História & anacronismo – I – Parte internacional | ArtCultura | 2021

Ao longo das últimas três ou quatro décadas, os historiadores vêm demonstrando uma preocupação sensível com o tema da multiplicidade temporal. Ao tempo linear e homogêneo, característico de um regime disciplinar cada vez mais questionado, eles contrapõem “novas formas, múltiplas, variadas, policrônicas”.1 Essa pluralização expressa também questões políticas candentes, como aquelas relacionadas aos nossos tantos passados traumáticos, nos quais diversas modalidades de horror e de violência estatal indicam a persistência incontornável de experiências ainda sentidas como contemporâneas.2

Por outro lado, há uma abertura menor à reflexão sobre o tema do anacronismo, o que pode constituir, em certa medida, aquela situação na qual, de acordo com Christophe Charle, os debates e as polêmicas teóricas são eclipsados por uma atitude de apaziguamento, de conformação e de esvaziamento discursivo em função do peso de determinados vetos epistemológicos.3 Esse parece ser o caso da noção de anacronismo, cuja força persuasiva sobre a operação historiográfica não é novidade já há algumas gerações. Afinal, qual estudante não aprende a repudiar, desde os primeiros momentos de sua formação em História, o “pecado mortal” dos historiadores? Leia Mais

Lugares da História no século XXI | Revista Latino-Americana de História | 2020

O trabalho historiográfico necessita de teoria e método, mas não se faz apenas um ofício. É necessário a/o historiador/a atribuir sentido ao que pesquisa. Através do engajamento, teoria e prática se encontram, ultrapassando os limites da universidade e, até mesmo, criando uma ponte entre essa e a comunidade.

A História precisa abarcar a todos, sem excluir suas particularidades. Necessita contemplar vários aspectos, incluindo diferentes ângulos, sendo crítica em seus olhares. O fazer histórico deve estar aliado à educação e, atualmente, à tecnologia, se fazendo conhecer entre os especialistas e o grande público. Leia Mais

A micro-história e suas contribuições teóricas e metodológicas para (re) pensar os processos migratórios / História Unisinos / 2016

A partir da década de 1970, a historiografia italiana inovou na forma de pensar a mobilidade populacional, provocando uma reviravolta nas interpretações a respeito das e / imigrações. Os comportamentos individuais diante das transformações gerais da história passaram a ganhar destaque entre aqueles que estudavam os fluxos migratórios de curta e longa distâncias. Isso se deveu a um novo método de pesquisa que seria conhecido, posteriormente, por micro-história. Essa metodologia permitiu aos historiadores reconstruir trajetórias de famílias e biografias que diferiam do modelo tradicional de se estudar as comunidades ou uma única vida. A questão passava por problematizar as famílias e os sujeitos, inserindo-os em distintos contextos e relações sociais, percebendo semelhanças e, principalmente, diferenças. A importância desta nova perspectiva radicava-se no lugar central que começava a conferir aos sujeitos o papel de atores sociais responsáveis por suas trajetórias, individuais e familiares. Diante disso, explicações rígidas como aquela do “modelo expulsivo” – que condicionava os movimentos migratórios a variáveis econômicas, políticas e à consequência direta dos processos de liberação da força de trabalho para a indústria – começaram a mostrar sinais de fraqueza diante da incapacidade de apreender os aspectos fundamentais do “fenômeno multiforme”, como o das migrações.

Nesse sentido, a imigração para a América, principalmente a do século XIX, deixou de ser vista apenas como consequência das forças de atração e expulsão, possibilitando que novas variáveis fossem analisadas. Fontes documentais de natureza diversa passaram a ser utilizadas nos estudos migratórios para apreender o desempenho ativo dos sujeitos, suas estratégias de deslocamentos bem como aspectos culturais. Para levar a cabo com êxito uma análise dessa natureza era imprescindível recorrer a alguns conceitos-chave como: estratégia, redes sociais, racionalidade limitada, solidariedade e conflito. A utilização de diferentes fontes e a metodologia da microanálise tem servido para compreender as variadas dinâmicas migratórias e as estratégias de integração social, ganhando destaque o papel ativo dos sujeitos em tais processos.

