonstra Temístocles Cezar (2000) em artigo recente.

6 Trata-se do muito citado, mas pouco lido: Introdução aos estudos históricos.

7 Àqueles que desejam iniciar-se naquele historiador, recomendo o texto pontual publicado em História: questões e debates (FERNANDES 2004).

Julio Bentivoglio – Professor adjunto Universidade Federal do Espírito Santo. E-mail: [email protected] Avenida Fernando Ferrari, 514 29075-910 – Vitória – ES Brasil.

Qual o valor da história hoje? | Márcia A. Gonçalves, Helenice Rocha, Luís reznik e Ana Maria Monteiro

Coletânea resultante de um seminário ocorrido em 2010, intitulado o valor da história hoje, o livro organizado pelos historiadores Márcia de Almeida Gonçalves, Helenice Rocha, Luís Reznik e Ana Maria Monteiro, lança uma interrogação que desloca a certeza presente no título original para um ponto ignoto, ao qual concorrem os mais diversos juízos, e que como a própria apresentação da obra sugere, tem a intenção de indicar o caráter movediço do dilema.

Qual o valor da história hoje? revisita a problemática relação constituída entre a teoria da história e a didática da história, só que com a singularidade de uma argumentação tecida com base em objetos pouco habituais neste tipo de tema: é a tensão resultante da inter-relação entre memória e história, e a necessidade do ingresso de debates sobre questões do tempo presente – ou ao menos que estabeleçam ligações com ele – na sala de aula, que orientam as discussões.

A obra reúne as reflexões de um significativo contingente de pesquisadores com estudos voltados principalmente para questões de teoria e método. O desafio do livro reside na conciliação entre as abordagens mais atinentes à epistemologia da disciplina histórica e aquelas que partem de elementos vinculados aos aspectos cognitivos da pedagogia. O primeiro ponto de convergência é a temática que atravessa as divisões do livro: as permissões e interdições impostas pelos sentidos atados à experiência – a vivência e a sua correlata memória –, ao estabelecimento do discurso histórico. Um segundo ponto, este inferido por um menor número de textos, está no entendimento de que um dos lugares onde essa questão se apresenta com maior riqueza é a sala de aula.

O efeito das aproximações e distanciamentos entre os textos se nota na ordem instituída pela organização dos capítulos. Como as rubricas, memória, tempo, e ensino de história, perpassam a maioria dos textos, de fato, parece impossível que se imputasse classificações fechadas que satisfizessem indubitavelmente alocações conjuntas ou separações dos textos. Ainda assim, o resultado é bastante inteligível.

A coletânea se divide em três partes: Formas de escrever e ensinar história, Memória e identidade e Tempo e alteridade. Apesar de atenderem a designação dos subcapítulos, a organização dos textos indica o estabelecimento de uma gradação que ultrapassa os aspectos mais visíveis. Tempo e alteridade relaciona os artigos que melhor trataram da relação entre os formatos e tipos de transmissão da narrativa e a sala de aula; Memória e identidade se apresenta como uma miscelânea de textos que guardam significativa distância entre si, aproximadas em grande parte por discussões que circundam a bandeira do nacionalismo e os sentidos de identidade; e Formas de escrever e ensinar história ensaia uma discussão relativa à variação de tropos, problemas, e parâmetros de subjetividade na escrita da história.

Uma característica que fica clara é que enquanto alguns textos, como os de José Ricardo Oriá Fernandes e Margarida de Souza Neves, acerca da literatura de Viriato Correa, e da relação entre cartografia e memória, respectivamente, buscam suas respostas em elementos pertinentes à pesquisa no âmbito acadêmico, salientando um determinado valor da cultura histórica que se prolonga até o espaço escolar, outros se baseiam em manifestações contíguas à sala de aula, atentando para aspectos que vão das interpretações e entonações presentes no discurso do professor ao desdém dos alunos quanto à possibilidade de futuro, como é o caso dos textos Alteridade e ensino de história: valores, espaços-tempos e discursos de Cecília M. A. Goulart e Aprender e ensinar o tempo histórico em tempos de incerteza: reflexões e desafios para o professor de história, de Sônia Regina dos Santos.

Apesar da existência de dois vieses de análise, a prevalência dos questionamentos acerca das vicissitudes de uma pedagogia da história, para o entendimento do valor da história hoje, fica clara mesmo quando olhamos os artigos em separado. Embora a Parte I seja, dentre as três divisões, a única a trazer no título uma referência direta ao ensino, a temática predomina nos títulos ou conteúdos dos textos. As exceções ficam por conta dos artigos: O valor da vida dos outros… de Márcia de Almeida Gonçalves, Uma província em disputa: como os fluminenses lidaram com a memória imperial na década de 1920, de Rui Aniceto Nascimento Fernandes, e Memória e reconhecimento: notas sobre disputas contemporâneas pela gestão da memória na França e no Brasil, um trabalho conjunto de Lucianna Heymann e José Maurício Arruti.

Apresentando, respectivamente, a singularidade dos valores cognitivos dos relatos vivenciais, os usos políticos da construção memorialista, e as disposições e disponibilidades da gestão da história quanto às reivindicações e anseios reparatórios, os citados artigos procuram a atualidade da disciplina na reavaliação de velhos tópicos. A vinculação destes textos com os demais artigos se dá, principalmente, pelas opções de abordagem e teóricos mobilizados. É nítida a preocupação em estabelecer as diferentes modalidades de apreensão de passagem do tempo, e as subjetividades que derivam de cada definição.

Da fenomenologia de Husserl à crítica moral nietzschiana, vemos uma variedade de formas de inquirição das bases teóricas das principais acepções e conceitos de tempo histórico, e de suas inclinações meta-históricas, trabalhadas por um copioso número de perspectivas, tanto em função dos objetivos dos autores dos artigos, quanto pela diversidade de pensadores evocados. Apesar disto, no conjunto da obra, as preferências são claras: Wilhelm Dilthey, François Hartog, Reinhart Kosseleck, Jörn Husen, e Paul Ricouer recebem um tratamento mais aprofundado.

