Arqueologia da repressão e da resistência – América Latina na era das ditaduras (1960-1980) | Paulo A. Funari, Adrés Zarankin e José Albertoni Reis

Nas ciências humanas, acostumou-se a pensar no trabalho do arqueólogo focado exclusivamente em áreas remotas da existência humana, nas quais o registro escrito nem existia e a reconstituição das formas de ser social se realizava dos fragmentos da cultura material. Essa visão, que delimita um período histórico distante como o único tempo estudado pela Arqueologia, vem sendo posta em xeque pelo envolvimento de arqueólogos em pesquisas do passado recente da história latino-americana. Um vigoroso esforço para trazer a público os vínculos entre a Arqueologia e a História Contemporânea – particularmente a que se refere às histórias de repressão no continente latino-americano – é encontrada no livro Arqueologia da repressão e da resistência – América Latina na era das ditaduras (1960-1980).

Organizado por Pedro Paulo A. Funari, Andrés Zarankin e José Alberioni dos Reis, o livro traz novas dimensões para os estudos sobre as ditaduras militares no continente, apontando a contribuição da Arqueologia no esclarecimento daquilo que a documentação escrita ou oral nem sempre dá conta. Assinala, ainda, a possibilidade de um refinamento no trato com as fontes, na medida em que os estudos arqueológicos podem auxiliar no questionamento das versões deixadas na documentação escrita dos setores dominantes durante esse período, bem como preencher algumas das lacunas encontradas nesses documentos, uma vez que essa ciência tem como recurso o estudo de elementos da cultura material e a busca dos restos humanos dos “desaparecidos”.

A ampliação do alcance da Arqueologia, não mais circunscrita aos pontos remotos do passado, resulta da influência dos movimentos sociopolíticos e de mudanças epistemológicas no âmbito das ciências sociais. Essa mudança se expressou pelo surgimento de uma corrente teórica conhecida como “arqueologia contextual ou simbólica”, que postula uma arqueologia crítica, cujo fundamento é “o estudo das pessoas através da cultura material” (p.24).

Um ponto chave da obra é a discussão do potencial democrático da Arqueologia, em oposição à História tradicional, que enfatizou sempre as camadas dominantes da sociedade. A argumentação se apoia no enfoque que a Arqueologia pode dar a quaisquer grupos humanos, inclusive os oprimidos, os iletrados e os já extintos, que não podem ser resgatados senão por meio dos restos materiais, comumente conhecidos como “lixo”.

A democratização dessa disciplina teria sido atrasada pelos contextos sociopolíticos latino-americanos, que estiveram sob o jugo de ditaduras militares entre as décadas de 1960 e 1980, cujos dispositivos repressivos se assentavam, segundo os autores, na limitação do acesso à informação às pessoas comuns.

É justamente sobre o período que inibiu a possibilidade de democratizar a disciplina que a obra traz uma imensa contribuição. Apontando acertadamente para a documentação fragmentária deixada pelas ditaduras – em muitos casos deliberadamente destruída –, a Arqueologia emerge como a ciência com um imenso potencial para o esclarecimento dos procedimentos repressivos e para a recuperação da história dos desaparecidos. A elucidação dos desaparecimentos provocados pelas ditaduras militares tem sido reivindicada por segmentos sociais engajados em movimentos em prol da manutenção da memória, surgidos em diversos países após o fim das ditaduras.

Vários esforços nacionais e internacionais têm sido feitos para resgatar a história do último período ditatorial latino-americano. Por mais empolgantes que sejam as descobertas documentais, e por mais que se avance nas pesquisas nos arquivos da repressão, é impossível ter acesso integral à documentação produzida naquele período, pois é sabido que uma parte significativa foi destruída. Talvez os registros dos atos mais atrozes (e, por isso, elucidativos da natureza dos Estados ditatoriais) não existam mais sob forma escrita. E é justamente sobre esses traços “apagados” que o aporte da Arqueologia oferece a possibilidade de lançar algumas luzes.

A história dos desaparecimentos pode se beneficiar sobremaneira com essa contribuição, conforme destacam os organizadores da obra, ao se referirem à “possibilidade de uma ação de pesquisa arqueológica com não-lugares – marcados por atrocidades e sevícias contra seres humanos – ocultados oficialmente, existindo, porém, na clandestinidade, num período de repressão aos direitos humanos” (p.25).

A obra tem uma dimensão política evidente, uma vez que, conforme os organizadores apontam, há o compromisso social e político assumido pela Arqueologia, perfilada ao lado de pessoas comuns, procurando recuperar e reconstituir a história roubada pelo sistema. Nos nove textos que compõem o livro, diversos especialistas da América Latina – provenientes da Venezuela, Colômbia, México, Brasil, Uruguai e Argentina – apresentam os resultados de suas pesquisas e reflexões. A gama de temas é bastante variada e os indicaremos em linhas gerais, destacando os textos mais significativos.

