Cinematógrafo: um olhar sobre a história | Jorge Nóvoa e Soleni Biscouto Fressato

O cinema é a arte da luz, da imagem e do movimento, é a arte da expressão audiovisual. Geertz nos ensina que é difícil falar de arte, pois, “a arte parece existir em um mundo próprio, que o discurso não pode alcançar” [1] e este preceito é válido para o cinema, conhecido como a sétima arte. Analisar uma arte que envolve imagem e movimento é uma tarefa complexa, pois “aquilo que vimos, ou que imaginamos ter visto, parece ser tão maior e tão mais importante que o que logramos expressar com nossa balbucia, que nossas palavras soam vazias, cheias de ar, até falsas.” [2] A imagem é captada e projetada por meio de um processo mecânico, através do olhar e do veículo condutor da câmera. A mensagem audiovisual é composta dentro de determinados parâmetros e preceitos da construção cinematográfica, na maioria das vezes de forma narrativa. Como observa Bertoni e Montagnoli:

Elementos que trabalham com a expressividade da câmera, com os detalhes, com as mudanças de planos, os enquadramentos, o som, a possibilidade de sugestão daquilo que está dentro e fora do quadro; mas também com o corte que direciona a visão do espectador, com a articulação da montagem, a característica minimal do cinema, com a irrealidade construída. Enfim, todo esse conjunto de elementos e de procedimentos, traça a característica de construção fundamental da linguagem e da estética do cinema.[3]

Desta forma, o cinema pode ser um elemento de análise e reflexão sobre a produção de discursos, pois o cinema é um produto, representação, arte, expressão importante da cena contemporânea que faz parte da estrutura do poder simbólico. Desde que surgiu, em 1895, na Europa, o cinema revolucionou a sociedade e a partir da década de setenta do século XX, os estudos de Marc Ferro propuseram uma série de questionamentos que mesclam história e filme. Como coloca o autor “desde que o cinema se tornou uma arte, seus pioneiros passaram a intervir na história com filmes, documentários ou de ficção, que, desde sua origem, sob a aparência de representação, doutrinam e glorificam.”[4] O cinematógrafo e a tecnologia de captura e reprodução de imagens produziu um extraordinário fenômeno de massas.

O livro Cinematógrafo. Um olhar sobre a História, não por acaso faz referência a este instrumento que nos possibilitou um novo olhar sobre o mundo. O livro reflete sobre a produção e reprodução de representações, as visões da história geradas em um filme e a relação entre estas representações e as ciências sociais. Afinal, como observa Deleuze:

O olhar imaginário faz do real algo imaginário, ao mesmo que, por sua vez, se torna real e torna a nos dar realidade. É como um circuito que troca, corrige, seleciona e nos persegue.[5]

O cinema vem sendo objeto de pesquisas por conta daquilo que suas relações com as sociedades podem nos revelar, já que o cinema pode ser um objeto de análise importante para uma abordagem social. O filme é um meio visual que dramatiza um enredo básico, lida com fotografias, imagens, linguagens e, através de signos, códigos, que pela leitura são apreendidos, nos passa uma mensagem.

Entre as linguagens da cultura midiática, o cinema e sua estrutura de comunicação de um discurso vem sendo objeto de várias análises e discussões. Segundo Ferro, existem múltiplas interferências e confluências entre cinema e história. O cinema pode ser usado como um agente da história, ou como forma de disseminação de um discurso acerca da história já que “uma imagem é também uma informação, como uma palavra, um texto escrito e um discurso.”[6]

A obra, organizada por Jorge Nóvoa, Soleni Biscouto Fressato e Kristian Feigelson reforça as pesquisas científicas entre pesquisadores franceses e brasileiros no domínio das relações entre o cinema e as sociedades que denominamos, a partir de Marc Ferro, de cinema-história. O prólogo, escrito por Ferro e intitulado “A quem pertence as imagens?” reflete sobre as múltiplas apropriações e leituras de uma imagem. O cinema e o sentimento por ele gerados são inseparáveis. Já que as imagens e os efeitos produzidos por elas estão diretamente relacionados à cultura de quem recebe o filme o autor conclui que “o filme pertence também aquele que o vê.” [7]