A pluralidade dos usos da história é uma premissa fundamental na organização da obra. Dado que, inclusive, engendra interessantes antíteses. Se na narrativa sobre as transformações das percepções do conceito de história, de Durval Muniz de Albuquerque Júnior, mergulhamos na história da história e somos apresentados às dissoluções e afirmações de sentido desta maneira de explicar o mundo, mais adiante recebemos a interdição de Valdei Lopes de Araújo à imputação de sentido, e somos recomendados a também mostrarmos aquilo que, do ponto de vista de uma tradicional ética presente nas análises historiográficas, não encontram amparo. Em que pese o fato de que mostrar: “a tragédia, a injustiça, o, o horror como parte integrantes de nossa condição”, nem sempre fez parte do discurso historiográfico, a asserção nos remonta a uma perspectiva contemporânea de história.

Este é um ponto fundamental. A condição humana como o valor premente da história hoje, surge como um discurso comum, e dá a uniformidade à coletânea para apresentar experiências e olhares distintos sobre a história, sobre a educação, ou sobre ambos. Se as definições, e conceitos sobre temporalidade ocupam uma parte considerável do livro, remetendo a uma maior proximidade com a academia, o reconhecimento de como esses conceitos podem ser instrumentalizados para produzir uma ética – vincada ao presente e a partir da sala de aula – nos dá a conhecer uma série de pesquisas e propostas que instigam a construção de um ensino de história diferente, abrangendo desde as séries mais elementares. Indo além, podemos dizer que os artigos colocam em xeque o próprio modelo de ensino de história.

O panorama que os textos descortinam reflete a preocupação em levar para o ambiente escolar a perspectiva de uma necessária orientação em relação a cultura histórica ampla, oferecendo alternativas à dominante narrativa canônica, muitas vezes derivadas do livro didático, e às concepções que parecem atemporais. É nessa chave que podemos interpretar as investigações encetadas pelas supracitadas Cecilia M. A. Goulart e Sônia Regina Fernandez, e por Luis Fernando Cerri e Helenice Rocha.

Esses textos ilustram a diversidades de interpretações que atualmente suscitam os relatos ou as conformações históricas. Tomando como referência apenas os dois últimos: em Nação, nacionalismo e identidade do estudante de história, de Cerri, se destacam as tonalidades e margens de discordância sobre os aspectos tradicionais e as novas questões em relação à nação e ao sentimento nacional entre os alunos. Já em A leitura da aula de história como experiência de alteridade, de Helenice Rocha, é reveladora a discussão que apresenta a maneira como os comentários e leituras com base no livro didático são modeladas pelas representações construídas pelo docente, não somente acerca dos conteúdos, como também da capacidade de entendimento do corpo discente.

Está claro que a publicação indica a ideia de que a história hoje é móvel, e essa mobilidade confronta tabus e abre novas perspectivas. Prova disso são as reiteradas citações sobre as possibilidades de produção de saberes pela incorporação de um viés anacrônico na aula de história. Perpassa-se o juízo de que os embates em torno do tempo, em torno da história, estão presentes de diversas formas a todo tempo, e em todo lugar; o que de maneira implícita reforça a sua contraparte: a experimentação da história está para além dos formatos que procura imprimir o historiador. Por isso, o livro também ilustra uma imposição de um fazer específico e profissional sobre um campo aberto.

A concepção da vigência de uma atualidade permeada de referências históricas, presente com clareza em Ana Maria Monteiro, com Tempo presente no ensino de história: o anacronismo em questão e Carmem Teresa Gabriel, e seu Que passados e futuros circulam nas escolas de nosso presente?, por exemplo, também circunda os outros textos. Eles sinalizam para o ensejo de uma reelaboração da figura do historiador/ educador diante deste quadro, em que a apreciação das narrativas põe em evidência um caráter valorativo da história concernente tanto à sua faculdade de orientação, quanto à sua capacidade em reafirmar e desqualificar memórias no jogo de legitimação de legados e realidades, que se sobrepõe, excluem-se e se complementam.

Apesar da miríade de possibilidades sugeridas e defendidas, e questões postas, a sintonia entre os artigos, e o objetivo claro da realização de uma problematização do campo, arrefecem, no leitor, o típico afã da obtenção de respostas definitivas. Todavia, os encaminhamentos são muito sugestivos. Na verdade, a sensação é de que a vertigem causada pelo profundo abismo, derivado do afastamento entre a sala de aula e a academia, já nos deixa menos mareados. Como ‘orientação’ desponta como a insígnia de Qual o valor da história hoje?, reafirmando a incerteza e a condição humana do fazer histórico, pode-se atribuir está qualidade à publicação, em termos de mapeamento das dificuldades a serem enfrentadas e de propostas que precisam ser evidenciadas.

O que se vê não é uma contraposição, e nem mesmo de complementaridade entre teoria da história e didática da história, mas a idéia de um prolongamento não-hierárquico entre os dois fatores. Se durante muito tempo, o precipício forjado entre ensinar e pesquisar se afigurou como virtualmente intransponível, hoje os esforços de superá-lo são explícitos, sendo Qual o valor da história hoje? parte integrante desse movimento. Fincando estacas nos dois lados do dilema, os artigos reunidos na coletânea procuram estender uma ponte obre a falha, possibilitando que a interpenetração de conceitos e a circulação de saberes gere para a disciplina histórica algo maior que a soma das partes.

Welinton Serafim da Silva.

GONÇALVES, Márcia de Almeida; ROCHA, Helenice; REZNIK, Luís; MONTEIRO, Ana Maria Orgs). Qual o valor da história hoje? Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012. Resenha de: SILVA, Welinton Serafim da. Construindo pontes, superando abismos: o valor da conciliação entre o ensino e a pesquisa em história. Revista Maracanan. Rio de Janeiro, v.8, n.8, p.345-350, 2012. Acessar publicação original [DR]

 

Relações de força: história, retórica, prova | Carlo Ginzburg

Fazer História (de qualquer tipo, e especialmente a história cultural) nos idos atuais sem se render às incertezas, fraquezas e ambiguidades do paradigma dito pós-moderno é uma façanha que poucos conseguem levar adiante. Optar por este caminho e, para além disto, avançar no debate e na construção de uma história com procedimentos realistas (para não dizer científicos), ancorada solidamente na pesquisa documental e na busca da verdade, é tarefa ainda mais ingrata, a qual se impôs Carlo Ginzburg, com esmero e galhardia. São poucos os que fazem esta opção, e muitíssimo poucos os que a realizam a contento, como este italiano, autor – entre outros clássicos da historiografia contemporânea –, de Os andarilhos do bem, O queijo e os vermes, História Noturna, além de importantes ensaios para se discutir um novo paradigma para a história, ciência do homem. Leia Mais

