A imprensa francófona nas Américas nos séculos XIX E XX | História (Unesp) | 2019

O dossiê que ora vem à luz foi organizado pelos professores Valéria dos Santos Guimarães, Guillaume Pinson e Diana Cooper-Richet. Ele é o resultado da seleção de trabalhos apresentados no congresso internacional A imprensa francófona nas Américas nos séculos XIX e XX nos dias 7, 8 e 9 de novembro de 2018, no Instituto de Artes da UNESP, campus de São Paulo, evento que contou com a participação de pesquisadores de vários estados do Brasil e estrangeiros da França, Alemanha, Canadá, México, Argentina e Uruguai1 , então empenhados em fazer uma necessária revisão historiográfica acerca das novas abordagens sobre imprensa periódica francesa, situando-se igualmente na tradição de estudos sobre a importância da francofonia e da francofilia nas Américas.

Como se sabe, forma-se, do século XIX até meados do século seguinte, uma rede de leitores de periódicos em francês que se espalha por várias partes do mundo, incluindo o Brasil e demais países das Américas, território em que a cultura francesa teve acentuada proeminência. No Brasil, vários trabalhos demostraram de forma pioneira a dinâmica dessas trocas culturais. Sandra Nitrini (2018), em recente artigo sobre a produção na área da Literatura Comparada no Brasil, repassa a constituição de um campo que esteve ligado diretamente ao estudo das relações Brasil e França, citando vários autores que trabalharam o tema tais como Gilberto Pinheiro Passos, Leyla-Perrone Moisés e muitos outros bem referenciados pela autora. No campo da História, o nome de Mário Carelli se destaca em empreender uma história comparada entre os dois países, discorrendo de pintores viajantes a falanstérios, da diplomacia à circulação de imaginários, o que ele definia como uma “colonização pelas ideias” (CARELLI, 1994).

Embora os autores citados não se dediquem especificamente à história do impresso periódico, muitos utilizaram jornais e revistas franceses como fontes. Tais iniciativas são precursoras em fornecer uma abordagem sob uma perspectiva transnacional da cultura brasileira, cuja retomada tem acompanhado uma tendência intensificada desde a década de 1990 e se feito notar em pesquisas recentes (inclusive sobre a imprensa periódica). São questionadas tanto a visão excessivamente eurocêntrica de uma história cultural do impresso a partir de sua acentuada difusão global desde o século XIX quanto as tradicionais histórias nacionais da imprensa levadas a cabo pelas historiografias locais. Mesmo no campo da história comparada, o foco nos fenômenos em comum tem contestado as abordagens que tendiam ao estudo exclusivo em âmbito nacional.

No que concerne ao estudo específico da história dos impressos, a obra L’apparition du Livre de Lucien Febvre e Henri-Jean Martin, de 1958 (FEBVRE; MARTIN, 1992), pode ser considerada precursora ao tratar o livro a um só tempo como uma mercadoria mas também como um objeto sui generis, visto seu valor cultural e sua capacidade de atuar como um “fermento” na difusão do conhecimento. Nele, os autores tratam de temas que remetem ao que se convencionou chamar de História Global e discorrem de questões técnicas até a “geografia do livro”, ao traçar um amplo panorama da circulação transnacional de impressos, dos locais de trocas multiculturais como feiras ou a difusão mundial de alguns títulos. Esse modelo foi replicado e coleções sobre a história do livro surgiram em vários países, o que evidencia que a tentativa de se fazer uma história global e comparada que tome como objeto o impresso não constitui propriamente uma novidade.

Porém, como Chloé Maurel (MAUREL, 2014, p. 131) chama a atenção, ainda assim predominam trabalhos que acentuaram o caráter nacional do livro e seu papel para a formação das culturas nacionais – o que não constitui um erro, mas não coloca em evidência os mecanismos pelos quais suportes e ideias circulavam e formavam um espaço cultural de maneira integrada, constituindo novos espaços culturais que não se restringem às fronteiras nacionais. Transnacional é, portanto, um conceito que passa a ser usado para dar conta do estudo desse tipo de fenômeno. A ênfase no nacionalismo também predominou na história dos impressos periódicos, como alerta Diana Cooper-Richet (COOPER-RICHET, 2011), uma história que excluiu a imprensa alófona de suas compilações por não a considerarem como produção nacional, a despeito de ser impressa fora de seu país de origem, muitas vezes tratando de assuntos locais e, não raro, sendo elas mesmos bilíngues (ou até poliglotas). A abordagem “nacional” da história dos impressos periódicos simplesmente excluiu de seu horizonte uma quantidade importante de publicações por estas não serem consideradas pertencentes nem ao país de origem dos imigrantes (uma vez que publicadas fora de suas fronteiras), nem como parte da imprensa local, apesar de terem sido produzidas, comercializadas e lidas precisamente em seu território.