O objetivo principal deste dossiê foi o de reunir artigos que tenham utilizado a metodologia da microanálise ou recebido alguma influência teórica e conceitual em suas pesquisas sobre diferentes grupos étnicos de e / imigrantes, que reflitam sobre deslocamentos transatlânticos, trajetórias, integração e mobilidades sociais. Desse modo, no artigo ¿Existió la microhistoria?, Dedier Norberto Marquiegui desenvolve uma análise dos diversos estudos que ficaram conhecidos como trabalhos de micro-história, até chegar aos maiores expoentes da escola italiana, a exemplo de Edoardo Grendi, Carlo Ginzburg e Giovanni Levi. Além desses, o autor discute os trabalhos de outros historiadores italianos, chamando a atenção para a ausência de uma definição única de micro-história e de um modelo teórico singular. O que existem são diferentes práticas historiográficas, que partem de fatos circunscritos, situações cotidianas e estimulam uma análise densa e intensa das fontes documentais. Longe de estudar o acontecimento por ele mesmo, é a busca pela essência das coisas, pelos significados e explicações, bem como pelas perguntas que suscitam, que definem a micro-história. Portanto, a micro-história é, antes de tudo, um método, e não um assunto ou estudo de coisas pequenas. Partindo desta perspectiva, Marquiegui apresenta a trajetória de diferentes pesquisadores, preferencialmente dos italianos reunidos em torno da revista Quaderni Storici a partir da década de 70 do século XX, analisando as diferenças e semelhanças entre as propostas, acrescido das influências para o desenvolvimento do estudo dos movimentos migratórios.

A ideia da “redução de escala” e o “paradigma indiciário”, metodologias de caráter inovador, provocativas, atraentes e exaustivas, trouxeram resultados significativos para a renovação de muitos temas e surgimento de outras problemáticas de pesquisa. Mover-se ao sul do Brasil: Mobilidade e fluxos migratórios através da trajetória de João da Silva Tavares (c.1800-c.1860), artigo de Leandro Rosa de Oliveira, investiga os movimentos migratórios que marcaram a ocupação da parte sul do território do Rio Grande do Sul, na primeira metade do século XIX, através da trajetória de João da Silva Tavares. Trabalhando com fontes de origens diversas, o nome se torna fio condutor na pesquisa para analisar os diferentes contextos nos quais os indivíduos que participavam das migrações internas estavam inseridos.

No artigo Imigração alemã ao Brasil (século XIX) e Prússia: fronteiras permeáveis e diálogos entre história global e micro-história, Eduardo Relly reflete sobre a necessidade incorporação de uma abordagem global e micro para a compreensão dos deslocamentos e processos de renegociação cultural ocorridos no território brasileiro por parte dos imigrantes alemães. Através de uma perspectiva ampla, aponta para a necessidade de ligação entre as sociedades de partida e de chegada, permitindo, assim, entender as características regionais e diversidades culturais que foram transferidas para a América, conectando os dois lados do Atlântico. Porém, não deixa de ressaltar a necessidade de estudos mais circunscritos que contemplem as estratégias e redes de relacionamento dos atores. Nesse sentido, no artigo intitulado Excepcionais normais? A(s) trajetória(s) de três pastores no Sul do Brasil (1824- 1893), Marcos Witt mostra o quanto a abordagem micro e o estudo de trajetórias podem ser utilizados para investigar os diferentes caminhos e possibilidades que marcaram as experiências dos pastores nas regiões de colonização alemã no Rio Grande do Sul. Utilizando o conceito de “excepcional normal” apresentado pelos expoentes da micro-história italiana, busca perceber os percursos e as escolhas dos personagens estudados entre as orientações e expectativas da Igreja e da comunidade as quais representavam, bem como dos projetos individuais e familiares. Por fim, constata que a trajetória dos pastores é marcada por normalidade e excepcionalidade, características essas que podem ser percebidas através da atuação nos campos político, econômico, eclesiástico e comunitário.

