Traduções da cultura: perspectivas críticas feministas (1970-2010) | Izabel Brandão

O livro que será apresentado nas páginas seguintes é, antes de tudo, um abraço. Falo nesses termos porque, enquanto mulher e pesquisadora feminista, vejo reverberar, nesse monumental trabalho, um rompimento de fronteiras que me impedem de olhar unicamente através da lente acadêmica, pois ele também toca no ponto de minha própria experiência. É nesse sentido que o pessoal e o político convergem para se tornarem faces de um mesmo evento, permitindo-me dizer às mulheres que se fazem críticas das desigualdades sociais, assim como eu, que é sempre e cada vez mais necessário que leiamos sobre nós mesmas, que sejamos todas ouvidos e olhos e bocas em coletividade.

É por isso que brindo ao lançamento da antologia Traduções da cultura: perspectivas críticas feministas (1970-2010) (2017). Nesse abraço de mais de 800 páginas, reflete-se o trabalho coletivo de sete anos de grandes mulheres pesquisadoras dos vários cantos do Brasil. A partir do extenso e colaborativo processo de seleção, em que foram traduzidos para o português 21 ensaios – originalmente publicados em inglês, francês e espanhol, a maioria em traduções inéditas para o português –, evidencia-se o cuidado e a abrangência desse projeto que, além do trabalho de tradução, comporta um lado crítico em forma de comentário com as vozes de muitas pesquisadoras nacionais e internacionais. Tudo isso se faz presente desde a capa. A tradução gráfica da tela No jardim elétrico da artista plástica alagoana Marta Emília, que compõe sua exposição Acrilírika (2015), ilustra coerentemente a relação simbiótica entre natureza e artifício, tema bastante teorizado no contexto do pensamento feminista. Aliás, a proposta interdisciplinar que comunica arte e cultura não é pura casualidade, se considerarmos o fato de que suas organizadoras estão imersas nos terrenos dos Estudos literários e linguísticos, tecendo conexões teórico-críticas com as mais variadas esferas do conhecimento, dentre as quais, os muitos feminismos, os Estudos de gênero, os Estudos pós- e de- coloniais, os Estudos queer, entre outras variações. Leia Mais

História Oral, desigualdades e diferenças – LAVERDI et. al (TH)

LAVERDI, Robson; FROTSCHER, Méri; DUARTE, Geni; MONTYSUMA, Marcos e MONTENEGRO, Antonio (Orgs.). História Oral, desigualdades e diferenças. Recife: Ed. Universitária da UFPE; Florianópolis, SC: Editora da UFSC, 2012, 333p. Resenha de: GILL, Lorena Almeida.  Tempos Históricos, v.17, p. 384 – 388, 2º Semestre de 2013.

Quando penso sobre a razão que me motiva a trabalhar durante tantos anos com a metodologia de História Oral, a resposta que encontro é, certamente, pela possibilidade de conhecer tantas pessoas com suas memórias comovedoras. Memórias como as reveladas por Roseli Boschilia (2012, p. 107), que entrevistou imigrantes portugueses, dentre eles, Maria Helena, a qual contou sobre a sua partida de Portugal e do sofrimento advindo deste fato, quando ainda era uma menina pequena:  Fui arrancada dos braços de minha avó, eternamente enlutada e cega; arrancada do chão de minha terra, dos sons, das cores e dos cheiros de minha aldeia para ser ‘plantada’ em São Paulo […] Vivi com minha mãe durante 12 anos na casa da família onde ela trabalhava como doméstica. Minha mãe fugira dos ‘trabalhos sem fim dos campos’ para acabar por definhar no ‘trabalho sem fim como empregada’, numa casa alheia, numa pátria alheia, longe dos seus.

História Oral, desigualdades e diferenças, livro organizado por Robson Laverdi, Méri Frotscher, Geni Rosa Duarte, Marcos Freire Montysuma e Antonio Torres Montenegro nos apresenta narrativas como a de Maria Helena e de tantos outros depoentes, que fazem com que paremos para refletir, a cada parte de sua leitura, sobre a necessidade de se construir memórias infames, no dizer de Michel Foucault (2003), e dos seus sentimentos, sofridos, alegres, banais, cotidianos.

O livro, publicado em parceria pelas Editoras da Universidade Federal de Pernambuco e da Universidade Federal de Santa Catarina, foi gestado durante o V Encontro Regional Sul de História Oral, realizado no ano de 2009, na Universidade Estadual do Oeste do Paraná, campus de Marechal Cândido Rondon, tendo como eixo de organização as mesas que ocorreram durante a programação do evento e as discussões realizadas.

O livro é tão diverso quanto foi a proposta do encontro, refletindo sobre Teoria, prática do historiador, questões vinculadas à memória e à subjetividade, as cidades, os movimentos sociais, os processos migratórios, o ensino e a história oral como ferramenta de reflexão na ação. Há, no entanto, um fio condutor que organiza o material, ou seja, uma necessidade de trocar experiências tão ricas, como aquelas produzidas em diferentes universidades do Brasil e do exterior, especialmente da Argentina e do Canadá.

Na primeira parte do material, Regina Beatriz Guimarães Neto, Antonio Torres Montenegro, Marcos Fábio Freire Montysuma e Pablo Alejandro Pozzi analisam as fontes orais e o ofício do historiador. Ainda que discutam sobre práticas de pesquisa, constituição de fontes, autorização de cessão de uso de relatos, utilização de testemunhos, o que chama a atenção é a trajetória de cada um dos autores relacionada à história oral. Seus textos revelam experiência e cuidado ao tratar da metodologia, ao mesmo tempo em que há certo militantismo, no que diz respeito às suas escolhas profissionais. Seus textos e seus percursos lembram muito um dos escritos de Portelli (1997, p. 15), no qual reflete sobre ética e assim diz:  […] compromisso com a honestidade significa, para mim, respeito pessoal por aqueles com que trabalhamos, bem como respeito intelectual com o material que conseguimos; compromisso com a verdade, uma busca utópica e a vontade de saber ‘como as coisas realmente são’, equilibradas por uma atitude aberta às muitas variáveis de ‘como as coisas podem ser’.

Na segunda parte, Benito Bisso Schmidt e Roseli Boschilia transitam com maestria pelos temas da história oral, da memória e das subjetividades. Benito se propõe a realizar uma discussão mais teórica, ao reforçar a necessidade de se utilizar a noção de subjetividade de forma profunda no momento da análise da narrativa; Roseli, ao apresentar um trabalho realizado com imigrantes portugueses, nos brinda com entrevistas plenas de sentimentos. Três homens e uma mulher portugueses, que vivem em Curitiba atualmente, falam de suas origens, da nostalgia, da saudade, em relatos onde o passado, o presente e o futuro se entrelaçam.