A história ou a leitura do tempo | Roger Chartier

Fruto das pesquisas de Roger Chartier sobre as mutações da disciplina da história, realizadas desde o final dos anos de 1980, A história ou a leitura do tempo apresenta um panorama da historiografia nas três últimas décadas. O ensaio aborda os principais debates recentes da disciplina da história, desde seu estatuto de verdade, passando por sua aceitação social, a difícil relação entre história, memória e ficção, até o surgimento do livro digital e as novas formas de apresentação do texto historiográfico. Desde seu primeiro livro publicado no Brasil, A história cultural entre práticas e representações (1990) e seu célebre artigo “O mundo como representação”, publicado na revista dos Annales em 1989, o historiador vem se mostrando atento às reflexões teórico-metodológicas da disciplina. Em estudos posteriores, o autor buscou aliar a crítica textual à história do livro e da cultura, além estudar o recente impacto da cultura digital sobre a tradição escrita. Leia Mais

A história escrita. Teoria e história da historiografia | Jurandir Malerba

A teoria da história é mais do que apenas um pensamento sistemático sobre a História e sua escrita; a narrativa história se mostra, cada vez mais, complexa, por suas tensões entre fatos e ficções, verdade e imaginação, objetividade e subjetividade, fontes documentais e as retóricas do discurso; a historiografia não é apenas o discurso circunstanciado sobre as obras históricas, mas fixa-se, cada vez mais, em todo discurso sobre o passado. O que a coletânea de textos organizados por Jurandir Malerba nos mostra, em resumo, é um ‘fazer história’ mais denso e articulado, com as questões de nosso tempo.

Ao reunir as contribuições de Horst Walter Blanke, Massimo Mastrogregori, Frank Ankersmit, Jörn Rüsen, Angelika Epple, Masayuki Sato, Arno Wehling, Hayden White e Carlo Ginzburg, nos oferece uma mostra do resultado dos debates das últimas décadas a respeito da história da historiografia, da teoria da história, da epistemologia histórica, quanto ao princípio de realidade, ao gênero, a comparação e a narrativa. Para ele:

O critério principal para a seleção dos textos que constituem a presente obra foi a intenção de compor um painel, o mais amplo possível, dos campos problemáticos presentes na construção de uma teoria da historiografia, com vistas ao aprimoramento prático de uma revigorada história da historiografia. Nesse sentido, os textos […] reunidos oscilam da reflexão teórica acerca do conceito de historiografia para a reflexão crítica de uma epistemologia da história, passando necessariamente pelas potencialidades e limites metodológicos que cada caminho apresenta. Tratam-se, como é notório, de autores consagrados do pensamento histórico contemporâneo, provenientes das mais distintas tradições nacionais e simpatias teóricas.[1]

Para articular tais textos, o autor os posicionou em quatro blocos, a saber: a) os de que “o foco recai primordialmente sobre o conceito de historiografia e o estatuto teórico do texto historiográfico”, como se vê no texto de Blanke, Mastrogregori e de Arkersmit; b) “por ensaios com propostas mais teórico-metodológicas para o campo da história da historiografia propriamente dita”, como nos casos de Rüsen, Sato e de Epple; c) “discussão teórica da prática historiográfica para o campo da epistemologia”, em que se apresentam Wehling; d) e, no último “seria quase um exemplo das implicações políticas do exercício historiográfico, que tomamos propositadamente no exemplo-limite da história do Holocausto”, por meio do debate entre os textos de White e Ginzburg.

Além dos textos ora indicados, a coletânea ainda é enriquecida com o capitulo de Malerba, que indica os principais eixos das discussões sobre teoria e história da historiografia ocorridas no século passado. Para ele, haveria, sem dúvida, uma tensão entre, de um lado, o “anti-realismo epistemológico, que sustenta que o passado não pode ser objeto do conhecimento histórico ou, mais especificamente, que o passado não é e não pode ser o referente das afirmações e representações históricas”[2] , e, de outro, o “narrativismo, que confere aos imperativos da linguagem e aos tropos ou figuras do discurso, inerentes a seu estatuto linguístico, a prioridade na criação das narrativas históricas.”[3] Em ambos os casos, a pesquisa histórica esteve ancorada em matrizes, senão frágeis, ao menos em constante pressão, e com necessidade de justificação perante as outras áreas do saber. Mas, o “caráter auto-reflexivo do conhecimento histórico talvez seja o maior diferenciador da História no conjunto das ciências humanas.”[4]

Para Blanke, a “história da historiografia é uma atividade nova”, que esteve ao lado “do desenvolvimento da história como disciplina independente e com pretensões científicas”, com início “na época do iluminismo.”[5] Suas características estariam balanceadas entre tipos (história dos historiadores, história das obras, balanços gerais, história da disciplina, história das idéias históricas, história dos métodos, história dos problemas, história das funções do pensamento histórico, história social dos historiadores, história da historiografia teoricamente orientada) e funções (afirmativa e crítica). Não por acaso, Mastrogregori ressaltará que as “possibilidades de contato são certamente inúmeras”[6], visto a complexidade da tarefa de se efetuar adequadamente uma história da historiografia. Para Ankermist, tal tensão “nos confronta diretamente com o problema do relativismo resultante da historicização do sujeito histórico.”[7] Como nos indica Rüsen, a “historiografia é uma maneira específica de manifestar a consciência história”, porque “apresenta o passado na forma de uma ordem cronológica de eventos apresentados como ‘factuais’, ou seja, com uma qualidade especial de experiência.”[8] Por isso:

Não há cultura humana sem um elemento constitutivo de memória comum. Ao relembrar, interpretar e representar o passado, as pessoas compreendem sua vida cotidiana e desenvolvem uma perspectiva futura delas próprias e de seu mundo. História, nesse sentido fundamental e antropologicamente universal, é uma reminiscência interpretativa do passado de uma cultura, que serve como um meio de orientar o grupo no presente. Uma teoria que explica esse procedimento fundamental e elementar de dar sentido ao passado consoante à orientação cultural no presente é um ponto de partida para a comparação intercultural. Tal teoria tematiza a memória cultural ou a consciência histórica que define o objeto de comparação em geral. Ela serve como definição categórica do campo cultural no qual a historiografia toma forma. […] [e] a historiografia aparece, na sua estrutura geral da consciência histórica ou memória cultural, como uma forma específica de uma prática cultural básica e universal da vida humana.[9]

Ao levarem a cabo uma intensa discussão sobre o caso do Holocausto, White e Ginzburg promovem uma verdadeira investigação a respeito do lugar do enredo na narrativa histórica e de que maneira se configura o princípio de realidade, que dá forma e modela o discurso histórico.