A participação de imigrantes italianos na Primeira Guerra Mundial é assunto apresentado por Antônio De Ruggiero, no artigo A Grande Guerra do ítalo-gaúcho Olyntho Sanmartin. De Ruggiero examina o conteúdo das memórias de guerra do imigrante que voltou para a Itália a fim de lutar no front ao lado dos compatriotas. Como fio condutor, apresenta a trajetória de alguém que estava obcecado pela vontade de visitar o país de origem, conseguindo, portanto, retornar para servir como soldado reservista. As memórias escrutinadas permitem levantar novas questões para pensar os sentimentos, expectativas e frustações experimentados por aqueles que participaram da Grande Guerra e retornaram para o território brasileiro.

No penúltimo artigo, Histórias de vida e memórias familiares: entrevistas com netos de refugiados da II Guerra Mundial no Brasil, Marcos Nestor Stein e Méri Frotscher partem do exame das entrevistas orais com netos de refugiados da II Guerra Mundial que vivem no município de Guarapuava, no estado do Paraná, para pensar questões como história de vida / familiar, narrativas e identidades. Fragmentos das narrativas individuais dos descendentes dos refugiados se tornam ponto de partida para a compreensão da maneira como o passado é interpretado e quais características são reforçadas. As lembranças da expulsão, do sofrimento e das dificuldades vividas pelos antepassados fazem parte de um “complexo mítico” que define o grupo étnico.

Também mostrando as possibilidades de se trabalhar com entrevistas orais, o artigo de Álvaro Antônio Klafke e Rodrigo de Azevedo Weimer se propõe a discutir aspectos das trajetórias individuais de migrantes que, na metade do século XX, saíram das zonas rurais para se fixar em Porto Alegre e adjacências. O artigo Zilda e o avião: repensando migrações rural-urbanas no Rio Grande do Sul (1943-1963), mostra o quanto as inspirações metodológicas e teóricas da micro-história italiana não se limitam a determinados temas e períodos. Estabelecendo um rico diálogo com os estudos que tematizaram as imigrações transatlânticas históricas, que contestaram as explicações macroeconômicas baseadas na ideia de atração e expulsão, os autores propuseram novos caminhos para repensar as migrações internas regionais. Partem, portanto, da análise de aspectos das trajetórias individuais de migrantes que abandonaram as zonas rurais para se fixar nas cidades. Ao fazerem isso, trazem elementos que, longe de desconsiderar a influência dos macroprocessos econômicos para entender os deslocamentos, dão destaque a motivações individuais e familiares, amenizando, assim, o peso da ideia da pobreza como motivo para expulsão do campo. Desse modo, através da perspectiva dos atores dos processos, é possível perceber a pluralidade das condições de partida, dos recursos e das aspirações, apontando para a complexidade dos processos de mobilidade geográfica e social.

Os artigos que fazem parte do dossiê que ora apresentamos trazem contribuições relevantes sobre os usos possíveis e caminhos que a metodologia da micro- -história sugerem para a renovação dos estudos no campo das migrações transcontinentais e internas. A utilização e cruzamento de fontes de origem diversa, a reconstrução das redes relacionais, o uso do nome do indivíduo como fio condutar da pesquisa e a opção por trabalhar com trajetória individual ou de grupo como via de acesso aos diferentes contextos e horizonte de possibilidades, aparecem como aspectos que continuarão a sugerir novos questionamentos e perspectivas a respeito de distintos processos sociais.

Maíra Ines Vendrame – Universidade do Vale do Rio dos Sinos.