Na terceira parte, os temas da cidade e da diferença aparecem com ênfase. Marcos Alvito conta sobre seus primeiros trabalhos com história oral, em Acari, para chegar a uma pesquisa mais recente, construída em 2009, com descendentes de escravos do quilombo São José da Serra, município de Valença, Rio de Janeiro. Relata o autor algumas narrativas, dentre elas a de Nathanael, que compara uma árvore, o jequitibá, à comunidade de ex-escravos. Alvito usa as falas de narrador e de outros depoentes para observar a complexidade de um relato, o qual necessita de profunda análise e interpretação por parte do historiador. Já Luiz Felipe Falcão toma como estudo de caso a capital de Santa Catarina, Florianópolis, buscando revelar que ainda que existisse um discurso construído de que a cidade fosse uniforme culturalmente, os outros (moradores de bairros populares, negros, pessoas vindas de fora) estavam sempre lá para mostrar o quanto havia a diversidade e a desigualdade. Por fim, Robson Laverdi aborda a alteridade gay, a partir da maneira como eles lidam com o preconceito e a homofobia. O discurso de um deles, denominado Márcio, um jovem nascido na zona rural que passa a viver na cidade de Assis Chateaubriand, ao trabalhar em um frigorífico, revela uma forma de se forjar em espaços absolutamente discriminatórios. Não se trata, no entanto, de uma narrativa lacrimosa ou algo que o valha, mas da constituição de uma identidade. No dizer de Candau (2011, p. 76):  Quando um indivíduo constrói sua história, ele se engaja em uma tarefa arriscada consistindo em percorrer de novo aquilo que acredita ser a totalidade de seu passado para dele se apropriar e, ao mesmo tempo, recompô-lo em uma rapsódia sempre original. O trabalho da memória é, então, uma maiêutica da identidade, renovada a cada vez que se narra algo.

No quarto tópico, o qual versa sobre os movimentos sociais, Davi Félix Schreiner observa que, por muito tempo, os trabalhadores rurais não tiverem espaço na historiografia, situação que foi sendo alterada com o uso da metodologia de história oral. Utilizando o conceito de liminaridade e a categoria de subjetividade, revela um amplo espectro para o que pode ser chamado de trabalhadores sem-terra, analisando narrativas, sobretudo, vinculadas à vida em acampamentos. Mônica Gatica, por seu turno, procura compreender a dinâmica dos movimentos sociais e dos “novos movimentos”, que surgem na América Latina, a partir dos anos de 1980 e para isso se utiliza de vários teóricos imprescindíveis para a História Oral; ainda há Pablo Ariel Vommaro, o qual discute a organização do Movimento dos Trabalhadores Desempregados de São Francisco Solano, que se constituiu a partir de 1997, em Quilmes, sul da grande Buenos Aires. O foco são os trabalhadores urbanos e os processos de constituição de redes sociais. Nessa conjuntura, a História Oral, para o autor, é mais do que uma metodologia, mas uma maneira de aproximação da realidade.

A quinta parte, versando sobre migração, memória e identidade, traz textos de Alexander Freund e Méri Frotscher. Alexander reflete sobre os imigrantes, afirmando que, muitas vezes, se sentem perdidos entre dois mundos. O fato de não compartilharem uma memória coletiva (conceito que reverencia como fundamental para a análise dos processos de deslocamento) no novo país em que estão, faz com que se vejam em uma espécie de meio do caminho. Para o autor, no entanto, não se trata de uma história apenas de perdas, mas também de possibilidades, ao se construir ricos intercâmbios culturais. Méri Frotscher, por sua vez, observa as possibilidades de se relacionar as fotografias de migrantes e as fontes orais. Tendo em vista dois estudos de casos, de jovens do Paraná que foram trabalhar, de forma temporária, na Áustria e na Suíça, a partir dos anos de 1970, a autora analisa os “olhares sobre a alteridade”, presentes nas narrativas orais e visuais dos depoentes, percebendo que o uso das duas fontes permite compreender, de forma mais significativa, as experiências e os sentimentos dos migrantes.

Na última parte, Geni Rosa Duarte e Bibiana Andrea Pivetta analisam as experiências no campo do ensino. Geni, ao trabalhar com as migrações, advoga o direito ao conhecimento do passado de forma plural. Não basta para a autora dar voz aos antigos moradores, sem que se aceite os novos personagens, que se colocam no presente. A escola deve se abrir para o que não é homogêneo, para o que traz o antagonismo, para o que faz pensar sobre a realidade social. Por sua vez, Bibiana apresenta o projeto Aborígine para a Integração, o qual utiliza a história oral como ferramenta didática para um maior conhecimento de saberes tradicionais. Segundo a autora, através da metodologia, é possível conhecer melhor a sociedade pluricultural em que a comunidade está inserida, fazendo com que as crianças reflitam sobre suas origens e vivências.

Na apresentação do livro é revelado que seu eixo argumentativo principal foi a construção de um diálogo, nos campos interinstitucionais e internacionais. A dialogicidade é construída pelo fato de que vários desses autores convivem em encontros de área, os quais buscam estabelecer um bom debate sobre as pesquisas em andamento e as já realizadas. Igualmente, participam de programas de pós-graduação, que possuem forte interlocução com a metodologia. Há ainda aqueles que se organizam a partir de redes, como a Rede Latinoamericana de Historia Oral, que tem como pretensão difundir as produções existentes.

O livro, mesmo com abordagens tão diversas, e este é o seu fundamento, consegue proporcionar uma visão ampla sobre como se articula o trabalho com a metodologia atualmente, ao mesmo tempo em que debate ferramentas vinculadas à práxis histórica e incita discussões sobre novos temas a serem pesquisados. Torna-se, dessa maneira, uma bibliografia fundamental, tanto para graduandos quanto para pesquisadores mais experimentados.

Referências

CANDAU, Joël. Memória e Identidade. São Paulo: Contexto, 2011.

FOUCAULT, M. A vida dos homens infames. In: Estratégia, poder-saber. Ditos e escritos IV. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003, p.203-222.

PORTELLI, Alessandro. Tentando aprender um pouquinho: Algumas reflexões sobre a ética na História oral. Projeto História. São Paulo (15), abril de 1997, p. 13- 49.

Lorena Almeida Gill – Professora Associada do Departamento de História da Universidade Federal de Pelotas. E-mail: [email protected].

Filosofia da tecnologia: um convite – CUPANI (P)

CUPANI, Alberto. Filosofia da tecnologia: um convite. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2011. Resenha de: SZCZEPANIK, Gilmar Evandro. Principia, Florianópolis, v.16, n. 3, p.505–510, 2012.

A obra Filosofia da tecnologia: um convite, publicada em 2011 pela editora da Universidade Federal de Santa Catariana, apresenta os autores fundamentais e as principais correntes filosóficas que perpassam a filosofia da tecnologia. Além de divulgar o debate filosófico existente em torno da tecnologia de forma convidativa, instiga e desafia a realização de novas pesquisas sobre esse tema ainda pouco estudado no contexto brasileiro. Trata-se de uma das melhores referências sobre a temática existentes em língua portuguesa. A clareza argumentativa com a qual a obra foi escrita permite que pessoas não iniciadas nessa área tenham um entendimento adequado do assunto e pessoas já inseridas na tradição filosófica conheçam a pluralidade e a complexidade dos problemas filosóficos vinculados à tecnologia. Muito mais do que um recorte ou uma simples reconstrução da história da filosofia da tecnologia e de seus problemas, a obra traz um olhar crítico e reflexivo sobre as questões filosóficas despertadas pela tecnologia.

O livro encontra-se dividido em 9 capítulos nos quais são apresentados os principais temas e problemas que permeiam a filosofia da tecnologia. No primeiro capítulo da obra, Cupani enfatiza a complexidade que envolve o estudo filosófico da tecnologia.

As dificuldades iniciam quando os investigadores se propõem a responder a seguinte questão: o que é a tecnologia? Diferentes filósofos profissionais buscaram respostas para essa indagação. Dentre as múltiplas definições e caracterizações existentes sobre a tecnologia, Cupani destaca aquela apresentada pelo filósofo norteamericano Carl Mitcham (1994) que compreende a tecnologia i) como objeto, ii) como conhecimento, iii) como atividade humana e iv) como volição. Além da problemática conceitual, o autor considera que a tecnologia tem implicações filosóficas distintas que repercutem de diferentes formas nas diversas áreas da filosofia. Assim, muitas teses filosóficas desenvolvidas ao longo da tradição poderiam ser repensadas e/ou reavaliadas a partir de ponto de vista tecnológico.

