As Famílias Principais: redes de poder no Maranhão colonial | Antonia da Silva Mota

Em março de 1743 as autoridades do Senado da Câmara de São Luís, falando em nome dos “moradores”, suplicavam ao Rei que anulasse um privilégio concedido ao irlandês Lourenço Belfort. Este imigrante, que há pouco investira 10 mil cruzados na construção de uma fábrica capaz de processar 8 mil couros por ano em São Luís, havia sido agraciado com o monopólio do comércio de couros. O pedido do privilégio para Lourenço Belfort havia sido encaminhado ao Rei pelo próprio Governador e Capitão General do Maranhão, João de Abreu de Castelo Branco, em outubro de 1741. Em sua petição, Castelo Branco argumentava que tal medida teria o poder de estabelecer um controle maior sobre a circulação do couro na região, coibindo o roubo de gado. Os camaristas, no entanto, suspeitavam que a medida tivesse outras finalidades, o que explicitaram em uma argumentação enviada ao Rei:

A proibição que pertende o dito Lourenço Belfort, para que do Maranhão se não embarquem couros para esta cidade he muito prejudicial aos direitos de Vossa Magestade, e a liberdade do comercio, e se deles tem necessidade para sua fábrica, os pode comprar a seus donos. […] O intento deste Belfort será talvez com este privilégio, ser senhor de toda a courama, que houver, e como seja só a comprallas, os haverá por pouco mais de nada.1

Para eles, tal privilégio levaria o irlandês a “[…] fazer a sua fortuna em prejuízo daqueles moradores, que com os seus couros e algum algodão que possuem, hé que compram o de que necessitão pois ahy não há dinheiro e não he justo se retire esta liberdade” 2. A despeito do protesto veemente, Belfort conseguiu assegurar a mercê, tornando-se “senhor de toda a courama”, detentor do direito de ser o único a beneficiar e comercializar para o exterior o subproduto de uma das atividades econômicas mais expressivas do Maranhão colonial.

Este episódio, descrito e analisado na mais recente publicação de Antônia da Silva Mota, é um perfeito emblema da problemática abordada pela autora: trata-se de um caso onde os interesses privados de um indivíduo bem colocado socialmente são sobrepostos aos da coletividade, erigindo um mecanismo de acumulação, forjando um privilégio que deve muito ao acionamento de uma rede de relações que encontra na família sua raiz e sustentáculo. Em “As Famílias Principais – Redes de poder no Maranhão Colonial”, Antônia da Silva Mota empreende uma radiografia do modus operandi das mais proeminentes famílias que se radicaram no Maranhão colonial, observando de perto suas estratégias de ascensão e de manutenção do status econômico, social e político.

O irlandês Lourenço Belfort, apresentado acima, é um exemplar do típico “homem desajustado da época”, daqueles que, acossados pela pobreza, pela falta de oportunidades e até por contextos sociais, políticos ou religiosos hostis, buscavam Lisboa –“Meca para os famintos e desempregados” – como ponto de escape, porta de entrada para um vasto império colonial pejado de oportunidades. A autora demonstra que o Maranhão foi o destino de muitos deles, graças ao esvaziamento dos sonhos dourados das Minas Gerais e do dinamismo implantado ali pelas políticas pombalinas, na segunda metade dos setecentos. A região foi objeto de medidas específicas, como a concessão de subsídios fiscais, a proibição do cativeiro dos indígenas, o estímulo à agricultura comercial e, especialmente, a formação de uma empresa que tratou de regular o escoamento dos produtos e o fornecimento de escravos da África, a Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão. Lourenço soube galgar e se manter em posições-chave na sociedade e na economia do Maranhão, seja antes do surto econômico, quando se envolveu com o apresamento de índios e com os negócios do gado bovino, seja depois, quando se tornou lavrador de algodão e arroz, rentista imobiliário, acionista e gestor da Companhia de Comércio.

