Amazonia 1900-1940. El conflito, la guerra y la invención de la frontera | Carlos Gilberto Zárate Botía

O tema das fronteiras amazônicas, seja em sua concepção de linhas demarcatórias de territórios nacionais, seja como zonas de múltiplas interações envolvendo diferentes sujeitos, impõe desafios significativos à pesquisa histórica. Primeiramente, trata-se de um espaço que, a despeito de sua vastidão geográfica, nem sempre recebeu a devida atenção no conjunto das historiografias sul-americanas. Em segundo lugar, a investigação sobre as fronteiras amazônicas requer o cruzamento de fontes procedentes de arquivos espalhados nos países da Pan-Amazônia (e, por vezes, em outros continentes) e o cotejamento de bibliografias de diferentes nacionalidades, que frequentemente apresentam linhas de interpretação francamente antagônicas.

O livro Amazonia 1900-1940, do historiador e cientista social colombiano Carlos Gilberto Zárate Botía, representa justamente uma contribuição que supera esses desafios ao revisitar o tema dos conflitos peruano-colombianos na definição dos limites amazônicos entre os dois países. O autor é professor da Universidad Nacional de Colombia– Sede Amazônica (Letícia), com destacada atuação no Grupo de Estudios Transfronterizos, vinculado ao Instituto Amazónico de Investiagaciones (IMANI). Carlos Zárate é um dos mais importantes cientistas sociais que se dedicam ao estudo das fronteiras amazônicas e, em sua vasta obra, o enfoque interdisciplinar sobre o tema se destaca.

Nos seis capítulos do livro, Zárate analisa os limites amazônicos entre Brasil, Colômbia e Peru na primeira metade do século XX – para isso, ele recorreu principalmente a fontes colombianas e peruanas e se embasou no campo dos estudos fronteiriços. Nesse campo, as fronteiras não são compreendidas estritamente como linhas demarcatórias, mas como espaços definidos por múltiplas relações, fluxos e redes que envolvem diferentes atores e poderes. Ainda que o foco esteja direcionado às décadas de 1900-1940, o autor enfatiza que a guerra envolvendo Peru e Colômbia na Amazônia, entre os anos de 1932-1933, é parte de um conflito mais duradouro na região, marcada por disputas e indefinições dos limites no espaço amazônico desde o período colonial – e que permaneceram vigentes ao longo dos anos de formação dos Estados Nacionais no século XIX. Os enfrentamentos armados nessa fronteira estão relacionados a questões intrínsecas dos grupos político-econômicos locais, mas também a transformações mais amplas vivenciadas nas repúblicas da Colômbia (com a transição da hegemonia dos conservadores para o Estado liberal) e do Peru (a derrocada do governo ditatorial de Augusto Bernardino Leguía e os intensos conflitos políticos entre 1930 e 1933). Além disso, o autor da obra atenta para as novas demandas que redimensionaram a inserção do espaço amazônico na economia mundial. Nesse caso, o entrelaçamento de escalas de análise é outro ponto relevante do estudo de Carlos Zárate, que tem por objetivo compreender os conflitos na fronteira e as políticas de sua administração a partir das ações individuais locais e dos condicionantes gerais.

A delimitação das fronteiras internacionais no espaço amazônico permaneceu como uma questão inconclusa ao longo do século XIX, com exceção aos acordos de limites e navegação firmados por Brasil e Peru no ano de 1851. Os limites amazônicos, entre as décadas finais do Oitocentos e começo do século XX, foram pressionados pela crescente exportação de borracha para o mercado internacional, colocando em choque frentes de coleta do produto e de arregimentação de mão de obra. No entanto, a soberania dos Estados Nacionais ainda se mostrava deficitária, já que prevalecia o poder de casas comerciais envolvidas na exploração e exportação de borracha. Com a crise da borracha amazônica no mercado internacional, ocorreu um novo momento para as fronteiras da região, com o aumento da atenção dos Estados à definição dos limites internacionais. No caso dos limites colombo-peruanos, o Tratado de Lozano-Salomón, negociado em 1922 e confirmado pela Sociedade das Nações em 1928, definiu a soberania colombiana sobre o rio Putumayo. Essa delimitação gerou intensos protestos por parte das elites políticas e econômicas da Amazônia peruana, sediadas na cidade de Iquitos, capital do Departamento de Loreto – bem como uma avaliação crítica por parte da historiografia peruana.1 A recusa dos loretanos em reconhecer o acordo, considerado prejudicial para seus interesses territoriais e econômicos, e os conflitos mantidos com o poder central em Lima, constituíram importantes fatores para o desencadeamento da ação militar, em 1932, organizada a partir de Iquitos para reanexar Letícia ao território peruano. Essas pressões locais arrastaram o Peru para um conflito que a diplomacia havia tentado evitar na década anterior, enquanto para os colombianos o conflito, que se desenrolou entre 1932 e 1933, obrigou o país a fortalecer a presença militar em um espaço amazônico pouco articulado ao restante do território nacional.