Um dos estudos aborda a história da busca arqueológica e do achado dos restos de Che Guevara, com as descrições da metodologia de trabalho e da intensa colaboração interdisciplinar para o sucesso do projeto. Escrito por Roberto Rodriguez Suarez e intitulado “Arqueologia de uma procura e de uma busca arqueológica: a história dos restos de Che Guevara”, o texto descreve a maneira como se construiu a proposta de trabalho e pretende, segundo o autor, divulgar tal metodologia como um referencial para pesquisas semelhantes. São narradas, ainda, as dificuldades e os desafios enfrentados pelos pesquisadores do grupo multidisciplinar e detalhadas todas as etapas de concretização do trabalho.

O debate em torno das teorias da arqueologia e a problematização de seus fundamentos epistemológicos, além de aparecerem de forma mais ou menos diluída no interior dos capítulos, são também abordados em textos em que essas questões são centrais. Um profícuo debate sobre a arqueologia da repressão e do conflito é apresentado ao leitor.

Da mesma forma, são de grande relevância as discussões que apontam para a necessidade do desenvolvimento de projetos que recuperem a memória do massacre da “Plaza de las tres culturas”, no México. Trabalhando criativamente com fontes como vídeos, fotografias e a arquitetura dessa praça, Patrícia Fournier e Jorge Martínez Herrera reconstituem o massacre de 1968 no México no texto “México 1968: entre as comemorações olímpicas, a repressão governamental e o genocídio”.

Um dos organizadores do livro, Pedro Paulo Abreu Funari, e a pesquisadora Nanci Vieira de Oliveira, discutem no texto “A arqueologia do conflito no Brasil” os entraves enfrentados por projetos que pretendem trabalhar com a violação de direitos humanos no país, particularmente referentes ao último período ditatorial. Contudo, os autores apresentam os esforços realizados por pesquisadores que, em 1992, procuraram identificar os restos mortais encontrados no cemitério Ricardo Albuquerque, no Rio de Janeiro, ligados a um projeto vinculado ao grupo Tortura Nunca Mais, que contou com a colaboração de antropólogos da Equipe Forense da Argentina, pesquisadores da Escola Nacional de Saúde Pública e do Museu Nacional. Ainda que os resultados não tenham sido conclusivos, com o trabalho do grupo foi possível constatar a existência de “desaparecidos”, que “correspondiam a pessoas de cor branca, entre 18 e 45 anos, mortos por projéteis de armas de fogo, estando alguns carbonizados, todos mortos no início da década de 1970” (p.147).

No texto “Um olhar arqueológico sobre a repressão política no Uruguai”, José Maria López Mazz discute as possibilidades de uma “Arqueologia da Repressão” no Uruguai. O estudo descreve as pesquisas que vêm sendo realizadas no país em valas comuns e aponta hipóteses sobre o destino dos desaparecidos políticos, indicando, entre outras possibilidades, a existência de corpos humanos em cemitérios clandestinos em enterramentos individuais e coletivos, corpos humanos abandonados sem enterramento e corpos humanos lançados ao mar de aviões.

O texto também traz apontamentos sobre a resistência à repressão, discutindo a possibilidade de estudos arqueológicos sobre fugas em presídios, sua arquitetura , a produção de brinquedos pelos presos políticos, indicando que os estudos arqueológicos sobre a repressão podem ir além da busca por corpos desaparecidos.

O espaço prisional também é abordado por Rodrigo Navartte e Ana Maria Lopez, no texto “Rabiscando atrás das grades: grafite e imaginário político-simbólico no Quartel San Carlos (Caracas/Venezuela)”. Num trabalho extremamente criativo, os autores expõem análises de diversas imagens produzidas por presos políticos nos anos 1970 e 1980, além de caracterizar a metodologia do trabalho de campo feito por eles.

Trata-se, por fim, de uma obra que, pela relevância dos temas abordados e originalidade que propõe ao tratamento dos estudos sobre a repressão e a resistência na América Latina, será de grande valia aos estudiosos interessados em adensar suas pesquisas por meio da contribuição da Arqueologia e ao público em geral que queira aprofundar a compreensão de aspectos da realidade latino-americana recente, além de ser um libelo a favor dos direitos humano e da História.


Resenhista

Patrícia Sposito Mechi – Professora do curso de História da Universidade Federal do Tocantins, doutoranda em História Social no PPGHS da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, com projeto intitulado: A Guerrilha do Araguaia segundo seus protagonistas: militantes, camponeses e militares, bolsista da CAPES. Email: [email protected]


Referências desta Resenha

FUNARI, Paulo A.; ZARANKIN, Andrés; REIS, José Albertoni (Orgs.). Arqueologia da repressão e da resistência – América Latina na era das ditaduras (1960-1980). São Paulo, Annablume; Fapesp, 2008. Resenha de: MECHI, Patrícia Sposito. A contribuição da Arqueologia para os estudos dos Estados ditatoriais latino-americanos. Revista Eletrônica da ANPHLAC, n. 8, 2009. Acessar publicação original [DR]

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