Anarquia e organização | Nestor Makhno

Aqueles que pesquisam sobre o movimento operário no Brasil durante e República Velha freqüentemente se deparam com propostas anarquistas e sua posição frente à Revolução Soviética. Não raro, contudo, os textos específicos do ideário (ou ideários) anarquista(s) que servem de parâmetro para interpretação da conduta dos militantes limitam-se a excertos pinçados dos chamados “grandes teóricos”: Proudhon, Bakunin, Kropotkin, Reclus. Creio que isso ocorre por dois motivos. Um deles seria a ausência de instâncias organizativas em meio ao movimento anarquista capazes de definir com clareza o ideário. Com efeito, na ausência de um partido – mesmo que não de cunho eleitoral – efetuando congressos com certa freqüência, é difícil dizer qual seria a auto-definida como correta posição anarquista: em suma, é difícil definir o que seria a ortodoxia anarquista (se é que isso faz sentido). O outro motivo seria a ausência de textos em português, ou, de qualquer modo, mais acessíveis, de autores anarquistas explicitando seu pensamento. É certo que a coletânea de George Woodcock cumpre parcialmente essa função de prover um volume em português o suficiente denso de textos e contextualizações que sirvam de guia para a interpretação. Contudo, alguns problemas de tradução dessa coletânea interferem, por exemplo, na apreciação da relação que anarquismo e sindicalismo mantiveram durante o Congresso de Amsterdam, de 1907. 1

A coletânea aqui resenhada não resolve esse tipo de problema, mas tem dois grandes méritos. O primeiro é trazer textos anarquistas contextualizados e tematicamente organizados capazes de responder a uma questão específica: quais foram os efeitos da derrota anarquista na Revolução Soviética sobre a forma desses militantes pensarem seus modelos de organização? O segundo mérito é trazer textos praticamente inacessíveis aos que não têm acesso a bibliotecas e edições estrangeiras.

Apesar da autoria da coletânea ser atribuída a Nestor Makhno, existem também textos de Piotr Archinov, do grupo Dielo Truda, e da polêmica que se envolveram com Errico Malatesta. São todos textos da década de 1920, com avaliações sobre a derrota e propostas de ação que terão impacto nos militantes espanhóis dos anos 30. Os anarquistas russos exilados que escreveram tais textos são praticamente desconhecidos nas edições brasileiras. Com exceção do próprio Makhno, editado em 1988, Archinov, que foi importante memorialista e militante dos anarquistas russos, foi publicado em 1976 por uma editora portuguesa. Volin não tem nenhum texto na coletânea, e aparentemente divergia em alguns pontos do grupo Dielo Truda, mas o seu importante texto sobre a Revolução Russa não ganhou ainda, salvo engano, uma edição completa em português. 2 E o debate entre Malatesta e a “Plataforma” também era, salvo engano, ignoto em português, porque a própria “Plataforma” o era.

Esse último documento é particularmente surpreendente para os que, talvez fazendo eco à visão do anarquismo atualizada a partir de 1968, interpretam o ideário como mera expressão de rebeldia individual ao longo do tempo. Datado de 1927, o documento começa com breves elegias ao anarquismo e aos anarquistas para então constatar que “o movimento (…) tem aparecido (…) na história das lutas da classe trabalhadora como um pequeno acontecimento, um episódio, e não um fator importante”. Interpreta o fenômeno como “defeitos de teoria” e se empenha em esboçar posições teóricas, táticas e organizacionais. 3 Estas últimas sublinham a disciplina dentro da organização e foram suficientes para que Malatesta criticasse o documento por muito autoritário, com uma resignação um tanto despida de sonhos de igualdade tão freqüentes em interpretações contemporâneas:

nas condições em que os anarquistas vivem e lutam, seus congressos são ainda menos representativos do que os parlamentos burgueses. E seu controle sobre os órgãos executivos, se estes possuem poderes autoritários, raramente é oportuno e eficaz. Na prática, os congressos anarquistas são assistidos por aqueles que desejam e podem, que possuem dinheiro suficiente e não estão impedidos por medidas policiais. (…) Apesar das precauções tomadas contra traidores e espiões (…) é impossível fazer uma verificação séria dos representantes e do valor de seus mandatos. 4

