Atlânticas: encontros entre mulheres africanas e da diáspora negra brasileira | Oficina do historiador | 2021

Oh paz infinita pode fazer elos de ligação numa história fragmentada.

África e América e novamente Europa e Ásia.

Angola, Jagas e os povos de Benin de onde vem minha mãe. Eu sou Atlântica”.

(Beatriz Nascimento)4

Este dossiê parte da referência e reverência à historiadora negra brasileira Maria Beatriz Nascimento (1942–1995). A intelectualidade produzida por Beatriz é ponto de partida para as confluências e conexões buscadas neste dossiê com o continente africano, em cujas terras a historiadora se fez presente corporal e mentalmente e dela produziu uma de suas obras referenciais, o filme Ôrí. Com texto e narração de Beatriz e direção de Raquel Gerber, Ôrí documenta os movimentos negros brasileiros entre 1977 e 1988, entre esses, organizações carnavalescas e bailes black, passando pela relação entre Brasil e África, tendo o quilombo como ideia central e apresentando, dentre seus fios condutores, parte da história pessoal de Beatriz, com narrações da mesma (RATTS, 2007, p. 28). É de fundamental importância que, no contexto de uma revista focada no conhecimento científico em História, coloquemos em primeiro plano uma grande teórica do pensamento negro brasileiro e diaspórico, cuja produção foi invisibilizada pelo racismo e pela branquitude acadêmica colonial. Que os textos de além-mares e terras africanas que se encontrarão com os textos da diáspora negra sejam abraçados pelas negras ideias de Beatriz. Façamos através e a partir de nós, cujo pensamento é prática e teoria, Atlânticas.

A historiadora, durante sua caminhada acadêmica, de militância, de pessoa que se identificou enquanto mulher negra e percebeu o racismo presente na sociedade, inclusive na historiografia, questionou e criticou esta historiografia, principalmente a respeito do que se debatia sobre quilombos. Esse é um dos temas sobre os quais Beatriz mais se dedicou entre as décadas de setenta e noventa no intuito de quebrar alguns paradigmas e ideias a respeito do conceito de quilombo, de como são classificados e datados na história. Dessa forma, este dossiê se propõe a dialogar com artigos e pesquisas que abordem comunidades quilombolas, biografias, produções epistêmicas críticas, trajetórias individuais e coletivas de mulheres negras que deixaram a sua marca na nossa história/História. Neste sentido, os artigos aqui contemplados partem de abordagens e epistemologias do pensamento de mulheres negras e do feminismo negro, de contribuições na construção de estudos interseccionais sobre gênero, raça e classe.

Ao fazer a pergunta “Pode o subalterno falar?”, Gayatri Chakravorty Spivak realizou uma profunda crítica à permanência de um único sujeito com voz e à construção das representações da outreidade a partir do Ocidente. Historiadoras negras, como Beatriz Nascimento, desafiaram as bases etnocêntricas da construção epistêmica eurocêntrica e questionaram sua suposta neutralidade, seu caráter universalizante e seu poder de representação e criação de identidades. A partir do encontro de diferentes cosmovisões, saberes e identidades entre Brasil e África, o conhecimento afro e popular emerge e coloca no centro do debate a construção do conhecimento, sinalizando as mulheres negras como sujeitas epistêmicas. Esse dossiê, portanto, tem o objetivo de enegrecer o campo da história, mostrando o peso da raça, além de tornar visíveis os saberes ancestrais e as epistemologias produzidas por mulheres negras neste encontro entre atlânticas.

Neste sentido, o presente dossiê está constituído de quatro artigos e uma entrevista. Na entrevista com Artemisa Senmedo, “Atlántica: poesía antirracista y feminismo”, a poeta afro-galega (pessoa que vive na Comunidade Autônoma espanhola da Galícia) expõe seu sentir vital e artístico em relação à racialização que se vê exposta no território espanhol. Através de seus poemas, reivindica a identidade das pessoas racializadas na Espanha, bem como a importância da luta contra o racismo. Ademais, reflexiona sobre o significado da arte e o uso deste mesmo.

Também temos o artigo de Rafael Petry Trapp, intitulado “Mãos Negras: Beatriz Nascimento, teoria da história e historiografia brasileira”. Neste texto, o autor contribui ao debate existente sobre a relação entre pensamento historiográfico, raça e sociedade no Brasil, partido dos avanços propostos pela historiadora Beatriz Nascimento. Tendo presente que a historiografia brasileira é composta principalmente por homens brancos, existindo, dessa maneira, uma demarcação étnico-racial e de gênero, Trapp estabelece algumas premissas teóricas para descolonizar, a partir de uma postura antirracista crítica, o campo historiográfico. Desta forma, centra-se na problemática que encontram os negros na hora de produzir seus conhecimentos em um sistema intelectual que se apoia em um debate histórico em função de elementos sociais constitutivos e estruturantes, como a própria raça. Para finalizar, partindo da referência de Roger Bastide, razona sobre a autopsicanálise intelectual, referindo-se ao papel e postura dos historiadores brancos no momento de refletir e reconstruir uma crítica do campo histórico.