O segundo capítulo é dedicado aos pensadores clássicos da área, como o espanhol José Ortega y Gasset (1939), os alemães Martin Heidegger (1954) e Arnold Gehlen (1949) e o francês Gilbert Simondon (1958), que contribuíram para a consolidação da filosofia da tecnologia como uma disciplina. Cupani apresenta as peculiaridades argumentativas desenvolvidas por cada um deles para fundamentar uma concepção de tecnologia. Apresenta-nos assim, um Ortega y Gasset que concebe a tecnologia como um tipo específico de reforma que o homem impõe à natureza com o objetivo de satisfazer suas necessidades, sejam elas básicas ou supérfluas, pois o homem não quer apenas viver, mas deseja viver bem. Em seguida, expõe de forma precisa o enfoque ontológico e metafísico desenvolvido por Heidegger sobre a técnica, reconstruindo a crítica heideggeriana à concepção antropológica e instrumental da técnica. As ideias do filósofo e sociólogo Arnold Gehlen sobre a tecnologia são apresentadas logo após e Cupani retoma as principais teses relacionadas à ambigüidade da técnica, às relações e semelhanças da técnica com a magia, ao prolongamento técnico dos membros e das capacidades humanas. Por fim, Cupani apresenta a posição do filósofo francês Gilbert Simondon que chama a atenção para a falta de compreensão do mundo tecnológico e a necessidade de se filosofar sobre a técnica. Perspectivas otimistas são contrapostas com abordagens críticas e não-otimistas. Todos os autores apresentados consideram fundamental direcionar o pensamento filosófico à tecnologia.

O terceiro capítulo é dedicado principalmente às ideias do historiador norteamericano Lewis Mumford (1934, 1967 e 1970), um dos mais expressivos estudiosos da filosofia da tecnologia pelo seu viés historiográfico, que esboça uma história do progressivo desenvolvimento tecnológico da espécie humana e analisa o papel que a técnica exerceu na civilização ocidental, apontando diferentes estágios de seu desenvolvimento.

Neste capítulo, Cupani apresenta o interessante argumento de Mumford segundo o qual o relógio (e não a máquina de vapor) é a máquina-chave da era industrial.

Um dos principais pontos deste capítulo está relacionado à compreensão da relação entre o homem e a máquina, pois “vivemos numa civilização da máquina”, diz Cupani, mas seria um exagero considerá-las uma maldição ou a causa de todos os nossos problemas.

No quarto capítulo da obra, nos deparamos com uma abordagem analítica da filosofia da tecnologia fundamentada predominantemente nos escritos do filósofo Mario Bunge (1974, 1985a e 1985b). Um dos primeiros pontos explorados é a distinção entre “técnica” e “tecnologia”. Ambas são caracterizadas pela produção de algo artificial, isto é, de um artefato. No entanto, a primeira designa um controle ou transformação da natureza com elementos pré-científicos e a segunda envolve necessariamente um embasamento científico moderno. O enfoque analítico da filosofia da tecnologia busca compreender a tecnologia como uma atividade planificada, que possui métodos, que utiliza e ao mesmo tempo desenvolve conhecimentos e que é orientada por um conjunto de valores, normas e regras específicas. Neste capítulo, Cupani concede espaço à discussão sobre a distinção entre ciência pura, ciência aplicada e tecnologia. Este debate vem sendo realizado há um longo período, mas as fronteiras entre essas áreas ainda não foram definidas com precisão. Além das linhas demarcatórias serem tênues, há posições alternativas que questionam a viabilidade da manutenção das mesmas. A tecnociência, por exemplo, sustenta que a ciência e a tecnologia encontram-se fundidas de tal modo que é inviável tentar compreendê-las separadamente. Na parte final do capítulo, há duas seções dedicadas as i) questões ontológicas e epistemológicas; e ii) as questões axiológicas e éticas suscitadas pela tecnologia. Desta forma, Cupani demonstra como podemos abordar analiticamente a tecnologia.

Como vimos até aqui, a filosofia da tecnologia comporta diferentes abordagens. A abordagem fenomenológica da tecnologia é desenvolvida no quinto capítulo do livro no qual Cupani discute predominantemente com Don Ihde (1990), Hubert L.

Dreyfus (1992) e Albert Borgmann (1984). O autor ressalta a forma como o filósofo norte-americano Don Ihde i) rejeita a noção de neutralidade científica e o modo como o mesmo ii) explora a relação entre eu — tecnologia — mundo que faz com que a tecnologia deixe de ser compreendida como um instrumento neutro e passe a ser compreendida como “encarnada” ou “incorporada”, interferindo diretamente nas experiências que temos. Em relação ao pensamento de Dreyfus, Cupani reconstrói as críticas do filósofo norte-americano ao programa de Inteligência Artificial (IA) que tinha a ambição de produzir supermáquinas tão ou mais inteligentes que o próprio homem. No entanto, “o nosso risco não é o advento de computadores superinteligentes, mas o de seres humanos subinteligentes” (Dreyfus 1992, p.280). A postura que Albert Borgmann exerce perante a tecnologia é de uma riqueza impressionante, pois ele consegue captar e descrever detalhadamente muitos aspectos que não são percebidos ou valorizados em um enfoque “objetivista”, afirma Cupani. Nesse contexto, a tecnologia é concebida como um modo de vida específico da Modernidade e deve ser compreendida como um fenômeno básico e não como consequência de fatores sociais, econômicos ou políticos. São particularmente interessantes as duas formas de vida humana geradas pelo paradigma das coisas e o paradigma dos dispositivos apresentados originalmente por Borgmann e retomados aqui pelo autor do livro.

O vínculo entre tecnologia e poder é o tema central do sexto capítulo. Nele Cupani recorda que a relação entre tecnologia e poder já tem uma longa tradição dentro do cenário filosófico, mas concentra a sua análise sobre tecnologia e poder nos filósofos norte-americanos Langdon Winner (1986) e Andrew Feenberg (1999) com intuito de explorar as discussões filosóficas mais recentes. O primeiro ficou famoso pela abordagem sustentada em seu prestigiado artigo Do artifacts have politics? no qual concebeu a tecnologia como possível portadora de qualidades políticas, como aquelas que condicionam o modo de vida das pessoas ou aquelas outras que parecem impor condições sociais e estruturas de poder. Se Winner — e seus diversos exemplos — exploram a dominação e o poder que a tecnologia exerce sobre o homem, Feenberg trilha um caminho alternativo, buscando apresentar propostas para resistirmos ao poder exercido pela tecnologia, argumenta Cupani. A forma como essas duas teses são apresentadas, permitem ao leitor — seja ele iniciante ou esteja ele inserido há mais tempo na tradição filosófica — compreender e indagar sobre os possíveis pressupostos políticos que determinados artefatos tecnológicos ostentam ou representam.