A remissão que a pesquisa no Brasil pode fazer de textos europeus sobre o anarquismo tende a ser principalmente aquela capaz de definir os parâmetros de discussão da ação política. E o mérito principal do livro é trazer de modo claro as divergências que então ocorriam, não sobre o caráter da Revolução Soviética, mas sobre a capacidade dos anarquistas de desenvolver uma ação política de massas: ela pode ser eficiente e, ao mesmo tempo, não-autoritária? Ou, melhor dizendo, procedimentos de autocrítica no âmbito do anarquismo desembocariam, necessariamente, na adesão política ao bolchevismo? Malatesta nos leva a acreditar que sim, ao passo que o grupo Dielo Truda propunha que não. É improvável que a “Plataforma”, propriamente dita, tenha sido incorporada ao debate do anarquismo no Brasil já naquela época, mas é bem possível que os termos do debate que então se travava não escapasse muito desses termos 5 . Quando o delegado Pinto, no 4º Congresso Operário do Rio Grande do Sul, em 1928, defendia a consolidação de grupos anarquistas de trabalhadores e o abandono do sindicalismo, estaria ele fazendo eco a posições da Federación Obrera Regional Argentina, ou ao grupo La Antorcha, ambos atuantes no país que ficava (e fica) a poucos metros de Uruguaiana? 6

Se o livro pode ser um instrumento útil para pesquisadores do movimento operário e da esquerda, nem por isso, deixa de se ressentir de alguns problemas. Um deles é a falta de uma presença mais ostensiva dos editores e, mais particularmente, de notas editoriais. Embora o livro conte com uma Apresentação, uma Introdução que fornece um panorama geral da Revolução Soviética e da própria makhnovstchina, e outro pequeno texto sublinhando os pontos-chaves da discussão – todos assinados pelo Coletivo Editorial Luta Libertária –, talvez fosse importante acrescentar notas editoriais em vários momentos do texto. Alguns problemas resultantes da falta dessas notas editoriais são parcialmente sanados na Introdução, inclusive com informações biográficas sobre Makhno. Contudo, nada disso existe, por exemplo, ao apresentar o texto de Malatesta. Os não-especialistas talvez não tenham clareza de quem foi e que posições defendeu, inclusive para avaliar o lugar de onde provém as críticas à “Plataforma”; e tampouco o que era a Itália em 1927, onde então vivia. Também não são mencionadas eventuais interfaces entre a disciplina organizativa proposta e a Federação Anarquista Ibérica, criada no mesmo ano dessas discussões. Uma pequena cronologia que fosse, que incorporasse a discussão trazida às demais discussões do movimento anarquista nos anos 20, inclusive a reorganização da AIT, permitiria sublinhar aquilo que os próprios editores tinham como objetivo, isto é, transcender a origem ucraniana da experiência debatida e de seus debatedores, como é claro no próprio título escolhido para o livro. Talvez isso se explique pelo caráter da coletânea, mais dirigida a militantes políticos do que a pesquisadores, como se àqueles não fosse necessário falar sobre Malatesta. Não obstante, isso é contraditório com o cuidado da edição ao trazer uma última página com pequena bibliografia para os interessados. Mais uma vez, contudo, esse mesmo cuidado não se repetiu ao não informar a origem dos textos ou de suas traduções. A data e a fonte do texto original são trazidas, mas fica a dúvida se a tradução foi feita pelos editores. E foi feita desde o francês? Ou o inglês, espanhol, etc.?

