A micro-história e suas contribuições teóricas e metodológicas para (re) pensar os processos migratórios / História Unisinos / 2016

A partir da década de 1970, a historiografia italiana inovou na forma de pensar a mobilidade populacional, provocando uma reviravolta nas interpretações a respeito das e / imigrações. Os comportamentos individuais diante das transformações gerais da história passaram a ganhar destaque entre aqueles que estudavam os fluxos migratórios de curta e longa distâncias. Isso se deveu a um novo método de pesquisa que seria conhecido, posteriormente, por micro-história. Essa metodologia permitiu aos historiadores reconstruir trajetórias de famílias e biografias que diferiam do modelo tradicional de se estudar as comunidades ou uma única vida. A questão passava por problematizar as famílias e os sujeitos, inserindo-os em distintos contextos e relações sociais, percebendo semelhanças e, principalmente, diferenças. A importância desta nova perspectiva radicava-se no lugar central que começava a conferir aos sujeitos o papel de atores sociais responsáveis por suas trajetórias, individuais e familiares. Diante disso, explicações rígidas como aquela do “modelo expulsivo” – que condicionava os movimentos migratórios a variáveis econômicas, políticas e à consequência direta dos processos de liberação da força de trabalho para a indústria – começaram a mostrar sinais de fraqueza diante da incapacidade de apreender os aspectos fundamentais do “fenômeno multiforme”, como o das migrações.

Nesse sentido, a imigração para a América, principalmente a do século XIX, deixou de ser vista apenas como consequência das forças de atração e expulsão, possibilitando que novas variáveis fossem analisadas. Fontes documentais de natureza diversa passaram a ser utilizadas nos estudos migratórios para apreender o desempenho ativo dos sujeitos, suas estratégias de deslocamentos bem como aspectos culturais. Para levar a cabo com êxito uma análise dessa natureza era imprescindível recorrer a alguns conceitos-chave como: estratégia, redes sociais, racionalidade limitada, solidariedade e conflito. A utilização de diferentes fontes e a metodologia da microanálise tem servido para compreender as variadas dinâmicas migratórias e as estratégias de integração social, ganhando destaque o papel ativo dos sujeitos em tais processos.

O objetivo principal deste dossiê foi o de reunir artigos que tenham utilizado a metodologia da microanálise ou recebido alguma influência teórica e conceitual em suas pesquisas sobre diferentes grupos étnicos de e / imigrantes, que reflitam sobre deslocamentos transatlânticos, trajetórias, integração e mobilidades sociais. Desse modo, no artigo ¿Existió la microhistoria?, Dedier Norberto Marquiegui desenvolve uma análise dos diversos estudos que ficaram conhecidos como trabalhos de micro-história, até chegar aos maiores expoentes da escola italiana, a exemplo de Edoardo Grendi, Carlo Ginzburg e Giovanni Levi. Além desses, o autor discute os trabalhos de outros historiadores italianos, chamando a atenção para a ausência de uma definição única de micro-história e de um modelo teórico singular. O que existem são diferentes práticas historiográficas, que partem de fatos circunscritos, situações cotidianas e estimulam uma análise densa e intensa das fontes documentais. Longe de estudar o acontecimento por ele mesmo, é a busca pela essência das coisas, pelos significados e explicações, bem como pelas perguntas que suscitam, que definem a micro-história. Portanto, a micro-história é, antes de tudo, um método, e não um assunto ou estudo de coisas pequenas. Partindo desta perspectiva, Marquiegui apresenta a trajetória de diferentes pesquisadores, preferencialmente dos italianos reunidos em torno da revista Quaderni Storici a partir da década de 70 do século XX, analisando as diferenças e semelhanças entre as propostas, acrescido das influências para o desenvolvimento do estudo dos movimentos migratórios.

A ideia da “redução de escala” e o “paradigma indiciário”, metodologias de caráter inovador, provocativas, atraentes e exaustivas, trouxeram resultados significativos para a renovação de muitos temas e surgimento de outras problemáticas de pesquisa. Mover-se ao sul do Brasil: Mobilidade e fluxos migratórios através da trajetória de João da Silva Tavares (c.1800-c.1860), artigo de Leandro Rosa de Oliveira, investiga os movimentos migratórios que marcaram a ocupação da parte sul do território do Rio Grande do Sul, na primeira metade do século XIX, através da trajetória de João da Silva Tavares. Trabalhando com fontes de origens diversas, o nome se torna fio condutor na pesquisa para analisar os diferentes contextos nos quais os indivíduos que participavam das migrações internas estavam inseridos.