A natureza do conhecimento tecnológico é o assunto apresentado no sétimo capítulo do livro. Cupani retoma o pressuposto de que a tecnologia não é apenas um prolongamento da ciência e reconstrói as diversas críticas apresentadas à concepção de tecnologia como ciência aplicada. Além disso, o autor busca apresentar algumas das peculiaridades do conhecimento tecnológico e faz isso utilizando autores como Javier Jarvie (1967), Henryk Skolimowski (1966), Walter Vincenti (1990) entre outros mais. O capítulo apresenta uma interessante comparação entre o conhecimento científico e o conhecimento tecnológico, demonstrando as sutilezas e as peculiaridades que há em cada uma dessas áreas. As questões clássicas relacionados ao conhecimento como “crença verdadeira justiçada” e a (in)viabilidade da manutenção desta concepção também são exploradas.

O capítulo oitavo é reservado à discussão dos impactos que a tecnologia produz nas diferentes culturas. Cupani (2011, p. 187) se propõe a “analisar o modo como os vários autores descrevem as diversas maneiras em que o saber tecnológico e suas produções influenciam a sociedade a que se incorporam, modificando sua cultura e, por conseguinte, a personalidade de seus membros”. Pontos como a supervalorização dos meios em relação aos fins, a universalização das normas técnicas, a mudança na percepção do tempo, a tendência de reduzir o conhecimento à informação, assim como a própria alteração da personalidade são explorados pelo autor. Assim, o autor apresenta um interessante cenário no qual a visão otimista tradicional em relação à tecnologia é questionada à medida que somos convidados a apreciar os impactos culturais provocados pelas diversas tecnologias nas mais distintas esferas culturais.

A questão do determinismo tecnológico é tratada no último capítulo do livro. São retomadas ideias de Winner (1986) e de Jacques Ellul (1954). Em relação a Ellul, Cupani desenvolve a hipótese de que a tecnologia esteja fora de controle por produzir consequências — muitas vezes não intencionais — imprevisíveis. Nesse sentido, Cupani considera que “a possibilidade de dirigir os sistemas tecnológicos para fins claramente percebidos, conscientemente escolhidos e amplamente compartilhados torna-se cada vez mais duvidosa”. Além disso, o autor explora as características da técnica moderna que a diferenciam da técnica antiga. O caráter autônomo da tecnologia acaba minimizando a possibilidade de escolha dos seres humanos, pois a ela se dá a partir daquelas opções fornecidas pela própria técnica. Em outras palavras, somos condicionados a escolher aquela opção que aparenta ser a mais eficiente. A autonomia da tecnologia é compreendia como uma espécie de autoimposição por ela ter suas próprias regras. Todas aquelas ações que são contrárias ou que não obedecem ao ideal de eficiência não parecem muito sensatas, considera o autor.

Por fim, cabe apenas ressaltar que o livro Filosofia da tecnologia: um convite contempla os principais temas e problemas relacionados à tecnologia, possibilitando que o leitor tenha contato com os principais referenciais teóricos da área e se sinta convidado a prosseguir com investigações filosóficas. O convite está feito.

Referências

Borgnann, A. 1984. Technology and contemporary life: a philosophical inquiry. Chicago: The University of Chicago Press.

Bunge, M. 1974. Technology as applied science. In: F. Rapp (ed.) Contributions to a philosophy of technology. Dordrecht: D. Reidel, p.19–39.

———. 1985a. Philosophy of science and technology: part I: formal and physical sciences. Dordrecht: Reidel.

———. 1985b. Philosophy of science and technology: parte II: life science, social science and technology. Dordrecht: Reidel.

Cupani, A. O. 2008. A relevância da filosofia da tecnologia para a filosofia da ciência. Episteme (Porto Alegre) 28: 26–38.

———. 2004. A tecnologia como problema filosófico: três enfoques. Scientiae Studia 2(4): 493–518.

———. 2006. La peculiaridad del conocimiento tecnológico. Scientiae Studia 4: 353–72.

Dreyfus, H. L. 1992. What computers still can’do: a critique of artificial reason. Cambridge: The MIT Press.

Ellul, J. 1964. The technological society. New York: Vintage Books (Trad. de La technique ou l’jeu du siècle, 1954).

Feeberg, A. 1999. Questioning technology. London: Routledge.

Gehlen, A. 1980 [1949]. Man in the age of technology. New York: Columbia University Press (Trad. de Die Seele im Technischen Zeitalter, 1957).

Heidegger, M. 1997. A questão da técnica. São Paulo: USP, (Cadernos de Tradução da USP, n.2) (Trad. de Die Frage nach der Technik, 1954).

Ihde, D. 1990. Technology and the lifeworld: from garden to earth. Bloomington: Indiana University Press.

Jarvie, J. 1983 [1967]. Technology and the structure of knowledge. In: C. Mitcham; R. Mackey (eds.) Philosophy and technology. New York: The Free Press, p.54–61.

Mitcham, C. 1994. Thinking through technology: the path between engineering and philosophy.

Chicago: The University of Chicago Press, Mumford. L. 1963 [1934]. Technics and civilization. New York: Harcourt Brace.

———. 1967. Technics and human development. New York: Harcourt Brace, (The Myth of the Machine, v.1).

———. 1970. The pentagon of power. New York: Harcourt Brace, (The Myth of the Machine, v.2).

Ortega y Gasset, J. 1965. Meditación de la técnica. (orig. 1939). Madrid: Espasa-Calpe.

Simondon, G. 1989. Du mode d’istence des objets techniques. (orig. 1958). Paris: Aubier.

Skolimowski, H. 1983. The structure of thinking in technology. (orig. 1966). In: C. Mitcham; R. Mackey, Philosophy and technology: readings in the philosophical problems of technology. New York: The Free Press, p. 42–9.

Vincenti, W. G. 1990. What engineers know and how they know it. London: The John Hopkins University Press,.

Winner, L. 1986. The whale and the reactor: a search for limites in an age of high technology. Chicago-London: The University of Chicago Press.

Gilmar Evandro Szczepanik – Doutorando em filosofia Programa de Pós-Graduação em Filosofia Universidade Federal de Santa Catarina BRASIL. E-mail: [email protected]

Ao poente da Serra Geral: a abertura de um caminho entre as capitanias de Santa Catarina e São Paulo no final do século XVIII | Adelson André Brüggemann

Assim como pode ser possibilitada às pessoas a locomoção para outros lugares através de uma estrada, o historiador Adelson A. Brüggemann nos transporta a reflexões, no mínimo curiosas, quando lemos seu livro. Isso se dá, inicialmente, pela compreensão de que “até mesmo as estradas” possuem história. Esse livro está entre aquelas pesquisas que ampliaram a temática de investigação do passado, tão a gosto da proposição dos Annales, por exemplo, e de uma escrita da história com abordagem interdisciplinar. Com estilo de escrita agradável e envolvente, o autor torna o leitor companheiro de viagem, analisando documentos dos séculos XVIII e XIX presentes no Arquivo Ultramarino: correspondências entre capitanias, políticas e propostas da coroa portuguesa ou relatórios de autoridades. Trata-se de uma pesquisa cuidadosa em fontes que não são propriamente as mais convencionais ou rotineiras. Adelson consegue realizar um diálogo de variadas situações, tendo sempre em vista a estrada de Lages a Desterro como eixo principal e condutor da interpretação, mobilizando temas como: fronteira; geopolítica das disputas portuguesas e espanholas; apropriação estatal de bens naturais; logísticas, cotidiano e necessidade dos deslocamentos (para transeuntes); integração territorial; histórico de uso de caminhos; relações internas entre capitanias. Os temas presentes em documentos consultados são variados quanto à bibliografia e, por conseguinte, a análise tecida pelo autor é tão rica como o diálogo “teórico”. Leia Mais

Identidade homossexual e normas sociais: histórias de vida – SELL (REF)

SELL, Teresa Adada. Identidade homossexual e normas sociais: histórias de vida. 2. ed. rev. e ampl. Florianópolis: EDUFSC, 2006. 255 p. Resenha de: BEZERRA, Fábio Alexandre. O indivíduo e o meio social na formação da identidade homossexual. Revista Estudos Feministas v.18 n.1 Florianópolis Jan./Apr. 2010.