Quando se fala de história global e se lança mão do conceito de transnacional, logo vem à mente a preferência dada aos aspectos econômicos, mais facilmente quantificáveis e comparáveis que os culturais, uma vez que estes tendem a ser mais subjetivos e específicos de cada recorte espaço-temporal. A defesa de certa autonomia do campo cultural, sobretudo na historiografia francesa, foi importante para questionar uma perspectiva que via a cultura como um “terceiro nível” da história, isto é, como decorrente de fenômenos externos a ela (políticos ou econômicos). No entanto, essa postura aprofundou um certo isolamento da história cultural. O campo das relações internacionais, ao contrário, promoveu rapidamente a necessidade de se atentar para o estudo das expressões culturais transnacionais articulados com os demais aspectos políticos, econômicos e tecnológicos, tais como as trocas ocorridas no âmbito diplomático, a pesquisa sobre guerras ou sobre os contatos pós-coloniais, entre outros.

Não obstante, muitas das análises estavam imbuídas de uma visão eurocêntrica, na qual a ideia de “influência” ocupava um papel central, o que se deu, seguramente, devido à herança da predominância da visão do colonizador. Afinal, foi esse mesmo processo de colonização que resultou na integração das quatro partes do mundo (GRUZINSKI, 2014). Atualmente, porém, as interpretações tendem cada vez mais a questionar os sentidos dessas trocas e as noções de centro e periferia. Logo, a história global aparece como um questionamento do sentido dessas trocas, ao privilegiar o estudo dos deslocamentos de ideias, modelos e de seus suportes, bem como das pessoas nelas envolvidas, além de trazer consigo o reconhecimento da existência de negociação entre os mediadores nesse processo, os passeurs culturels, feita de recusas e apropriações.

A reboque de uma história global, podemos falar do crescente ganho de autonomia do estudo das trocas culturais transnacionais. Conceito igualmente forjado no âmbito dos estudos norte-americanos dos anos de 1950 sobre economia para se referir a fenômenos relativos às empresas transnacionais, logo ganha espaço no meio jurídico ou nas pesquisas sobre geopolítica para então ser um termo adotado também por sociólogos, antropólogos e historiadores (MAUREL, p. 79). Arjun Appadurai e Carol Breckenridge dirigem, em fins dos anos 80, no Center for Transational Cultural Studies vinculado às Universidades de Chicago e Pensilvânia, um grande projeto que preconizava até mesmo o “fim” do estado nação nos estertores do século XX. Os estudos sobre imigração logo se destacaram em perscrutar a natureza fluida das identidades que se redimensionavam no país de acolhida e o conceito de transnacionalidade mostrou-se operacional para analisar como muitos imigrantes mantinham “seus pés em duas sociedades”. Essa “globalização vista de baixo” carrega evidentes tons de esquerda2, uma contraposição à ideia mais corrente de que o Estado teria o monopólio das relações transnacionais mostrando que elas se dão também no cotidiano das pessoas comuns, atestando a fluidez das fronteiras: “fluxos de capital, pessoas, ideias ou imagens tornam o conceito de estado-nação insuficiente ou irrelevante como unidade de análise, e as ciências sociais tiveram que dar conta dessa ruptura na história mundial.”3.

