Ciência e sociedade na terra dos bandeirantes: a trajetória do Instituto Pasteur de São Paulo no período de 1903 a 1916 | Luiz Antônio Teixeira

A história das ciências no Brasil, apesar do desenvolvimento significativo dos últimos anos, é uma área incipiente. Em especial, muitas das instituições científicas brasileiras estão ainda à espera de pesquisadores que se dediquem ao estudo de sua trajetória.

É com grande satisfação que vemos editado o livro de Luiz Antônio Teixeira, Ciência e sociedade na terra dos bandeirantes: a trajetória do Instituto Pasteur de São Paulo no período de 1903 a 1916, resultado de sua pesquisa para o mestrado realizada no Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Neste texto, com estilo claro, de leitura agradável mas extremamente erudito e cuidadoso no desenvolvimento dos temas, o leitor acompanha a trajetória desta instituição científica tão pouco conhecida, mesmo de historiadores que se dedicam ao estudo das ciências no Brasil.

A discussão inicial sobre a escolha do objeto de estudo é bastante instigante e esclarecedora. Partindo de um levantamento historiográfico, o autor afirma que o Instituto Pasteur de São Paulo vem sendo ignorado pelos historiadores brasileiros, e conclui que estes, utilizando prioritariamente documentação oficial, têm privilegiado a atuação das instituições governamentais. E mais, têm contribuído para a construção de um consenso: o de que o Estado vem sendo o agente, quase que exclusivo, da implementação de atividades científicas no país.

Uma das contribuições a que este estudo se propõe é, assim, resgatar o papel que outros setores da sociedade brasileira tiveram no incentivo às práticas científicas. E, particularmente, chamar a atenção para a situação de uma instituição privada bastante atuante no cenário médico paulista do início do século XX.

Do ponto de vista metodológico, o autor pretende realizar um estudo de história institucional, mas que “dê conta dos fatores internos e externos que influenciaram na trajetória e desagregação de uma instituição” (p. 9). A influência de Bourdieu é, também, marcante. A instituição é vista como partícipe do campo médico local, um sistema caracterizado por disputas entre os diferentes agentes e por ações que visam não apenas a produção de saberes, mas também reconhecimento e legitimação.

No texto, são analisadas as diversas fases do Instituto Pasteur de São Paulo, desde sua criação em 1903, em um momento em que havia naquele estado um contexto médico já caracterizado, com instituições de pesquisa e produção de medicamentos, um numero expressivo de pesquisadores defensores das novas concepções microbiológicas e uma certa estruturação do campo médico. No entanto, não se trata de um desenrolar cronológico usual, já que Luiz Antônio se propõe a realizar um estudo dinâmico, que trate a instituição como um espaço em construção, em interação constante com as demais instituições científicas do período, e também com os demais setores da sociedade paulista. Para tal, utiliza ampla documentação primária: relatórios, artigos científicos e de divulgação, publicados em revistas e jornais da época.

Segundo o autor, a criação do Instituto Pasteur de São Paulo ocorreu em um momento em que o campo médico paulista estava em expansão, dando possibilidades de atuação a novos agentes. O instituto foi criado por um grupo de médicos, com apoio de personalidades da sociedade paulista. Tratava-se de uma instituição privada, que se definia como instituição científica e filantrópica e que tinha como objetivos a produção e aplicação de medicamentos contra a raiva, a realização de pesquisas e o oferecimento de cursos para a formação de especialistas em microbiologia.

A análise do modelo organizacional proposto leva o autor a concluir que o projeto era inspirado no modelo do Instituto Pasteur de Paris, existente desde 1886 e instituição de prestígio internacional. Para seus fundadores, a nova instituição sobreviveria de doações, venda de produtos e subvenção dos governos estadual e federal, mas também dos municípios. No entanto, a análise das diversas fases da trajetória institucional revela a persistência de um clima de competição entre o Instituto Pasteur, o Serviço Sanitário de São Paulo, e outras instituições brasileiras da área biomédica.

De início, foi a própria instituição que ampliou suas atribuições, passando a produzir, também, soros antidiftéricos, antipestosos e antitetânicos, causando os primeiros confrontos com o Serviço Sanitário, que proibiu a produção de vacinas antipestosas, o que foi um dos motivos da demissão de seu primeiro diretor, Ivo Bandi.

O período de auge do Instituto Pasteur paulista deu-se a partir de 1906, sob a direção do médico italiano Antônio Carini. O livro revela-nos Carini como um pesquisador bastante atento em relação aos temas e métodos da prática biomédica de seu tempo, mas também cioso na divulgação dos trabalhos realizados pelo instituto. Além das atividades de pesquisa, publicou regularmente artigos científicos em periódicos, como a Revista Médica de São Paulo e o jornal O Estado de São Paulo.

