Ações Afirmativas – A Questão das Cotas: análises jurídicas de um dos assuntos mais controvertidos da atualidade – FERREIRA (S-RH)
FERREIRA, Renato (Coord.). Ações Afirmativas – A Questão das Cotas: análises jurídicas de um dos assuntos mais controvertidos da atualidade. Niterói: Impetus, 2011, 404 p. Resenha de: FLORES, Elio Chaves; FERNANDES, Eduardo. sÆculum – REVISTA DE HISTÓRIA, João Pessoa, [25] jul./ dez. 2011.
Parece ser uma evidência entre os historiadores do século XXI (todos eles sem exceção nascidos no século anterior) que a divisão entre o visível e o invisível passa por profunda e quase trágica desestabilização. Bem disse o historiador das antiguidades clássicas, François Hartog, preocupado com o que os historiadores veem, ao disparar sem papas no francês: “o que há para ver quando se pode ver tudo?”3.
Não deixa de ser uma ironia o fato de que o país entra num novo século, que abre o terceiro milênio cristão, tentando resolver o mais invisibilizado dos seus teoremas no século XX, o problema racial. Basta que citemos o primeiro parágrafo da obra seminal do escritor negro norte-americano WEB Du Bois, em 1903, que na sua reflexão prévia foi anunciador: “o problema do século XX é o problema da barreira racial”4. Mas o Brasil não leu WEB Du Bois e levamos quase cem anos para ter a sua obra traduzida para o português enquanto que a mais inconsútil novidade historiográfica francesa chega de Paris no mesmo momento, até em lançamentos simultâneos. O tempo presente do historiador e a simultaneidade dos tempos do capitalismo cultural parecem não deixar nada para depois: o que ainda se pode ver sobre a questão racial no Brasil que ainda não foi visto pela “historiografia pátria” e pelos “intérpretes do Brasil”? Em recente tradução para o português da História Geral da África, em oito volumes, o autor da Introdução Geral, Joseph Ki-Zerbo, fala da “diversão alienadora” que poderia levar à abstração das “tarefas da atualidade”. Ao ponderar que “a história é a memória dos povos” o historiador de Burkina Faso também alertava numa premissa que não seria estranho ao mundo jurídico: “é preciso que a verdade histórica, matriz da consciência desalienada e autêntica, seja rigorosamente examinada e fundada sobre provas”5. Esse foi um bom motivo para propor a resenha de um livro que permite ao historiador a compreensão de um evento que se tornou “vida cotidiana” na “arena judicial”. Evento presentista, posto que em curso, o livro traz à tona análises jurídicas de “um dos assuntos mais controvertidos da atualidade”, as ações afirmativas e as cotas para negros e indígenas no ensino superior. Outro motivo, não menos importante, é o evento acadêmico de maior impacto na universidade para a “história do futuro”, a aprovação pela UFPB, das cotas raciais e sociais no sentido de democratizar o acesso ao ensino superior no estado da Paraíba. Uma luta dos movimentos negros e indígenas que não durou menos do que uma década, traduzindo-se num acesso tardio às políticas públicas de ações afirmativas6.
O coordenador da obra, Renato Ferreira, advogado, especialista em direitos humanos e relações raciais, pesquisador do LPP (Laboratório de Políticas Públicas) da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), reuniu dezoito autores que atuam na área jurídica e traçam reflexões sobre o direito como instrumento para “o enfrentamento da injustiça”. Cabe a nós indagar se a historiografia teria essa mesma determinação. Na primeira parte, as entrevistas com Carlos Roberto Siqueira Castro (UERJ), Fábio Konder Comparato (USP) e Luís Roberto Barroso (UERJ), explicitam a situação do tempo presente a partir das “igualdades materiais previstas” pela Constituição de 1988 e de suas urgências como imperativo categórico, isto é, necessidade histórica. Para os historiadores que trabalham com testemunhos, o depoimento do jurista Fábio Konder Comparato, não deixa de ser um estímulo de pesquisa ao que nos legou a escravidão:
Eu sou descendente do maior proprietário de escravos do segundo reinado, o Comendador Joaquim José de Souza Breves. Tive que entender, e só entendi isso muito tarde, que a responsabilidade pela escravidão se transmite aos descendentes, como a herança de um débito social. É um débito social porque, se eu sou o que sou, hoje, é pelo fato de eu ter herdado várias coisas, notadamente a instrução e a educação, e isto só foi conseguido porque durante séculos os negros sustentaram nossa economia (p. 14).