Após os anos 90, o uso do termo “transnacional” se tornou recorrente e passou a intitular diversas publicações e projetos coletivos4, os quais colocaram em relevo categorias não-estáticas com abordagens “sobre as interconexões no nível mundial, sobre as diferentes modalidades pelas quais as culturas entram em contato umas com as outras e interagem entre elas” (MAUREL, p. 82). Passa a haver, assim, uma nova forma de se pensar as trocas culturais. A própria noção de transferências culturais, forjada pelo francês Michel Espagne (2012) e Michael Werner (WERNER; ESPAGNE, 1988), enfatiza as trocas de ideias por meio da circulação de pessoas e suportes e tem como preocupação a tentativa de melhor conhecer os mecanismos que permitem a recepção de uma cultura pela outra, bem como suas modificações, apropriações e recusas. Embora não usem o conceito de transnacional, abrem caminhos para análises que convergem para a mesma direção.

Foi no seio dessas pesquisas que o mediador surgiu como um “tradutor cultural”, como diz Christophe Charle (2015). Esse autor também apresenta extensa obra na qual a visada ampla e comparatista, ao estilo braudeliano, predomina. Em suma, as pesquisas sobre as trocas culturais transnacionais ganharam outra dimensão a partir dos anos de 1990, ultrapassando as temáticas originais que se concentravam na análise de fenômenos contemporâneos e econômicos para se estabelecerem como abordagens teórico-metodológicas aplicáveis a objetos os mais variados, como prova a incontornável referência no assunto The Palgrave Dictionary of Transnational History – From the mid-19th century to the present day organizado por Akira Iriye e Pierre-Yves Saunier, com 1232 páginas, 350 autores de 25 países diferentes e mais de 400 verbetes (SAUNIER; IRIYE, 2009)5. Isso se aplica ao estudo do impresso periódico, cuja produção teve um aumento vertiginoso desde fins do século XVIII, acompanhado da rápida difusão global nos séculos seguintes, o que torna tal abordagem pertinente também aos frutos da cultura midiática aí surgida.

Nessa perspectiva, a crítica ao comparatismo é evidente e coloca em xeque a noção de campos intelectuais distintos a serem comparados. Ao contrário, promove o estudo de “áreas culturais” que se encontram na intersecção, colocando em relevo também o local da partida e da acolhida do produto cultural, assim como destaca o papel exercido pelos vetores das transferências, os passeurs culturels. O conceito de histórias conectadas de Sanjay Subrahmanyam vai nesse mesmo sentido ao acentuar as interações contra as noções de choque de culturas ou de civilizações. Da mesma forma, Romain Bertrand, Serge Gruzinski e Bénédicte Zimmermann colocam em marcha uma série de conceitos tais como a já citada história conectada ao lado das noções de histórias cruzadas (regards croisés) 6 ou compartilhadas (shared history), entre vários autores. A noção moderna de alteridade é aqui posta em relevo e hibridismos e mestiçagens ganham espaço em substituição à ideia de influência – sem que as assimetrias nestas relações sejam desprezadas, afinal, elas existem. Como Chloé Maurel resume:

Assim, todas essas abordagens: história transnacional, história das transferências culturais, história conectada, história cruzada, partilhada, se relacionam no espectro da história global. Elas são interessantes pelas inovações metodológicas e epistemológicas que elas trazem; indo mais longe que o simples comparatismo, elas abrem campos férteis para novas pesquisas, fundadas sobre a análise de deslocamentos de atores, de ideias, etc., para além das fronteiras e sobre uma análise equilibrada das fontes a recorrer (MAUREL, p. 92).7

Frédéric Barbier avança ainda mais. Para ele, surgida no bojo do que alguns autores consideram a primeira fase da globalização promovida pela queda de Constantinopla e pela expansão para o Novo Mundo, a invenção dos tipos móveis por Gutenberg fez com que a produção impressa estivesse vocacionada para a integração mundial desde seus primórdios, atuando como um reforço a esse processo (BARBIER, 2015). Porque permite uma construção complexa da informação que garante, por sua vez, a circulação, e portanto sua possível atualização, a tecnologia do impresso dá às sociedades ocidentais que a dominam uma ferramenta decisiva para se impor ao nível mundial; sua capacidade se mede em termos de construção de conhecimento, de representações e, em última instância, de poder (BARBIER, 2015).