Em todos esses aspectos, a coletânea em pauta, traz mostras de um panorama rico e denso dos intensos debates que circunstanciaram a produção da história da historiografia no século passado, cujas marcas e implicações ainda vemos nos resultados apresentados pela pesquisa histórica.

Notas

1. MALERBA, op. cit., 2006, p. 8.

2. MALERBA, op. cit., 2006, p. 13.

3. MALERBA, op. cit., 2006, p. 14.

4. MALERBA, op. cit., 2006, p. 15.

5. MALERBA, op. cit., 2006, p. 27.

6. MALERBA, op. cit., 2006, p. 87.

7. MALERBA, op. cit., 2006, p. 98.

8. MALERBA, op. cit., 2006, p. 125.

9. MALERBA, op. cit., 2006, p. 118

Diogo da Silva Roiz – Doutorando em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), bolsista do CNPq. Mestre em História pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Professor da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS).


MALERBA, Jurandir. (Org.) A história escrita. Teoria e história da historiografia. São Paulo: Contexto, 2006. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva. Teoria da história e historiografia. Cordis – Revista Eletrônica de História Social da Cidade. São Paulo, n.6, p.367-371, jan./jun. 2011. Acessar publicação original [DR]

 

A história ou a leitura do tempo | Roger Chartier

Qual é a relação entre a ciência histórica e a revolução digital? Gestada e concebida no mundo do impresso, essa disciplina permaneceria impassível diante da emergência do mundo digital e da textualidade eletrônica? Quais são os seus efeitos no interior do campo historiográfico? Até que ponto a transformação radical (e recente) do suporte de existência do escrito produz impactos no trabalho do historiador, no trabalho de produção do saber histórico? Quais seriam os efeitos metodológicos e teóricos da digitalização da cultura – tornada possível por essa nova forma de escrita, a escrita digital2 – no campo historiográfico? Que mutações a entrada na era digital e da textualidade eletrônica impõem à história? Qual a relação entre a escrita das ciências (no sentido de uma poética do saber) e a escrita eletrônica? A emergência do código da informática não transforma o que se definia como documento, o que se compreendia por arquivo e o modo como se alimentava a relação entre história e memória? Assim como falamos na existência de uma memória, também podemos falar em esquecimento digital? Qual é o seu estatuto? Ou será que o processo de epistemologização da história no século XIX teria assegurado a essa disciplina conquistas definitivas e impassíveis à ação do tempo? Ou a relação entre a digitalização da cultura e essa disciplina se caracterizaria apenas por disponibilizar um mero recurso formal (o computador) ao trabalho de escrita (o editor de textos) e de elaboração da história (auxiliando no tratamento de dados quantitativos) e facilitar o acesso e a consulta de acervos remotos? Como esse acontecimento, a revolução digital, acontece na ordem do discurso histórico? Leia Mais

História & gênero | Andréa Lisly Gonçalves

Debater gênero e história na contemporaneidade tem sido tema recorrente na historiografia. Levando em consideração a evidência do tema, a historiadora Andréa Lisly Gonçalves lançou em 2006 o livro História & gênero. Na obra a autora objetivou debater gênero com base numa perspectiva histórica das relações de gênero, como o próprio título denota. O livro divide-se em três capítulos, que são analisados nas na sequência.

Militância feminista

O primeiro capítulo adentra o século XVIII apontando a Convenção de Sêneca Falls como simbólica na militância feminista. A autora aponta o século XIX como um momento de mobilizações em relação às “questões femininas” quando da ocorrência da Revolução Francesa, que influenciou na prática da escrita, permitindo a emergência de mulheres escritoras. Leia Mais

História y teoria social | Peter Burke

Historia y teoria social, de autoria de Peter Burke, é um livro que tem como objetivo principal discutir as aproximações e contribuições da teoria social para os historiadores, a utilidade da história para os teóricos sociais e as contribuições da história e da sociologia na produção do conhecimento do social.

A obra é dividida em seis capítulos. No primeiro encontram-se questões que perpassam as relações entre a história e a sociologia, as quais, segundo o autor, apesar do interesse comum – o estudo do social -, nem sempre foram boas vizinhas, pelo fato de que historiadores e sociólogos, dentro dos limites de suas concepções e do exercício de sua ciência, construíram visões estereotipadas. Historiadores questionam o caráter científico da prática dos sociólogos, alegando que estes não vão além de suposições genéricas, descontextualizadas no tempo e no espaço, apenas classificatórias dos indivíduos. Já os sociólogos falam do historiador como um profissional que coleta informações e faz uma exposição da história, sem embasamento em uma teoria ou método. Leia Mais

História e Teoria. Historicismo, Modernidade, Temporalidade e Verdade | José Carlos Reis

Nesta obra, José Carlos Reis transparece, com erudição, a importância da filosofia e de suas construções teóricas. Nas páginas finais do último artigo, ele ressalta: “Filosofia e história são atitudes complementares – toda pesquisa filosófica é inseparável da história da filosofia e da história dos homens e toda pesquisa histórica implica uma filosofia, porque o homem interroga o passado para nele encontrar respostas para as questões atuais” (p. 240). O livro é uma junção de ensaios do próprio autor, cada um com uma especificidade singular e, ao mesmo tempo, contínua, linear: todos tratam de “teoria da história”. Valendo-se de uma abordagem dos principais parâmetros contemporâneos do contexto historiográfico, Reis interroga, instiga, mostra caminhos, posicionamentos. Seu poder de síntese é invejável: diz muito em tão pouco. Para quem já estava cansado ou mesmo entediado com as discussões sobre verdade, modelos epistemológicos, historicismo, além das que envolvem concepções de tempo histórico e das oposições entre modernidade e pós-modernidade, o autor demonstra que ainda é possível um pensamento crítico e um esforço reflexivo.

No primeiro capítulo, o autor traz a “história da história”, analisando desde a metafísica até a pós-modernidade. A preocupação dos historiadores com a “humanidade universal” e o “sentido histórico” pautam sua análise. Ele quer discutir a passagem modernidade/pós-modernidade e suas possíveis repercussões na historiografia. Começa com os gregos, que não teriam construído a idéia de “humanidade universal”, tendo sido formulada com os romanos. Com o Cristianismo, a história esteve dominada pela Providência Divina e o futuro dependia da fé. A partir do século XIII ele perde sua força e surge uma outra representação da história: a “modernidade” e sua busca da racionalização.