A segunda parte do livro é composta por onze artigos, abrindo-se a seção com “Justiça Social e Justiça Histórica”, de autoria de Boaventura de Sousa Santos, cuja reflexão resume a sua experiência na sociologia do direito7. Para ele, no Brasil, “a injustiça social tem forte componente de injustiça histórica” que pode ser observada na persistência do “colonialismo social”. Boaventura toca num ponto caro à historiografia brasileira: “a ideia de democracia racial como dado, não como projeto” (p. 34). Depois se seguem os artigos de Cláudio Pereira de Souza Neto e João Feres Júnior, Daniel Sarmento, Flávia Piovesan, Luiz Fernando Martins da Silva, Otavio Brito Lopes, Roger Raupp Rios, João Mendes Rodrigues e Carlos Eduardo Silva Gonçalves, Tanya M. Washington, Deirdre Bowen e Jessica Erikson, Hédio Silva Júnior e Daniel Teixeira, com atuação na área do direito no Brasil e alguns com atuação jurídica nos Estados Unidos.
Os autores seguintes, Cláudio Pereira de Souza Neto e João Feres Júnior, discorrem sobre os argumentos básicos que legitimam as políticas de ações afirmativas.
Esses são a reparação (histórica), a justiça social (distributiva) e a diversidade (multiculturalismo). Aqui aparecem as temporalidades historiadoras que implicam olhares que se entrecruzam numa mesma problemática: “Enquanto a reparação olha mormente para o passado, e a justiça social foca a desigualdade presente, a diversidade tem um registro temporal incerto, às vezes sugerindo a produção de um tempo futuro quando as diferenças poderiam se expressar em todas as instâncias da sociedade” (p. 48). Ao final se critica a “apologia indiscriminada do mérito” numa sociedade em que as condições competitivas “são terrivelmente desiguais”.
Daniel Sarmento, ao pontuar o grau elevado de desigualdade racial no país, chama a atenção para o historiador do tempo presente e sua pesada “estrutura do cotidiano” numa acepção braudeliana:
Para quem tem olhos de ver, basta um giro pelos shopping centers ou restaurantes frequentados pela elite em qualquer centro urbano do país para constatar a exclusão social dos negros, que, no entanto, estão muitíssimo ‘bem representados’ em outros espaços menos m como os presídios e favelas (p. 64).
O autor traça “breves notas históricas sobre o princípio da igualdade” para compreender a “discriminação de fato” e a “discriminação indireta” à luz da “teoria do impacto desproporcional”. Isso significa dizer que a adoção de políticas universalistas não estaria simplesmente reforçando o “mito nacional da democracia racial” senão que também desfavorecendo grupos estigmatizados e vulneráveis. Ora, a perspectiva ideológica do sujeito histórico universal não seria uma racionalização do racismo eurocentrado no “fardo do homem branco”? Para o autor, a diversidade racial estaria assegurada na medida em que as instituições públicas e privadas adotassem práticas e ações afirmativas. De forma que, “de alguma maneira o branco também se beneficia da ação afirmativa promovida em favor do negro” (p. 86).
