Ciência/ civilização e império nos trópicos | Alda Heizer

O desenvolvimento das práticas científicas e sua consolidação em museus e instituições de pesquisa, e ainda a criação de redes de cientistas e mecanismos de intercâmbio e divulgação, constituem uma parte fascinante da história do século XIX brasileiro, à espera de ser contada. O fascínio, seja para o historiador ou para o leigo, está na complexa teia de relações que as ciências ali estabelecem com a história social e econômica, com o desenvolvimento das artes e das letras, e também com os meandros políticos e culturais da nação em formação. Não eram apenas as ciências que se estruturavam nos trópicos, mas o próprio país, o que torna o campo de estudo mais intrincado e, por isso mesmo, mais instigante. Dois são os motivos básicos para que essa história não esteja de todo contada: a história social e material do nosso século XIX — ponto de partida para os historiadores das ciências — ainda possui grandes lacunas; e a formação de uma cultura histórica das ciências é fato recente entre nós. Assim, os historiadores das ciências que se debruçam sobre o Império brasileiro acabam desenvolvendo simultaneamente duas frentes de trabalho. Talvez pela necessidade mesma desse múltiplo embate, esses historiadores especializados estão entre os que mais têm contribuído para uma reavaliação global do tempo do Império.

Nada mais oportuno, portanto, do que a publicação do volume Ciência, civilização e império nos trópicos, organizado por Alda Heizer, pesquisadora do Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST/MCT), e Antônio Augusto Passos Videira, professor de epistemologia e história da ciência na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), a partir das conferências apresentadas no colóquio Ciência, Civilização e Império nos Trópicos, que teve lugar no Rio Janeiro, em 7 e 8 de novembro de 2000, sob a direção do MAST/MCT e da UERJ, com patrocínio da FAPERJ.

O colóquio propôs um balanço da produção recente de pesquisadores brasileiros sobre as relações entre o Império e as ciências. O livro que daí se produziu busca ser um painel das tendências críticas e historiográficas sobre o assunto. O volume traz 14 conferências que abarcam diferentes temas, entre os quais o papel das viagens e expedições de naturalistas durante o Império; as grandes exposições locais e internacionais do século XIX; as relações entre as instituições imperiais e a historiografia das ciências no Brasil; o papel dos museus históricos e de ciências naturais no desenvolvimento do campo científico; a biografia de cientistas como importante mecanismo historiográfico; e, sobretudo, o papel desempenhado por algumas das instituições científicas fundamentais para a compreensão das ciências no Império: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), a Comissão Científica de Exploração (1859-61), o Museu Nacional, o Imperial Observatório do Rio de Janeiro, o Museu Histórico Nacional, a Academia Imperial de Medicina e a Faculdade de Medicina da Bahia. Cabe notar que, diferentemente do que acontece com a maioria dos volumes de anais de eventos, aqueles temas não estão restritos a cada um dos artigos que os contemplam, mas constituem um painel de informações, fatos e hipóteses que percorrem em maior ou menor medida todos os artigos do volume, com idas e vindas, recorrências e derivações que acabam por dar grande coesão ao livro.

Três seriam os focos dos quais emerge, nos artigos, a história das ciências ao longo do Império: subáreas das ciências; instituições; e indivíduos. A história das ciências contada a partir da especificidade de suas subáreas constituiria, apenas aparentemente, o fazer historiográfico mais previsível, sobretudo em função da pesquisa documental, que acaba levando o historiador a se especializar em um recorte para poder dar conta do objeto. As ciências aparecem então abordadas através de histórias específicas da medicina, da geologia, da agricultura, e assim por diante. As histórias institucionais e individuais seriam dois outros modos de abordagem que trazem grandes contribuições, sobretudo metodológicas. De fato, a história das ciências tem recebido grande impulso nos momentos em que os historiadores se dirigem ao processo histórico vivido pelas instituições onde se fez e faz ciências, e quando se debruçam sobre a biografia intelectual dos cientistas, pelo viés de sua correspondência, suas bibliotecas, suas cadernetas de campo, sua produção textual, suas reflexões críticas sobre o fazer científico. Este movimento em busca das instituições e das biografias perpassa todo o impulso recente da historiografia das ciências, seja no Brasil ou em outras paragens, e o livro organizado por Heizer e Passos Videira é um exemplo claro da tendência. Disse anteriormente que a abordagem de uma subárea das ciências só superficialmente é previsível porque, ainda que fosse parte tradicional dos estudos de história, ela se alimentou tanto da historiografia institucional quanto da biográfica, e acabou sendo a forma mais completa de abordagem. Indivíduos, instituições e áreas são círculos concêntricos em expansão no mapeamento historiográfico das ciências.