A modernidade trouxe uma nova consciência do sentido histórico, uma nova representação da temporalidade histórica e, com ela, o mundo se fragmentou em valores distintos. O espírito capitalista (entenda-se burguês) é moderno, desencantado, secularizado, racional, tenso.

No século XVIII retorna a idéia de história universal. Pensa-se em direitos universais. Nesse momento, a modernidade através das filosofias da história recolocaria à história a questão do sentido histórico: é o desenvolvimento do processo de progresso, revolução, utopia; a idéia de história está dominada pelos conceitos de razão, consciência, sujeito, verdade e universal.

No século XIX , a história-conhecimento torna-se científica, o conhecimento histórico aspira a objetividade científica, a verdade. A eficácia da história está em servir ao Estado e às instituições da sociedade burguesa. Nietzsche seria o primeiro a romper com o conhecimento histórico científico e, a partir do século XX, aprofundariam-se as críticas, passando-se a recusar o determinismo, o reducionismo e o destino inescapável. A pós-modernidade concretizou-se no pós-1945, não acreditando na razão, pois os sentidos são multiplicados – o universal se pulveriza, fragmenta-se – e a história global é descartada. Os interesses voltam-se ao pequenos dados, aos indivíduos, o olhar em migalhas opera por fatos, biografias, múltiplas narrações: é a desaceleração da história. O estruturalismo aprofundou a revolução cultural pós-moderna, desconfiando do sujeito, da consciência, da revolução, da razão. Para Reis, estamos vivendo a pós-modernidade. O novo ambiente cultural é complexo e ambíguo: os historiadores pensam em rupturas, fragmentação, individualismos em plena globalização. O conhecimento histórico prioriza a esfera cultural, as idéias, os valores, as representações, linguagens, e a história torna-se ramo da estética, aproximando-se da arte, da literatura, do cinema, da fotografia, da música.

No segundo capítulo, Reis procura fazer um balanço das possíveis perdas e/ou dos possíveis ganhos do percurso da história do “global” às “migalhas”. Para tal, segue os pressupostos de François Dosse, o crítico francês dos Annales que destacou a descontinuidade presente nos “seguidores” dos “pais fundadores”. Para conseguir um balanço entre perdas e ganhos, Reis conceitua história global e história em migalhas. História global teria dois sentidos: “história de tudo” e “história do todo”. O primeiro sentido seria entendido por “tudo é história”, o segundo seria a intenção de apreender o “todo” de uma época. Este último sentido não teve espaço na terceira geração dos Annales. Já as migalhas, podem significar a multiplicação dos interesses e das curiosidades históricas; a fragmentação, a especialização extrema, a desarticulação dos tempos históricos. Ou, no sentido otimista, as migalhas significaram o amadurecimento do projeto inicial; a história escrita no plural, múltipla, que analisa partes da realidade global. Por fim, nosso autor faz uma enumeração riquíssima em termos de prós e contras dessa passagem do global às migalhas, colocando-se no lugar de quem avalia uma perda ou um ganho.

O terceiro capítulo, intitulado “A especificidade lógica da história”, levanta questões que colocariam em dúvida a possibilidade do conhecimento histórico, entre elas: “A história é um conhecimento possível?”. Salienta a importância da reflexão teórica problematizante, alertando sobre a impossibilidade de ser historiador sem tomar o conhecimento histórico como problema. A questão a ser pensada seria a existência de um conhecimento histórico reconhecível. Esse conhecimento talvez estivesse na recusa da ficção. Nessa luta contra a ficção, a história aproxima-se da ciência. Quanto a possibilidade de história científica, José Reis apresenta quatro modelos: nomológico, compreensivo, conceitual e narrativo. O modelo nomológico, centrado em Hempel, defende a unidade da ciência, as explicações causais; é um modelo neopositivista, que busca encontrar leis gerais, da mesma forma que as ciências naturais. O modelo compreensivo tem dois expoentes: Dilthey e seu método da compreensão e interpretação das ciências do espírito, e Weber com uma visão racionalista da compreensão. A sociologia compreensiva busca interpretação da conduta humana; para compreender, pode-se construir o “tipo ideal” de uma ação racional. Para Reis, Weber ainda sustenta uma visão racional da história. O modelo conceitual está baseado na história científica weberiana: ela é racionalmente conduzida, fundamentada na compreensão e em conceitos. A compreensão e subjetividade incluídas na história não abdicariam a abordagem científica da mesma, presentes através de tipos e conceitos. Paul Veyne, com influência weberiana também defendeu a história conceitual, que para ele estaria entre a ciência e a filosofia. Para o Veyne de “O Inventário das diferenças”, a história conceitual seria científica porque oferece uma inteligibilidade comparativa. Já o Veyne de “Como se escreve a história”, tem a história como “narrativa verdadeira”, mas não científica. François Furet, também influenciado por Weber – e Reis salienta que os Annales “parecem dever mais a Weber do que querem admitir” – percebe a história como oscilação entre arte da narração, inteligência do conceito e rigor das provas, mas não como ciência. Por fim, no modelo narrativo e atual (alguns autores sustentam que o discurso histórico sempre foi narrativa), espera-se uma relação mais estreita com o vivido, o tempo, os homens. A história-problema entrou em crise por afastar-se dos homens e negar a temporalidade. Para Veyne, a história é uma narrativa que explica enquanto narra, é compreensão, é atividade intelectual. Paul Ricoeur esclarece a estrutura de uma nova narrativa histórica, lógica e temporal, ou seja, temporalidade e a narratividade se reforçam. Ricoeur defende o primado da compreensão narrativa em relação à explicação, sendo a narrativa histórica uma representação construída pelo sujeito, que se aproxima da ficção e retorna ao vivido. A história, em última análise é a narrativa do tempo vivido.