De fato, desde seu surgimento, a imprensa ganha rapidamente o mundo. Já no século XV, eram 250 cidades pela Europa a aderir à nova técnica. Na América espanhola, por sua vez, a Igreja vê na imprensa uma forma eficaz para expandir a evangelização: no México, a imprensa é adotada em 1530, em Lima, em 1584. Nas colônias inglesas, a imprensa aparece em 1640 em Cambridge. O Brasil é a exceção à regra, tendo que esperar até o início do século XIX para que os prelos fossem definitivamente liberados do exclusivo colonial. Sem sombra de dúvida, é o capitalismo irradiado a partir da Europa o motor dessa meteórica expansão que colocou o planeta em conexão no espaço de menos de um século, para se perpetuar como uma grande força sustentada por interesses políticos, econômicos e culturais até os dias de hoje (BARBIER, 2015). Apesar desse jogo de forças assimétrico, as adaptações locais ao fenômeno global legam singularidades a cada caso.

No esteio dessa ampla revisão teórica, novos conceitos têm sido propostos para dar conta da complexidade e singularidades das trocas culturais no suporte periódico. São eles “modelização” (PINSON, 2016), que consiste em evidenciar como gêneros, mas também ideias, se “moldam” no contexto de acolhida, e “ambiguidade” (GUIMARÃES, 2015), para definir a instabilidade das trocas, mas também questionar o sentido das mesmas, ao favorecer a noção de sincronia e da existência de um circuito integrado de informação.

Assim, com a proposta de fornecer subsídios à reflexão dos novos desafios impostos pela novas abordagens expostas acima e contribuir para o debate, é possível ler no presente dossiê estudos tanto sobre a imprensa periódica em francês publicada nas Américas, quanto sobre a imprensa publicada em território francês, mas que circulava de norte a sul do continente e alimentava o ciclo que propiciou esse câmbio de ideias e seus suportes no âmbito da francofonia.

Em sua contribuição La presse francophone dans les Amériques au XIXe siècle: état des travaux, premières considérations, Diana Cooper-Richet oferece um panorama da imprensa francesa nas Américas. Revisa os diferentes territórios envolvidos e suas fases de desenvolvimento, desde o Canadá até os países da América Latina. Propõe algumas considerações de síntese para discorrer sobre modelos de imprensa e as características de uma cultura midiática que é ao mesmo tempo muito ativa, mas muitas vezes efêmera. Essa visão geral é oportuna para a perspectiva comparativa e é seguida, no presente dossiê, por estudos que enfocam títulos ou fenômenos mais circunscritos.

A começar pelo artigo de Guillaume Pinson, La presse francophone d’Amérique du Nord au XIXe siècle: jalons et périodisations, que define os primeiros marcos cronológicos e geográficos para uma história da imprensa em língua francesa na América do Norte. Para o autor, o conjunto formado por essa imprensa deve ser considerado como um todo, como um objeto coerente, cujo estudo não deve ser compartimentalizado. De fato, a circulação entre as diferentes áreas de publicação de jornais e revistas em francês é intensa, tanto do ponto de vista dos textos quanto dos homens, incluindo jornalistas-aventureiros, mas também de leitores que formavam um mundo conectado. É como sinal de resistência da cultura francesa em um Canadá sob dominação britânica após o Tratado de Paris (1763) que surge o jornal bilíngue The Quebec Gazette/La Gazette de Québec, provavelmente o primeiro jornal das Américas.

Por sua vez, ainda sobre os casos do Canadá e dos Estados Unidos, Hans-Jürgen Lüsebrinck, em Les almanachs francophones dans les Amériques – transferts, structures, évolutions, fornece uma reflexão sobre almanaques, tradicional formato periódico surgido no século XV e levado para os Estados Unidos no contexto da expansão colonial europeia e da instalação da atividade impressora no novo continente. Ele demonstra como estes já se encontravam bem estabelecidos no Atlântico Oeste, particularmente nas comunidades francesas, já no último terço do século XVIII, porém, devido à proibição da atividade impressora nas colônias, a publicação em língua francesa só se iniciou em Montreal em 1877, paradoxalmente, após o fim da interdição colonial, com o pioneiro Almanach Encyclopédique – Chronologie des faits les plus remarquables de l’histoire universelle, depuis Jésus-Christ; avec des anecdotes utiles et intéressantes. O gênero experimentou uma longevidade particularmente notável no Quebec, sendo impresso ainda nos idos dos anos de 1920.