Para Flávia Piovesan, a historicidade da construção dos direitos humanos, permite observar que a primeira fase (os direitos civis e políticos) teria sido “marcada pela tônica da proteção geral, que expressava o temor da diferença” (p. 117). Entretanto, as mais graves violações a esses mesmos direitos afirmados foram produzidas pela escravidão, os campos de extermínio, as práticas sexistas, a xenofobia e tantas outras práticas de intolerância. Para a autora, se as intolerâncias e as injustiças raciais “são um construído histórico” seria emergencial a “adoção de medidas emancipatórias para transformar esse legado de exclusão étnico-racial e compor uma nova realidade”. Ao defender as ações afirmativas Flávia Piovesan também aponta para a visão do “anjo da história” benjaminiano, tão citada pela historiografia pós-moderna, porém tão pouco perscrutada. Mas nunca é tarde para ler Flávia Piovesan: “As ações afirmativas devem ser compreendidas não somente pelo prisma retrospectivo − no sentido de aliviar a carga de um passado discriminatório −, mas também prospectivo − no sentido de fomentar a transformação social, criando uma nova realidade” (p. 122).
O artigo do advogado Luiz Fernando Martins da Silva analisa o sistema legal que anima o debate jurídico sobre “o tema ação afirmativa e seus mecanismos para negros no Brasil”. De extrema importância é o documento jurídico do acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de janeiro, de 10 de dezembro de 2003, relatado pelo desembargador Cláudio de Mello Tavares, negando o pedido de inconstitucionalidade impetrado por um candidato que se sentia lesado pela adoção do sistema de cotas no vestibular da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Trata-se de um veredito que põe em delicada evidência a tese historiográfica de que as decisões dos tribunais brasileiros primam pelo conservadorismo. Eis o seu teor mais eloquente e categórico:
Cidadania não combina com desigualdades. República não combina com preconceito. Democracia não combina com discriminação. Nesse cenário sócio-político e econômico, não seria verdadeiramente democrática a leitura superficial e preconceituosa da Constituição, nem seria verdadeiramente cidadão o leitor que lhe buscasse a alma, apregoando o discurso fácil dos igualados superiormente em nossa história pelas mãos calejadas dos discriminados. É preciso ter sempre presentes essas palavras. A correção das desigualdades é possível. Por isso façamos o que está ao nosso alcance, o que está previsto na Constituição Federal, porque, na vida, não há espaço para o arrependimento, para a acomodação, para o misoneísmo, que é a aversão, sem se querer perceber a origem, a tudo que é novo (p. 163).
De fato, a revolução historiográfica ocorrida nas últimas décadas, especialmente aquela da “história social da escravidão”, mas que ainda não ultrapassou o “14 de maio”, talvez devesse se situar num tempo presente em que as demandas por ações afirmativas e reparações históricas sejam significações materiais e simbólicas que, de certa forma, reverberam o palco histórico de 1695: “a pressão historicamente exercida pela comunidade negra e demais segmentos sociais excluídos” e “resultado de um contexto caracterizado por grandes mudanças externas e internas” (p. 167).
A reflexão que o texto do Procurador Geral do Trabalho, Otavio Brito Lopes, proporciona é uma perspectiva de também replicar elementos acadêmicos dentro do Poder Judiciário, enquanto agenda política e ações jurídicas de uma das instituições do sistema de justiça que tem como missão observar a situação dos/as trabalhadores/ as no Brasil, pois, o Ministério Público do Trabalho (MPT) tem a capilaridade de atuar no campo individual, assim como nas demandas coletivas, trazendo teses que são analisadas pelos Tribunais do Trabalho. O autor revela que no ano de 2005 o lançamento, dentro do Ministério Público do Trabalho, do Programa de Promoção de Igualdade de Oportunidades para Todos, é um marco fundamental para construção de uma metodologia de trabalho do que considera a discriminação do ponto de vista direto ou indireto, ou seja, o MPT trabalha também em cima da hipótese constituída de um racismo à brasileira. É evidente que os conflitos no campo da e chamadas de emprego, porém, estão arraigados nas opções dos contratantes. A presença marcante de homens brancos no mercado de trabalho não condiz com a realidade brasileira quando mensurados os recortes de gênero e étnico/racial, tais análises também refletem no campo salarial e das oportunidades de promoção funcional nas empresas privadas ou públicas, principalmente no campo dos cargos de chefia e confiança. O autor observa o grau significativo de negação de que a discriminação indireta reproduza as “persistentes desigualdades de raça e gênero” (p. 201) assim como a “negação de que a discriminação poder ser evidenciada por meios de estatísticas” (p. 209). Nesse caso, a prova estatística, ainda se mostra frágil aos olhos dos juízes diante da complexidade das relações raciais. Algo semelhante como medir a violência da escravidão pela quantidade de açoites que o escravizado sofria do seu senhor. Ora, um açoite já um é indício, é história repetível.