Alinhada com pesquisas atuais que usam as teorias queer1 como base de investigação, Teresa Sell, ex-professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), desenvolve uma pesquisa histórica e marcante sobre a identidade homossexual a partir de entrevistas com homossexuais masculinos em Florianópolis, Santa Catarina, na década de 1980, quando pesquisas sobre (homo)sexualidade no Brasil ainda eram bastante incipientes. Tendo sido publicado primeiramente em 1987, fruto de sua pesquisa de mestrado em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo (USP), este livro, reapresentado em uma edição revisada e ampliada, interessa àqueles que desenvolvem pesquisas sobre identidades de gênero, bem como a todos que queiram compreender melhor a complexidade e as nuances presentes na formação do indivíduo como ser social.

Já na Introdução a autora destaca a heterogeneidade do rótulo ‘homossexual’, visto que toda sua obra baseia-se exatamente na noção de homossexualidades como experiências individuais, que podem compartilhar características comuns, mas que são formadas a partir de contextos sociais específicos, o que motiva a rejeição de qualquer essencialismo conceitual. Nessa seção, também são explicitados alguns elementos metodológicos, tais como a seleção dos entrevistados, a (não) identificação deles, bem como a forma de condução das entrevistas. Por ser uma reedição ampliada, Sell apresenta também colocações atuais a respeito do posicionamento do poder público com relação aos homossexuais, destacando investimentos em eventos destinados a esse público, mas também fazendo a ressalva de que boa parte da difícil realidade vivida no momento da condução das entrevistas ainda persiste na atualidade. Ademais, traz colocações acerca da AIDS, já que seu advento no Brasil se deu posteriormente à publicação da primeira edição deste livro. Sobre esse tema, a autora afirma que, apesar de não ser mais possível “associar AIDS com homossexualismo, o estigma, porque de fato é uma marca, permaneceu” (p. 22).

O livro é dividido em duas partes, que, por sua vez, são subdividas em três e cinco capítulos, respectivamente. Na primeira parte, em seu primeiro capítulo, alguns conceitos são discutidos, tais como a formação da identidade, que se dá no meio social,2 visto que esse é anterior ao próprio indivíduo, isto é, há elementos inerentes ao ser humano, mas “a natureza é modelada pelos valores e padrões da cultura” (p. 30). Dessa forma, vemos, no segundo capítulo, que é exatamente no confronto entre o indivíduo e os valores tradicionais de seu grupo social que as divergências e os conflitos surgem. Tendo em vista que vivemos em uma sociedade que, em grande parte, ainda tem a heterossexualidade como único modo legítimo de vivenciar a sexualidade, encontramos aí o cerne da rejeição à homossexualidade, pois é vista como desviante e, portanto, inaceitável. Essa problemática é revelada, no terceiro capítulo, em quinze entrevistas, que foram conduzidas com muito respeito, o que permitiu que os entrevistados falassem de forma aberta sobre suas experiências de vida. Essas entrevistas demonstraram que a homossexualidade é vivida de formas diversas, apesar de várias questões serem compartilhadas por entrevistados que tinham histórias de vida bem diferentes. Além disso, podemos observar a atualidade de várias das questões discutidas nas entrevistas, o que demonstra que muitas preocupações, dificuldades e valores daquela década ainda persistem em nossa sociedade.

Na segunda parte do livro, Sell discute pontos importantes dos relatos, entrelaçandoos com uma discussão teórica leve, porém consistente. No primeiro capítulo, a autora destaca algo que realmente é uma constante nas entrevistas: o fato de a identidade ser formada “na relação do Eu com o Outro” (p. 181), visto que muitos dos entrevistados falaram de suas experiências e opiniões a partir de uma contraposição com a heterossexualidade. Os comportamentos foram descritos como desviantes do esperado pela sociedade, o que causou muita angústia ao se perceberem ‘diferentes’, gerando, ainda, culpa e vergonha pela noção subsequente de anormalidade. Vários entrevistados reforçaram a importância de se aceitarem para que os outros também pudessem aceitá-los. Além disso, a autora levanta a possibilidade de grupos discriminados se unirem para formar uma força maior que suas atitudes individuais,3 já que “a diversidade da natureza humana é maior do que as regras que ela criou” (p. 194). No segundo capítulo, o ocultamento da orientação sexual é apresentado, através das entrevistas, como um elemento fundamental na dinâmica do homossexual com a família e o grupo social, visto que o homossexual, em geral, deixa, no máximo, que desconfiem de sua orientação sexual sem que precise confirmá-la. Nessa reedição, Sell acrescenta que esse ocultamento foi drasticamente reforçado com a disseminação do vírus HIV, que ainda não tinha surgido quando as entrevistas foram feitas. Além disso, atualizando sua publicação, comenta a maior visibilidade do homossexual na TV, mas destaca que nem sempre a maneira como foram representados anteriormente contribuiu para o esclarecimento e a educação da população, e que, apesar de terem sido criados vários grupos de defesa do homossexual, a violência ainda é uma triste realidade a ser combatida. Acrescenta, ainda, que a internet aumentou a possibilidade de encontros e informação, ao mesmo tempo que também criou novos perigos. Por fim, enfatiza que, atualmente, o público gay representa uma fatia do mercado muito valiosa e exigente, e que eles, a partir de uma atuação organizada, também têm exercido justas pressões junto ao poder público para terem seus direitos reconhecidos e defendidos, inclusive o direito referente à união civil, um tema com “forte implicação política na conquista de cidadania por uma parcela significativa da população brasileira, que se reconhece como homossexual”.4 Tal organização é demonstrada pelo fato de que “associações e grupos ativistas se multiplicam pelo País. Atualmente, há cerca de 140 grupos espalhados por todo o território nacional”.5 Contudo, mesmo não tendo sido o foco da autora, também acredito ser importante registrar que essa luta por políticas públicas, apesar de ser muito legítima e dar visibilidade a uma parcela da sociedade organizada, também revela uma incompetência do próprio Poder Legislativo em tratar da questão.

Ainda na segunda parte, em seu terceiro capítulo, há o foco na dinâmica das relações sexuais entre heterossexuais e homossexuais, bem como desses entre si, discutindo-se as diferentes nuances e configurações que tais contatos podem assumir, dentre as quais foi destacada a bissexualidade. Ademais, problematiza-se a divisão entre ativos e passivos como uma reprodução da conhecida separação entre dominador (mais masculino) e dominado (mais feminino). Dessa forma, vê-se que essa divisão de papéis demonstra “a interligação da vida sexual com o contexto cultural e toda a influência sociopolítica da relação entre duas pessoas” (p. 223). No quarto capítulo, Sell afirma que nas entrevistas, independentemente do tipo de relação que era estabelecida, o amor estava “presente como uma possibilidade de paz, de suporte, de satisfação pessoal” (p. 228), apesar dos frequentes desencontros causados, em especial, pela intolerância com essa forma de relacionar-se com o Outro. No último capítulo, em suas considerações finais, mesmo as experiências femininas não constando deste livro, pelo fato da pouca disponibilidade para serem entrevistadas, a autora tece comentários comparativos com a vivência homossexual masculina a partir de apenas três entrevistas com mulheres.