O livro reúne contribuições de pesquisadores em três áreas principais: os fundamentos teóricos da história e das ciências sociais e da representação dos processos históricos, a construção do passado no cinema e os filmes como lugar de memória e identidade que se cruzam no discurso fílmico. Segundo David Harvey, o cinema tem “talvez a capacidade mais robusta de tratar de maneira instrutiva de temas entrelaçados do espaço e do tempo.” [8]

Assim, o livro busca fundir abordagens históricas e sociológicas numa leitura transdisciplinar de seu objeto-problema a partir de um conjunto de suportes audiovisuais pouco abordados no Brasil. Tais estudos buscam aprofundar pistas abertas por Marc Ferro em seus estudos dos cruzamentos entre história e cinema, numa obra acessível a um grande público de pesquisadores, professores e estudantes de diversas áreas de pesquisa.

Notas

1GEERTZ, Clifford. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis: Vozes, 1997. P. 142.

2 Ibid. P. 143.

3BERTONI, Iris Gomes. MONTAGNOLI, Giuliano Miki. Cineastas pioneiros da história e da evolução cinematográfica. Caraguatatuba: Editora, Produtora e Atelier de Artes Tanzcine e Giurhis, 2007. P. 14.

4 FERRO. Marc. Cinema e história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. P. 13.

5 DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 2007. P. 33.

6FERRO. Marc. A quem pertence as imagens? In: NÓVOA, Jorge. FRESSATO, Soleni Biscouto, FEIGELSON, Kristian (organizadores). Cinematógrafo: um olhar sobre a história. Salvador: EDUFBA, São Paulo: Ed. UNESP, 2009. P. 16.

7 Ibid. p. 23.

8 HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1992. P. 277.

Referências

BERTONI, Iris Gomes. MONTAGNOLI, Giuliano Miki. Cineastas pioneiros da história e da evolução cinematográfica. Caraguatatuba: Editora, Produtora e Atelier de Artes Tanzcine e Giurhis, 2007.

DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 2007.

FERRO. Marc. A quem pertence as imagens? In: NÓVOA, Jorge. FRESSATO, Soleni Biscouto, FEIGELSON, Kristian (organizadores). Cinematógrafo: um olhar sobre a história. Salvador: EDUFBA, São Paulo: Ed. UNESP, 2009.

FERRO. Marc. Cinema e história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

FRESSATO, Soleni Biscouto. Cinematógrafo: pastor de almas ou o diabo em pessoa? In: NÓVOA, Jorge. FRESSATO, Soleni Biscouto, FEIGELSON, Kristian (organizadores). Cinematógrafo: um olhar sobre a história. Salvador: EDUFBA, São Paulo: Ed. UNESP, 2009.

GEERTZ, Clifford. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis: Vozes, 1997.

HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1992.


Resenhista

Karine Mileibe de Souza – Mestre em Educação, Cultura e Organizações Sociais pela Funedi/UEMG.


Referências desta resenha

NÓVOA, Jorge; FRESSATO, Soleni Biscouto; FEIGELSON, Kristian (Orgs.). Cinematógrafo: um olhar sobre a história. Salvador: EDUFBA; São Paulo: Editora UNESP, 2009. Resenha de: SOUZA, Karine Mileibe de. Crítica Histórica. Maceió, v.1, n.1, p.259-262, junho, 2010. Acessar publicação original [DR]

CHARTIER Roger (Aut), Leituras e Leitores na França do Antigo Regime (T), UNESP (E), BOBEK João Vinicius (Res), Crítica Histórica (CHr), Leituras, Leitores, Antigo Regime, Europa – França, Séc. 16-19

Roger Chartier historiador francês vinculado à atual historiografia da Escola de Annales, onde trabalha sobre a história do livro, da edição e da leitura, e que nesta obra apresenta oito ensaios que constituem uma história cultural em busca de textos, crenças e gestos aptos a caracterizar a cultura popular tal como ela existia na sociedade francesa entre a Idade Média e a Revolução Francesa. O intelectual francês mostra que a cultura escrita influencia mesmo àqueles que não produzem ou lêem textos, mas interagem com eles. Ao revisitar a chamada Biblioteca Azul, coleção de livros acessíveis vendidos por ambulantes (romances de cavalaria, contos de fada, livros de devoção), além de documentos próprios da chamada “religião popular” e textos sobre temas que se dirigem a um público geral, como a cultura folclórica, o autor enfoca as tênues fronteiras entre a chamada cultura erudita e a popular, mostrando como se ligam duas histórias: da leitura e dos objetos de leitura.