Os Belfort, os Lamagnère, os Vieira da Silva, os Gomes de Sousa – entre outras parentelas observadas pela autora – empregaram largamente as possibilidades oferecidas pela rede familiar em seu trajeto ascendente. A obtenção e manutenção do poder econômico, social e político ao longo do tempo, a despeito das tantas transições e transes pelas quais passou a Capitania, e mesmo depois que esta se tornou Província, se deveu ao manejo eficiente das relações familiares, profundamente inseridas nos centros de decisão. Os patriarcas tratavam de fazer casar sua extensa prole com membros de destaque da Capitania: funcionários régios, militares de altas patentes, cirurgiões-mores, comerciantes enriquecidos. Como ressaltou a autora, “[…] o enriquecimento passava pelas relações com a administração da colônia, pelo privilégio possível através das relações familiares” (p. 53). O próprio sistema de concessão de sesmarias foi manejado por estes mecanismos familiares, gerando uma política de distribuição de terras exclusivista, que tendia a reforçar e perpetuar a elite já estabelecida. O conceito de família, nesta altura, é muito mais abrangente daquele se pratica hoje, extrapolando a mera consanguinidade, pois abarcava todos aqueles que se subordinam a um patriarca comum, compreendendo coabitação, relações rituais – como o compadrio – e até relações políticas. O casamento – um dos artifícios mais efetivos empregados no estabelecimento destas redes de relações – tornava parentes “todas as outras [pessoas] que a um dos membros estivessem ligadas, consanguíneas ou não”. É a “família extensa”, que agrega uma vasta rede de indivíduos e os liga em relações de reciprocidade. A família é o centro de convergência de todos os movimentos, é o espaço de referência dos sujeitos, cuja individualidade é ofuscada pela condição de partícipes de grupos familiares.

A riqueza obtida nos negócios agrícolas da ribeira do Itapecuru – produzida com um conjunto muito rudimentar de instrumentos de trabalho – se converteu, conforme demonstra a autora, em prédios urbanos, que formam hoje o “patrimônio histórico” de São Luiz. Converteu-se ainda, nos “recheios” destes imóveis, objetos luxuosos e requintados com os quais a “nobreza” da terra procurava fazer evidente sua superioridade: louças e jóias, móveis e vestuários. Tal impulso, que marca o “nascimento do consumo”, aburguesou os costumes da elite maranhense, e muitos dos resquícios deste fenômeno estão presentes hoje nos museus históricos da região.

Há na obra um segmento destinado a analisar as relações entre esta elite que se erigia no Maranhão e a escravidão. Através dos inventários, a autora estabeleceu observações sobre a as origens étnicas e valores dos cativos, e as flutuações desses fatores ao longo do tempo. Ela percebeu que os preços de escravos sofreram aumento conforme se aproximava o final do século XVIII; e que características específicas, como sexo, idade e domínio de saberes profissionais especializados, influenciavam na determinação dos valores. Quanto à questão étnica, Antonia indicou a predominância inicial de indivíduos oriundos da Costa Ocidental da África, especialmente das regiões da Guiné, Cacheu e Angola; e, com o tempo, aumentam as referências a escravos crioulos (nascidos no Brasil).

Mais do que estes dados, a autora dedicou parte de suas reflexões ao tema da família escrava, questão polêmica entre os historiadores, que vem sendo entendida de diversas formas. Enquanto alguns a concebem como “fator atenuante da escravidão”, fornecendo amparo e consolo; outros a veem como mecanismo que aprofunda os laços do cativeiro, sendo por isso não só tolerada como estimulada pelos senhores, justamente por se constituir em elemento de sedentarização do escravo, criando elos afetivos que são garantias de submissão. Parafraseando Robert Slenes, Antonia indica que “em todas as sociedades, quem está com mais de trinta anos e com compromissos familiares dificilmente se tornará um revolucionário”. (p. 74). O estudo de Antonia indica que, no Maranhão, embora os senhores transigissem com a formação de núcleos familiares entre seus escravos – algo que pode ser visto nos próprios inventários que, ao registrá-los, tacitamente os reconhece – não hesitavam em rompê-los em vendas, partilhas e doações. Talvez isso explique, considera a autora, a baixíssima ocorrência de casamentos formais entre os cativos, no que os senhores desobedeciam abertamente aos mandamentos da Igreja: a formalização dos casamentos dificultaria os interesses comerciais dos senhores. Entre o direito canônico e o de propriedade privada, os senhores não tinham dúvidas em escolher o segundo. De todo modo, o capítulo dedicado ao estudo das famílias escravas “moldadas pelo cativeiro” está entre as realizações mais proveitosas da obra.