A título de exemplo, alguns dos artigos demonstram com clareza aqueles focos antes mencionados, quais sejam, as subáreas do saber, as instituições e os indivíduos. Mas cabe antes uma referência ao artigo de Maria Amélia M. Dantes, sobre o papel das instituições imperiais na historiografia das ciências.

A autora tem sido, ao longo das últimas décadas, a maior impulsionadora dos estudos sobre história institucional das ciências, através de seu trabalho na Universidade de São Paulo (USP) como professora, orientadora e incentivadora de uma geração de historiadores. Em seu artigo, Maria Amélia destaca que, a partir dos anos 1980, a renovação metodológica dos estudos historiográficos no Brasil — com abertura para a história das mentalidades, a história material e institucional — deu grande alento aos estudos de história das ciências exatamente porque “as formas de organização passaram a ser vistas como indissociáveis dos desenvolvimentos conceituais das ciências” (p. 230). Dessa forma, o que no campo da historiografia geral aparecia como mais uma ferramenta em busca dos documentos, revelava-se como central ao fazer da história das ciências, sobretudo em relação a um contexto como o do Brasil Império, sempre prejudicado pelo fato de os historiadores buscarem avaliá-lo com padrões anacrônicos em relação às ciências, às artes ou mesmo à política. Daí deriva o fato de os historiadores das ciências ao longo dos últimos anos estarem entre os que mais têm renovado o estudo do Império. O tempo de Pedro II acaba por ser para nós o que a Idade Média foi para os medievalistas franceses depois dos anos 1920: um objeto que se mostraria impenetrável em sua riqueza se não fossem renovados os instrumentos de pesquisa.

O artigo de Flávio Edler, em torno da medicina acadêmica imperial, busca mapear uma área específica do saber e da prática científicas. A sua maior contribuição está em jogar por terra a pretensa falta de cientificidade atribuída à medicina imperial, um desses anacronismos que percorreram a nossa historiografia. Para tanto, o autor busca elucidar os critérios que validavam o saber científico naquele contexto, traçando um quadro das práticas médicas desde o iluminismo até os seus desdobramentos na cultura brasileira, com atenção no desenvolvimento das instituições de medicina, na divulgação do saber através de jornais especializados, na constituição de redes através do intercâmbio entre cientistas. Com esse percurso, Edler mostra como havia nas práticas médicas brasileiras do século XIX um saber compartilhado, desde as noções de diagnóstico até as intervenções, passando pela validação social e institucional do lugar do médico.

O artigo de Alda Heizer chama a atenção para o debate sobre a tecnologia, área às vezes descurada no discurso da história das ciências. Percorrendo a cultura das grandes exposições e a participação brasileira nesse tipo de evento, a autora mostra como o discurso da nacionalidade pode ser traçado através dos acervos de instrumentos das instituições científicas. A ênfase na tecnologia revela o lado material do trabalho do historiador científico, faceta que não pode ficar de fora em qualquer abordagem sobre o objeto. O exemplo maior trazido pela autora se constitui do acervo de instrumentos reunidos no Museu de Astronomia/MCT, reclamando urgentes trabalhos de pesquisa.

Na mesma linha de Flávio Edler, Lorelay Kury busca destruir visões anacrônicas sobre a Comissão Científica de Exploração, injustamente alcunhada pelos contemporâneos de “comissão das borboletas”. Mais importante do que julgar os resultados da empreitada, Kury mostra a importância de se abordar o trabalho da comissão através das tentativas coerentes de seus integrantes em estabelecer objetos e objetivos científicos válidos. Sendo pioneiro, o grupo apenas tateava o campo, pressionado pela visão ainda hoje presente de que o verdadeiro cientista seria sempre o estrangeiro. Dessa forma, Kury demonstra que o julgamento apressado da comissão, com foco em suas parcas realizações, não pode nublar o enorme papel por ela desempenhado na cultura científica nacional àquela altura, como forma de busca de um padrão científico, fato muito mais relevante.

