As ruínas da tradição: a Casa da Torre de Garcia d’Ávila/ família e propriedade no nordeste colonial | Ângelo Emílio da Silva Pessoa

O livro que ora se resenha em sua segunda edição é fruto da tese de doutoramento de Ângelo Emílio da Silva Pessoa defendida junto ao departamento de história da USP. Graduado em licenciatura Plena em história pela Universidade Federal da Paraíba (1988) e doutorado em história social pela Universidade de São Paulo (2003). Foi professor Adjunto da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, campus de Nova Andradina entre (2006 e 2008). Atualmente é professor Associado I do Departamento de História do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal da Paraíba, estando vinculado ao quadro permanente do PPGHUFPB.

O trabalho está didaticamente bem dividido em três partes que o compõe e o interligam num diálogo dinâmico; tradição é o primeiro capítulo e nele explora a historicidade da Casa da Torre, “Propriedade” é o título que ilustra o segundo capítulo e estuda aspectos da geo-história ao delimitar a extensão da propriedade ou da sesmaria que, via de regra, era de “perder de vista” e, muitas vezes, incomensurável, sobretudo, porque os limites eram, em muitos casos, imaginários e ou simplesmente abstratos. Ainda neste capítulo ao se estudar a noção de propriedade o autor revela sua enorme capacidade de intelectual decolonial para analisar a situação e a relação do senhor de terras Garcia d’Ávila com os índios, ora de amizades, mas na maior parte das vezes de conflito chegando a revelar massacres cometidos pelo grande fazendeiro expansionista em busca de novos pastos para a sua boiada, que foi o grosso dos seus negócios. O terceiro e último capítulo fecha o livro e dá o desfecho no que foi estudado intitulando-se “família”, busca analisar questões de economia ao longo das gerações que carregam o sobrenome, especificamente a pecuária, carro chefe da Casa da Torre, mas também pequenos engenhos, exploração de salitre, prata, produção de couro, e demais artífices.

A princípio trata-se de um livro belo, de escrita leve e singela em que o autor consegue deixar para trás as carrancas que assustam os leitores comuns e alguns vícios típicos das teses acadêmicas, nem por isso o trabalho perde a capacidade de uma tese e nos brinda com as devidas e ricas notas de rodapé que vai ao longo do livro adornando as competentes passagens e nos guinando de encontro ao seu referencial teórico e metodológico, ao se propor estudar instituições a família e a propriedade. Vai fazer uma história de longa duração, fazendo isso, busca estudar trezentos anos de história, período de tempo de duração de uma Casa, mais notadamente de uma fortaleza, ou se quiserem um castelo de tipo medieval, inclusive com Torres de vigia e as sucessivas gerações de Garcia d’Ávila que nela viveram.

Trata-se de uma obra de “história vista de cima” ao se propor como objeto central estudar uma família tradicional nordestina do período colonial e tudo em seu entorno; propriedade, poder, política, religião, administração e riquezas; o que se deveria esperar seria um típico caso de história biográfica, no entanto, não é isso que o leitor encontrará em “As ruínas da tradição”, Pessoa, seguindo bem de perto a tradição historiográfica que tem os homens como o seu objeto em seu tempo, como ensinou o mestre Marc Bloch busca a todo momento e com esforços metodológicos não cair na história de meras narrativas dos acontecimentos. Desta feita seus personagens são escravos, índios, mulheres, vaqueiros, os de baixo da história. Em nenhum momento Pessoa foge do debate e de responsabilizar os Garcia d’Ávila de cometer violências contra índios e negros, até o ponto em que a sua documentação lhe permite, mas se ela não dá conta ele busca num diálogo fértil e promissor com toda a historiografia do período e do seu objeto de estudo. Na linha metodológica que ensinou o historiador inglês marxista Eric Hobsbawm, Pessoa ao usar o seu telescópio para enxergar os de cima, ao mesmo tempo recorreu ao microscópio para não perder de vista os de baixo; dessa feita macrocosmo e microcosmo compõem-se de um mesmo cosmo que é o da História.

