As Américas em tempos de colônia | Revista Eletrônica da ANPHLAC | 2019

O dossiê que a Revista Eletrônica da ANPHLAC oferta ao leitor, o primeiro do periódico dedicado exclusivamente a temáticas coloniais das Américas, denota a força crescente dos estudos desse campo no Brasil. Área que permaneceu por muito tempo correndo à margem, a América Colonial, especialmente a região espanhola, assiste nos últimos anos à chegada de novas gerações de historiadores, muitos destes formados por pioneiros no campo nas universidades brasileiras.

A presença na imensa maioria dos currículos de graduação em História do país não garantiu, até pouco tempo atrás, um volume consistente e contínuo de pesquisas sobre o período colonial americano. A carência de especialistasfez com que, ao longo do tempo, a disciplina fosse frequentemente ministrada por professores com interesses dedicados a outras áreas, tais como a América portuguesa. Não era incomum, entretanto, que esses pesquisadores retornassem aos seus interesses e às suas temáticas iniciais ou fizessem transposições atinentes ao império luso para outras porções do continente americano, o que podia ser visto na própria seleção de temas e conceitos bem como na bibliografia utilizada em muitos cursos.

Analisando o histórico de edições da própria Revista Eletrônica da ANPHLAC, podemos observar que a presença de artigos dedicados aos temas coloniais foi sempre intermitente. Ao longo dos seus 25 números (e um dossiê especial dos 20 anos da Associação), durante o período de 2001 a 2018, identificamos 17 artigos relacionados à América colonial, sendo 12 de temas diversos, dois de apresentação de arquivos brasileiros para os estudos de América espanhola, um sobre leituras contemporâneas a respeito do período colonial e dois sobre Cuba no século XIX. Somam-se ainda duas resenhas de livros da área ao longo do tempo. Dessa forma, podemos observar que com o presente dossiê, composto de 14 artigos e uma entrevista, disponibilizamos uma quantidade de trabalhos sobre o tema em um único número da revista semelhante ao produzido ao longo de mais de uma década e meia.

Pode-se dizer que a mudança em tal cenário acompanhou a expansão das universidades públicas brasileiras, marcada pelo aumento dos cursos de História e de seus respectivos programas de pós-graduação, além da proliferação de periódicos e encontros acadêmicos. A docência e as pesquisas na área de América Colonial de certa forma seguiram na esteira desse crescimento que, por sua vez, aumentou a cobrança por produção acadêmica e coerência entre docência e pesquisa. Isso se reflete nos próprios encontros bianuais realizados pela ANPHLAC com o perceptível aumento da quantidade de mesas e inscrições de trabalhos dedicados ao período colonial em suas últimas edições.

A proposta do presente dossiê vem ao encontro dessa tendência. Como já alertávamos na chamada de artigos, a produção acadêmica sobre o período que abrange da chegada de Colombo aos processos de independência ocorridos a partir do final do século XVIII avançou enormemente nas últimas décadas, capitaneada por reflexões em torno de conceitos como conquista, resistência, alteridade, mestiçagem, globalização, fronteira, entre outros. Novas abordagens, como as marcadas pela história indígena, estruturação de redes, nova história política, história dos conceitos e histórias conectadas, têm permitido olhares distintos para as fontes, mesmo as mais tradicionais. Têm-se, sobretudo, uma história colonial que vem se libertando das amarras nacionais ao compreender o espaço americano como múltiplo, dinâmico e articulado interna e externamente; território de mobilidades, hierarquias, jurisdições e relações sociais variáveis no tempo e no espaço.

Apesar dos riscos nesse sentindo, adotou-se no presente dossiê o uso do termo “colônia”. Colocado em xeque ainda nos anos 1940 e mais recentemente questionado com vigor renovado, o conceito foi acusado de reducionismo e anacronismo, especialmente quando referido aos séculos XVI e XVII. Palavra pouco empregada no período em questão, colônia significava, sobretudo, povoamento. Longe, portanto, do sentido de dominação política e econômica que adquiriu a partir de fins do século XVIII e que alcançou grande e duradouro sucesso não apenas no âmbito acadêmico, mas também em livros didáticos, discursos políticos, manifestações culturais etc.