No artigo A imprensa francófona no Brasil – Circulação transnacional e cultura midiática nos séculos XIX e XX, Valéria dos Santos Guimarães analisa a circulação e a publicação de periódicos francófonos no Brasil como parte de um só fenômeno. Certos grupos de leitores passam, assim, a fazer parte de uma mesma área cultural francófona. A autora se dedica a perscrutar os mecanismos pelos quais se constituiu esse circuito da leitura de periódicos em francês em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo a partir da consulta a antigos catálogos, memórias ou relatórios oficiais que revelaram, entre outros, acordos comerciais favoráveis à entrada de impressos provenientes da França. Defende que os jornais franco-brasileiros não só difundiam a cultura francófona como foram pioneiros na inserção do Brasil na lógica da cultura midiática e da modernidade.

Alguns autores se dedicaram a fornecer um panorama do que se publicava em francês em seus países, corpus pouco conhecido na maioria dos casos, tais como Pascal Riviale, que, no artigo La presse francophone au Pérou au XIXe siècle: une histoire en pointillé, fez um levantamento da imprensa francófona publicada no Peru na segunda metade do século XIX. Riviale, que percebe ser esta uma história cheia de lacunas, supõe que tais jornais eram endereçados à pequena comunidade francesa instalada no país, tais como comerciantes, artesãos, engenheiros etc. A esse público limitado somavam-se membros da elite local atraídos pela língua e cultura francesa, bem como alguns expatriados belgas, suíços, britânicos e alemães, entre outros, um padrão, aliás, que se repete em outros países das Américas. A maioria dos jornais em francês que vieram à luz em Lima foram lançados nos anos de 1860-70, como o Corsaire (1866) e o Journal du Pérou (1872) e L’Union nationale (1872). Todos diziam defender os interesses da França e visavam fornecer informações para seus leitores que se encontravam longe de seu país.

Também com essa abordagem panorâmica, em que se inventariam os títulos antes dispersos e mesmo desconhecidos até então, Viviane Oteíza em seu La presse française en Argentine situa a existência de uma imprensa francesa na Argentina desde o primeiro jornal franco-argentino L’Indépendant du Sud em 1818 (provavelmente o pioneiro de toda a América do Sul) até os dias atuais. Os franceses eram predominantemente radicados em meios urbanos, apresentavam alto nível educacional e eram dedicados a atividades especializadas. Ao contrário da maioria dos países das Américas (com exceção das regiões em que houve colônias francesas), era uma comunidade significativa, ficando atrás apenas dos espanhóis e italianos. Não obstante, o lugar da cultura francesa como o principal modelo cultural estava assegurado, como ocorreu na América Latina em geral.

Seguem-se a essas abordagens mais abrangentes alguns estudos de caso, a exemplo do artigo La presse francophone au Mexique – signes de globalisation de Arnulfo Santiago Gomez, que considera a atuação de livreiros como importantes mediadores envolvidos na circulação do impresso francófono entre Europa e México, responsáveis mesmo pelo surgimento da imprensa franco-mexicana que ocorre com o lançamento do pioneiro Le Courrier du Mexique – Journal commercial, politique et littéraire em 1838. A seguir, ele se concentra nas décadas seguintes, à época da invasão americana, quando aparece no mercado editorial mexicano o jornal Trait d’Union (1849-1896), órgão longevo que veio a lume por ação de René Masson. Em 1844, aos 27 anos, Masson partiu da França para os Estados Unidos, onde publicou o jornal Francoamérican até 1848, ano em que segue para a cidade do México e se dedica à nova empreitada. O autor ainda avança para o período posterior, quando a presença francesa se expande após a ascensão de Maximiliano.

Também com destaque para o papel dos mediadores, o texto Juan Lasserre: inmigrante francés y periodista rioplatense (1826-1850) de Julio Moyano se concentra no que classifica serem as bases da imprensa moderna argentina, que aparece a partir de 1850, mas que já é gestada três décadas antes, processo intimamente ligado à ação de alguns passeurs culturels franceses que participaram do desenvolvimento do mercado editorial portenho. Destaca a condição emblemática de Jean-Baptiste Lasserre, francês que se radica em Buenos Aires, edita vários jornais no decorrer do século XIX esquivando-se da censura, ora aliado a um ou outro grupo político, seja por questões ideológicas ou de conveniência, e cuja vida profissional confundiu-se com o próprio desenvolvimento da imprensa nacional daquele país.

