Arquivos pessoais: reflexões disciplinares e experiências de pesquisa | Luciana Heymann, Isabel Travancas e Joelle Rouchou

Embalado por um movimento entendido nos estudos da pós-modernidade como “o retorno do sujeito”1 se percebe há mais de trinta anos um aumento crescente do interesse de pesquisadores quanto a utilização de arquivos que “vão além” daqueles considerados “consagrados”. Mas quais seriam estes arquivos “para além”? A palavra “arquivo” correntemente esta associada à imagem de grandes conjuntos documentais onde podem ser encontrados os saldos das atividades burocráticas de determinada instituição, seja ela pública ou não. Já os arquivos “para além” ultrapassariam essa noção circunscrita de arquivo como um lugar de verdade e imparcialidade.

Como exemplo destes diferenciados corpos documentais, se colocam os arquivos pessoais, que, durante décadas, desde as primeiras manifestações do movimento Annales, ficaram marginalizados pois entendia-se que estes estavam ligados a um fazer histórico a ser superado. No entanto, mudanças no “fazer” historiográfico ligadas sobretudo a releitura de uma história política e o desejo de construção de uma história do “ordinário”, do homem comum, suas práticas e hábitos trouxeram novamente à cena tais vestígios, instigantes testemunhos de trajetórias individuais.

O livro da resenha aqui em questão é resultado de uma iniciativa que se dispôs a pensar a ascensão e, mais importante, a história por trás destes arquivos pessoais: o Seminário Arquivos pessoais: reflexões multidisciplinares e experiências de pesquisa, realizado no ano de 2010 e sediado na fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro. A proposta deste evento – como ressaltam as organizadoras – não se direcionou a pensar o arquivo como algo “dado”, colocando-o numa posição simplificada e rasa, ou seja, apenas como um local onde seria possível ao historiador, sociólogo ou antropólogo encontrar os objetos necessários para o desenvolvimento de suas pesquisas. Os textos apresentados ao longo do livro buscam, sobretudo, sugerir aos pesquisadores que prestem atenção aos processos que tornam esses arquivos pessoais acessíveis ou não; quais as trajetórias percorridas por estes acervos e qual a biografia destes conjuntos documentais multifacetados. Vale lembrar, como coloca Ana Camargo, 2 que os arquivos pessoais foram historicamente colocados de lado pela disciplina arquivística, que não soube trata-los de maneira a dar conta de uma conjuntura complexa que foge, por exemplo, aos preceitos que regem a formação de arquivos que já nascem institucionais.

Importante destacar o caráter multidisciplinar da publicação, que já aparece no título do livro, bem como na trajetória profissional de suas organizadoras: Isabel Travancas, Joëlle Rouchou e Luciana Heymann, vindas da área da comunicação e da história, com passagens por outras disciplinas como literatura, sociologia e antropologia. Tal questão, vale destacar, é efetivamente desenvolvida e pensada ao longo dos textos selecionados para compor o livro. Os historiadores, pesquisadores da literatura e das artes, antropólogos, comunicólogos, arquivistas e sociólogos convidados realizam um debate profícuo que demonstra o lugar ocupado pelos arquivos pessoais em cada uma destas disciplinas e em qual estágio se encontram as discussões acerca destes espaços. Cabe sublinhar que, ao ler esses textos em conjunto, se nota como tal esforço multidisciplinar é importante para aprimorar a reflexão sobre este objeto comum a cada uma destas áreas: o arquivo.

Compõem o livro alguns dos artigos apresentados no Seminário acima mencionado. Suas organizadoras selecionaram os trabalhos considerados mais relevantes e os dispuseram no livro em três grandes eixos intitulados: Pensando o arquivo; Arquivos e Histórias; e Arquivos da literatura e das artes. De uma maneira geral, nota-se que os dois primeiros eixos concentram os textos com uma maior densidade de reflexão, sendo o último composto por artigos mais descritivos, resultados de pesquisas com arquivos pessoais de homens e mulheres ligados a campos profissionais específicos (literatura e artes) e com atuações de certo destaque dentro destes.

