A inter-relação da teologia com a pedagogia no pensamento de Comenius | E. P. Lopes

Lopes (2005), ao analisar o pensamento educacional de Comenius, colocou-se entre os grandes pensadores da educação, como Edgar Morin, o suíço Philippe Perrenoud, os espanhóis César Coll e Fernando Hernández, o português António Nóvoa, o colombiano Bernardo Toro e o brasileiro Paulo Reglus Neves Freire. Assim, todos os estudiosos da educação deverão considerar a visão educacional apresentada em sua obra. Nela, percebe-se que o pensamento educacional comeniano foi moldado por sua visão teo lógica reformada. Assim, mais uma vez, a educação mundial se vê na obrigação de reconhecer as imensas contribuições promovidas pela teologia reformada ao longo dos séculos.

Lopes (2005), herdeiro da reforma protestante, não fica aquém e dá continuidade à erudição reformada. Vejamos.

No Capítulo 1, Lopes (2005, p. 33) trata das “influências culturais que marcaram o pensamento de Comenius”: renascença, utopistas pedagógicos e a influência religiosa.

O período renascentista foi marcado “pela volta aos originais, à língua grega e à renovação da vida religiosa” (LOPES, 2005, p. 35). Assim, a educação renascentista teve um cunho liberal ao fomentar o estudo de pensadores como Cícero, Quintiliano, Tácito e outros, que preconizavam que o homem deveria estar apto para “participar das atividades das instituições sociais dominantes” (LOPES, 2005, p. 38), contrariando, assim, a educação da escolástica. Ora, nem um opositor ferrenho, mesquinho e com perversas intenções poderá negar a existência desses princípios nas obras do Velho Fortunado. “É do Renascimento que ele deriva a concepção dinâmica e evolutiva da natureza e a concepção do homem como microcosmo, gestor e mediador nas relações com a natureza, com a tarefa de reconduzi-la a Deus” (LOPES, 2005, p. 38).

Os utopistas pedagógicos são representados pelos notáveis pensadores Tommaso Campanella, Francis Bacon, Wolfgang Ratke, Johann Valentin Andreae e Johann Heinrich Alsted. Ao manusear qualquer uma das obras desses estudiosos, encontrarse-á o fio condutor que marca todas as obras utopistas: valorização da cultura, da educação, da praticidade e do ideal comum.

Johannes, sem detença, explicitou seu desejo de ver uma sociedade mais justa, onde todos tivessem acesso à educação. Motivado por esse desejo, defendeu métodos inovadores no ensino. Preocupou-se com a educação infantil, reafirmando os pressupostos educacionais de Ratke. Novamente, duvidar da influência dos utopistas no pensamento de Amos é não reconhecer o fato que ele mesmo registrou: sua obra Didática magna só teve término por influência de Andreae.

A influência religiosa é notadamente vista em Comenius. A igreja medieval veio, desde o edito de Constantino, em 313 d.C., sofrendo um declínio ético, moral e espiritual. Tal declínio notabilizou-se na centralidade do saber, excluindo, de todo, a educação da sociedade. Nesse período, muitos foram levados à fogueira por causa do ato de pensar, a ponto de a “Igreja não [ser] mais a expressão religiosa da sociedade” (LOPES, 2005, p. 50). O cisma foi eminente. Em meio a tanto descontentamento, muitos movimentos reformadores surgiram – os petrobrussianos, os caritas, os valdenses, os taboritas, os ultraquistas –, até que, em 31 de outubro de 1517, Lutero, monge agostiniano, desencadeou uma crise que mudaria para sempre a história da Igreja.

A reforma luterana consistiu, entre outras coisas, por uma reforma educacional. Essa nova proposta educacional achou guarida em Melanchton, Farel e Calvino. Os reformadores propuseram a universalização do ensino: tanto o homem quanto a mulher deveriam ter acesso ao saber. Para tais estudiosos, uma sociedade mais justa seria inviabilizada se a educação não estivesse ao alcance de todos; aliás, preconizavam que o homem conheceria melhor Deus à medida que se dedicasse ao estudo da Bíblia. Logo o analfabetismo deveria ser extinto.

Só resta-nos afirmar que Comenius é adepto dessa tendência religiosa. Assim, em suas obras, esses pressupostos pululam.

No Capítulo 2, Lopes (2005, p. 33) assinala o “contexto histórico e a produção literária de Comenius”.

Ao contemplar a Morávia do início do século XVI, vê-se que a economia sofria mudanças, pois o nascer dos mecanismos pré-capitalistas chocava-se com as estruturas feudais. A política privilegiava as inclinações absolutistas do imperador, e a tensão religiosa entre protestantes e católicos permanecia. A Constituição considerava tanto os católicos como os protestantes. Dessa forma, a Morávia achava-se em conflitos políticos, religiosos e sociais, que geravam problemas de toda ordem no seio da sociedade. E é nesse contexto que se encontra a proposta educacional moraviana, uma das pilastras dessa comunidade, que se fez notar em suas escolas, inclusive pela Universidade de Praga.