Mariela Ceva Conicet – Universidad Nacional de Luján

Organizadoras do dossiê


VENDRAME, Maíra Ines; CONICET, Mariela Ceva. Apresentação. História Unisinos, São Leopoldo, v.20, n.3., setembro / dezembro, 2016. Acessar publicação original [DR]

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A Alta Idade Média e suas fontes: reflexões de método | Signum – Revista da ABREM | 2016

A Idade Média não é apenas um período mal conhecido, mas também conhecido de maneira desigual. Seus primeiros séculos constituem, de longe, sua porção menos explorada. No senso comum, vigoram imagens congeladas que se aplicam, mal e limitadamente, a alguns períodos particulares, sobretudo aos séculos XI-XIV, em que normalmente se considera que já são perceptíveis os sinais da modernidade. Tais desníveis de conhecimento resultam tanto da limitação numérica dos testemunhos escritos quanto dos vestígios da cultura material. No entanto, há razões de maior importância.

A partir do surgimento da História Científica, no século XIX, o envolvimento da historiografia com diversas formas de compromisso e/ou crítica da modernidade ajudou a colocar na sombra aspectos do passado que não fossem “úteis” às reflexões e às ações em curso. A Alta Idade Média, pelo menos desde o final do século XIX, constituiu um elemento-chave do discurso nacionalista europeu: os eruditos alemães e franceses viram nela o período por excelência de formação de suas nações. Por outro lado, a historiografia francesa da primeira metade do século XX habituou-se a mostrá-la como o fruto da decadência do mundo romano, da corrupção e mesmo do desaparecimento do legado antigo. Havia pouco espaço, em tais interpretações, para um olhar sobre os primeiros séculos da Idade Média em sua especificidade. Leia Mais

História: escrita e métodos / Em Tempos de Histórias / 2010

Apresentação

O destaque, nos jornais matutinos, para os estudos sobre o carro elétrico não tarda em ser substituído por novas manchetes. As eleições presidenciais e o embargo econômico ao Irã dividem espaços na televisão com as chamadas publicitárias, McDonald‘s, I‘m lovin‘s it. Em um simples deslocamento pelo centro da cidade, a sucessão de imagens captadas pelo observador aponta o excesso informativo e a velocidade do tempo vivido. Na dinâmica seletiva da memória, a efemeridade dos fatos não encontra acolhimento, e o próprio cotidiano apenas conduz o indivíduo em sua vida de desacontecimentos.

Ireneo Funes, o personagem memorioso de Jorge Luís Borges, apresenta-se como o avesso da condição apresentada, mas, tampouco, é aquilo desejado. Esquecimentos e lembranças compõem a historicidade humana, são categorias que alicerçam as identidades. Enquanto que um passado desventurado pode produzir traumas sobre o presente, são de vivências alegres que se formam as saudades. De um ou de outro modo, a experiência constrói-se tão somente quando o vivido (social ou individual) passa a ser internalizado. Qual a relação, portanto, entre o tempo social e aquilo que uma sociedade ou um grupo julga digno de registro, de memória, de internalização e de orientação das práticas?

Não é preciso uma investigação muito aprofundada para se verificar que as diferentes experiências sociais proporcionam formas de temporalidades outras, para além daquela marcada pelos ponteiros do relógio. A sensação de que o dia escoou mais rapidamente que o normal é um exemplo da subjetividade no trato da questão. O tempo, como sublinhou o sociólogo Philippe Zarifian, é uma dimensão indispensável a todo fenômeno social 1. Aqui se mostra uma das faces da atual conjuntura. Ao passo que se tem a impressão de um super-aceleramento do tempo, também os desacontecimentos, que em nada somam à experiência, oferecem ao cotidiano a fisionomia de estagnação. Mas a velocidade que causa vertigem ainda é desassossego, desestabiliza expectativas, fragmenta narrativas.