Na abertura da obra se sobressaem os textos de Sue McKemmish e Philippe Artières, dois autores reconhecidos por suas discussões acerca de arquivos. Sendo o primeiro dos artigos de autoria de McKemmish, pesquisadora vinculada ao campo arquivístico e professora titular de Sistema de Arquivo na Universidade de Monash, na Austrália. A arquivista, em seu texto, revisita outra publicação sua, lançada a público em 1996: Evidence of me. Naquele momento, a autora se mostrava interessada em pensar quais as forças que promoviam a acumulação de registros pessoais e o desejo de certos indivíduos em fazer seu próprio relato, dar o seu testemunho e, ainda, deixar marcas de seus percursos. McKemmish buscou, igualmente, examinar o que ela própria chama de “partes mais sombrias e destrutivas deste ímpeto de registrar”, 3 que estão conectadas ao registro de informações não arquivadas, como a oralidade; as contingências ligadas às inúmeras políticas de arquivamento por parte de iniciativas privadas e públicas, e as “fronteiras móveis” que convencionam os arquivos pessoais e públicos. No texto mais atual estas preocupações aparecem, mas o foco é transferido para a forma como os registros pessoais se desenvolvem agora nos espaços digitais, blogs, redes sociais etc., lugares onde os espaços físicos se diluem e qualquer pessoa pode ser o seu próprio arquivista. Nesse contexto, a pesquisadora australiana destaca o quanto as novas tecnologias podem democratizar a produção e o acesso a registros pessoais e públicos. E, nesse sentido, transformar o nosso entendimento acerca da relação entre as evidências pessoais e as evidências produzidas por determinado grupo ou comunidade, que por sua vez, também servem a um desejo de inscrição para a posteridade. Por fim, tais tecnologias trariam à cena a questão do “redimensionamento” do que entendemos por arquivo, que agora no espaço de um pendrive pode carregar uma infinidade de informação e documentação.

O segundo capítulo corresponde ao texto de Philippe Artières, referência para aqueles que se lançam a pensar as práticas de arquivamento pessoal: essa relação complexa que homens e mulheres mantém com sua diversa documentação. Em seu texto já clássico Arquivar a própria vida, publicado no Brasil em 1996, Artiéres discute as questões acima levantadas, bem como, quais seriam as funções e normas que regem socialmente a formação de arquivos pessoais e qual a motivação, isto é, a intenção autobiográfica que se engendra por trás dessa atividade. Esta temática também perpassa o texto presente no livro, onde por meio da prática de autoarquivamento de pessoas comuns, como a polonesa Janina Turek, o autor vai destrinchando a práxis cotidiana, que leva uma pessoa a guardar ínfimos objetos e até, curiosamente, por meio de anotações, registrar ações rotineiras como o número de vezes que jogou bridge ou dominó durante anos. Assim como Walter Benjamin, em seu texto Desempacotando minha biblioteca afirma, que em primeiro plano para o colecionador de livros não está o valor funcional de sua biblioteca, 4 Artières sustenta que, para aquele que arquiva a própria vida, não são os acontecimentos em si que são valorizados, mas sim o ato de arquivá-los.

Além dos textos destes dois pesquisadores basilares – cada qual respondendo à posição de áreas de conhecimentos distintas (arquivologia e história) –, há, ao longo da publicação, autores de campos acadêmicos diversos, os quais discutem temas que perpassam a tônica arquivística e trazem uma nova leitura sobre ela. Um destes temas é o lugar dos arquivos fotográficos e visuais, e as dificuldades de catalogação e uso diferenciado destes materiais, como coloca Aline Lopes de Lacerda. A autora defende em seu texto uma abordagem distinta da que hoje mais vigora nos espaços institucionais (públicos e privados) brasileiros, ou seja, ela é a favor de “uma nova postura metodológica” que privilegie a “contextualização nas etapas de identificação e classificação, em detrimento da supervalorização do acesso à informação contida no documento”. 5 A partir desta metodologia, segundo ela, seria possível oferecer ao pesquisador um melhor entendimento destes documentos visuais e das motivações por trás de sua produção e posterior arquivamento numa instituição.

Já o artigo de autoria da cientista social e antropóloga Candice Vidal e Souza coloca o arquivo como um lugar inusitado de pesquisa para a antropologia. Vidal e Souza traz à cena a possibilidade destes espaços arquivísticos servirem como ferramenta para o questionamento dos métodos e de que tipo de conhecimento estaria sendo construído dentro do campo antropológico em determinado momento histórico. Para explicitar a questão, ela utiliza como exemplo o arquivo do antropólogo Marcos Margalhães Rubinger – pesquisador e professor atuante durante a década de 1960. O arquivo de Rubinger consiste em um acervo repleto de “vestígios” que deixam entrever uma epistemologia do conhecimento antropológico demarcada, um modus operandi particular ao momento vivido por este campo naquela década. Os artigos de Miguel Soares Palmeira e Felipe Brandi também seguem por caminhos parecidos, entretanto falam da perspectiva da História. Ambos demonstram que por meio dos arquivos pessoais de historiadores é possível produzir uma história intelectual do campo e também investigar a produção historiográfica de determinado grupo ou sujeito. De acordo com eles, nestes arquivos se pode vislumbrar o que está além da história publicada, do conhecimento histórico tornado público, ou melhor, o que estaria antes da produção histórica finalizada: quais as referências consultadas, quais as escolhas feitas, rascunhos, anotações etc.