Nestes anos, o serviço anti-rábico foi reorganizado, sendo dada atenção à qualidade dos produtos e ao controle dos vacinados. O instituto desenvolveu atividades pioneiras de ensino (já que o Serviço Sanitário não chegou a fazê-lo e ainda não havia sido criada a faculdade de medicina estadual), com seus cursos de microscopia e bacteriologia, que tiveram, em geral, médicos como alunos.

O autor dá atenção especial às atividades de pesquisa científica no instituto, acompanhando as mudanças no quadro técnico de suas contribuições à medicina humana e veterinária. Chama a atenção, em medicina humana, para os estudos de doenças, como a úlcera de Bauru ou o tripanossoma, e, em veterinária, para os estudos sobre zoonoses, enfatizando o bom relacionamento que Carini manteve com os criadores de gado.

Do texto, fica-nos ainda a imagem de Carini como um pesquisador bem integrado ao meio médico paulista e especialista reconhecido por amplos setores sociais. Ao mesmo tempo, um personagem que não se furtava ao confronto com as demais autoridades sanitárias paulistas. Como o autor relata, Carini chegou a questionar a seriedade do trabalho desenvolvido por Emílio Ribas na direção do Serviço Sanitário de São Paulo, quando, em 1912, colocou em dúvida as estatísticas oficiais que, segundo ele, estariam encobrindo o recrudescimento da varíola no estado.

O texto mostra, assim, o Instituto Pasteur de São Paulo como uma instituição bastante atuante na área das ciências biomédicas e que realizava um trabalho de nível, ombreando-se com as demais instituições paulistas e brasileiras. A trajetória desta instituição científica privada foi, no entanto, muitas vezes penalizada pelas políticas governamentais relativas à saúde pública. Nesse sentido, a década de 1910 não se mostrou favorável à continuidade da instituição.

Em 1912, começa o período de crise do instituto, vista pelo autor como devida à conjugação de uma série de fatores. De um lado, o projeto de centralização, pelo Serviço Sanitário, das atividades de saúde pública, assim como a política de implementação do ensino médico no estado, com a criação, em 1913, da Faculdade de Medicina, além da proliferação, no país, de uma florescente indústria farmacêutica, que passou a concorrer com os institutos produtores de medicamentos.

Como o autor sublinha, foi marcante a atuação de alguns pesquisadores do instituto, inclusive Carini, justamente em um laboratório farmacêutico, o Laboratório Paulista de Biologia, que se tornou uma empresa bastante lucrativa e se manteve atuante até meados do século XX.

Finalizando, queremos enfatizar algumas das contribuições deste estudo para a história das ciências no Brasil. Primeiro, como estudo primoroso de uma instituição que, como o autor enfatiza, vem sendo esquecida pela historiografia brasileira, e que é analisada em seu relacionamento constante com os demais setores sociais paulistas das primeiras décadas do presente século. A análise desta instituição privada dá ensejo a que o autor focalize de forma mais detida um tema crucial da história das ciências no Brasil: a participação de setores privados. O livro focaliza mais detidamente o Instituto Pasteur, mas passa também por outras iniciativas, como a Universidade de São Paulo de 1911, conhecida como ‘Uspinha’, uma instituição privada que, durante alguns anos, ofereceu, entre outros, cursos de direito e medicina. Foram iniciativas de grupos de intelectuais e personalidades paulistas.

De outro lado, o Instituto Pasteur de São Paulo é apresentado como uma instituição em interação constante com o meio médico paulista, mesmo que de forma conflitante. Pelo livro desfilam confrontos entre os médicos bacteriologistas, que concretizam de forma eloqüente as afirmativas de Bourdieu sobre as lutas que se travam nos campos científicos.

Por fim, o livro e a própria história do Instituto Pasteur de São Paulo como instituição independente evidenciam a inserção e a atuação determinantes de pesquisadores formados no instituto em empresas voltadas para a produção de medicamentos. Um tema que merece um estudo à parte.


Resenhista

Maria Amélia M. Dantes – Professora e pesquisadora da Universidade de São Paulo.


Referências desta Resenha

TEIXEIRA, Luiz Antônio. Ciência e sociedade na terra dos bandeirantes: a trajetória do Instituto Pasteur de São Paulo no período de 1903 a 1916. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1995. Resenha de: DANTES, Maria Amélia M. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.3, n.2, jul./out. 1996. Acessar publicação original [DR]

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