Para muitos pesquisadores, a colonialidade foi compreendida como uma condição americana quase permanente, especialmente na parte central e sul do continente. Elemento essencial na construção da modernidade capitalista eurocentrada, a América cumpriria sua função de colônia mesmo na lógica de nações independentes e na contemporaneidade. Por outro lado, alguns estudiosos ressaltaram a suposta igualdade jurídica entre os domínios americanos e europeus no Império Espanhol. Interpretação esta que abria espaço a uma percepção horizontalizada que, em vez de colônia, preferia termos tais como “províncias”, “reinos” e “domínios”, muitas vezes diluindo em contextos de negociação e simetria relações profundamente hierárquicas, assimétricas e de controle político, social e econômico.

Entre a negação do conceito de colônia de um lado e sua perenidade e determinismo de outro alinhamo-nos a uma visão que compreende a situação colonial como uma categoria de análise consistente na abordagem de um tempo americano específico, qual seja, o de fins do século XV até o início do XIX, variando conforme as realidades particulares. Contudo, consideramos inviáveis as interpretações que identificam tal relação como a única “chave” para compreendermos a história americana nos primeiros séculos após o contato com os europeus. Dessa forma, inserimos as relações coloniais em um cenário mais complexo, que envolve outras conexões estabelecidas pelos territórios americanos e seus habitantes não apenas com a Coroa, mas também com outras partes da América e do mundo, compreendendo as dinâmicas de trocas, trânsitos de pessoas, mercadorias, práticas, ideias, animais, alimentos, doenças etc. O uso do termo Américas, nesse sentido, busca aqui enfatizar exatamente a pluralidade de experiências coloniais americanas, o que é reforçado pela adoção de um recorte temporal mais amplo para o dossiê.

Portanto, é nesse panorama de experiências das Américas em tempos de colônia que se situam os artigos aqui publicados. Da Nova Espanha ao Rio da Prata, do século XVI ao XVIII, das conexões aos modos de produção, dos relatos produzidos por  indígenas e religiosos aos romances e filmes que localizam suas narrativas nesse cenário colonial, tem-se aqui um abrangente e instigante perfil da produção acadêmica atual sobre a colonização espanhola no continente americano.

Seguindo mínimos critérios cronológicos, o dossiê é aberto com dois artigos que, a partir de fontes, premissas e abordagens particulares, refletem sobre a possibilidade de se identificar características pré-colombianas em grupos indígenas mesoamericanos através de relatos produzidos durante o século XVI. Eduardo Henrique Gorobets Martins, em seu “Mexica conquests, Castilian conquests; castilian and native textual structures in the historical section of the Codex Mendoza”, reflete sobre as influências e subordinações estabelecidas entre textos espanhóis e a escrita alfabética com os registros pictoglíficos. A partir especialmente da análise da primeira parte do Códice Mendoza, o autor questiona interpretações que identificam esse documento como uma fonte primária sobre o período pré-hispânico. Já o artigo de Alexandre C. Varella, “Informantes indígenas do regime; costume e saúde alimentar nas Relaciones Geográficas e na Historia de Sahagún” aborda os “embates e aproximações entre os princípios e regras de dietética espanhola e os costumes e noções indígenas de saúde e enfermidade”. Para isso, o autor recorre a documentos que, mesmo tendo sido produzidos majoritariamente por mãos europeias, contaram com informantes nativos e permitiriam a identificação da “ingerência discursiva dos indígenas” em seu conteúdo.

Também dedicado ao território novo-hispano quinhentista, Geraldo Witeze Júnior, em “Esperança e caridade: a proposta evangelizadora de Vasco de Quiroga para os índios da Nova Espanha”, analisa a concepção de evangelização desenvolvida por este religioso e funcionário da Coroa célebre por seu combate à escravidão dos americanos e pela criação de dois pueblos-hospitales inspirados na Utopia de Thomas Morus, onde buscou estabelecer relações diferentes dos indígenas com a Coroa espanhola e o cristianismo.