No quarto capítulo, Reis discute as posições da verdade sobre o conhecimento histórico. Os céticos em relação à história fazem várias objeções à possibilidade da objetividade e verdade em história, entre elas estaria o fato desse conhecimento estar ligado ao presente (que sempre reinterpreta o passado), à subjetividade, à compreensão e à intuição; ainda ao fato de não produzir explicações causais, de ser conhecimento indireto do passado, de utilizar a mesma linguagem da ficção, de utilizar fontes lacunares, de ser interpretação e construção de um sujeito e ter o conhecimento pós-evento. O conhecimento objetivo seria aquele válido para todos, universal, analítico, problematizante, necessário. Para Reis não há razão para o ceticismo. Ele cita Koselleck, para quem a história precisa sustentar duas exigências: produzir enunciados verdadeiros e admitir a relatividade. Na tentativa de indicar posições para o alcance da verdade histórica, Reis busca as teses de alguns autores. Divide-os em realistas metafísicos e nominalistas. Começando pelos primeiros, tem-se que para Ranke a história produziria verdade através do método crítico. Nesse sentido o sujeito não se anula, apenas se esconde, se autocontrola. Weber não vê a possibilidade de abordar o real em si, apenas aspectos, partes. O sujeito divide-se em esferas lógicas autônomas. Duas subjetividades buscam a verdade, que é conhecimento empírico. Em Marx, o sujeito deve assumir sua subjetividade. A verdade não é universal, mas de um grupo social. O conhecimento histórico produzido é objetivo, mas parcial, relativo, pois o historiador precisa tomar partido. Para Ricoeur, a verdade é traduzida pelo sujeito de forma comunicável a partir de uma objetividade que exige a presença da subjetividade. Na mesma direção, Marrou declara ser a objetividade histórica, específica, subjetiva, através de valores éticos universais. Todos procuram critérios universais para a verdade, todos são construções totalizantes da verdade histórica. Nos nominalistas, a subjetividade é plena, o universal é impensável. Em Foucault a verdade é construção de um sujeito particular e expressa relações de poder: essas relações criam linguagens e saberes para se legitimarem. Michel de Certeau tem a história como fabricação do historiador, um discurso que emerge de uma prática e de um lugar institucional e social. Duby assume a história subjetiva, que estaria próxima da literatura e do cinema, onde a imaginação e o sonho não são proibidos. Por fim, Koselleck sustenta a verdade histórica caleidoscópica, se relaciona com a história da história, examina a historiografia anterior. O passado é selecionado, reconstruído em cada presente. Reis conclui esse capítulo ressaltando que a verdade histórica é obtida com exame exaustivo do objeto, com todas as leituras possíveis.

O quinto capítulo traz a discussão sobre o tempo histórico em Ricoeur, Koselleck e nos Annales. O historiador tem interesse no temporal, na alteridade humana, não deseja conhecer o que está fora do tempo, o que não muda, deseja sim, conhecer a mudança, logo o tempo da história seria um terceiro tempo. Para Ricoeur, o tempo histórico refere-se à vida humana e o calendário é indispensável, pois é ele que numera e em cada marca dessa numeração existiu um homem individual (social). Outro conceito é o de geração, trata-se de vida compartilhada. O tempo histórico representa permanência de gerações e seqüência de gerações. A terceira conexão são os vestígios, os arquivos, pois as gerações deixam sinais, marcas, que são buscadas pelo historiador. Koselleck critica o conceito de tempo calendário, mas não o descarta, advertindo para o conhecimento interior do mundo humano, a idade interna de uma sociedade, ou seja, a relação estabelecida entre seu passado e seu futuro. Na perspectiva dos Annales, o tempo histórico é estrutural – influência das Ciências Sociais que compreendiam o tempo como “estrutura social” – existindo a recusa da mudança, em favor do modelo, da quantidade, da permanência. A influência foi o aparecimento na história do mundo mais durável, mais estrutural (estruturas econômicas, sociais, mentais), de movimentos lentos, com desaceleração das mudanças, e é justamente o conceito de “longa duração” que permitiu maior consistência ao terceiro tempo do historiador.

O sexto e último capítulo é dedicado à contribuição de Dilthey para a história, que, aliás, é considerado como o pensador que “redescobriu a história”. Dilthey é associado ao historicismo, embora seja difícil enquadrá-lo em algum rótulo. Ele estaria entre um historicismo romântico e um epistemológico por buscar compreender o homem enquanto ser histórico, compreender a alteridade e todos os aspectos da vida de um povo; a história em Dilthey é mudança e o que permanece é compreensão, comunicação entre homens diferentes, sendo o homem “experiência vivida” e a verdade, o processo histórico.

No contexto do século XIX, Dilthey apontou o caminho da história, da vida, tendo por missão da história “apreender o mundo dos homens através do estudo das suas experiências no passado” (p. 241). Reis diz que em Dilthey filosofia e história estão unidas. Talvez esse fato tenha cativado nosso autor a ponto de despertar tanto seu interesse por Dilthey.

De fato, Reis cativa o leitor com sua narrativa, sua exposição, sua paixão pela teoria. Este livro é mais uma referência obrigatória a todos que se preocupam em pensar o papel da teoria na contemporaneidade; ele incita os historiadores ao conhecimento dos paradigmas atuais das ciências sociais. Se José Reis pretendia com este livro, “fazer circular, renovar, estimular e transmitir cultura” (p. 13), parece-nos que ele conseguiu!

Mauro Dilmann – Mestrando em História pela Unisinos/RS.


REIS, José Carlos. História e Teoria. Historicismo, Modernidade, Temporalidade e Verdade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003. Resenha de: DILMANN, Mauro. Cantareira. Niterói, n.9, 2005. Acessar publicação original [DR]

A História repensada | Keith Jenkins

Até meados do século XX, a História ainda era muito parecida com as estradas do oeste norte-americano imortalizadas por Hollywood: reta, plana e sem vicinais. Essa estrada chamada positivismo era percorrida com segurança pelos historiadores até seu destino, a verdade. No entanto, novos caminhos surgiram para novos pontos de chegada trazidos pelo que conhecemos como pós-modernismo. As estradas também começaram a ser percorridas por novos transeuntes. É nesse emaranhado viário, ou melhor, paradigmático, de tráfego intenso, que muitos historiadores estão perdidos, tanto os mais jovens, que se sentem obrigados a escolher um dentre vários caminhos, como os mais velhos, que têm dificuldades para percorrer as novas estradas. Nessa situação, ainda que apresente algumas imprecisões e lacunas, A História repensada (Rethinking History) do historiador inglês Keith Jenkins permite aos historiadores se localizarem com mais precisão perante as mudanças provocadas pelo pós-modernismo. Apesar de ter sido publicado em 1991 e traduzido em 2001 – primeiro livro de Jenkins no Brasil -, sua discussão continua pertinente e assim promete continuar por muito tempo. Leia Mais

Das Ráísel der Vergangenheit / Paul Ricoeur

As questões da apreensão da multiplicidade cultural do mundo contemporâneo e da compreensão de sua complexidade histórica e social são objeto da série “Conferências de Essen sobre Ciências da Cultura”, promovida e editada pelo Instituto de Ciências da Cultura.