Ao mesmo tempo Pessoa não foge do árduo debate acerca do modo de produção feudal do período colonial, já tão discutido e ultrapassado, mas que o ator do presente livro, faz questão de se posicionar e mostrar que os Garcia d’Ávila praticavam o modo de produção capitalista em seus negócios. Caio Prado Jr., Raimundo Faoro, Sergio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Celso Furtado e Fernando Novais passeiam por entre as páginas desse livro e ora corrobora, ora são refutados em suas análises, revelando, desta feita uma história que é dialética em sua dinamicidade derrubando as velhas tradições, sem contudo, destruir a memória, mas (re) construindo o novo, a cada tradição (re) inventada.

O livro é também um esforço de síntese analítica e um debate historiográfico muito acurado e competente com os clássicos da historiografia colonial, como os citados acima, bem como trabalhos mais recentes que abordaram as temáticas levantadas no livro ora resenhado; a saber, poder, família, tradição, construção do Estado Nação, casa, etc. Embora Pessoa não cite diretamente, em alguns in sight da obra vemos lampejos de uma história foucaultiana em que o poder está sempre presente, como um tipo de categoria que circula, perpassa e corta a tudo e a todos; sem negar o poder fenomenal dos Garcia d’Ávila, também não coloca seus subordinados como pobres coitados e vítimas desse poder coercitivo, mas busca sempre dar mobilidade, ação e reação aos personagens de encontro com esse poder. Desta feita índios se movem nessa história, casam-se com brancos e criam uma mestiçagem mameluca que também será parte constitutiva dos círculos de poder dos Garcia d’Ávila, mulheres são objetos de estudo e inseridas na obra com maestria e galhardia, citando aqui a senhora Isabel d’Ávila, mulher mameluca, descendente de chefias indígenas.

A história da arquitetura da casa da Torre traçada por Pessoa é digna de um Vitor Hugo que em sua magistral obra “O Corcunda de Notre Dame” (2018) vai discorrer em quase uma centena de páginas para detalhar a arquitetura e construção da Catedral parisiense, assim o faz Pessoa na tradição dos grandes e sensíveis historiadores, à moda dos literatos, deitando tinta no papel para ilustrar o que é a Casa da Torre. O autor faz um íntimo e profícuo diálogo com Gilberto Freyre, quiçá um dos autores que melhor tenham estudado as casas e a forma arquitetônica do período colonial em suas duas magnânimas obras ‘Casa-grande e Senzala” e “Sobrados e Mucambos”, obras bem exploradas por Pessoa. Cito, “o próprio Freyre tinha a Casa da Torre como esse modelo maior de solar fidalgo, de representante do patriarcalismo dominante na formação do Brasil […] grandes dias de Garcia d’Ávila” (ibid., p. 113).

O livro se revela magnifico noutra belíssima passagem da história das mentalidades em que Pessoa vai estudar a noção de Casa e assim justificar metodologicamente o seu objeto, e o faz à maneira da história cultural que prefere dar ênfase a uma casa viva, que pulsa, dá sentido e justifica a noção de família estudado. Só poderia ser nesse tipo de casa que a história da família Garcia d’Ávila teria as condições de se perpetuar por quase trezentos anos, a casa aparece em detrimento à rua; a casa seria o espaço privilegiado da moradia e da paz social, da governança; por seu turno a rua é vista como o lugar da desordem, da turbulência e do espaço sem governo. Operando com essa dicotomia a casa da Torre dos Garcia d’Ávila é então o porto seguro que vai amparar sucessivas gerações vindouras e seus negócios, poderes, casamentos arrumados, fazendas, gados, relações com negros e índios, mas também com os padres da Igreja católica, ora amigos, ora nem tanto.

Assim na tessitura da narrativa o livro que ora se apresenta, busca ainda, analisar até que ponto a Casa da Torre consegue estabelecer relações com um tipo de formação de Estado Nação, ou de algum tipo de consciência nacional, se a obra, às vezes, parece indicar algum tipo de formação de consciência nacional, sobretudo no entorno dos Garcia d’Ávila, o próprio autor desfaz esse equívoco ao citar um dos maiores estudiosos da temática Istvan Jancso, que deixa claro que nunca houve uma consciência nacional naquele período e diz que, “o envolvimento de grupos como os senhores de engenho, em movimentos de contestação à metrópole, ao contrário de um espírito nacional, envolvia o questionamento contra políticas restritivas coloniais” (p. 343).

