Cidade e História | José d’Assunção Barros

O livro de Assunção Barros propõe-se, logo no “Prefácio”, ser uma recolha e apresentação das mais importantes contribuições para o estudo da cidade.

O que significa, contudo, tentar sumariar em apenas cento e onze páginas, excetuando-se aquelas da bibliografia, dois séculos de reflexão sobre o urbanismo e a vida citadina? Há que referir, em primeiro lugar, a necessária seleção das obras que serão comentadas, escolha esta que não se pode dizer completamente objetiva. Contudo, para além da seleção, há o tópico mais relevante dos usos que se fará do que se selecionou. É aqui, cremos, que o livro de Assunção Barros evidencia sua fraqueza, pois seria preciso, para que o livro tivesse efetiva consistência, que as categorias que nos são apresentadas em poucas linhas fossem criticadas, contrariamente ao hábito do autor que as expõe, de forma descritiva, como se todas servissem para a produção do que ele denomina uma pesquisa “multifatorial”.

Caso houvesse maior detenção no tratamento crítico das obras selecionadas e maior rigor histórico, algumas asserções indevidas não se fariam presentes no texto dado à impressão. Ater-nos-emos a apenas alguns dos problemas, como modo de ilustrar as objeções genéricas que acima referimos.

Principia o primeiro capítulo pela afirmação de que uma reflexão sistemática sobre o fenômeno social citadino só se faria sentir no século XIX. Assevera-se que, anteriormente ao século XIX, quando arquitetos, por exemplo, propuseram “modelos ideais de organização do mundo político, para impor hierarquias sociais” (p. 11-12), não se estaria tratando de uma forma “‘mais específica’ de organização social”. De que se estaria tratando então? É possível dizer que o urbanismo dos séculos XV, XVI e XVII e que a recuperação de Vitrúvio, a partir de que se propôs o sistema das cinco ordens, que tanto impacto tiveram sobre o planejamento de cidades e a edificação, no que se convencionou denominar de Idade Moderna, não são representativos de um pensar a cidade como forma “mais específica” de organização social? As preceptivas arquitetônicas são propostas de ordenação do espaço por meio da vinculação do tratamento espacial da urbs ao exercício do imperium; nesse sentido, se reforçam, por um lado, a relação de igualdade juridicamente proporcional, característica do Estado monárquico e do Antigo Regime, que hoje em dia se nos afigura desigualitária, por outro, os usos do espaço no quotidiano podem basear-se em atos irruptivos que transgridem a relação entre o ordo politicus e o ordo aedificatorius e espacial. Não impõem hierarquias sociais, mas as especulam, embora de forma imperfeita.

O que parece ser o cerne do discurso de Assunção Barros é sim o papel desempenhado pela Ciências Humanas, surgidas a partir do século XIX, para a produção de uma reflexão sobre a cidade, reflexão esta que, conforme ele próprio o assevera, é distinta da que fora encetada a partir do século XV, mas que não pode anulá-la; trata-se de um compreender a cidade e de construí-la diferentes daqueles que animarão a reflexão contemporânea. Não se pode dizer, por exemplo, que é com o século XIX que os homens do Ocidente se interessarão pelas “origens imemoriais do fenômeno urbano” (p. 13), pois o interesse pela ontogênese da humanidade e das cidades já aparece nos preceptistas a partir do século XV, ao retomarem Vitrúvio.

Um outro senão no livro que ora analisamos é sua tendência a subsumir a uma rubrica vários livros que não são apenas a atualização de uma mesma proposta ou typus. À página 16, por exemplo, a historiografia que se detém sobre as instituições é ilustrada por Labande e Gregorovius, como se seus pressupostos fossem absolutamente os mesmos.

Há ainda a apontar a falta de precisão na definição de “cidades práticas” e de “cidades orgânicas”. Conquanto seja possível entender que uma “cidade cósmica” é uma estrutura urbana concebida a partir da adoção de uma idéia matriz, como é o caso de Brasília (p. 23), não se pode, por outro lado, dizer que a mensagem contida na idéia matriz seja inteligível ou que seja sequer conhecida. A ignorância do moto que está por detrás de uma cidade denominada “cósmica” permitiria identificá-la ainda assim como “cósmica”? Quanto às cidades ditas “práticas” (p. 23), há que observar que o defini-las como cidades “máquina”, que “se desenvolvem conforme as suas necessidades materiais, à medida que novas partes são acrescentadas e que as velhas partes são alteradas”, parece não permitir sua diferenciação das cidades designadas “orgânicas”. Estas últimas não são planejadas – mas o são as cidades “práticas”? – e adaptam-se, enquanto crescem como organismos vivos, “a um terreno em que se viram inseridas […], fazendo concessões permanentes à vida em toda a sua imprevisibilidade”. Mas o desenvolver-se segundo necessidades materiais não implicaria, por seu turno, acrescentar novas partes, modificar as já existentes, e fazer concessões à vida em toda a sua imprevisibilidade? As definições não são funcionais, não são claramente circunscritas espacialmente em modo de ordenação, para que possamos reconhecer os tipos a que deveriam remeter por meio das definições vagas com que somos brindados.

Um outro problema parece jazer na tentativa de definir as cidades como “abertas”, “fechadas” e “cidades sob tutela” (p. 24). Afirma-se, por exemplo, que as cidades “medievais” seriam fechadas e que as cidades industriais, contrariamente à expectativa dominante, também o seriam. Se há oposição marcada entre o rural e o urbano em Estados como a Inglaterra, por outro lado o fluxo entre campo e cidade é mais intenso, pois o que alimenta a economia industrial da cidade em termos de matérias-primas e de alimentos para a população origina-se por necessidade no campo. Como falar de fechamento, se há complementaridade? Não é o próprio Assunção Barros quem, à página 26, ao citar Mumford, refere o excedente agrícola como condição de existência dos centros urbanos? O que a cidade necessita não transcende, no período industrial, o meramente agrícola? Como haver cidades “fechadas” na Inglaterra em industrialização ou industrializada?

Assunção Barros apresenta-nos rapidamente um comentário, como todos os que, aliás, fazem parte do livro, sobre uma das obras de Panofsky, Arquitetura gótica e escolástica. O louvor à obra panofskiana parte da aparente assunção dos princípios que a ordenam, ou seja, uma proposta historiográfica ainda baseada nos geistesgeschichtliche Parallelen [paralelos históricoespirituais]. Para Panofsky, tanto as sumas “medievais” quanto a arquitetura por ele denominada “gótica” emanam de um mesmo espírito de época e, por isso, são passíveis de, por meio de uma análise comparativa, revelarem a substância ôntica que anima a ambas. Será que ainda pensamos a história como o pensaram muitos dos warburguianos como Saxl e Panofsky? Para nós, ainda há o que então se designava por “época”? Para nós a época ainda é “unidade significante genuína”, em vez de ser construto histórico?

O livro de Assunção Barros pode quiçá servir como introdução aos estudos sobre a cidade, desde que o estudante não se atenha aos resumos que lhe são apresentados e que não creia que se possa combinar de forma aleatória as categorias que abundam no livro, geralmente sem uma contextualização precisa e sem receber a crítica de que necessitam.


Resenhista

Marcello Moreira – Professor da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb). Doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP).


Referências desta Resenha

BARROS, José d’Assunção. Cidade e História. Petrópolis: Vozes, 2007. Resenha de: MOREIRA, Marcello. Politeia: História e Sociedade. Vitória da Conquista, v. 7, n. 1, p. 273-276, 2007. Acessar publicação original [DR]

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