A escrita da história não pretende desacelerar este movimento congelando suas engrenagens sobre as páginas de um texto; seus argumentos não são absolutos, também ela possui seus regimes de verdades, condiciona-se aos mecanismos de seu meio. O objeto de análise, sabe o historiador, jamais é conhecido em si mesmo, senão a partir de. Em seu métier, o pesquisador vale-se da narrativa para tecer significados de uma experiência localizada e, por ser subjetiva a própria concepção de tempo, é pela narrativa que as construções sociais de temporalidades adquirem inteligibilidade. Nesse quadro, o aporte hermenêutico contribui com a trama de narrar a experiência humana coletiva, uma vez que, como esboçou Paul Ricoeur, busca apreender os sentidos dos fenômenos em sua historicidade 2.

O próprio fazer historiográfico possui sua historicidade; seus olhares, abordagens e métodos são dinâmicos, incorporam questões do presente. Deste modo, também a narrativa historiográfica desenvolve-se na instabilidade. Um bom exemplo pode ser observado no declínio das metanarrativas. A história global, cuja retórica da sequência de acontecimento pretendia fazer entender que a humanidade caminhava para um telos pré-determinado, fragmentou-se, tornou-se ―histórias de‖, narrativas localizadas. Sob o argumento de ―fim da história‖, passado e futuro foram reduzidos em detrimento do presente; criou-se uma espécie de ―estar agora‖ autosuficiente, pretensamente autônomo de experiências ou de expectativas. Mas o presentismo, que na voracidade de seu canibalismo qualquer outra temporalidade devora, não é de tudo sem propósito. A burguesia internacional, conforme sublinhou Boaventura de Souza Santos, pôde aqui finalmente ver o tempo consumado como repetição automática e perpétua do seu controle 3.

A história, definitivamente, não se esgotou; mas ao pesquisador tampouco é permitido ficar alheio às forças que o rodeiam. Ao problematizar a experiência humana em seus tempos, a história reafirma-se como produtora de conhecimento válido à vida. Nesse sentido, a análise historiográfica permite questionar, desnaturalizar práticas e fenômenos já consagrados em sociedade, como o já citado presentismo.

Os estudos apresentados nesta edição da Revista Em Tempo de Histórias pretendem não apenas promover por alguns instantes a desfamiliarização do leitor com práticas do cotidiano, mais ainda aproximar experiências capazes de acentuar nossa condição. Como sabiamente nos ensinou Hannah Arendt, as particularidades individuais ou de grupos inscrevem-se sob a condição humana, uma igualdade relativa 4.

O dossiê Discutindo a História: escrita e métodos, o qual compõe a primeira parte deste volume, conta cinco textos, cujas perspectivas dialogam sobre o fazer historiográfico. No primeiro estudo da seção, o filósofo Rainri Back apresenta O jogo da historicidade, em que argumenta que existir historicamente pressupõe apropriar-se do legado da tradição. O foco sobre a linguagem ganha particular espaço no estudo; aqui, dentre as possibilidade do dizer algo, entende o autor que também o crivo dos outros deve ser considerado, isto é, ―as coisas não estão a mercê do que queremos dizer sobre elas‖. Ao tratar da historicidade, três autores são destacados: Dilthey, Heidegger e Gadamer. Se Back reconhece pontos importantes de discussão nas obras destas autoridades, ainda assim não os poupa de sua análise crítica, apresentando seus limites. O ―ser histórico‖ é compreendido como a existência envolvida pela tradição na qual se formou antes mesmo de ter início a vivência pessoal e que oferece possibilidades do vir a ser. Destarte é que o jogo da historicidade refere-se à interpelação do passado sobre o presente sem que este passado ponha-se claramente visível.

Na sequência, Johnny Roberto Rosa expõe o artigo Responsabilidade Histórica e Direitos Humanos, no qual o ofício do historiador é questionado a partir dos usos da história. Não se trata de julgar valores, adverte o autor, porém se busca discutir os padrões éticos-sociais deste profissional em meio à importância da narrativa sobre acontecimentos coletivamente traumáticos. Os diálogos com os recentes trabalhos do professor Antoon de Beats, da University of Groningen, oferecem um rico debate em torno do impacto da Declaração dos Direitos Humanos sobre a proposta de um código de ética para os historiadores. Nas linhas do texto de Rosa a história toma sentidos que impelem ao profissional responsabilidades específicas: ―pertence à responsabilidade do historiador tornar conscientes transtornos radicados nas experiências históricas negativas e reprimidas, encerrando a obrigação da revelação e, quando possível, a dissolução de tal transtorno na coerência temporal‖. A função terapêutica, como argumenta em seu estudo, não se desassocia do fazer historiográfico.