Desfazendo qualquer intenção de que a Casa da Torre teria interesses em fundar uma espécie de consciência nacional ou de brasilidade, que segundo Jancso, simplesmente não existia, principalmente na Bahia. Conclui Pessoa que, a luta pela Independência que os Garcia d’Ávila travava teria sido pela sua própria independência, pela manutenção dos seus privilégios de “Corte” e de “nobreza da terra” que viria às ruinas com a formação de um estado-nação liberal. Assim, é no processo de transformação constante da sociedade brasileira de colônia em Império que os Garcia d’Ávila veem suas tradições caírem em ruínas. No alvorecer do século XIX com a vinda da Corte joanina (1808), e os adventos dele ocorridos, abertura dos Portos (1808), elevação da categoria do Brasil em Reino Unidos a Portugal e Algarves (1815) e sobretudo o evento da Revolução Constitucionalista do Porto (1820) fincaram as bases da destruição daquele tipo de tradição colonial e suas ruinas já eram visíveis aos homens sensíveis, “mas essas ruínas da tradição continuarão se deteriorando na mesma medida em que a sociedade brasileira continuar a se transformar” é o que conclui Pessoa.

Por fim, Pessoa fecha a sua obra com belíssimas fotos por ele mesmo captadas, nos revelando a riqueza e a beleza de imagens que buscam representar a opulência de um típico castelo dos tempos do Brasil colonial, como as próprias placas mostram em seus dizeres. Revelando um tipo de domínio que se fazia necessário para manter os Garcia d´Ávila reinando. Assim como os ricos mapas que ilustram as grandes extensões de terras ocupadas pela família, também denunciando a dimensão dos poderes de “nobreza da terra” desta família.

O livro é especialmente dedicado aos historiadores comprometidos com a cientificidade dos fatos, mas sobretudo, com a honestidade intelectual que é a maior característica do autor da obra que ora tivemos o grato prazer de ler e resenhar. O livro é recomendado a todos os leitores e leitoras de boa fé!

Referências

BLOCH, Marc. Apologia da história, ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2015.

FAORO, Raimundo. Os donos do poder: Formação do patronato político brasileiro. 2 vols. 9. ed. São Paulo: Globo, 1991.

FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala: Formação da Família brasileira sob o regime de economia patriarcal. 2 vols. 9. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1958.

____. Sobrados e Mocambos: Decadência do urbano. 3 vols. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1951.

FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. 20. ed. São Paulo: Nacional, 1985.

HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence. (org.) A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 17. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1984.

____ (dir.) História geral da civilização brasileira. São Paulo: Difel, 1985. (vols 1 e 2).

HUGO, Victor. O corcunda Notre Dame. São Paulo: Zahar, 2013.

JANCSÓ, Istvan. Peças de um mosaico (cinco estudos sobre a formação política do Brasil). São Paulo: Dept. de História/FFLCH/USP, 2000.

NOVAIS, Fernando A. Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808). 4. ed. São Paulo: HUCITEC, 1986.

PRADO JR, Caio. Evolução política do Brasil: Colônia e Império. 16. ed. São Paulo: Brasiliense, 1988.

____. Formação do Brasil contemporâneo. 20. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987.


Resenhista

Eduardo Martins – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Brasil E-mail: [email protected]  ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5345-1188


Referências desta Resenha

PESSOA, Ângelo Emílio da Silva. As ruínas da tradição: a Casa da Torre de Garcia d’Ávila, família e propriedade no nordeste colonial. João Pessoa: UFPB, 2017. Resenha de: MARTINS, Eduardo. Fronteira: Revista de História. Dourados, v.22, n.40, p.193-197, jul./dez. 2020. Acessar publicação original [DR]

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