As imagens do outro sobre a cultura surda – TROBEL (C)

TROBEL, Karin. As imagens do outro sobre a cultura surda. 2. ed. rev. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2009. Resenha de: NEVES, Gabriele Vieira. Conjectura, Caxias do Sul v. 15, n. 1, p. 151-154, jan/abr, 2010.

Nas últimas décadas, as pesquisas no campo dos Estudos Surdos e Estudos Culturais proporcionaram um novo olhar sobre a surdez.

Longe de serem considerados como um grupo de pessoas marcado pela deficiência e pela ânsia de cura e normalização, hoje os surdos são pensados como um grupo identitário caracterizado por elementos próprios que marcam sua diferença. Nada melhor para ilustrar essa perspectiva do que apresentar a trajetória da autora da obra As imagens do outro sobre a cultura surda. Karin Strobel é surda, formada em Pedagogia e Doutora em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Trabalhou em diversas escolas de surdos e participou da equipe pedagógica do Departamento de Educação Especial da Secretaria de Educação do Paraná. Atualmente é professora no curso de Letras/Libras da UFSC e diretora-presidente da Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (Feneis).

Tendo em vista essas informações, poderíamos dizer que, por si, a autora já seria um modelo representativo da comunidade surda como grupo cultural fortemente marcado pela identidade e pelo “orgulho de ser surdo”. Mas Strobel vai além do seu próprio modelo. A obra é permeada por relatos, memórias, sonhos e situações do cotidiano de surdos desafiados a viver em um mundo nem sempre acessível, impregnado por olhares de estranhamento, de preconceito e ignorância sobre sua diferença.

Desde o primeiro capítulo “Qual conceito trazemos sobre a cultura?”, ao assumir uma postura notadamente epistemológica, a autora evidencia sua preocupação em estabelecer distinções e explicitar conceitos.

Depois de fazer uma breve contextualização histórica do conceito de cultura e trazer algumas possíveis definições, a ênfase recai sobre a ideia de cultura fundamentada nos Estudos Culturais a qual sustentará seus argumentos nos capítulos posteriores. A partir da origem etimológica da palavra cultura que vem do latim colere = cultivar, Strobel tece a metáfora dessa como o cultivo da linguagem e da identidade, realizada coletivamente e de maneira performativa. No caso dos surdos, o cultivo e a colheita se dão dentro da comunidade surda, campo fértil para o florescimento de sua identidade e de sua cultura.

No capítulo seguinte, intitulado “Os surdos têm cultura?”, são traçadas as primeiras linhas para a apresentação dos surdos como grupo cultural minoritário ou, como prefere a própria autora, como povo. Dessa maneira, a cultura surda é definida como o jeito de o sujeito surdo entender o mundo e modificá-lo a fim de torná-lo acessível e habitável ajustando-o com suas percepções visuais, que contribuem para a definição das identidades surdas.

[…] Isso significa que abrange a língua, as idéias, as crenças, os costumes e os hábitos do povo surdo. (STROBEL, 2009, p. 27).

Essa opção de se referir aos surdos como povo é o tema do terceiro capítulo: “Povo surdo ou comunidade surda?” Nesse, é esclarecida a distinção entre comunidade surda, que abrange surdos e ouvintes militantes da causa surda, tais como: pais, intérpretes e professores, e o povo surdo, composto apenas por surdos, ligados por um traço em comum, que é a surdez. Assim como os judeus estão unidos por um laço religioso, e os alemães, por uma nacionalidade, os surdos estão ligados pela surdez e pela forma visual de perceber o mundo. A cultura surda e a língua de sinais são referências para o povo surdo e para sua constituição identitária.