Pablo Spíndola apresenta o terceiro trabalho desta seção. Em História da Cultura Intelectual, são abordadas as condições de produção das ideias e seu registro pela historiografia. Spíndola encontra na relação entre os conceitos de história das ideias, história das mentalidades e história cultural um locus de nebulosidade, de imprecisão. O autor parte então em busca de uma maior clareza sobre as especificidades das ideias enquanto objeto de estudo, desenvolvendo fecundo diálogo com as obras de Francisco Falcon, François Dosse e Roger Chartier. Mais que discutir um conceito, o estudo propõe um passeio pelos métodos utilizados pela historiografia que visaram apreender, de alguma forma, as ideias. A história é apresentada em sua historicidade. As aproximações entre a história e outros campos do saber também são contemplados. Adverte Spíndola que, ao fechar a análise das ideias ao seu contexto de produção, o historiador corre o risco de ignorar as individualidades. A história da cultura intelectual, desse modo, não se constrói pela procura de uma verdade pré-existente a ser descoberta, conquanto pelos caminhos que apresentam as possibilidades.

Rodrigo Fernandes da Silva, em Apontamentos de um Procedimento Hermenêutico-Fenomenológico, traz-nos seu recente estudo sobre a obra do grupo Chico Science e Nação Zumbi. Sua argumentação não se prende à contextualização do movimento manguebeat, mas focaliza o aspecto estético e político do grupo pernambucano. Dentre os conceitos trabalhados pelo autor, um instigante caminho à pesquisa é encontrado na noção de ―afrociberdelia‖, pois, como entende Rodrigo Silva, conjuga tanto valores da modernidade como da tradicão. Um passado de resistência negra, exemplificado sobretudo na figura de Zumbi dos Palmares, ressoa nos acordes elétricos de um tempo moderno: ―o afro-futurismo por sua percepção originária quanto ao passado, re-abre em fissuras os prédios, os carros, as indústrias e injeta a intensidade primitiva de nossa ancestralidade em cada fissura aberta para a construção de um novo software chamado afrociberdelia‖. As discussões do autor transitam entre a história e a filosofia, travando, em diversos momentos, conversações com obras de Edmund Husserl, de Gilberto Freyre, de Walter Benjamin e outros.

Fechando o dossiê, Tati Lourenço da Costa apresenta Ecos da Foto, em que discute o fazer historiográfico a partir da memória, enquanto categoria de análise, e do recurso às fotografias e entrevistas orais. No estudo, a autora compartilha parte de suas experiências no projeto ―Memórias da Cidade-ecos‖, realizado em Londrina no ano de 2007. O olhar sobre os álbuns de família constitui importante peça no trabalho da autora, as fotografias são elementos construtores de memória, de narrativas, e fontes de integração entre gerações.

Em ―Artigos Livres‖ quatro estudos são apresentados, iniciando-se pelo trabalho Anchieta, José do Brasil, de Eliane Cristina Deckmann Fleck e Fernanda Uarte de Matos. A exposição tem como objeto o filme homônimo produzido no Brasil em 1977. Sob o contexto da ditadura militar vivenciada no país, as representações e memórias vinculadas à película são questões discutidas pelas autoras. Ao tratar de uma filmagem como objeto de pesquisa, Fleck e Matos compreendem que o conteúdo desta vai além do controle de seus produtores; em Anchieta, José do Brasil mostram que, mesmo sob um ambiente de vigilância, isso não ocorreu de forma diferente.