A relação entre o público e o privado é uma discussão que permeia sobretudo os arquivos de personagens reconhecidos socialmente. Em Arquivos pessoais, essa noção aparece no artigo de Letícia Nedel, que discute com propriedade a trajetória do arquivo do ex-presidente Getúlio Vargas, e, por conseguinte, do arquivo pessoal de sua filha e braço direito Alzira Vargas do Amaral Peixoto. Nesse sentido, destacando que Alzira foi responsável pelo arquivamento da sua própria documentação e pela administração da documentação pessoal de seu pai. Atualmente ambos os arquivos estão disponíveis para consulta na Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro, não sem antes passar pelo crivo de Alzira, o que, como bem ressalta Nedel, nos leva a pensar qual imagem de seu pai e de si desejava ela deixar para a posteridade. Logo, Nedel faz emergir o debate acerca da “desnaturalização” do arquivo como uma produção orgânica de acumulação. Os caminhos percorridos, especialmente, por aqueles arquivos que saem da esfera privada para pública seriam entrecortados por intenções e desejos que estão além da simples aglutinação de evidências diversas. Eles são atravessados também por disputas políticas e familiares.

Cabe destacar um último artigo presente no livro que se encaixa claramente na perspectiva multidisciplinar tantas vezes já ressaltada: Arquivos pessoais em perspectiva etnográfica, da historiadora Luciana Heymann. Ao utilizar uma ferramenta essencialmente ligada às práticas antropológicas, a etnografia, Heymann revela o quão profícuo um estudo descritivo da formação dos arquivos pessoais pode ser para a observação de que estes são “produto de investimentos pessoais ou coletivos, mais do que produtos ‘naturais’ da trajetória dos indivíduos”.6 O exemplo trazido acerca do arquivo pessoal de Darcy Ribeiro demonstra essa questão, e a autora conclui que o conjunto documental organizado pelo antropólogo e político brasileiro se constitui mais como uma “agenda aberta” do que propriamente um arquivo. Darcy delineava para sua documentação um uso futuro que muitas vezes não se concretizava, o que acabou por gerar uma infinidade de “pastinhas” esquecidas com um ou dois papéis e que pareciam destoar dentro da soma total do arquivo. O exemplo de Darcy Ribeiro trouxe ainda outras questões passíveis de serem problematizadas como: as visões de mundo, a imagem pública que se quer eternizar, e, sobretudo, o investimento pessoal por trás dos usos que titulares e herdeiros dão a estes conjuntos documentais.

Como coloca Eric Keetelar, 7 arquivistas e pesquisadores “ativam” e “reativam” os documentos por meio de frequentes intervenções narrativas. As “memórias” edificadas em determinado momento são também vestígios daquilo que se optou por arquivar e, ainda, daquilo que foi selecionado como “testemunho” desta memória. É, portanto, necessário que os documentos sejam também percebidos através dos contextos administrativos e socioculturais que o geraram, bem como daqueles que os tornaram públicos. Por fim, considera-se bem-sucedida a proposta do livro que, além de discutir a pesquisa em arquivos pessoais, se esforça em pensar sobre esses arquivos, os “desnaturalizando”. Pois, estas trajetórias não são de forma nenhuma “naturais”, mas, sim, permeadas por elementos de autoridade e contingência que interferem em seus percursos, característica que, por sua vez, reverbera nas narrativas sobre o passado que foram e poderão ser produzidas.

Notas

1 ARFUCH, Leonor. Narrativas del yo y memorias traumáticas. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 4, n. 1, jan./jun. 2012, p. 45.

2 CAMARGO, Ana Maria de Almeida. Arquivos Pessoais são Arquivos. Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte, n. 2, jul./dez. 2009.

3 MCKEMMISH, op. cit., 2013, p. 19.

4 BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas II: rua de mão única. 5.ed. São Paulo: Brasiliense, 1995.

5 LACERDA, op. cit., 2013, p. 59.

6 HEYMANN, op. cit., 2013, p. 75.

7 KETELAAR, Eric. (Dé)Construire l’archive. Matériaux pour l’histoire de notre temps, Nanterre, n. 82, 2006, p. 63-69.

Referências

ARFUCH, Leonor. Narrativas del yo y memorias traumáticas. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 4, n. 1, jan./jun. 2012.

CAMARGO, Ana Maria de Almeida. Arquivos Pessoais são Arquivos. Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte, n. 2, jul./dez. 2009.

KETELAAR, Eric. (Dé)Construire l’archive. Matériaux pour l’histoire de notre temps, Nanterre, n. 82, 2006.

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas II: rua de mão única. 5.ed. São Paulo: Brasiliense, 1995.


Resenhista

Karla Simone Willemann Schütz – Mestra pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina (PPGH-UDESC).


Referências desta Resenha

HEYMANN, Luciana; TRAVANCAS, Isabel; ROUCHOU, Joelle (Orgs.). Arquivos pessoais: reflexões disciplinares e experiências de pesquisa. Rio de Janeiro: FGV, 2013. Resenha de: SCHÜTZ, Karla Simone Willemann. Mais que trajetórias: formas renovadas de pensar os arquivos pessoais. Escrita da História, v.2, n.4, p.238-244, set./dez. 2015. Acessar publicação original [DR]

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