Assim sendo Chartier reforça o plural do plural de “civilidades”, que remete aos usos e intercâmbios de um código de polidez reconhecido por uma sociedade distinta, fazendo menção a Erasmo que rejeita os modelos aristocráticos da época pregando que a civilidade deveria ser uma instrução de um grupo moralizador, determinado, e deveria começar pelas crianças fazendo do aprendizado escolar a primeira instrução. O autor também indica, sempre citando autores como Courtin, que a civilidade pode ser uma virtude cristã, a caridade, pois deve ser uma questão de cada um, diferenciando o Homem do Animal, distinguido na sua execução em tantos comportamentos convenientes a cada estado ou situação. Em decorrência desses conceitos, a partir do século XVII, a noção de civilidade ganha um sentido ambíguo, pois sua função é designar a conduta histórica dos príncipes de tragédia, pois segundo Toussaint, a civilidade torna-se “um cerimonial de convenção”, dando origem a uma polidez devida aos príncipes, sendo muitas vezes uma aparência ou uma máscara que disfarça e engana. Assim nesse contexto, o conceito de civilidade está situado no próprio centro da tensão entre o parecer e o ser que define a sensibilidade e a etiqueta barroca.

Sendo Roger Chartier discípulo da Escola de Annales [2] percebe-se na compreensão do seu texto um intercâmbio entre a História Cultural [3] e a Antropologia, pois ele menciona Jean-Baptiste de La Salle para citar que este pensador abrange a civilidade tida honesta e piedosa como conveniência social. Portanto nessa teoria, a civilidade se afasta do uso aristocrático para constituir-se num controle permanente e geral de todas as condutas, sendo um modelo eficaz de comportamento das elites nas camadas inferiores.

A partir do século XVIII, a noção de civilidade conhece um duplo e contraditório destino, segundo Chartier. Ela permite aos humildes compreender o código de comportamentos, sendo que ensinada ao povo, a polidez se vê ao mesmo tempo desvalorizada aos olhos da elite que em contrapartida não exige nenhuma autenticidade de sentimento, sanciona a ruptura admitida e contraditória. Para Jacourt a civilidade foi imposta a inúmeros indivíduos e por isso perdeu seu valor de distinção, considerando que foi colocada a maioria e se tornou uma norma para as condutas populares.

Para fundar uma civilidade republicana, o articulista, juntamente com outros pensadores sugerem uma ruptura radical com a educação tradicional, já que a repetição dos gestos considerados convenientes é idealmente substituída pela aprendizagem de virtudes que conseguirão sempre expressar-se numa linguagem moral resultando numa instrução moral. Para o autor as novas obrigações dessa civilidade republicana não devem se regulamentar-se pelas diferenças de condição ou posição, pois se apóia na liberdade, conforme a igualdade. A civilidade refundida deve reconciliar enfim as qualidades da alma e as aparências exteriores, sendo nítida a recusa das formalidades antigas, pois essa abdicação à etiqueta tradicional encontra-se manifesta na esfera política.

Finalizando esse capítulo de sua obra, que deixa evidente os conceitos de polidez e civilidade, Chartier, deixa claro que a partir do século XIX, a civilidade pode ser definida como um conjunto de regras que tornam agradáveis e fáceis às relações dos homens entre si, podendo ser entendida como um código de boas maneiras necessárias na sociedade, sendo constituída e fixada por todo esse século, a identificação da civilidade com a conveniência burguesa.