O objeto de análise inicial do longo artigo de Roger Raupp Rios é propor uma discussão constitucionalista sobre a eficácia jurídica do princípio da igualdade, especificamente nas dimensões hermenêuticas principiológicas (pós-positivista) que permita uma relação direta entre as possibilidades de incorporação dos tratados internacionais e o ordenamento jurídico brasileiro. Tal discussão apenas é possível, de acordo com o autor, quando mensurada a ideia de igualdade no plano material e formal. Para tanto, tais argumentos são baseados em pesquisadores como Abdias do Nascimento, Luís Fernando Barzotto, Robert Alexy, Marcelo Neves, Joaquim Barbosa Gomes, entre outros que transitam no campo das análises da teoria geral do direito, constitucionalismo, história e filosofia. Os argumentos centrais estão baseados em algumas análises comparativas entre Brasil e Estados Unidos da América (EUA) sob a ótica dos seguintes postulados: o direito da antidiscriminação; o conceito jurídico de discriminação; discriminação direta e indireta, a gênese das ações afirmativas nos EUA; o conceito e debate sobre ações afirmativas; os argumentos favoráveis e contrários às ações afirmativas no Brasil e uma análise sobre o princípio da igualdade a partir da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF). O trabalho desenvolvido por Rios é denso, especialmente para os iniciantes em leituras jurídicas, pois, utiliza as relações dos autores com os casos nas esferas do STF e da Suprema Corte Norte-Americana, entrelaçando tais espaços decisórios com elementos teóricos da perspectiva liberal do direito, proporcionando um grande debate sobre as possibilidades de julgamentos favoráveis às teses das ações afirmativas no âmbito brasileiro.
O artigo seguinte, de João Mendes Rodrigues e Carlos Eduardo Silva Gonçalves, trava um debate sobre as possibilidades de diálogo dentro do sistema jurídico da comunidade europeia denominado Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (TJCE), órgão responsável pela análise sobre a pertinência legal dos atos comunitários em uma perspectiva regional, principalmente no âmbito do direito trabalhista e a relação de gênero no ambiente de trabalho e acesso a cargos públicos nos Estadosmembros.
Os autores demonstram que a construção da jurisprudência nesse Tribunal é tímida, também em face do pouco avanço legislativo nos Estados. Por outro lado é possível vislumbrar que as diretivas apontadas por esse órgão é de extrema relevância política para grupos específicos ou indivíduos, porém, apenas o discurso não basta para dar sustentabilidade às posições festejadas no âmbito europeu, os próprios autores sinalizam que em casos emblemáticos o TJCE tende a ser temerário.
Vale no texto acompanhar os diversos casos citados no âmbito europeu que ainda estão em trâmite dentro do TJCE, assim como a discussão sobre a universalidade do princípio da igualdade.