A vitória militar (e principalmente diplomática) da Colômbia nesse conflito de curta duração colocou em pauta a definição de novos planejamentos políticos e territoriais para as zonas amazônicas anexadas ao país: o rio Putumayo e a área conhecida como Trapézio Amazônico. Eram espaços pouco integrados ao restante do território nacional e havia a presença significativa de comerciantes e moradores peruanos. As autoridades colombianas implementaram um ambicioso programa de colonização militar da fronteira, muito embora com resultados modestos. Além disso, a própria administração do espaço fronteiriço amazônico tornou-se uma arena de disputas políticas entre autoridades civis e militares, pois revelava as desavenças internas dos dirigentes colombianos. A experiência da guerra levou ao reforço do poder militar na administração da fronteira amazônica colombiana após 1933, com repercussões nas décadas seguintes. Outra faceta imprescindível na criação da fronteira, segundo Zárate, foi o trabalho realizado pelos colombianos através da Oficina de Longitudes, responsável pela produção do saber cartográfico que instrumentalizou a criação da tríplice fronteira Peru-Colômbia-Brasil.

Com relação ao Brasil, o autor atenta para sua participação como elemento influente no conflito e na construção dos limites territoriais amazônicos, com especial destaque para as ações de Cândido Rondon como responsável in loco pela política de delimitação da fronteira com a Colômbia, pois ele esteve à frente da demarcação brasileira na Comissão Mista criada pelo Protocolo do Rio de Janeiro (1934). Para o Brasil, interessava assegurar os limites com a Colômbia na chamada linha Apaporis-Tabatinga. Para os colombianos, por sua vez, o território brasileiro no norte amazônico era importante como espaço de acesso fluvial à Amazônia colombiana. A cooperação entre os dois países na delimitação da fronteira amazônica não eliminou os desacordos e desconfianças. Nesse caso, não se pode perder de vista que a anexação do Acre boliviano ao território brasileiro ainda era uma experiência recente e servia como exemplo do expansionismo do Brasil nas fronteiras amazônicas.

A crescente presença de agentes estatais na fronteira não eliminou a importância dos poderes privados que haviam se estabelecido localmente desde as décadas finais do século XIX, principalmente comerciantes que controlavam a exploração da borracha, o fluxo de produtos e a arregimentação (geralmente violenta) da mão de obra. Além do conhecido caso da Casa Arana no rio Putumayo,2 outros atores privados exerciam papel estratégico na fronteira, como o comerciante e médico peruano Enrique Vigil, cujo caso o autor analisa detidamente no quarto capítulo da obra. Vigil havia sido um dos mais destacados financiadores da conquista peruana de Letícia; contudo, com a vitória colombiana, ele se tornou um importante colaborador dos novos administradores do Trapézio Amazônico. A fazenda La Victória, localizada no rio Amazonas e atribuída como propriedade de Vigil (embora Carlos Zárate elucide o equívoco dessa afirmação), era vista como a mais importante unidade produtora da Amazônia colombiana, destacando-se na produção de açúcar. Essa fazenda contava com mais habitantes e melhor infraestrutura que Letícia, capital da Amazônia colombiana. Além da produção e venda de açúcar, Vigil envolvia-se no contrabando na fronteira, o que lhe garantiu amealhar considerável fortuna e estabelecer estratégicas redes mercantis e políticas transfronteiriças. Sua posição dúbia refletia o complexo jogo de poder de um potentado local que mudava suas alianças segundo as trocas de soberania na fronteira, com o objetivo de preservar seus negócios e seu prestígio em meio às pressões dos Estados nacionais limítrofes.

Carlos Zárate lança luz sobre outros atores no espaço fronteiriço, quase sempre invisibilizados pela documentação da época e pela produção historiográfica. Embora os dados demográficos sobre a tríplice fronteira sejam escassos e sujeitos a incorreções, pode-se afirmar que a população fronteiriça era em boa parte descendente ou sobrevivente dos povos originários que haviam vivenciado a intensa exploração econômica e social nos anos de auge da economia da borracha. Para muitos desses habitantes da fronteira, a experiência da guerra revelou-se violenta, forçando o deslocamento ou a incorporação de homens aos exércitos em conflito. A redefinição dos limites nacionais, ao longo das décadas de 1930-1940, colocou em pauta novas medidas de nacionalização dos moradores da fronteira para criar uma identidade em homens e mulheres que não se identificavam como colombianos. É nesse contexto que as autoridades locais buscam incrementar a política educacional para “colombianizar” os moradores por meio da escola e do ensino dos símbolos pátrios. Além disso, ocorreram iniciativas de “importação” de colombianos oriundos de outras partes do país e que deveriam ocupar uma fronteira onde os peruanos ainda constituíam a maioria. A despeito dessas medidas, Carlos Zárate observa os enormes obstáculos para consolidar noções de cidadania e nacionalidade entre os habitantes dessa fronteira, ao passo que as relações cotidianamente construídas nesse espaço possibilitaram o surgimento de novas identidades étnicas e transfronteiriças.3