Os princípios educacionais dos moravianos prezavam pela “dignidade e pelo direito à instrução do indivíduo e de todos, bem como a luta pela verdade e pela justiça” (LOPES, 2005, p. 94).

Johannes foi extremamente influenciado pela cultura educacional da Morávia, que questionava os métodos dos colégios jesuítas. Nesse sistema educacional, concluiu seus estudos na escola de Prerov e estudou Teologia na Universidade de Herbon. Tornou-se professor de Filosofia aos 23 anos e escreveu duas teses – Problemata miscellanea e Sylloge quaetionum –, enfatizando a problemática entre a natureza e a arte e a questão da visão, respectivamente.

Defendeu sua tese de Teologia em Heidelberg. Iniciou sua obra consagrando a língua checa, Didática checa. Em 1614 foi nomeado reitor da escola de Prerov, onde inseriu novos métodos para o ensino. Foi ordenado pastor dos irmãos Morávios em 1618, assumindo a responsabilidade de conduzir a escola de Fulnek, dando origem à sua familiarização com a educação em geral.

Escreveu duas cartas manifestando sua visão teológico-política. Redigiu O labirinto do mundo e o paraíso do coração, Guia da escola materna, Caminho para paz, Janua linguarum reserata etc. Comenius se consagrou como estudioso da educação.

O Capítulo 3 ficou reservado para os “pressupostos teológicos de Comenius na Didática magna” (LOPES, 2005, p. 33).

A Didática magna de Amos reflete sua tentativa de fazer com que o povo checo permanecesse unido. Logo, esse trabalho evidencia seu ponto de vista teológico e educacional. Comenius preocupava-se não só com a formação moral, mas também com o desenvolvimento da piedade. Queria que seu povo obedecesse a Deus, por isso encontram-se muitos textos bíblicos citados em sua obra.

O autor demonstra que, para o Velho Fortunado, a Bíblia é um livro que possibilita ao homem conhecer todas as coisas, tornando-se, assim, a fonte mais rica e perfeita do conhecimento, a literatura por excelência. A Bíblia exercia primazia em sua vida e em qualquer matriz curricular escolar, isso porque desprezava a literatura pagã, por entender que ela pouco podia contribuir para a aquisição do conhecimento, chegando ao ponto de proibir o uso de tal literatura entre seus membros e na escola (LOPES, 2005, p. 140-141). Comenius deixa transparecer que era um absurdo as escolas cristãs de seus dias conhecerem mais as literaturas pagãs do que a Cristo.

O conceito teológico de Comenius, em sua obra Didática magna, é tão evidente que vemo-lo preconizar três formas de interpretar as escrituras. Uma obra que foi escrita com a finalidade de ser o orgulho do povo checo, ao levar em si princípios hermenêuticos para uma boa interpretação bíblica, no mínino, revela a preocupação teológica do autor ao educar sua nação. Nessa obra de referência, é possível perceber a visão comeniana em relação: à Trindade; à formação genuína do homem, uma vez que este é a criatura mais importante da criação divina; à antropologia; à soteriologia; e à escatologia – “a preparação para a vida futura deverá ocorrer por meio da educação” (LOPES, 2005, p. 182).

No Capítulo 4, o autor traça “os pressupostos pedagógicos de Comenius na Didática magna” (LOPES, 2005, p. 33).

Os pressupostos pedagógicos de Comenius se caracterizam em sua crítica à realidade educacional de seus dias. O professor acreditava que a educação pansófica deveria ser deleitosa, por isso desenvolveu seu próprio método de ensino-aprendizagem, calcando-se no princípio de que o “homem, por natureza, está pronto para aprender todas as coisas, e o desejo de saber é inato” (LOPES, 2005, p. 193).

As artes e as ciências só seriam abarcadas por meio de um conhecimento integral ou enciclopédico. O mestre da educação, orientando-se pelos sentidos, preconiza seu método pedagógico natural por meio da ”síntese”, da “análise”, da “síncrise”. A disposição escolar deveria ser regulada em quatro estágios de seis anos cada: escola materna, escola vernácula, escola latina ou ginásio e academia. Assim, com ele, a pedagogia se firma como ciência, tendo como objeto de estudo a teoria sistemática da educação.