Fabiana Francisca Macena contribui com seu artigo Além do Modernismo Paulista. A autora traz um texto crítico à historiografia que concede ao modernismo brasileiro um fenômeno exclusivista da cidade de São Paulo e sacralizado, em parte, pela memória. Macena parte do entendimento de que a modernidade não se acomodou unicamente no âmbito estético e deve ser pensada como construtora de sentidos que abarcam outros campos da experiência social. O período da Belle-Epoque (1907-1914) no Rio de Janeiro é o recorte de sua pesquisa, e a revista Fon-Fon seu objeto de análise.

Na sequência, Emília Saraiva Nery expõe o estudo The Doors, Joy Division e Nirvana nas Recusas do Fim do Tempo Juvenil. A autora encontra nas canções dos grupos musicais selecionados evocações de desejos que vão além dos impulsos individuais, são expressões de uma coletividade, de uma identidade cunjuntiva, particular aos jovens da segunda metade do século XX. Nery toma a ansiedade identificada entre grupos da juventude como perspectiva para interpretar a relação entre a consciência de enraizamento na história e o desejo de ultrapassar tal condição. O sentimento de ânsia é compreendido como um rito de passagem particular à cultura ocidental. Nas palavras da autora, ―o sentimento de uma perda do referencial da identidade individual, o ‗eu‘, que sob a ação de uma temporalidade irreversível culminaria numa morte ou fim irremediável ocasiona também o sentimento de melancolia‖.

Encerrando a seção, Marinelma Costa Meireles apresenta o artigo Escravidão, Mistura Racial e Etnica e Hierarquias no Brasil. A autora propõe uma discussão em torno das identidades de escravos africanos e de seus descendentes, buscando compreender os meandros de sua formação a partir das relações comerciais escravistas e do cotidiano vivenciado na sociedade brasileira. Meireles demonstra que os espaços sociais foram pautados no Brasil escravagista não apenas pela diferenciação entre escravo e homem livre, mas ainda pela distinção entre os próprios africanos e seus descendentes.

A edição de número 16 traz ainda uma entrevista com o professor José Carlos Reis, realizada por Eric de Sales. Em uma conversa descontraída, Reis comenta sua carreira, experiência como historiador, e recentes trabalhos. Teoria e historiografia são alguns dos pontos discutidos no diálogo entre Sales e Reis.

Na seção Resenha, Johnny Rosa comenta a obra La Europa Cosmopolita, de Ulrich Beck e Edgar Grande. Humanismo Cosmopolitia é o título dado por Rosa ao seu estudo, que interage também com os estudos de Jörn Rüsen.

Gostaria, por fim, de agradecer aos amigos e colaboradores que participaram direta ou indiretamente da realização deste volume, assim como desejar uma ótima leitura a todos!

Notas

  1. ZARIFIAN, Philippe. Temps et Modernité: Le temps comme enjeu du monde moderne. Paris: L‘Harmattan, 2008.
  2. RICOEUR, Paul. Do Texto à Ação. Porto: Editora Rés, [s/d].
  3. SANTOS, Boaventura de Sousa. A Gramática do Tempo: para uma nova cultura política. 2 ed. São Paulo: Cortez, 2008.
  4. ARENDT, Hannah. A Promessa da Política. Rio de Janeiro: Difel, 2008.

Paulo Raphael Feldhues

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Pluralidades / Esboços / 2010

No número 24, a Esboços – Revista do Programa de Pós-Graduação em História da UFSC – apresenta o Minidossiê Pluralidades, que exprime duas dimensões interligadas de uma História plural: de um lado a variedade de objetos de estudo que são tratados pelos autores e, de outro lado, as diferentes abordagens teórico-metodológicas adotadas e defendidas por eles. A pluralidade do debate acadêmico presente neste número da Esboços inclui ainda artigos de pesquisadores e estudantes de programas de pós-graduação em nível de mestrado e doutorado, com formação em diversas áreas do conhecimento e que têm em comum a historicidade de suas interpretações.