São essas características que permitem supor uma certa oscilação nas pretensões do livro. Ele é certamente muito mais e melhor que um folheto de propaganda política – embora cumpra também de forma clara essa função. Mas foi exatamente um folheto de propaganda que forneceu melhores pistas para que se possa inferir que a tradução – pelo menos da “Plataforma Organizacional” – foi feita a partir de texto em inglês de 1984 editado por um grupo irlandês. 7 Claro que é demasiado esperar que objetos de estudo produzam com perfeição as fontes que satisfazem ao interesse dos pesquisadores, mas a edição desses textos e sua colocação no mercado permitem supor que o público interessado possa exceder os que exclusivamente se orientem pela ação política.

É um pouco por isso que o livro merece uma resenha, exatamente porque, independente de seus objetivos de se constituir como documento político contemporâneo, demarcando tradições no ideário anarquista, verticaliza a seleção dos textos de modo que permite retomar com mais acuidade o efeito da Revolução Soviética entre os libertários. Com isso, se esfumam distinções maniqueístas entre anarquistas e bolchevistas que atribuem a uns ou outros – dependendo da preferência do leitor – a correção ou o equívoco (se não as “traições”). Depois do fim da União Soviética, ficou mais difícil afirmar com segurança que a história deu razão a uns e não a outros. Os textos da coletânea, contudo, nos levam a, senão reavaliar, relativizar as derrotas anarquistas como efeito de sua ingenuidade política.

Notas

1 WOODCOCK, George. Anarquismo uma história das idéias e movimentos libertários. Porto Alegre: L&PM, 1983. (v. 1: A idéia).; Idem. Anarquismo uma história das idéias e movimentos libertários. Porto Alegre: L&PM, 1984. (v. 2: O movimento). Sobre problemas na tradução, v. SILVA JUNIOR, Adhemar Lourenço da. Anarquismo e movimentos sociais: uma tipologia de suas relações. Cadernos do CPG História UFRGS, Porto Alegre, v.8, p.3-23, 1993.

2 MAKHNO, Nestor. A Revolução contra a Revolução. São Paulo: Cortez, 1988; ARCHINOV, Piotr. História do Movimento Makhnovista. Lisboa: Assírio & Alvim, 1976. As divergências pouco esclarecidas entre Volin e Archinov podem ser vistas no Prólogo do primeiro ao livro do segundo (ARCHINOV, Pedro. Historia del Movimiento Machnovista. Buenos Aires: Argonauta, 1926, p. 21). Conheço duas edições do livro de Volin. Aquela brasileira finda no ano de 1917, enquanto a argentina tem o texto completo, narrando até 1921: VOLINE. A Revolução desconhecida. São Paulo: Global, 1980. VOLIN La Revolución desconocida. Buenos Aires: Proyección, 1977.

3 MAKHNO, Nestor. Anarquia e organização. Op. cit., p. 35-37.

4 Ibidem, p. 72.

5 Ainda que a revista Dielo Truda fosse recebida no Rio Grande do Sul desde pelo menos 1925, cf. RODRIGUES, Edgar. A comunidade livre de Erebango (imigrantes russos no sul do Brasil). In: PRADO, Antônio Arnoni (org.). Libertários no Brasil. 2. Ed., São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 36.

6 Sobre o Congresso, v. LONER, Beatriz Ana. Quarto Congresso Operário do Rio Grande do Sul (1928). Cadernos do ISP. Pelotas, n. 11, p. 21-48, dez. 1997. RODRIGUES, Edgar. Alvorada Operária. Rio de Janeiro: Mundo Livre, 1979.


Resenhista

Adhemar Lourenço da Silva Junior – Professor do Departamento de História e Antropologia-UFPel. Doutorando PUCRS. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

MAKHNO, Nestor. Anarquia e organização. São Paulo: Luta Libertária, 2001. Resenha de: SILVA JUNIOR, Adhemar Lourenço da. História em Revista. Pelotas, v.7, 2001. Acessar publicação original [DR]

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