Para Mota, as linhagens nobres maranhenses, às vezes reconhecidas pela Coroa “numa época em que os títulos de nobreza já se vulgarizavam na Corte” (p. 47), eram, quase sempre, construções míticas. As famílias que enriqueceram, por conta das ações de patriarcas pioneiros audazes, aventureiros, oportunistas e, no mais das vezes, inicialmente pobres, reconstruíam seu passado, criando uma trajetória imaginária que visava apagar as raízes humildes, as origens plebeias; trata-se de um grupo arrivista que, como faziam os que, por esta época, erigiam fortunas na região das Minas, estava “empenhado em inventar tradições para si e para a sua região”, conforme assim afirmou a historiadora Laura de Melo e Souza em recente pesquisa acerca de Cláudio Manoel da Costa em Minas Gerais no século XVIII. A invenção destas tradições passava necessariamente pelo ocultamento dos caminhos escusos palmilhados no processo de ascensão, das apropriações predatórias das coisas públicas (num momento em que as fronteiras entre público e privado eram nebulosas, bem como a própria noção de privacidade), das opressões sobre índios e negros, do trato deletério com a natureza americana. Essas narrativas imaginárias, desdobramento discursivo do processo de ascensão social, foram amplamente aceitas, recontadas e refinadas pela maioria dos literatos e historiadores maranhenses do século XIX e XX que, além de filtrarem das biografias todos os aspectos negativos, trataram ainda de conferir às “famílias principais” tintas heroicas, descrevendo-as como baluartes do patriotismo, condutoras da civilização, promotoras dos interesses da região. Nas palavras de Antônia Mota, “a historiografia maranhense tradicional sempre dá destaque a estas figuras em seus escritos. Um aspecto evidente nesta crônicas é o ‘endeusamento’ destas famílias, eternizando sua posição social, escondendo sua origem comum” (p. 164).

Pode parecer desnecessário insistir na indicação desses dispositivos discursivos, mas a discussão é oportuna quando se percebe que essa interpretação elitista da trajetória da região ainda informa boa parte da produção intelectual maranhense, fazendo-se presente em instituições culturais – notadamente em museus – nas publicações, no discurso turístico que se oferece aos visitantes da capital. Afinal, são os casarões construídos por aquela “nobreza” que são valorados como maior atrativo de São Luís, seu maior “patrimônio”. Por isso, o trabalho que Antonia da Silva Mota vem desenvolvendo há mais de 10 anos, bem como o de seus colegas de geração, conforme destacou Flávio José Silva Soares no Prefácio, tem um valor que extrapola o científico: tem implicações positivas no campo das representações que a própria sociedade maranhense faz de sua história. Especialmente neste trabalho, em que põe sob as lentes a elite colonial maranhense, Antônia contribui para apagar o sinal positivo imputado aos desbravadores pela historiografia tradicional, afasta-se da narrativa imaginária acalentada por tanto tempo, ainda que não seja o objetivo primordial da obra.

Num minucioso e competente esforço de pesquisa, elaborada através do escrutínio e da síntese de uma grande massa de fontes, entre bibliografia e documentos, Antônia Mota produziu uma proveitosa análise das famílias principais do Maranhão colonial, desnudando suas estratégias de conquista e manutenção de hegemonia, seus valores e sua cultura particular. A obra inscreve-se num conjunto da historiografia brasileira que vem se dedicando a refletir sobre a família no contexto colonial, sobre sua natureza e seu papel. Tais estudos têm encontrado ligações fundamentais entre os sistemas de parentela e as relações econômicas e políticas. Superando o olhar panorâmico, a autora procura o nível dos indivíduos e os surpreende em suas singularidades, na concretude de suas ações cotidianas, revelando uma complexa riqueza de vetores, a trama da qual é feita, afinal, a história.

Notas

1 Arquivo Histórico Ultramarino, Cx 27. Doc. 2754. Na transcrição, decidiu-se manter a grafia original, desfazendo-se somente as abundantes abreviações que dificultam a leitura fluente do texto.

2 Idem.


Resenhista

Daniel Rincon Caires – Pesquisador do Instituto Brasileiro de Museus – IBRAM Especialista em História pela Pontifícia Universidade Católica – PUC/SP.


Referências desta Resenha

MOTA, Antonia da Silva. As Famílias Principais: redes de poder no Maranhão colonial. São Luís: Edufma, 2012. Resenha de: CAIRES, Daniel Rincon. Revista Eletrônica História em Reflexão. Dourados, v.6, n. 12, jul./dez. 2012. Acessar publicação original [DR]

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