No Capítulo 4, “Os artefatos culturais do povo surdo”, a autora apresenta oito artefatos culturais que podem caracterizar a cultura surda, e que são entendidos como as ilustrações da cultura, como aquilo que vai além do material, constituindo o sujeito e as formas de ver, entender e transformar o mundo. Os artefatos elencados são: a experiência visual, que constitui os surdos como indivíduos que percebem o mundo através de seus olhos; o linguístico que se refere à criação, utilização e difusão das línguas de sinais; o familiar que abrange a questão do nascimento de crianças surdas em lares ouvintes e de crianças ouvintes em famílias de surdos, sendo que, na maioria dos casos, as crianças surdas são uma dádiva para famílias surdas e uma lástima para famílias ouvintes. A literatura surda que abrange criações, tais como: poesia em língua de sinais e livros publicados por autores surdos. As artes visuais que são consideradas o artefato onde se localizam as artes plásticas e o teatro surdo. Existem, ainda, os artefatos compostos pela vida social e esportiva e o artefato político, destacando-se pelos líderes surdos e as lutas sociais através de organizações e associações. Por último, a autora aponta as criações e transformações materiais, tais como telefones adaptados, campainhas luminosas, entre outras tecnologias criadas para melhorar as condições de acessibilidade.

Em “As representações imaginárias sobre a cultura surda”, são discutidas situações onde os surdos são ensinados a se narrar, se perceber e se comportar como ouvintes. Essas autopercepções de deficiência são incutidas nas crianças surdas desde muito cedo, prejudicando a formação de sua identidade e o sentimento de pertencimento a uma comunidade.

Do ponto de vista histórico, a autora reflete no Capítulo 6: “História cultural: novas reflexões sobre a história dos surdos”, a necessidade de escrever a história dos surdos de uma maneira diferente, sem que essa seja apenas uma metanarrativa escrita por ouvintes, na qual os personagens principais são ouvintes. Essa outra forma de escrever a história contemplaria, também, experiências e visões de professores surdos.

Strobel aborda a inclusão de maneira mais ampla, ao tratar também da inclusão social do surdo, no mercado de trabalho, nos ambientes sociais e da necessidade de que seja garantida a acessibilidade em todos os locais de convívio social. Frequentemente, a discussão fica sempre em torno da questão escolar, quando, na verdade, o surdo é excluído também dos espaços sociais se não são oferecidos intérpretes em eventos e locais de atendimento público, tais como: hospitais, delegacias, aeroportos e museus, ou quando não há programação televisiva e cinema nacional com legenda, ou ainda, quando no local de trabalho e na própria família não é utilizada como forma de comunicação a língua de sinais. Essa temática é abordada em “A in(ex)clusão dos surdos: prática (inter)cultural?” Além disso, são levantadas, entre outras questões provocativas: Será que a inclusão de surdos em escolas regulares se constitui verdadeiramente em uma prática intercultural? Será que de fato os surdos querem ser “incluídos”? No último capítulo: “Como podemos compreender as peculiaridades da comunidade surda e nos envolver com elas”, são propostas algumas ideias e sugestões de como os ouvintes podem se aproximar da comunidade surda. Para a autora, o primeiro passo é a aproximação da comunidade surda através das associações, das escolas e dos eventos com a participação de surdos. Outro caminho complementar é a leitura e pesquisas sobre o tema, procurando informações e esclarecimentos acerca das particularidades de se viver em um “mundo visual”. Mas o fundamental é a convivência formal e informal com os surdos; é no contato com o outro e com sua diferença que se origina a prática intercultural e a construção da identidade.

Assim, a obra representa uma excelente contribuição para os Estudos Surdos, tanto pelas suas reflexões teóricas e indagações instigadoras quanto pelo aprofundamento em temas de grande relevância e de ampla discussão na atualidade, tais como: inclusão, formação identitária, acessibilidade, educação de surdos, entre outros. Tudo isso é tratado sob a ótica de quem vive a experiência da surdez. Trata-se, também, de um convite para conhecermos um pouco mais a cultura surda e repensarmos os olhares e as imagens que construímos sobre os surdos e sua diferença.

Referências

STROBEL, Karin. As imagens do outro sobre a cultura surda. 2. ed. rev. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2009.

Gabriele Vieira Neves -Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação pela Universidade de Caxias do Sul (UCS). E-mail: [email protected]

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