Em torno do mais longevo e importante jornal portenho, o Courrier de la Plata, Emiliano Sanchéz em Entre la neutralidad y el compromiso patriótico: los escritos de Paul Groussac en Le Courrier de la Plata durante la Gran Guerra discorre sobre a colaboração do francês naturalizado argentino Paul Groussac nesse periódico, entre 1916 e 1919. Diretor da Biblioteca Nacional, Groussac acabou não adotando a postura de neutralidade sobre a I Guerra Mundial esperada de sua posição, tendo se engajado na defesa aberta da França. Sua participação no Courrier de la Plata coincide com um momento de encolhimento da redação devido às repatriações de franceses, o que dá ainda maior evidência à sua colaboração e consequente importância às posições que assume, uma vez que suas interpretações singulares do que o autor definiu como “cultura da guerra” resultaram em uma perspectiva que não apenas ecoou o debate francês, pelo contrário, o redimensionou em função da sua condição original de observador de fora do território europeu.

Segue-se às contribuições acima o artigo Inmigrantes francófonos en los orígenes de la comunicación visual en la prensa periódica argentina (1827-1870), no qual Alejandra Viviana Ojeda faz um levantamento detalhado de franceses ou francosuíços ligados à formação do campo visual da imprensa periodística argentina, como litógrafos e ilustradores. Deixa claro o predomínio de franceses em áreas ligadas às artes plásticas, o que se estende à atividade da imprensa periódica. Ela também demonstra como vários desses nomes tiveram suas biografias vinculadas ao Brasil e ao Uruguai, por motivos os mais diversos, como é o caso de Jean Leon-Pallière, na verdade um brasileiro de origem francesa, registrado como francês no Brasil. Ele estudou entre os 7 e 25 anos na França, retornando para o Rio de Janeiro em 1848, onde teve aulas com Émile Taunay. Depois volta para Europa como bolsista e só então segue para a Argentina em 1855, onde se tornou professor e fez “vistas” (pinturas de paisagens) de vários países da América que foram publicadas em revistas como a Ilustrated London News de Londres e a Illustration de Paris, revelando um circuito bem integrado das artes visuais dos diferentes países e entre mídias diversas.

Em consequência dos acontecimentos em solo francês, os perfis dos colonos franceses variam de proscritos, na fase inicial do século XIX, a emigrados espontâneos, aventureiros, especialistas no ramo gráfico, homens vindos de outras áreas, mas que se arriscaram em profissão que demandava cada vez mais mão-de-obra especializada, cenário que se repete em vários dos países do continente americano. No contexto de um país de unidade nacional e com uma comunidade francesa estabelecida, nomes como Henri Stein e Henri Meyer do famoso El Mosquito destacam-se no ramo. Menos sobre a imprensa publicada em francês e mais sobre a francofonia no métier gráfico ligado ao periodismo, o texto de Alejandra trabalha no limiar dos estudos migratórios, vinculando o desenvolvimento dessa imprensa ao tipo de migrante. Ela faz uma cronologia do mercado editorial do imprenso francês nas Américas ancorada às possiblidades técnicas do período, ao contexto europeu e às particularidades da Argentina que, ao lado do Uruguai, forma uma imprensa francesa muito integrada, cujo contato com outros países, a exemplo do Brasil, também é constante.

É precisamente a contribuição Le feuilleton en tant que matrice du Patriote Français (Montevideo, 1843-1850), de Alma Bolon, que ajuda a mostrar como a história argentina e uruguaia se entrelaçam no que toca ao periodismo francófono. Ela reconstrói a trajetória do Patriote Français de Montevidéu (1843-1850), jornal que acompanhou a comunidade francesa engajada militarmente durante o conflito regional entre os dois países vizinhos. Aqui encontramos um fenômeno típico de uma imprensa comunitária lançada e apoiada por franceses em países estrangeiros, na esperança de defender seus interesses políticos e comerciais. A autora demonstra, aliás, como o tom épico adotado na linguagem do jornal, e de seu folhetim em particular, transformou o Patriote Français em um órgão engajado e que incentivava o espírito guerreiro de seus “patriotas”.