A professora Tanya M. Washington elabora no seu artigo uma síntese sobre o projeto de ações afirmativas nos Estados Unidos da América (EUA), sendo a crítica inicial da autora uma análise binária (brancos e negros) na atual sociedade norteamericana recortada por outras identidades e experiências étnicas coletivas que vivenciam problemas econômicos, políticos e sociais de igual repercussão, como é a situação dos asiáticos, latinos e índios. Trata-se de um texto com forte teor historiográfico e equivocadamente discutido no Brasil que vale a pena se entender na sua análise. A narrativa proposta pela autora nos leva desde a instituição da escravidão (1654-1865) nos EUA o que corresponde a mais de 200 anos de opressão e construção de códigos identitários nacionais nas quais os/as negros/as foram/estão excluídos, entre eles o acesso à educação universitária, visto que os números apontam um total de quatro milhões de africanos escravizados no auge do sistema. Os anos de 1866-1877 aparecem enquanto a possibilidade de alguns avanços da população negra, principalmente, a partir do ideal de controle central (União) da federação americana, por exemplo, a autora aponta a existência de um Departamento de Refugiados, Homens Libertos e Terras Abandonadas, com foco no assentamento das famílias negras provenientes do Sul. É o período da construção das Emendas constitucionais 13, 14 e 15, esta última previu a condição de voto igual para cada pessoa, independente de cor, raça ou condição econômica. Por outro lado também é o tempo de surgimento e intensificação da violência por parte da Ku Klux Klan, que além das ações pessoais (ameaças, assassinatos e torturas), também tinha articulações políticas em todos os setores do Estado. Os embates dessa época levaram a um outro momento histórico turbulento entre os anos de 1876 e 1950, pois, como destaca a autora, os negros eram obrigados por lei a financiar sua própria exclusão, as Leis Jim Crow (leis estaduais e locais nos Estados do Sul que determinavam a segregação racial) e um montante de quase 4.000 linchamentos públicos de negros no sul demonstravam que os grupos brancos não estavam dispostos a perder a sua centralidade de comando nas decisões políticas e sociais do Estado, em vários casos levados a Suprema Corte Norte-Americana, mas sem condenações exemplares. Apenas a partir de 1954 até os anos de 1978, temos a retomada ou construção de uma época de ativismo, a própria Suprema Corte Norte- Americana centraliza o debate sobre educação, enquanto função mais importante do Estado e que deve ser constituída a partir de elementos que traduzam a diversidade.
Esse debate jurídico demorou praticamente cinquenta anos, mas houve avanços e novas políticas no campo das ações afirmativas surgiram, assim como a consciência racial foi ampliada com as mobilizações sociais. Também é um dos momentos da consolidação das escolas e universidades de negros/as para negros/as. Por fim a autora chama atenção para o risco da amnésia nos dias atuais da questão racial, pois, desde 1974 até eleição de Barak Obama, a Suprema Corte Norte-Americana vem analisando casos concretos de acesso às universidades sem a devida acuidade no campo das ações afirmativas, como se o processo de integração estivesse dado na sociedade norte-americana. Tal risco é tão presente que a autora se refere à eleição do primeiro presidente negro nos EUA na perspectiva de que as realidades e contradições históricas estejam superadas, e isso pode levar a retrocessos em alguns setores, principalmente no que ela caracteriza como a importância do conhecimento e ensino da história racial norte-americana.
Para os autores seguintes, Deirdre Bowen e Jessica Erikson, as ações afirmativas nos Estados Unidos da América são visualizadas a partir de elementos estratégicos. As autoras apontam inicialmente que a discussão sobre raça está superada do ponto de vista biológico, sendo importante perceber a dimensão sociológica do uso do termo que não são necessariamente o compartilhamento de características físicas de um determinado grupo, mas sim, de sua experiência em coletividade que se constituem em suas interações humanas. O termo etnia também ganha destaque na análise inicial para construção de uma política emergencial e contextualizada para essas demandas que chegam ao poder judiciário e que possam ser analisadas de forma ampliada, principalmente em face dos movimentos existentes, que são contras as ações afirmativas e, constantemente, procuram o espaço jurídico com a finalidade de desconstruir o legado das ações afirmativas nas instituições de ensino, cargos públicos, ascensão funcional e outros mecanismos para implementação integral da política de ações afirmativas. As autoras ainda destacam os casos atuais estudados na Suprema Corte Norte-Americana que vem apontando uma tendência de enxergar os Estados Unidos como uma sociedade/Estado “pós-racial”.