No artigo “Por uma história negra: a potência teórica do pensamento de Maria Beatriz Nascimento para a (re)escrita da história”, de Maria Lídia de Godoy Pinn e João Carlos Reis, a autora e o autor nos apresentam aspectos do pensamento da intelectual negra Beatriz Nascimento, tendo em vista sua crítica a forma como a historiografia representou a história da população negra no Brasil. O texto inicia com uma apresentação de Beatriz Nascimento com aspectos que dizem respeito a sua trajetória de vida que, como mencionado, relaciona-se com sua trajetória acadêmica. O artigo é dividido em duas partes. Um olhar para historiografia a partir da epistemologia estruturada por Beatriz que tem como ênfase a agência da população negra e traz crítica a perspectivas que identificam a população negra na história do país somente na escravidão. E em um segundo momento Pinn e Reis, discorrem sobre o estudo de Beatriz acerca da historiografia dos quilombos, destacando o conceito de continuum trazido pela historiadora. Para a escrita a autora e o autor destacam a leitura da obra de Beatriz presente na coletânea, Beatriz Nascimento, quilombola e intelectual: possibilidades nos dias da destruição, organizada e editada pela União dos Coletivos Pan-Africanistas, publicada em 2018. Por fim, no artigo é enfatizada a ainda presente invisibilidade dos estudos sobre os pensamentos de Beatriz, sobretudo em relação à historiografia dos quilombos e também são destacados nomes de atuais pensadores que vem se debruçando em estudos sobre a produção intelectual da historiadora, tais quais: Alex Ratts, Wagner Vinhas e Christen Smith.

No artigo “O espaço das vagas: reflexões sobre lugares epistêmicos e mulheres negras”, de Ruth Anne Santos Maciel, a partir de uma perspectiva interseccional, a autora busca refletir sobre a produção de conhecimento histórico. Nesta análise, na qual se propõe uma relação entre corpo, território e emoção, a autora enfatiza a importância de colocar como centro de reflexão as mulheres negras, o que, consequentemente, produz rumos epistêmicos que questionam verdades tidas como universais. Santos Maciel trabalha com categorias como interseccionalidade, lócus de enunciação, corpo-território, afrocentricidade, ladinoamefricano, entre outros, para abordar a relação entre gênero e raça na produção historiográfica, através de leituras tais como Sojourner Truth, Judith Butler, Ramón Grosfoguel, Patricia Hill Collins, Lélia González e Molefi Kete Asante. A autora, em definitiva, questiona a “história única” e as tradições e relatos construídos através dos textos historiográficos, ao denunciar o epistemicídio dos saberes femininos negros, como os de Beatriz Nascimento.

E, por fim, para finalizar o dossiê “Atlânticas: encontros entre mulheres africanas e da diáspora negra brasileira”, temos o artigo de Thaynara Rafaela dos Santos intitulado “Mulheres negras: ecos na historiografia”. Esse texto busca mapear e analisar a subalternização e silenciamento das mulheres negras como sujeitos históricos na produção historiográfica brasileira. A partir de uma perspectiva interseccional, enfatizando o binômio gênero/raça, a autora realiza uma reflexão crítica a partir das teorias feministas negras e decoloniais sobre o papel das mulheres negras ao longo da história brasileira, e ressalta as formas de enfrentamento e as resistências articuladas por estas mesmas. Mulheres como a escritora Maria Firmino dos Reis ou as intelectuais Lélia González e Beatriz Nascimento foram protagonistas na história brasileira e importantes agentes de transformação.

Convidamos os leitores e as leitoras a encontrarem nesse dossiê as vozes e epistemologias de autoras e historiadoras negras femininas. Desejamos uma excelente leitura!

Nota

4 Trecho extraído do filme Ôrí.


Organizadores

Gabriela de Lima Grecco – Doutora em História pela Universidad Autónoma de Madrid (UAM), em Madrid, Espanha. E-mail: [email protected] orcid.org/0000-0002-7137-5251

Marizol González Romero – Doutoranda pela Universidad Autónoma de Madrid (UAM), em Madrid, Espanha. E-mail: [email protected]  orcid.org/0000-0002-1103-9168

Alessandra dos Santos da Silva – Mestranda em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em Porto Alegre, RS, Brasil. Graduada em Licenciatura em Educação Física pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), Guaíba, RS, Brasil. Graduanda em Licenciatura em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em Porto Alegre, RS, Brasil. E-mail: [email protected] orcid.org/0000-0001-6480-2289

Iliriana Fontoura Rodrigues – Mestre em Cultura e Territorialidades pela Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói, RJ, Brasil. Licenciada em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), em Porto Alegre, RS, Brasil. E-mail:  [email protected]  orcid.org/0000-0002-4128-2599


Referências desta apresentação

GRECCO, Gabriela de Lima; ROMERO, Marizol González; SILVA, Alessandra dos Santos da; RODRIGUES, Iliriana Fontoura. Apresentação. Oficina do historiador. Porto Alegre, v. 14, n. 1, jan./dez. 2021. Acessar publicação original [DR]

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