As relações intestinas entre imprensa e literatura, característica do século XIX, também são analisadas no texto de Priscila Gimenez, Crítica e sociabilidade: a rubrica teatral do L’Écho de l’Amérique du Sud (1827-1828). Ela se debruça sobre um dos primeiros jornais franceses publicados no Brasil, L’Écho de l’Amérique du Sud – journal politique, commercial et littéraire (RJ, 1827-1828), e sua crônica teatral, gênero precursor no periodismo parisiense que abriu espaço para a crônica e para o folhetim. Nesse espaço aos fundos do jornal – antes que migrasse para o rodapé da primeira página –, entretenimento e sociabilidade urbana distraíam os leitores e colocavam em marcha uma intensa circulação de imaginários que logo se tornariam hegemônicos no Ocidente.

E é nessa mesma perspectiva que Yuri Cerqueira dos Anjos, no ensaio Literatura ambivalente: desafios conceituais no estudo da literatura em três jornais francófonos brasileiros (1857-1906), dedica-se a refletir acerca das sobreposições entre literatura e jornalismo nos primórdios da difusão massiva da imprensa periódica pelo Ocidente, em que a fatura francesa predomina. O autor também chama a atenção para a farta quantidade de conteúdo literário, propriamente dito, que a imprensa francesa foi responsável por fazer circular no século XIX. A partir dessas observações, faz uma reflexão teórica acerca dos conceitos de transferências culturais, modelização e ambivalência aplicados ao caso particular da imprensa alófona e destaca a importância dessas abordagens para a renovação teórica não só no campo da história da imprensa, mas também no campo da Literatura Comparada.

Em outra chave interpretativa, Carmen Torniquist trata em Mariátegui, assinante de Clarté da francofonia presente nas Américas por meio do intenso diálogo estabelecido entre o conhecido intelectual marxista peruano José Carlos Mariátegui (1894-1930) com o grupo de intelectuais franceses autodenominado Clarté, cuja revista homônima foi central na formação de suas ideias. Ele se constituiu em um importante mediador entre o debate já muito internacionalizado das esquerdas europeias com o pensamento latino-americano, atuando como tradutor e divulgador em vários periódicos das vanguardas. Assim como Oswald de Andrade, que se declarou sentir finalmente brasileiro quando de sua mansarda em Paris, Mariátegui declara “Yo no me sentí americano, sino en Europa. Por los caminos de Europa, encontré el país de América que yo había dejado y en el que había vivido casi extraño y ausente…”. Nesse caso, a francofonia dá-se não nas publicações franco-peruanas, mas na circulação de veículos e ideias franceses nas Américas. Ao contrário do que se pode supor, no entanto, essa recepção às ideias estrangeiras foi bastante crítica, inclusive às concepções eurocêntricas em relação ao debate em torno da adoção de modelos alternativos ao capitalismo na América Latina.

Caso semelhante, e que também abrange a geração de pensadores do modernismo latino-americano, é abordado por Antoine Huerta em Geografia : une expérience éditoriale transnationale aux premiers temps de l’Université de São Paulo et de l’Associação dos Geógrafos Brasileiros, em que explora o caso da Revista Geografia (1935) e do grupo de intelectuais brasileiros e franceses que a ela deu origem, ligados à fundação da Universidade de São Paulo e da Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB) em 1934. O autor se concentra no trabalho do geógrafo francês Pierre Deffontaines, que criou a cadeira de geografia na USP e atuou como professor universitário no Rio. O destaque é dado à contribuição para o programa de geografia humana e à cooperação com intelectuais como Caio Prado Jr., revelando um intenso diálogo acadêmico transnacional no seio de um periódico científico, história fundamental para a compreensão da constituição da geografia como disciplina no âmbito acadêmico no Brasil.

A despeito da modesta imigração francesa para as Américas, restrita a certas regiões mesmo nas áreas coloniais do Canadá e Estados Unidos, ou do caso da Argentina que, não sendo colônia, recebeu o maior contingente de franceses na América Latina, a importância da imprensa francófona fica patente para a constituição de um campo intelectual no Continente como parte de uma cultura midiática transnacional. Os autores que participam nesse dossiê tentaram encerrar em um amplo espectro de recortes espaço-temporais e orientações teórico-metodológicas, assim, a riqueza desse corpus para a pesquisa em várias áreas do pensamento, corroborando a necessidade de melhor explorá-lo para o que esperam ter dado sua contribuição.