A ideia central dos autores do artigo que fecha o livro, Hédio Silva Júnior e Daniel Teixeira, é comprovar que desde a Segunda República (a lei da nacionalização do trabalho, de 1931) até os dias atuais o Estado brasileiro vem sendo tomado por uma avalanche de ações afirmativas em várias dimensões da vida social e política, sejam elas no campo do Direito do Trabalho, ou das ações afirmativas de 1968, conhecidas enquanto Lei do Boi – reserva de vagas nos cursos de ensino médio e superiores de Agricultura e Veterinária. O Brasil vem também desde 1970 desenvolvendo parcerias com países africanos para troca de conhecimentos no campo da tecnologia, onde estudantes são alçados aos cursos superiores sem passar pela seleção do vestibular.
Também são reconhecidas as cotas para portadores de deficiência no setor público e privado, para as mulheres nas candidaturas partidárias e no direito do consumidor, onde o ônus da prova é invertido. Também são elementos do reconhecimento das tensões em torno do princípio da igualdade previsto na nossa Constituição de 1988 que pode ser vislumbrado por uma ótica negativa e outra positiva, principalmente no que tange ao “direito formal” versus “igualdade material”.
As considerações finais dos autores também podem ser as desta resenha, no sentido de marcar uma historicidade profunda em meio às evidentes soberbas (dobraduras de racismo?) que ainda se registram no tempo presente:
À guisa de conclusão, é possível afirmar que aceitar, como fazem os opositores ao sistema de cotas, que há desigualdades raciais históricas no Brasil, observáveis em diversos setores da vida social, a exemplo da Universidade Pública, e assim mesmo opor-se aos instrumentos que visam refletir nestes âmbitos a nossa rica diversidade etnicorracial, é condescender com a exclusão histórica do negro dos espaços de participação e decisão em nossa sociedade, solidificando o que se delineou, com raríssimas exceções, na História do Brasil: o lugar do branco e o lugar do negro, em outras palavras, a segregação de facto (p. 378).
Com efeito, não seria chegada a hora de definir, de uma vez por todas, que se a história não se apresentar como uma ciência aplicada à cidadania, a qual outros demônios ela servirá?
Notas
3 HARTOG, François. Evidência da História: o que os historiadores veem. Belo Horizonte: Autêntica, 2011, p. 16.
4 DU BOIS, William Edward Burghardt. As almas da gente negra. Rio de Janeiro: Lacerda, 1999, p.49.
5 KI-ZERBO, Joseph. Introdução Geral. In: História Geral da África. Vol. I (Metodologia e Pré-História da África). Brasília UNESCO; São Paulo: Cortez, 2011, p. XXXIII.
6 Ver o dossiê “Ações Afirmativas”, organizado pelas pesquisadoras Surya Aaronovich Pombo de Barros e Teresa Cristina Furtado Matos, publicado na revista Política & Trabalho – Revista de Ciências Sociais (n. 33, Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba, out. 2010). Disponível em: <http://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/politicaetrabalho>.
7 Basta que se pense no grande projeto do autor, intitulado “Para um Novo Senso Comum: a ciência, o direito e a política na transição paradigmática”, cujo primeiro volume aponta para, no mundo jurídico, “a tensão entre regulação e emancipação”. Ver SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez Editora, 2000, p.119-188.
Elio Chaves Flores – Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense. Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História (UFPB). Pesquisador do Núcleo de Estudos Afrobrasileiros e Indígenas (NEABI/UFPB). E-Mail: <elioflores@terra.com.br>.
Eduardo Fernandes – Mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba. Professor do Centro de Ciências Jurídicas (CCJ/UFPB). Pesquisador do Núcleo de Estudos Afrobrasileiros e Indígenas (NEABI/UFPB).
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