A disciplina pedagógica é fomentada, pois, por meio dela, alcança-se a perseverança em tudo o que se pratica: a reverência a Deus, a afeição ao próximo e o acendimento pelos afazeres da vida (LOPES, 2005, p. 226-227). Nesse sentido, encontra-se a proposta para a organização escolar universal: “Todas as escolas deveriam abrir e fechar ao mesmo tempo no decorrer do ano” (p. 227-228); “os estudos em classe não [deveriam] ultrapassar quatro horas por dia” (p. 228); e deveria ser privilegiada “a necessidade de períodos de repouso e recreação” (LOPES, 2005, p. 228). Ressalta-se, ainda, o cuidado em pôr em prática seu método, pois alguns princípios precisariam ser observados: “Preparação dos livros panmetódicos” (p. 230); “sustento e preparo dos docentes” (p. 230); “preocupação dos pais em educar os filhos” (p. 231); “apoio dos teólogos ao método universal” (p. 231); e “apoio dos príncipes ao projeto” (LOPES, 2005, p. 232).

Lopes (2005, p. 33), no Capítulo 5, cuidou da “interrelação da teologia com a pedagogia na Didática magna”.

Os humanistas, os utopistas, a religião dos hussitas/taboritas e da Reforma – que endossavam uma educação universal –, o contexto histórico, político, social, econômico em que viveu Comenius fizeram marcas profundas no intelecto desse sábio. Assim, todas as suas obras trouxeram impressas essas marcas. A teologia é a coluna vertebral do pensamento comeniano, e a pedagogia é o cimento que une cada elo de tal pensamento. Portanto, pode-se afirmar que o educador jamais advogou pela separação entre teologia e pedagogia; pelo contrário, a inter-relação da teologia com a pedagogia é que dá sus tentação a todo o ideal de Comenius. O homem é visto como um todo que precisa absorver todo o conhecimento impresso na natureza. Assim, somente o homem regenerado poderá gozar dos mais profundos saberes revelados por Deus na criação.

A educação e a piedade norteiam todas as obras escritas pelo catedrático. Para ele, a cura para todos os males estava na educação piedosa universal. A educação é a sistematização teológica que conduz a humanidade a reconhecer a existência e o domínio de Deus. Assim, seis princípios são estabelecidos para incentivar a ideia de que a educação deve ser iniciada pela juventude: “A incerteza da vida presente e a formação da alma” (LOPES, 2005, p. 270-271); “não devemos somente aprender, mas também agir” (p. 272); “a mente humana precisa ser plasmada e replasmada” (p. 272); “para que o homem seja formado para a humanidade, Deus lhe concedeu os asnos da juventude” (p. 272-273); “O conhecimento só será sólido e duradouro quando adquirido na primeira idade” (p. 273); e, finalmente, “é perigoso não infundir no homem, desde o berço, regras salutares de vida” (LOPES, 2005, p. 273).

Diante do exposto, uma crítica explícita há de ser feita: a excelência do trabalho do professor Edson Pereira Lopes poderá fazer com que o leitor menos avisado pense que Comenius é nosso contemporâneo, tendo em vista suas propostas educacionais. Isso porque, nos bancos das universidades, em especial na Universidade Presbiteriana Mackenzie, a proposta curricular do Curso de Letras, na disciplina de Estágio Supervisionado, é de que se evidencie todo o esforço para otimizar nossa educação, e a proposta em nada difere daquilo que disse o sábio Comenius há quatro séculos. Lopes (2005, p. 104-105) escreveu:

Comenius chega a Praga em 1614 sob a proteção do bispo Lanecius, o qual na época manifestava vivo interesse pelos novos métodos pedagógicos de Ratke. Ainda demasiadamente novo para ser ordenado, foi nomeado reitor da escola de Prerov, principal centro da comunidade morávia. Dessa forma, ele resolve se dedicar ao magistério, motivado pelas idéias pedagógicas que havia aprendido nas universidades de Herbon e Heidelberg. Além de reitor, também lecionou na referida escola, introduzindo disciplinas úteis no currículo escolar e adotando métodos eficientes para o ensino das ciências e das artes, inspirado nas obras de Ratke, com bons resultados. Notabilizou-se como professor competente, preocupando-se em distribuir corretamente o tempo escolar entre ensino com conversas, jogos, recreações e música, pois desejava que a escola fosse agradável e atraente. Com esses princípios, segundo Covello (1999, p. 30), ele cativou seus alu nos, abolindo os castigos corporais, tão em voga nas escolas de sua época.


Resenhista

Ailton de Souza – Bacharel em Filosofia, Letras e Teologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM) e em Teologia pelo Seminário Teológico Presbiteriano Reverendo José Manoel da Conceição. Mestrando em Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

LOPES, E. P. A inter-relação da teologia com a pedagogia no pensamento de Comenius. São Paulo: Editora Mackenzie, 2005. Resenha de: SOUZA, Ailton de. Ciências da Religião – História e Sociedade. São Paulo, v.8, n.2, p. 156-162, 2010. Acessar publicação original [DR]

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