Concluindo, destaco a relevância pública desta obra, visto que “conhecer sobre homossexualidade é conhecer sobre o comportamento heterossexual, pois ambas as formas se encontram ao tentarem se distinguir” (p. 244) e apresentam-se em diversas gradações, evitando-se, assim, o dualismo ‘homossexual e heterossexual’. Contudo, também apresento ressalva à afirmação da autora de que nos grupos de ‘iguais’ não haveria a necessidade de “contínua defesa da identidade” (p. 38), porque há várias identidades homossexuais que precisam, sim, de reafirmação constante mesmo nesses ambientes, tais como a postura estereotipada do masculino (ativo) e do feminino (passivo). A autora encerra sua obra, revisada e ampliada depois de 20 anos de sua publicação, reafirmando a necessidade de um mundo mais justo, com oportunidades de livre expressão do amor e da sexualidade para todos, visto que, mesmo depois de conquistarem um espaço maior de visibilidade e respeito, os homossexuais ainda hoje enfrentam demonstrações de violência e intolerância. Por fim, cabe ressaltar, ainda, que essa mudança, muito mais do que através de leis, mesmo sendo elas essenciais, deve ser promovida por meio da educação e da reavaliação de nossos conceitos e atitudes diante do ser humano – independentemente da especificidade de sua conduta sexual.

Notas

1 Teresa DE LAURETIS, 1991.

2 Mara Coelho de Souza LAGO, 1999.

3 Luiz Fernando Neves CÓRDOVA, 2006.

4 Miriam Pillar GROSSI, 2003, p. 263.

5 CONSELHO NACIONAL DE COMBATE À DISCRIMINAÇÃO, 2004, p. 15.

Referências

CONSELHO NACIONAL DE COMBATE À DISCRIMINAÇÃO. Brasil sem homofobia: Programa de Combate à Violência e à Discriminação contra GLTB e Promoção da Cidadania Homossexual. Brasília: Ministério da Saúde, 2004.         [ Links ]

CÓRDOVA, Luiz Fernando Neves. Trajetórias de homossexuais na ilha de Santa Catarina: temporalidades e espaços. 2006. Tese (Doutorado em Ciências Humanas) – Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2006.         [ Links ]

DE LAURETIS, Teresa. “Queer Theory: Lesbian and Gay Sexualities.” Differences: A Journal of Feminist Cultural Studies, Durham: Duke University Press, v. 3, n. 2, p. iii-xviii, 1991.         [ Links ]

GROSSI, Miram Pillar. “Gênero e parentesco: famílias gays e lésbicas no Brasil”. Cadernos Pagu, Campinas: Unicamp, n. 21, p. 261-280, 2003.         [ Links ]

LAGO, Mara Coelho de Souza. “Identidade: a fragmentação do conceito”. In: SILVA, Alcione Leite da; LAGO, Mara Coelho de Souza; RAMOS, Tânia Regina Oliveira (Org.) Falas de gênero: teoria, análises e leituras. Florianópolis: Editora Mulheres, 1999. p. 119-129.         [ Links ]

Fábio Alexandre Silva Bezerra – Universidade Federal de Santa Catarina.

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As imagens do outro sobre a cultura surda – TROBEL (C)

TROBEL, Karin. As imagens do outro sobre a cultura surda. 2. ed. rev. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2009. Resenha de: NEVES, Gabriele Vieira. Conjectura, Caxias do Sul v. 15, n. 1, p. 151-154, jan/abr, 2010.

Nas últimas décadas, as pesquisas no campo dos Estudos Surdos e Estudos Culturais proporcionaram um novo olhar sobre a surdez.

Longe de serem considerados como um grupo de pessoas marcado pela deficiência e pela ânsia de cura e normalização, hoje os surdos são pensados como um grupo identitário caracterizado por elementos próprios que marcam sua diferença. Nada melhor para ilustrar essa perspectiva do que apresentar a trajetória da autora da obra As imagens do outro sobre a cultura surda. Karin Strobel é surda, formada em Pedagogia e Doutora em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Trabalhou em diversas escolas de surdos e participou da equipe pedagógica do Departamento de Educação Especial da Secretaria de Educação do Paraná. Atualmente é professora no curso de Letras/Libras da UFSC e diretora-presidente da Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (Feneis).

Tendo em vista essas informações, poderíamos dizer que, por si, a autora já seria um modelo representativo da comunidade surda como grupo cultural fortemente marcado pela identidade e pelo “orgulho de ser surdo”. Mas Strobel vai além do seu próprio modelo. A obra é permeada por relatos, memórias, sonhos e situações do cotidiano de surdos desafiados a viver em um mundo nem sempre acessível, impregnado por olhares de estranhamento, de preconceito e ignorância sobre sua diferença.

Desde o primeiro capítulo “Qual conceito trazemos sobre a cultura?”, ao assumir uma postura notadamente epistemológica, a autora evidencia sua preocupação em estabelecer distinções e explicitar conceitos.

Depois de fazer uma breve contextualização histórica do conceito de cultura e trazer algumas possíveis definições, a ênfase recai sobre a ideia de cultura fundamentada nos Estudos Culturais a qual sustentará seus argumentos nos capítulos posteriores. A partir da origem etimológica da palavra cultura que vem do latim colere = cultivar, Strobel tece a metáfora dessa como o cultivo da linguagem e da identidade, realizada coletivamente e de maneira performativa. No caso dos surdos, o cultivo e a colheita se dão dentro da comunidade surda, campo fértil para o florescimento de sua identidade e de sua cultura.

No capítulo seguinte, intitulado “Os surdos têm cultura?”, são traçadas as primeiras linhas para a apresentação dos surdos como grupo cultural minoritário ou, como prefere a própria autora, como povo. Dessa maneira, a cultura surda é definida como o jeito de o sujeito surdo entender o mundo e modificá-lo a fim de torná-lo acessível e habitável ajustando-o com suas percepções visuais, que contribuem para a definição das identidades surdas.

[…] Isso significa que abrange a língua, as idéias, as crenças, os costumes e os hábitos do povo surdo. (STROBEL, 2009, p. 27).

Essa opção de se referir aos surdos como povo é o tema do terceiro capítulo: “Povo surdo ou comunidade surda?” Nesse, é esclarecida a distinção entre comunidade surda, que abrange surdos e ouvintes militantes da causa surda, tais como: pais, intérpretes e professores, e o povo surdo, composto apenas por surdos, ligados por um traço em comum, que é a surdez. Assim como os judeus estão unidos por um laço religioso, e os alemães, por uma nacionalidade, os surdos estão ligados pela surdez e pela forma visual de perceber o mundo. A cultura surda e a língua de sinais são referências para o povo surdo e para sua constituição identitária.

No Capítulo 4, “Os artefatos culturais do povo surdo”, a autora apresenta oito artefatos culturais que podem caracterizar a cultura surda, e que são entendidos como as ilustrações da cultura, como aquilo que vai além do material, constituindo o sujeito e as formas de ver, entender e transformar o mundo. Os artefatos elencados são: a experiência visual, que constitui os surdos como indivíduos que percebem o mundo através de seus olhos; o linguístico que se refere à criação, utilização e difusão das línguas de sinais; o familiar que abrange a questão do nascimento de crianças surdas em lares ouvintes e de crianças ouvintes em famílias de surdos, sendo que, na maioria dos casos, as crianças surdas são uma dádiva para famílias surdas e uma lástima para famílias ouvintes. A literatura surda que abrange criações, tais como: poesia em língua de sinais e livros publicados por autores surdos. As artes visuais que são consideradas o artefato onde se localizam as artes plásticas e o teatro surdo. Existem, ainda, os artefatos compostos pela vida social e esportiva e o artefato político, destacando-se pelos líderes surdos e as lutas sociais através de organizações e associações. Por último, a autora aponta as criações e transformações materiais, tais como telefones adaptados, campainhas luminosas, entre outras tecnologias criadas para melhorar as condições de acessibilidade.