Outras regiões do continente ocupadas pelos espanhóis no século XVI também foram objeto de pesquisa. Thiago Bastos de Souza (“A Escrita como Instrumento de Coesão Política para uma Monarquia Composta: solicitação e censura de informações no Novo Reino de Granada no século XVI”), por exemplo, volta suas atenções para a região do Novo Reino de Granada. A partir da análise da trajetória percorrida pela Recopilación Historial, relato escrito pelo franciscano Pedro de Aguado, o autor ressalta a atuação da censura real, que chegou a cortar não apenas palavras e parágrafos, mas todo um livro que iria inicialmente compor a obra do frade espanhol. Com isso, o trabalho de Souza dá seguimento a uma vertente de estudos sobre o papel central exercido pela escrita na administração dos territórios espanhóis espalhados pelas quatro partes do mundo e que vem ganhando força nos últimos anos com trabalhos como o do historiador alemão Arndt Brendecke. Fredson Pedro Martins, em “Uma Igreja, dois mundos: análise das diretrizes conciliares apresentadas em Trento e em Lima (séc. XVI)”, também dedica atenção às relações existentes entre poderes centrais europeus e as terras do Novo Mundo, porém tendo a Igreja Católica como foco. A partir das diretrizes formuladas pelo Concílio de Trento e dos debates e personagens envolvidos no III Concílio de Lima, o autor aborda os “desdobramentos de diretrizes evangelizadoras oriundas da Europa sobre as ações catequéticas desenvolvidas nas terras americanas”, dando especial atenção às questões envolvendo a formação e o disciplinamento dos clérigos e o surgimento de uma “nova práxis jurisdicional e missiológica” dentro da Igreja Católica.

As relações entre Europa e América bem como as destas com outras partes do mundo são objeto de reflexão de Pablo Cañón García. No artigo “Redes y circulación de los hombres de negocios en la conexión de los territorios de la Monarquía Hispánica durante la Unión de Coronas (1580-1640)”, o autor investiga a trajetória de “hombres de negocios” que circularam por territórios espanhóis nos dois lados do Atlântico durante o período da União Ibérica. Assim como em outros textos que compõem o dossiê, as relações entre um “centro” e suas “periferias” dão lugar a um cenário muito mais amplo, complexo e plural com a formação de circuitos comerciais e fluxos de produtos, ideias e pessoas “a nivel intercolonial, e incluso fuera del funcionamiento del comercio triangular, ligando entre sí territorios americanos con africanos y asiáticos sin pasar por Europa”.

As discussões sobre os territórios coloniais na América também aparecem em outros artigos, especialmente em torno do espaço platino e da ideia de formação das fronteiras, tema este sempre sensível e recorrente nos estudos sobre colônia. Tiago Bonato, em “De uma margem à outra: rios, mapas e fronteiras na bacia platina (séculos XVI-XVII)”, analisa, a partir da história da cartografia e do mapeamento dos rios que recortam a região, a formação de suas fronteiras, tanto imperiais, que buscavam definir as áreas portuguesas e espanholas, quanto internas, nos limites da presença colonial e das sociedades indígenas. Ademais, o texto problematiza as interações entre os usos cotidianos pelos agentes locais dos caminhos fluviais e a cartografia. O artigo “A construção a partir do outro: a formação da ideia de fronteira no Paraguai colonial baseado na ideia do estrangeiro, século XVII”, de Fernando V. Aguiar Ribeiro, também discute a formação da fronteira colonial, especificamente a paraguaia, ao trazer à cena dois processos documentais que revelam o papel da ideia do estrangeiro, e do espelho da alteridade, na dinâmica de construção dos limites fronteiriços, sempre pensados como o resultado da ação, sobretudo, dos agentes locais para além das determinações imperiais.

A região paraguaia ganha destaque nesse dossiê em mais três artigos. Em “La encomienda paraguaya: pueblos de índios en el siglo XVII. Población, família y trabajo”, de Maria Laura Salinas, analisa-se a implantação das encomiendas tanto no Nordeste da governação do Rio da Prata quanto no Paraguai do século XVII. O texto visa problematizar as formas pelas quais tal mecanismo de exploração da mão-de-obra e tributação incidiu sobre as comunidades de índios a ela submetidas bem como acerca da formação das famílias indígenas. A autora lança mão de uma série de documentos, especialmente da visita do ouvidor Andrés Garabito de Léon, para refletir a respeito dos limites da utilização desse tipo de documentação.