Notas

1 FAPESP e FUNDUNESP apoiaram o evento que foi realizado pela UNESP, Universidade Federal de Juiz de Fora, Universidade de Laval e Universidade de Versailles. O congresso foi uma atividade do Projeto – Auxílio Regular FAPESP “Imprensa francesa publicada no Brasil 1854-1924” (Proc. 2016/08605-7) e do Grupo Transfopress Brasil – Grupo de Estudos da Imprensa em língua estrangeira no Brasil (https:// transfopressbrasil.franca.unesp.br). Para mais informações: https://jfb.franca.unesp.br/noticias/imprensafrancofona-das-americas-nos-seculos-xix-e-xx-fotos-e-publicacoes

2 “Saunier observe en outre qu’alors que le terme « transnational » a été utilisé dans les années 1970 par des personnes de gauche pour critiquer le capitalisme débridé des firmes transnationales, il est aujourd’hui plus utilisé par des personnes de droite, qui l’emploient pour désigner une élite transnationale composée notament d’agents des ONG et des organisations internationales.” MAUREL, Op. cit, p. 80.

3 Tradução nossa: “their feet in two societies”; “globalization from below” (uma clara alusão à “história vista de baixo”); “flows of capital, people, ideas or images ware making nation states insufficient or irrelevant as units of analysis, and the social sciences had to account for this break in the history of the world”, SAUNIER, Pierre-Yves; IRIYE, Akira (org.). The Palgrave Dictionary of Transnational History – From the mid-19th century to the present day. UK: Palgrave Macmillan UK, 2009, p. 14-15.

4 Saunier lista algumas publicações que o adotam, tais como Diaspora: a Journal of Transnational Studies (1991), Global Networks: a journal of transnational affairs (2001), Transnational Communities Program (1997) entre outros.

5 A profusão de trabalhos que utilizam o conceito é tal que os anos recentes assistiram um esforço de revisão da trajetória de seu emprego e um bom exemplo é o trabalho citado de Pierre Yves Saunier (2013).

6 Utilizada por Mário Carelli.

7 Tradução nossa: “Ainsi, toutes ses approches : l’histoire transnationale, l’histoire des transferts culturels, l’histoire connecté, l’histoire croisé, partagée, se rattachent au spectre de l’histoire globale. Elles sont intéressantes par les innovations méthodologiques et épistémologiques qu’elles apportent ; allant plus loin que le simple comparatisme, elles ouvrent des champs fertiles pour de nouvelles recherches, fondées sur l’analyse des déplacements d’acteurs, d’idées, etc., au-delà des frontières et sur une prise en compte équilibrée des sources pour les saisir.”, MAUREL, Op. cit., p. 92.

Referências

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MAUREL, Chloé. Manuel d’histoire globale – comprendre le “global turn” des sciences humaines. Paris: Armand Colin, 2014, p. 131.

NITRINI, Sandra. Um olhar sobre a literatura comparada no Brasil. Cadernos do IEB 10. São Paulo: IEB/USP; ABRALIC, 2018.

PINSON, Guillaume. La culture médiatique francophone en Europe et en Amérique du Nord – de 1760 à la veille de la Seconde Guerre mondiale. Quebec: Presses de l’Université de Laval, 2016.

SAUNIER, Pierre-Yves; IRIYE, Akira (org.) The Palgrave Dictionary of Transnational HistoryFrom the mid-19th century to the present day. UK: Palgrave Macmillan UK, 2009.


Organizadores

Valéria dos Santos Guimarães – Universidade Estadual Paulista – UNESP Franca. E-mail: [email protected]

Guillaume Pinson – Universidade Laval Quebec, Canadá. E-mail: [email protected]

Diana Cooper-Richet – Université de Versailles Saint-Quentin-en-Yvelines Versalhes, França. E-mail: [email protected]


Referências desta apresentação

GUIMARÃES, Valéria dos Santos; PINSON, Guillaume; COOPER-RICHET, Diana. Apresentação. História (São Paulo). Franca, v.38, 2019. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

 

 

 

 

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