Em “As representações imaginárias sobre a cultura surda”, são discutidas situações onde os surdos são ensinados a se narrar, se perceber e se comportar como ouvintes. Essas autopercepções de deficiência são incutidas nas crianças surdas desde muito cedo, prejudicando a formação de sua identidade e o sentimento de pertencimento a uma comunidade.

Do ponto de vista histórico, a autora reflete no Capítulo 6: “História cultural: novas reflexões sobre a história dos surdos”, a necessidade de escrever a história dos surdos de uma maneira diferente, sem que essa seja apenas uma metanarrativa escrita por ouvintes, na qual os personagens principais são ouvintes. Essa outra forma de escrever a história contemplaria, também, experiências e visões de professores surdos.

Strobel aborda a inclusão de maneira mais ampla, ao tratar também da inclusão social do surdo, no mercado de trabalho, nos ambientes sociais e da necessidade de que seja garantida a acessibilidade em todos os locais de convívio social. Frequentemente, a discussão fica sempre em torno da questão escolar, quando, na verdade, o surdo é excluído também dos espaços sociais se não são oferecidos intérpretes em eventos e locais de atendimento público, tais como: hospitais, delegacias, aeroportos e museus, ou quando não há programação televisiva e cinema nacional com legenda, ou ainda, quando no local de trabalho e na própria família não é utilizada como forma de comunicação a língua de sinais. Essa temática é abordada em “A in(ex)clusão dos surdos: prática (inter)cultural?” Além disso, são levantadas, entre outras questões provocativas: Será que a inclusão de surdos em escolas regulares se constitui verdadeiramente em uma prática intercultural? Será que de fato os surdos querem ser “incluídos”? No último capítulo: “Como podemos compreender as peculiaridades da comunidade surda e nos envolver com elas”, são propostas algumas ideias e sugestões de como os ouvintes podem se aproximar da comunidade surda. Para a autora, o primeiro passo é a aproximação da comunidade surda através das associações, das escolas e dos eventos com a participação de surdos. Outro caminho complementar é a leitura e pesquisas sobre o tema, procurando informações e esclarecimentos acerca das particularidades de se viver em um “mundo visual”. Mas o fundamental é a convivência formal e informal com os surdos; é no contato com o outro e com sua diferença que se origina a prática intercultural e a construção da identidade.

Assim, a obra representa uma excelente contribuição para os Estudos Surdos, tanto pelas suas reflexões teóricas e indagações instigadoras quanto pelo aprofundamento em temas de grande relevância e de ampla discussão na atualidade, tais como: inclusão, formação identitária, acessibilidade, educação de surdos, entre outros. Tudo isso é tratado sob a ótica de quem vive a experiência da surdez. Trata-se, também, de um convite para conhecermos um pouco mais a cultura surda e repensarmos os olhares e as imagens que construímos sobre os surdos e sua diferença.

Referências

STROBEL, Karin. As imagens do outro sobre a cultura surda. 2. ed. rev. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2009.

Gabriele Vieira Neves -Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação pela Universidade de Caxias do Sul (UCS). E-mail: [email protected]

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Linguagem e gênero no trabalho, na mídia e em outros contextos – HEBERLE et al (CP)

HEBERLE, Viviane M.; OSTERMANN, Ana C.; FIGUEIREDO, Débora de C. (orgs.). Linguagem e gênero no trabalho, na mídia e em outros contextos. Florianópolis, Editora da UFSC, 2006. Resenha de: ANDRADE, Daniela. Linguagem e gênero. Cadernos Pagu, Campinas, n. 32, Jul./Dez. 2009.

Linguagem e gênero no trabalho, na mídia e em outros Contextos, organizado pelas pesquisadoras Viviane Maria Heberle, Ana Cristina Ostermann e Débora de Carvalho Figueiredo representa um passo importante em direção à sistematização dos estudos de gênero social no país. É visível o avanço do número de pesquisadores e pesquisadoras do meio acadêmico brasileiro interessados/as na complexidade das questões que envolvem esse assunto. Pode-se chegar a tal constatação, por exemplo, através de uma simples pesquisa ao Sistema de Currículos Lattes, disponível virtualmente na Internet. Periódicos especializados na publicação de artigos científicos nessa área (o próprio cadernos pagu), bem como a organização de encontros acadêmicos (o encontro bienal Fazendo Gênero, por exemplo) também servem de parâmetros para essas medidas.

Contudo, a certeza de que grandes esforços ainda devem ser feitos com vistas a consolidar a importância social das pesquisas científicas voltadas para os estudos de gênero, inclusive de forma a despertar o interesse dos órgãos reguladores de fomento à pesquisa no Brasil, é ponto pacífico entre os/as intelectuais da área. Embora as organizadoras do livro reconheçam a importância de estudos anteriores que abordam a questão da linguagem e gênero, o lançamento desse volume, segundo elas, vem “preencher uma lacuna” ao propor um trabalho específico de interface entre estudos linguísticos/ discursivos e de gênero social, que tem, inclusive, o anseio de se tornar o primeiro de uma série. Nesse sentido, a obra tem muito a dizer sobre as implicâncias que pesquisas dessa ordem podem representar, em termos de mudanças paradigmais, para a sociedade brasileira.

Tais mudanças estão perpassadas pela perspectiva de gênero adotada pelas autoras que compõem o livro. Se por um lado, a concepção de linguagem/discurso é variada e atende a diferentes abordagens teóricas, por outro, a concepção de gênero age como uma força centrífuga que faz com que leitores e leitoras tenham a sensação de estarem diante de uma unidade coesa de pensamentos. Nesse caso, gênero é entendido como uma “categoria socialmente construída, diferenciada da oposição biológica macho/fêmea” (p. 9).

Entretanto, ao afastarem-se da visão essencializada de gênero, segundo a qual, entre outras coisas, a fala de homens e mulheres está fadada à diferença, os autores e as autoras demonstram estarem atentos/as para o fato de que homens e mulheres, ao se construírem linguisticamente dentro de um gênero, aproximam-se ou afastam-se, em maior ou menor grau, dos padrões que se convencionaram como a fala masculina e a fala feminina. A orientação dos pesquisadores e pesquisadoras, tanto para o princípio flutuante que a categoria gênero social assume nos textos orais e escritos analisados, quanto para o entendimento de que a diversidade da fala/discurso de homens e mulheres em contextos socioculturais, algumas vezes, é “objeto de resistência ou de contestação” (p. 9), é o fio condutor dos artigos selecionados para esse volume, que está dividido em três partes: Parte I – Gênero, interação e trabalho, Parte II – Gênero e mídia e Parte III – Gênero em ambientes diversos.