A incorporação da fronteira amazônica à Colômbia também levantou sérios problemas de ordem econômica. Como bem observa o autor, esse espaço era pouco articulado às zonas demográficas e econômicas mais dinâmicas nos Andes e no litoral, fato que mantinha as terras amazônicas dos fluxos econômicos nacionais. A articulação fluvial desse território também era igualmente afetada pela presença menor do capital colombiano no setor, caso comparado com as companhias de navegação que atuavam nas “Amazônias” brasileira e peruana, o que, por sua vez, também criava obstáculos para a entrada de produtos colombianos nas praças mercantis de Iquitos e Manaus. A crise da economia da borracha, por sua vez, não havia ensejado o estabelecimento de outros ramos econômicos dinâmicos e capazes de sustentar a arrecadação de tributos. Outras atividades passaram a crescer na Amazônia colombiana, sem que isso promovesse a recuperação da economia regional, como a exploração de madeiras, de barbasco4 e o tráfico de peles de animais, com consequências drásticas para a fauna amazônica.

A integração da fronteira amazônica ao conjunto territorial colombiano mostra-se um problema de longa duração no país. As políticas voltadas para a região pouco avançaram no atendimento às demandas das populações nativas. De certo modo, a gênese dessas questões encontra-se nos desacertos e limitações da incorporação dessa fronteira ao país, no contexto analisado na obra de Carlos Zárate, e que não foram superados nas décadas seguintes pelo Estado colombiano. Alguns problemas, de fato, se agravaram, com a intensificação da violência contra as sociedades nativas e o meio ambiente. Embora a avaliação crítica de Carlos Zárate enfatize o caso colombiano, não se pode perder de vista o entrelaçamento transfronteiriço desses desafios, nos quais os Estados brasileiro e peruano também carregam sua parcela de responsabilidade pelos problemas sociais, culturais e ambientais que marcam a tríplice fronteira.

Notas

1 Recentemente, em seu estudo sobre a Amazônia peruana, Waldemar Espinoza Soriano (2016: 398, tradução livre) qualificou o Tratado Lozano-Salomón como uma “catástrofe para os interesses territoriais do Peru, que prejudicou seus direitos e interesses. Foi uma cruel amputação para o Peru”.

2 Sociedade comercial fundada no final do XIX e de propriedade do comerciante peruano Julio César Arana, renomeada em 1907 para Peruvian Amazon Company. A empresa dominou a extração de borracha no rio Putumayo nas décadas iniciais do XX, tendo sido alvo de denúncias internacionais em razão da violenta exploração da mão de obra indígena local empregada em suas atividades. Conferir Valcárcel (2004).

3 É interessante comparar com o estudo de Daniel Unigarro Caguasango (2017) sobre a tríplice fronteira Brasil-Colômbia-Peru, no qual o autor aborda as relações cotidianamente urdidas nesse espaço limítrofe que geram famílias transfronteiriças, por vezes vinculadas a comunidades indígenas, além de redes comerciais e pessoais que ressignificam o espaço territorial e as identidades nacionais.

4 Espécie vegetal utilizada na produção de pesticidas e biocidas.

Referências

Espinoza Soriano, Waldemar (2016). Loreto: Departamento y Región (San Martín-Ucayali), 1846-2000. Lima: Universidad Nacional Mayor de San Marcos.

Unigarro Caguasango, Daniel Esteban (2017). Los Límites de la Triple Frontera: Encuentros y desencuentros entre Brasil, Colombia y Perú. Bogotá: Universidad Nacional de Colombia (Sede Bogotá), Facultad de Ciencias Sociales, Departamento de Antropología, pp. 165-193.

Valcárcel, Carlos A. (2004). El Proceso del Putumayo y sus secretos inauditos. Iquitos: Centro de Estudios Teologicos de la Amazonía (CETA), IWGIA.


Resenhista

Carlos Augusto Bastos – Professor da Faculdade de História da UFPA (Campus Universitário de Ananindeua), Doutor em História (USP) [email protected]


Referências desta resenha

ZÁRATE BOTÍA, Carlos Gilberto. Amazonia 1900-1940. El conflicto, la guerra y la invención de la frontera. Letícia: Universidad Nacional de Colombia (Sede Amazonía); Instituto Amazónico de Investigaciones (IMANI); Grupo de Estudios Transfronterizos (GET, 2019. Disponível na Red de Bibliotecas Virtuales de CLACSO: http:// biblioteca.clacso.edu.ar/Colombia/imani-unal/20200519031721/amazonia.pdf. Resenha de: BASTOS, Carlos Augusto. Conflitos e guerra em uma Amazônia transfronteiriça. Terra Brasilis (Nova Série), 14, 2020. Acessar publicação original

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