O artigo de José D’Assunção Barros tem por objetivo fazer uma análise inicial acerca da noção de “Escola” nos estudos historiográficos, na qual ele também discute o conceito de “paradigma”, incluindo as possibilidades de interação deste conceito com a noção de “escola histórica”. Na segunda parte do trabalho o autor tece considerações em torno de duas escolas historigráficas: a Escola Histórica Alemã, do século XIX, e a Escola dos Annales, na França do século XX.

No segundo artigo, João Miguel Teixeira de Godoy analisa o mundo fabril nas concepções de Taylor, Fayol e Ford. A ênfase do texto está na discussão da aplicação e da eficácia do pensamento e das propostas de Taylor, Fayol e Ford no Brasil nas décadas de 1930-40.

O artigo de Marcelo Alario Ennes, denominado Imigração, identidade e estado nacional em dois tempos, discute dois distintos movimentos migratórios de populações humanas: um ocorrido no final do século XIX e início do XX, principalmente da Europa para a América; outro, que acontece no final do século XX e início do XXI, é o movimento de população para os Estados Unidos da América e para a França. Ennes compara os dois períodos estudados, avalia o papel dos estados nacionais e o discute o conceito de identidade na contemporaneidade.

Estes primeiros textos formam o Minidossiê Pluralidades da Esboços. A Revista se completa com outros cinco artigos. O primeiro deles tem como autoras: Simone Andrade Teixeira e Sílvia Lúcia Ferreira, ligadas à área da saúde coletiva. Em Aproximações de acadêmicas do campo da saúde coletiva ao feminismo e às temáticas da saúde sexual e da saúde reprodutiva, elas apresentam os resultados de sua pesquisa e formulam interpretações sobre a interligação entre o pensamento feminista e a atuação de mulheres ligadas à academia e ao campo profissional da saúde coletiva.

Carlos José Naujorks debate em seu artigo os conceitos de identidade e nacionalismo. Em diálogo com a História, Naujorks confronta as interpretações de diferentes autores que escreveram sobre a formação da nacionalidade uruguaia.

Roberta Barros Meira traz para a discussão a abordagem da História Econômica ao escrever sobre O caminho para uma solução satisfatória: a profícua separação da lavoura e da indústria e a produção açucareira no Brasil. Neste artigo a autora analisa as mudanças ocorridas na produção açucareira no Brasil do século XIX, especialmente os argumentos de diversos intelectuais da época sobre os métodos de produção do açúcar.

Com outra abordagem, a da História Cultural, o artigo Os “prêmios” e os “castigos” do cativeiro entre Portugal e Brasil: as relações entre “escravos” e “senhores” nas peças teatrais dos séculos XVIII e XIX, de Diogo da Silva Roiz, trata das representações que o teatro fez das relações entre escravos e senhores. As peças teatrais analisadas são dos séculos XVIII e XIX e foram produzidas em Portugal e na América Portuguesa. No mesmo campo dos estudos culturais, Jocelito Zalla historia e analisa as ideais de Luiz Carlos Barbosa, especialmente um documento de 1954, considerado um dos fundamentos do Movimento Tradicionalista Gaúcho.

Sinuê Neckel Miguel, apresenta e analisa as disputas por poder, no campo religioso, entre as lideranças espíritas e católicas durante a Era Vargas no Brasil. Seu texto aproxima História Política e História das Religiões. No terceiro e último bloco da Revista estão publicadas as resenhas dos doutorandos em História Mário Martins Viana Júnior e Elisiana Trilha Castro.

Esperamos que os leitores aproveitem os diferentes textos aqui apresentados e que sejam provocados com os questionamentos e olhares sobre a História que encontrarão.

Eunice Sueli Nodari – Professora Doutora. Editora da Revista Esboços.

Marcos Gerhardt – Doutorando. Editor da Revista Esboços.

Acesso publicação original desta apresentação

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