Os estudos selecionados para a Parte I, embora plurais em suas abordagens, metodologias e formas de apresentação de resultados, propõem descrever, numa perspectiva de análise qualitativa, as construções lingüísticas das quais as participantes investigadas (nesse caso, os quatro artigos tratam de interações provenientes de mulheres) se valem para desempenhar suas funções profissionais ou para relatar suas trajetórias profissionais. Um dos estudos apresentados (“Comunidades de Prática: Gênero, Trabalho E Face”, Ana Cristina Ostermann) opera no sentido de desmistificar o conhecimento baseado no senso comum de que mulheres são mais adequadas para atenderem outras mulheres. Essa discussão parece ganhar ainda maior relevância quando se sabe que o trabalho apresenta resultados de análises de interações realizadas entre mulheres em uma unidade da Delegacia da Mulher. Outro estudo desse bloco (“Imigração e Trabalho: Revendo Estereótipos De Gênero”, Maria do Carmo Leite de Oliveira, Liliana Cabral Bastos e Elizabeth Barroso Lima) também apresenta resultados que apontam para a desconstrução do padrão hegemônico da fala feminina. A partir da análise do relato de uma mulher acerca da sua experiência profissional, as autoras demonstram que a categoria gênero social, longe de ser estática, é flexível e não atende, portanto, a estereótipos de gênero pré-concebidos e naturalizados.

Em direção contrária, os resultados de uma terceira pesquisa (“Ecologia Lingüística E Social De Uma Comunidade Multilíngüe: A Relevância Do Gênero Social”, Neiva Maria Jung) mostram como a linguagem pode ser usada para reforçar padrões de comportamento tidos como tipicamente masculino ou feminino dentro de uma comunidade multilíngüe. A pesquisa mostra, ainda, como o padrão mais ou menos urbano de fala reproduzido, diferenciadamente, por homens/meninos e mulheres/meninas da comunidade estudada tendem a direcioná-los/as para atividades de trabalho diversas. O último artigo da Parte I demonstra em que medida as estratégias discursivas de uma chefe em situação de passagem de cargo para um colega diante dos/as seus/suas antigos/as funcionários/as se aproxima ou se afasta do padrão de fala colaborativo pré-estabelecido como tipicamente feminino (“Estratégias De Manutenção Do Poder De Uma Ex-Chefe Em Uma Reunião Empresarial: Indiretividade E Diretividade Em Atos De Comando, Maria das Graças Dias Pereira).

Na mesma linha dos artigos da Parte I, os artigos que compõem a Parte II – Gênero e Mídia – também operam no sentido de discutir o quanto os discursos midiáticos que remetem à questão de gênero estão engessados em um padrão que enfatiza a hegemonização e não abre espaços para reflexões que estão para além das fronteiras do senso comum. Cada artigo desse bloco enfatiza uma faceta bastante peculiar da relação gênero social e mídia. Um dos estudos contribui para expor o quanto a utilização de recursos midiáticos está numa relação proporcionalmente inversa ao discurso jornalístico, que privilegia a pluralidade de gêneros passíveis de serem vivenciados socialmente – no sentido muito recurso, pouca pluralidade (“‘Falta Homem Até Pra Homem’: A Construção Da Masculinidade Hegemônica No Discurso Midiático, Luiz Paulo da Moita Lopes). Assuntos como a descrição de algumas das características dos discursos que aparecem nos Anúncios Pessoais (APs) de homossexuais nos ambientes impressos (jornais) e virtuais (Internet) (“Comodificação e Homoerotismo”, Leandro Lemes do Prado e Desiree Motta-Roth) e a investigação da recorrência do termo Politicamente Correto (PC) em interdependência com o termo sexismo a partir do banco de língua inglesa Cobuild (“Buscando Significado em um corpus: PC, sexismo e suas inflexões no Banco de Língua Inglesa do Cobuild”, Aleksandra Piasecks-Till) estão presentes nesse bloco. As agendas institucionais dos veículos de comunicação investigados parece ser o vetor que indica a direção desses três trabalhos. Os/as autores/as chamam a atenção para o papel da mídia como reprodutora da ditadura do gênero social e afirmam a necessidade da realização de pesquisas nessa área no sentido de trazer à tona o debate sobre os propósitos institucionais de quem controla o tipo de informação que é consumida, seja por leitores/as, telespectadores/as ou internautas.

O primeiro artigo da Parte III. (“Os discursos públicos sobre o estupro e a construção social de identidades de gênero”, Débora de Carvalho Figueiredo) apresenta uma reflexão sobre o discurso jurídico quando esse é chamado a prestar seu serviço em casos de estupro. A análise aponta para a padronização patriarcal que emerge do discurso jurídico ao demonstrar como as mulheres são, muitas vezes, convocadas a prestar contas de seus “bons ou maus” comportamentos sociais numa escala de valores baseada no senso comum de que “mulheres não direitas” são co-responsáveis pelo ato de violência que sofrem ou sofreram. O segundo artigo (“‘Fala, cachaça!’ Futebol e sociabilidade masculina em bares”, Édison Gastaldo) é resultado de um trabalho etnográfico que investiga a masculinidade compartilhada por consumidores do futebol midiatizado. Sob um viés interacionista, o estudo mostra de que formas a masculinidade é construída por homens que se encontram em bares para assistirem jogos de futebol em companhia uns dos outros. Embora distintos, os dois artigos fazem emergir, cada um a sua forma, as simbologias dos discursos masculinos que se tornam naturalizados.

Na prática, as pesquisas estão a serviço de produzir conhecimento que possa iluminar setores da sociedade, seja na esfera pública seja na esfera privada, em direção à multiplicidade de construções sociais de gênero circulantes na sociedade. Por essa razão, o livro contribui, sobremaneira, para a solidificação do papel dos trabalhos científicos dessa ordem e configura-se leitura obrigatória estudantes de graduação e pós-graduação nas diversas áreas do conhecimento, especialmente Letras e Lingüística.

Daniela Andrade – Mestranda em Linguística Aplicada, Unisinos-RS. E-mail: [email protected].

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[MLPDB]

 

Imperialismo e luta de classes no mundo contemporâneo | James Petras

O debate sobre o imperialismo e a luta de classes, abandonado por uma parte da esquerda e não considerado pela maioria dos pós-modernos, sempre esteve presente na vida dos povos latino-americanos. Na América Central, no Caribe e no México, onde o imperialismo se manifestou de forma mais atuante e visível, os movimentos revolucionários não apenas tomaram em armas, mas também apresentaram um projeto nacional para se contrapor ao Estado imperialista. Essa luta começou no final do século XIX e início do XX, com José Martí, em Cuba, que denunciou a ideologia colonizadora do pan-americanismo; passou por Emiliano Zapata e Francisco Villa, que expropriaram terras de estadunidenses em território mexicano para fazer suas reformas agrárias durante a Revolução de 1910; continuou com Augusto C. Sandino, que lutou contra a ocupação estrangeira para construir um Estado nacional na Nicarágua; e chegou a Che Guevara, que defendeu a tese da criação do segundo e do terceiro Vietnã para derrotar militarmente o imperialismo.

Hoje, líderes nacionalistas de esquerda começam a ganhar as eleições em vários países da América Latina, fazendo-o sobre os escombros das políticas neoliberais aplicadas a partir de meados dos anos 1970. Venezuela, Bolívia, Equador, Nicarágua e a própria Argentina são os exemplos mais conhecidos. Todos estes governos têm implementado, em menor ou maior grau, um projeto nacional de esquerda que se opõe frontalmente ao imperialismo. O Documento de Santa Fé II (1988), que orientou a política externa do Departamento de Estado estadunidense, afirmava que “o matrimônio do comunismo com o nacionalismo, na América Latina, representava o maior perigo para a região e para os interesses dos Estados Unidos”. Leia Mais