No artigo Imigração alemã ao Brasil (século XIX) e Prússia: fronteiras permeáveis e diálogos entre história global e micro-história, Eduardo Relly reflete sobre a necessidade incorporação de uma abordagem global e micro para a compreensão dos deslocamentos e processos de renegociação cultural ocorridos no território brasileiro por parte dos imigrantes alemães. Através de uma perspectiva ampla, aponta para a necessidade de ligação entre as sociedades de partida e de chegada, permitindo, assim, entender as características regionais e diversidades culturais que foram transferidas para a América, conectando os dois lados do Atlântico. Porém, não deixa de ressaltar a necessidade de estudos mais circunscritos que contemplem as estratégias e redes de relacionamento dos atores. Nesse sentido, no artigo intitulado Excepcionais normais? A(s) trajetória(s) de três pastores no Sul do Brasil (1824- 1893), Marcos Witt mostra o quanto a abordagem micro e o estudo de trajetórias podem ser utilizados para investigar os diferentes caminhos e possibilidades que marcaram as experiências dos pastores nas regiões de colonização alemã no Rio Grande do Sul. Utilizando o conceito de “excepcional normal” apresentado pelos expoentes da micro-história italiana, busca perceber os percursos e as escolhas dos personagens estudados entre as orientações e expectativas da Igreja e da comunidade as quais representavam, bem como dos projetos individuais e familiares. Por fim, constata que a trajetória dos pastores é marcada por normalidade e excepcionalidade, características essas que podem ser percebidas através da atuação nos campos político, econômico, eclesiástico e comunitário.

A participação de imigrantes italianos na Primeira Guerra Mundial é assunto apresentado por Antônio De Ruggiero, no artigo A Grande Guerra do ítalo-gaúcho Olyntho Sanmartin. De Ruggiero examina o conteúdo das memórias de guerra do imigrante que voltou para a Itália a fim de lutar no front ao lado dos compatriotas. Como fio condutor, apresenta a trajetória de alguém que estava obcecado pela vontade de visitar o país de origem, conseguindo, portanto, retornar para servir como soldado reservista. As memórias escrutinadas permitem levantar novas questões para pensar os sentimentos, expectativas e frustações experimentados por aqueles que participaram da Grande Guerra e retornaram para o território brasileiro.

No penúltimo artigo, Histórias de vida e memórias familiares: entrevistas com netos de refugiados da II Guerra Mundial no Brasil, Marcos Nestor Stein e Méri Frotscher partem do exame das entrevistas orais com netos de refugiados da II Guerra Mundial que vivem no município de Guarapuava, no estado do Paraná, para pensar questões como história de vida / familiar, narrativas e identidades. Fragmentos das narrativas individuais dos descendentes dos refugiados se tornam ponto de partida para a compreensão da maneira como o passado é interpretado e quais características são reforçadas. As lembranças da expulsão, do sofrimento e das dificuldades vividas pelos antepassados fazem parte de um “complexo mítico” que define o grupo étnico.

Também mostrando as possibilidades de se trabalhar com entrevistas orais, o artigo de Álvaro Antônio Klafke e Rodrigo de Azevedo Weimer se propõe a discutir aspectos das trajetórias individuais de migrantes que, na metade do século XX, saíram das zonas rurais para se fixar em Porto Alegre e adjacências. O artigo Zilda e o avião: repensando migrações rural-urbanas no Rio Grande do Sul (1943-1963), mostra o quanto as inspirações metodológicas e teóricas da micro-história italiana não se limitam a determinados temas e períodos. Estabelecendo um rico diálogo com os estudos que tematizaram as imigrações transatlânticas históricas, que contestaram as explicações macroeconômicas baseadas na ideia de atração e expulsão, os autores propuseram novos caminhos para repensar as migrações internas regionais. Partem, portanto, da análise de aspectos das trajetórias individuais de migrantes que abandonaram as zonas rurais para se fixar nas cidades. Ao fazerem isso, trazem elementos que, longe de desconsiderar a influência dos macroprocessos econômicos para entender os deslocamentos, dão destaque a motivações individuais e familiares, amenizando, assim, o peso da ideia da pobreza como motivo para expulsão do campo. Desse modo, através da perspectiva dos atores dos processos, é possível perceber a pluralidade das condições de partida, dos recursos e das aspirações, apontando para a complexidade dos processos de mobilidade geográfica e social.

Os artigos que fazem parte do dossiê que ora apresentamos trazem contribuições relevantes sobre os usos possíveis e caminhos que a metodologia da micro- -história sugerem para a renovação dos estudos no campo das migrações transcontinentais e internas. A utilização e cruzamento de fontes de origem diversa, a reconstrução das redes relacionais, o uso do nome do indivíduo como fio condutar da pesquisa e a opção por trabalhar com trajetória individual ou de grupo como via de acesso aos diferentes contextos e horizonte de possibilidades, aparecem como aspectos que continuarão a sugerir novos questionamentos e perspectivas a respeito de distintos processos sociais.

Maíra Ines Vendrame – Universidade do Vale do Rio dos Sinos.

Mariela Ceva Conicet – Universidad Nacional de Luján

Organizadoras do dossiê


VENDRAME, Maíra Ines; CONICET, Mariela Ceva. Apresentação. História Unisinos, São Leopoldo, v.20, n.3., setembro / dezembro, 2016. Acessar publicação original [DR]

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