Este Instituto, fundado em 1988 e sediado na cidade de Essen (Alemanha) é integrante do Centro de Ciências da Renânia do Norte/Vestfália. O Instituto (conhecido por sua sigla KWI, homólogo do Institute for Advanced Studies de Princeton ou do Wissenschaftskolleg de Berlim) é uma instituição pública, voltada para a pesquisa científica realizada mediante projetos de investigação dedicados aos problemas da sociedade e da cultura marcadas pelo desenvolvimento científico, pela sofisticação tecnológica e pela industrialização. Os projetos são desenvolvidos por grupos de estudo interdisciplinares, com temas vinculados à pesquisa fundamental no campo das ciências da cultura. O arco temático dos projetos apoiados pelo Instituto vincula-se aos problemas atuais de orientação das sociedades modernas no contexto internacional e intercultural.

Pesquisas dessa natureza não atraem facilmente a atenção do público. Seus resultados, contudo, são habitualmente incorporados pelas próprias ciências setoriais e continuam a surtir efeitos nelas e por intermédio delas. A interdisciplinaridade e o trabalho em grupo dos especialistas são uma condição importante para o êxito desse tipo de projeto. No entanto, o KWI considera ser também incumbência sua fundamentar a necessidade e a relevância de suas atividades e fazê-las perceber pelo grande público. Isso ocorre de forma multifacetada: conferências, mesas redondas, debates públicos, cursos de extensão.

A série de livros das “Conferências” publica textos escolhidos do programa de conferências do Instituto. Esses textos se originam em palestras abertas ao grande público, e ao especializado, elaboradas e completadas para os fins de publicação. O amplo leque temático documenta a amplitude e o alcance das questões ligadas às ciências da cultura, assim como o fascínio das constelações interdisciplinares de pontos de vista, perspectivas e estratégias de argumentação. Cada conferência representa, por si, uma faceta desse leque.

Cada uma é um componente do vasto complexo de abordagens do conhecimento, no qual as experiências do homem consigo mesmo e com seu mundo são interpretadas, as interpretações são refletidas e transformadas em orientações práticas, para afinal serem incorporadas nas mais diversas formas de determinações de sentido, em função das quais o homem age e interage com os outros.

A pesquisa em ciências da cultura requer distanciamento da atualidade do cotidiano imediato, independência com relação às lutas pelo poder e atitude crítica com respeito às polêmicas e dos conflitos de pessoas. A aparente ausência de aplicação prática imediata não raro traz à pesquisa básica e às ciências humanas a fama de serem um luxo, um desperdício. No entanto, o pragmatismo imediatista da pressão tecnológica — que decorre muito mais da lógica econômica da lucratividade — exige justamente que se desenvolvam reflexões que se libertem a prisão “dourada” em que os resultados “imediatos” parecem ser o máximo dos máximos. O longo prazo, a profundidade do alcance, a multiplicidade das perspectivas — esses e outros fatores fazem das ciências da cultura as que apreendem, descrevem, analisam, interpretam e explicam os complexos códigos de sentido — as estruturas de significado — que produzem, consolidam e reproduzem a(s) cultura(s). A ciência da cultura torna-se assim, ela mesma, um fator ativo da cultura como patrimônio coletivo e imaterial da sociedade. Ela desempenha o papel relevante de pensamento crítico e de diretriz interpretativa para a orientação — aí sim — prática do agir humano em todos os campos. A série de “Conferências” busca, assim, na apresentação de seu editor principal, Jórn Rüsen (Presidente do KWI), dar forma concreta a essa tarefa constante da crítica científica e social.

Da série estão disponíveis, até o final de 2003, doze pequenos volumes:

  1. Friedrich Kambartel. Pbilosophie und politische Òkonomie. Gõttingen: Wallstein Verlag, 1998 (3-89244-332-7) 85 p.
  2. Paul Ricoeur. Das Ráísel der Vergangenheit. Erinnern — Vergessen — Vençiben. 1998 (3-89244-333-5) 156 p.
  3. Klaus E. Müller. Die fünfte Dimension. So^iale Raum^eit und Gescbichtsverstàdnis inprimordialen Ku/turen. 1999(3-89244-348-3) 158 p.
  4. Jürgen Straub. Veriehen, Kritik, Anerkennung. Das Eigene und das Fremde in der Erkenntnisbildung interpretativer Wissenscbaften. 1999(3-89244-366-1) 95p.
  5. Burkhard Liebsch. Moralische Spielràume. Menschbeit und Anderheit, Zugehorigkeit und Identitãt. 1999 (3-89244-383-1) 128 p.
  6. Helwig Schmidt-Glinzer. Wir und China — China und wir. Kulturelle Identitãt im Zeitalter der Globalisierung. 2000 (3-89244-426-9) 101 p.
  7. Hans Schleier. Historisches Denken in der Krise der Kultur. Fachhistorie, Kulturgescbichte undAnfànge der Kulturwissenschaften in Deutschland. 2000 (3- 89244-427-7) 127 p.
  8. Gertrud Koch. Medien der Kultur. Film: Beivegungin derLatenç. (3.89244- 428-5). no prelo 9. Rolf Wiggerhaus. Wittgenstein und Adorno. Zwei Spielarten modernen Phi/osophierens. 2000 (3-89244-429-3) 143 p.
  9. Bernhard Waldenfels. VerfremdungderModerne. Phãnomenologische Ansãtze. 2001 (3-89244-459-5) 162 p.
  10. Hans-Ulrich Wehler. Historisches Denken am Ende des 20. Jahrhunderts. 1945-2000. 2001 (3-89244-430-7) 108 p.
  11. Ludwig Amman. Die Geburt des Islam. Historische Innovation und Offenbarung. 2001 (3-89244-460-9) 111 p.