Outro interessante artigo sobre uma instituição específica é o de Manoel Luiz Salgado Guimarães, que versa sobre o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. A mais visível das instituições científicas imperiais, o IHGB foi peça fundamental no desenvolvimento de um conceito de nação brasileira e de história nacional. O autor enfoca as relações da instituição brasileira com a dinamarquesa Sociedade dos Antiquários do Norte, cujas pesquisas em arqueologia foram de grande importância como subsídio à criação do projeto de nação sustentado pelo IHGB a partir do foco sobre o passado nacional em construção.

Chegando à questão da biografia, encontramos o artigo de Antônio Augusto Passos Videira sobre Luiz Cruls, no qual o autor mostra como a trajetória biográfico-intelectual de uma personagem pode se confundir com a de uma instituição, e como a abordagem biográfica torna-se excelente porta de entrada tanto para a história institucional como para uma área das ciências. O artigo de Videira divide-se em três partes: uma nota biográfica de Cruls; uma avaliação da situação do Imperial Observatório antes da chegada de Cruls para substituir Emmanuel Liais, em 1881; e uma análise das medidas tomadas pelo astrônomo para revitalizar a instituição, de 1882 até a sua morte em 1908. Um dos dados apontados por Videira no percurso de Cruls à frente da instituição foi a capacidade política de buscar aliados fora do campo das ciências, em especial na figura do imperador. Cruls logo compreendeu a necessidade de atuação política, cuja ausência derrubou muitos cientistas durante o Império. A sua atuação no Observatório, com vistas à defesa de seus interesses, mostra o quanto um indivíduo pode interferir nas ações de um campo e de uma instituição ainda incipientes. Foi sobretudo a perseverença e a acuidade política de Cruls que fizeram com que o Observatório abrigasse importantes realizações científicas, em especial até 1889, quando o seu patrono perdeu o poder.

Sílvia Fernanda de Mendonça Figueiroa escreve um artigo bastante elucidativo sobre o papel da biografia no desenvolvimento da historiografia científica. A partir de seu interesse pessoal pela biografia do geólogo Orville Derby, Figueiroa demonstra que, diferentemente de outros campos da história, nos quais a biografia havia caído em descrédito, o campo da história das ciências nunca prescindiu da biografia, e o recente crescimento do gênero tem a ver com a renovação metodológica dos estudos de história, para os quais a historiografia das ciências muito tem colaborado, como já apontei. Essa mudança de enfoque foi o reconhecimento de que o percurso intelectual de um cientista representa muitas vezes o desenvolvimento tanto de uma instituição quanto de uma área do saber.

Esses rápidos exemplos podem dar ao leitor uma medida do conjunto de abordagens presentes no livro. Cabe criticar o fato de o escopo dos trabalhos do colóquio e do livro terem se restringido sobremaneira às instituições e às personagens atuantes na Corte do Império. Essa limitação espacial pode e deve ser revista. Ainda que concordemos com o fato de que foi sobretudo na Corte que as instituições científicas imperiais se estabeleceram, outras regiões também tiveram experiências importantes, que fazem parte do mesmo contexto. Um dos estudos pioneiros sobre as instituições imperiais é o de José Murilo de Carvalho relativo à Escola de Minas de Ouro Preto, rapidamente mencionado por Maria Amélia Dantes, mas cujo objeto não possui um espaço específico em um volume que se propõe um balanço da produção na área. O livro de José Murilo, A Escola de Minas de Ouro Preto, o peso da glória, recentemente reeditado, constitui um clássico que demonstra a importância daquela instituição no horizonte científico do Império. Os estudos sobre medicina na província de Minas Gerais, desenvolvidos por Betânia Figueiredo no Departamento de História da UFMG, mostram igualmente a importância da ampliação das pesquisas fora das instituições diretamente ligadas à Corte. Da mesma maneira, Amilcar Baiardi tem publicado trabalhos sobre o Imperial Instituto Bahiano de Agricultura, criado em 1859, instituição de grande importância para os estudos agrários no Brasil. São apenas exemplos que mostram a riqueza e a ampliação dos horizontes da história das ciências no Brasil.

Heizer e Videira organizaram um volume de grande importância não só para os pesquisadores e como balanço da área, mas como material pedagógico para os cursos introdutórios de história das ciências no Brasil. Que venham os próximos.


Resenhista

Marcus Vinicius de Freitas – Professor de literatura brasileira e portuguesa Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

HEIZER, Alda. Ciência, civilização e império nos trópicos. Rio de Janeiro: Access Editora, 2001. Resenha de: FREITAS, Marcus Vinicius de. O Império e as práticas científicas. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.10, n.2, maio/ago. 2003. Acessar publicação original [DR]

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