As missões jesuíticas do Paraguai reúnem tematicamente os outros dois artigos sobre a região. Jacqueline Ahlert, em “Entre imagens, celebrações e autoflagelos: aspectos das práticas religiosas coletivas nas missões Jesuíticas da Província Paraguaia”, parte da ideia de que as missões nunca representaram um bloco monolítico e isolado, mas um espaço integrado, heterogêneo e no qual formas múltiplas de apropriação simbólica geraram amálgamas de tradições e práticas tanto indígenas, variadas, quanto jesuíticoeuropeias. Para tanto, a autora enfoca especialmente nas celebrações, no culto às imagens e nos rituais de autoflagelação para confrontar diferenças, negociações e adaptações entre a doutrina e as práticas religiosas. Um caminho semelhante é trilhado por Helenize Serres e Maria Cristina Bohn Martins no artigo “Cenários de interação e conflitos. O espaço missioneiro na Província Jesuítica do Paraguai (séculos XVII e XVIII)”. Nele, as autoras revisitam a historiografia clássica sobre o chamado “espaço missioneiro”, que  compreendia territórios atuais do Brasil, Argentina e Paraguai, para problematizar certas imagens consolidadas sobre esta experiência histórica. Nesse sentido, optam por analisar esse espaço sob a ótica da porosidade, circulação e heterogeneidade em contraste às perspectivas que o analisaram sob a lógica da homogeneidade Guarani, estabilidade, do isolamento e da autossuficiência.

O espaço platino ainda é o cenário principal do artigo de Eliane Cristina Deckmann Fleck, em “Evidências de circulação e apropriação de saberes farmacológicos e médico-cirúrgicos em um manuscrito anônimo (América platina, século XVIII)”. O texto analisa as apropriações e referências contidas no Libro de cirugía (1725), um manuscrito inédito e anônimo, localizado na biblioteca do convento da ordem franciscana de Catamarca, Argentina. Por meio dele, a autora busca compreender algumas práticas e saberes empregados nas reduções jesuíticas do Paraguai, assim como aspectos da cultura científica vigente na América platina do século XVIII.

O dossiê se encerra com dois artigos que, cada qual a seu modo, analisam obras produzidas ao longo do século XX que têm o período colonial hispano-americano como palco para suas reflexões. Cláudia Wasserman, em seu “Debates sobre modo de produção no período colonial: usos políticos do passado e as experiências de tempo”, aborda os debates sobre os modos de produção existentes durante a colônia travados particularmente nas décadas de 1960 e 70. A partir das reflexões teóricas de François Hartog eReinhart Koselleck, a autora aborda as interpretações a respeito das características da colonização americana realizadas por intelectuais como André Gunder Frank, Ciro Flamarion Cardoso e Carlos Sempat Assadourian, entre outros, buscando analisar os usos políticos do passado e as experiências de tempo subjacentes a essas polêmicas. Já Tereza Maria Spyer Dulci e Libia Alejandra Castañeda Lopez analisam obras de ficção cujas histórias se passam no período colonial. No artigo “A recriação da colônia em Zama: identidades, gênero e representações do espaço” as autoras analisam o romance de Antonio Di Benedetto (1956) e o filme homônimo de Lucrecia Martel (2017) tendo como eixo a premissa de que ambos criam obras artísticas deliberadamente anacrônicas que “subvertem o relato hegemônico da história sul-americana, criando ‘outras’ histórias” e descontruindo a perspectiva de civilização versus barbárie. O dossiê traz ainda uma entrevista realizada por Thiago Enes com Pilar Ponce Leiva, na qual a professora da Universidad Complutense de Madrid aborda questões em torno do tema da corrupção na América colonial e os desafios historiográficos que ele apresenta atualmente.

Esperamos que este dossiê contribua para a continuidade do avanço das pesquisas na área de história da América colonial no Brasil e se desdobre em novos textos, dossiês e mesas de debates nos próximos números da Revista Eletrônica da ANPHLAC e nos encontros da associação. Por fim, agradecemos aos autores que submeteram seus textos e também às dezenas de pareceristas anônimos que participaram deste número da revista.


Organizadores

José Carlos Vilardaga – Professor de História da América e membro do Programa de Pós-graduação em História (PPGH) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp/Campus Guarulhos). Líder do grupo de pesquisa “A monarquia hispânica no tempo dos Felipes (1580-1640)”, e um dos coordenadores do LAPHA (Laboratório de Pesquisa em História das Américas) Email: [email protected]

Luís Guilherme Assis Kalil – Professor de História da América e membro do Programa de Pós-graduação em História (PPHR) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ – IM/Nova Iguaçu). Líder do grupo de pesquisa “História das Américas: fontes e historiografia” (UFOP/CNPq). Email: [email protected]


Referências desta apresentação

VILARDAGA, José Carlos; KALIL, Luís Guilherme Assis . Apresentação. Revista Eletrônica da ANPHLAC, n. 26, p. 1-8, jan./jul. 2019. Acessar publicação original [DR]

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