Seus títulos representam efetivamente a variedade de perspecdvas que compõem o espectro ilimitado das questões culturais: Kambartel preconiza a crítica filosófica da economia política, sustentando a necessidade de ampliação da economia social de mercado (vol. 1); o respeitado filósofo Paul Ricoeur relembra um enigma amiúde negligenciado pela tecnologia da pesquisa: o passado só subsiste na memória e em seus vestígios, lidar com ela é questão de lembrar, esquecer, perdoar (vol. 2); como ecoando Ricoeur, o antropólogo Klaus Müller reforça a tese da memória na concepção de história, de origem, de pertencimento e de constituição do espaço social nas sociedades originárias (vol. 3).

Jürgen Straub, professor de comunicação intercultural, aborda a compreensão, a crítica e o reconhecimento: imagens de si e do outro nas ciências que recorrem à interpretação — um problema espinhoso, sobretudo para a interface entre história e psicologia social (vol. 4); Liebsch, professor de filosofia em Bochum, reflete sobre os campos — virtuais — do agir moral como espaço de relacionamento entre afirmação de si e reconhecimento da alteridade — com os problemas decorrentes da “etnicização” dos grupos e subgrupos nas sociedades (vol. 5). Como transparece ao longo de todos os volumes desta série, a referência de origem é a perspectiva cultural européia e o “déficit” de conhecimento e de compreensão da outras culturas [inclusive levando- se em conta a história colonial e seus efeitos perversos] — assim, a alteridade “radical” da cultura chinesa e a contraposição a ela histórica cultural européia, forçada pela globalização, e a impossibilidade de se entronizar novamente uma cultura hegemônica ocupam a reflexão de Schmidt-Glintzer, um dos maiores sinólogos alemães e diretor da famosa Biblioteca do Duque Augusto, em Wolfenbüttel (vol. 6).

A diversificação do tecido cultural da sociedade abriu, também para os historiadores, a crise da identidade em sua especialidade e a instrumentalização da historiografia para projetos políticos passou a ser problematizada. Hans Schleier os primórdios das ciências da cultura na Alemanha e o papel da ciência da história no contexto da crise da cultura contemporânea, a partir da experiência da desconstrução e da reconstrução alemãs entre 1880 e 1930 (vol. 7). O fenômeno da mídia — em particular da crítica social no cinema — e seu impacto na concepção do pertencimento social é o tema estudado por Gertrud Koch, professora de cinema em Berlim, ainda a ser publicado (vol.8). Wittgenstein e Adorno como representantes de dois formatos de crítica filosófica no século 20: a analítica, formal, que não se manifesta sobre o inverificável, e a dialética, engajada, que não admite que não se manifeste sobre o inefável e o subentendido são os objetos de Rolf Wiggerhaus, filósofo e jornalista (vol. 9). Bernhard Waldenfels, professor de filosofia prática e fenomenologia em Bochum, desenvolve uma forte e consistente crítica à alienação do projeto (incompleto) da modernidade por causa de seu individualismo pretensioso que concebe o global como projeção de si — e por isso mesmo compromete a racionalidade como faculdade do indivíduo e como liame do coletivo (vol. 10). O historiador Hans-Ulrich Wehler, um dos chefes de fila da escola de história social de Bielefeld, faz um balanço comparativo dos resultados obtidos pela reflexão historiográfica na segunda metade do século 20 — por exemplo, acerca do caráter “ocidental” das grandes conquistas políticas, como o estado de direito e o sistema parlamentar e eleitoral universal —, e os parcos efeitos que esses conhecimentos tiveram, até o presente, sobre a crítica social, política, econômica e cultural do mundo contemporâneo (vol. 11). O contraste inquietador que as culturas não-européias provocam nas sociedades de feitura européia é uma espécie de enigma adicional que intriga e mesmo atemoriza a “matriz” européia. A longa experiência das sociedades européias (ocidentais) e da norte-americana de ver as demais sociedades ser-lhes submissas ou ao menos delas discípulas, leva Ludwig Ammann, especialista em islamismo e jornalista, a sistematizar as circunstâncias do nascimento do islã (o aparecimento de Maomé e de sua pregação do monoteísmo, à maneira de um messias) e o choque que provoca nas tribos politeístas árabes e nas respectivas relações sociais, ao enunciar a necessidade da conversão como o sentido de uma missão transcendental instituída por revelação divina — e de como foi possível o fenômeno da islamização das culturas árabes a partir do século 7o (vol. 12).

Duas reflexões se impõem, diante da variedade e da complexidade dos temas abordados pelos textos da série. A primeira é relativa ao caráter pioneiro de abrir espaço de discussão e de contraponto, no âmbito de culturas tradicionalmente avançadas e extremamente seguras e cheias de si, como a alemã. Essa iniciativa do KWI se entende bem pela forma característica de Jõrn Rüsen de conceber o papel da reflexão histórica como um dos fatores relevantes na interculturalidade da comunicação social. Trata-se de uma contribuição de importância tanto para incrementar o arejamento do debate público e científico alemão e europeu como para resistir à crescente intolerância para com o outro e o diferente, que distorce as relações intra- e intersociais, em um mundo cada vez mais marcado pela produção e pela circulação ilimitada de informações. Essa abertura científica e cultural protagonizada pelo KWI reveste-se de duas qualidades adicionais: coragem pública e exemplaridade.

A segunda reflexão refere-se à utilidade de publicações desta natureza para sociedades multiculturais, como a brasileira. A dupla constatação de que há fissuras (bem-vindas) na torre de marfim do eurocentrismo e de que se toma consciência da necessidade de apreender o outro não para reduzi-lo a si é uma perspectiva alvissareira de fecundação da ciência pratica no Brasil. A história é um eixo de constituição da identidade que incorpora, à luz de estudos críticos como os desta série “Conferências sobre Ciências da Cultura”, a dimensão do processamento intelectual e cultural da diversidade como integrantes dialéticos do retorno a si mediante a afirmação do outro, e não por sua eliminação. A leitura historiográfica da cultura e da sociedade pode enriquecer-se com os pontos de vista da interculturalidade, superando assim a constante tentação do nombrilismo nacionalista.

Estevão C. de Rezende Martins – Universidade de Brasília.


RICOEUR, Paul. Das Ráísel der Vergangenheit. Erinnern — Vergessen — Vençiben. 1998. 156p. Resenha de: MARTINS, Estevão C. de Rezende. Cultura, multiculturalismo e os desafios da compreensão histórica. Textos de História, Brasília, v.10, n. 1/2, p.225-230, 2002. Acessar publicação original. [IF].