Portanto pode-se comprovar que entre os séculos XVI e XIX, a noção de civilidade sofre mudanças e apanha um enfraquecimento. Deste modo apesar das tentativas de reformulá-la, a noção perde um pouco da teoria ético-cristã para significar apenas a aprendizagem das maneiras convenientes na vida das relações da sociedade, questionando assim, a diferença entre cultura popular e erudita, para obter-se a definição de tradição popular simplesmente como oposição à cultura erudita. Roger discute como diversos textos franceses desses séculos, que atravessam as fronteiras sociais entre clero, nobreza e Terceiro Estado. O historiador francês mostra assim a influência exercida pelo documento escrito mesmo entre os que não estão familiarizados com o livro e reconstitui em sua complexidade a comunicação cultural entre os homens do Antigo Regime.

Destarte para Roger Chartier, interpretam-se os artefatos, objetos históricos de análise, num campo onde se cruzam duas linhas: uma vertical, ou diacrônica, pela qual o historiador estabelece a relação de um texto ou de um sistema de pensamento com manifestações anteriores no mesmo ramo de atividade cultural; a outra é horizontal ou sincrônica, e através dela determina a relação do objeto cultural com o que vai surgindo noutros aspectos de uma cultura. Pode-se afirmar que o historiador tem uma posição bastante clara e comunga com a nova maneira de fazer história iniciada pela escola dos Annales: “Desembaraçando-se das etiquetas que pretendendo identificar os pensamentos antigos, os marcaram na realidade, a tarefa dos historiadores do movimento intelectual”, como escreve [4] Lucien Febvre, é acima de tudo reencontrar a originalidade irredutível a qualquer definição à priori, de cada sistema de pensamento, na sua complexidade e nas suas mudanças.

A dicotomia esquemática proposta pelos historiadores românticos não tem lugar dentro deste novo conceito de fazer história. Assim como qualquer outro exemplo de oposição rígida torna-se ridículo em face desta nova concepção dos historiadores dos Annales; concepção reafirmada pela atual definição de História Cultural que coloca a posição do historiador perante os artefatos históricos. Tal modo, através desta obra de Chartier, é possível trabalhar com os discursos historiográficos, realizando uma análise da passagem da leitura extensiva à intensiva, para assim poder abordar com destaque os aspectos da leitura como formação da identidade cultural intelectual francesa, para futuramente adquirir noções de abordagens de tópicos sociais do Antigo Regime.

Notas

2 Incorpora métodos das Ciências Sociais à História. Encontramos neste movimento, certa unidade em sua composição, mas não uma homogeneidade. Sendo como um conjunto de estratégias, uma nova sensibilidade, uma atividade que de fato mostra-se pouco preocupada com definições teóricas.

3 Frequentemente combina as abordagens da antropologia e da história para olhar para as tradições da cultura popular e interpretações culturais da experiência histórica. Ela se sobrepõe, em sua abordagem, ao movimento francês da história das mentalidades e à chamada Nova História.

4 Lucien Febvre historiador francês, cofundador da chamada “Escola dos Annales” e idealizou juntamente com Marc Bloch, a revista de História em 1929, chamada “Revue des Annales”.


Resenhista

João Vinicius Bobek1 – Professor Especialista formado em Licenciatura em História pela UEPG e Egresso do Projeto: Educação, Cultura e Diversidade Cultural: uma inclusão necessária. Sub-programa do Projeto Universidade sem Fronteiras.


Referências desta resenha

CHARTIER, Roger. Leituras e Leitores na França do Antigo Regime. São Paulo: UNESP, 2004. Resenha de: BOBEK, João Vinicius. Distinção e divulgação: a civilidade e seus livros. Crítica Histórica. Maceió, v.1, n.2, p.257-259, dez., 2010. Acessar publicação original [DR]

Priore Mary Del (Aut), Condessa de Barral/ a paixão do imperador (T), Objetiva (E), SILVA José Alexandre da (Res), Crítica Histórica (CHr), Condessa de Barral, Biografia, D. Pedro II, Séc. 19, Europa – Portugal, Europa – França, América – Brasil

Já é antigo o debate sobre a forma como os historiadores apresentam os resultados de suas pesquisas. Via de regra, ainda se acredita que os livros e história têm uma linguagem demasiadamente erudita e incapaz de atingir um público amplo.[1] Em contraste, também é considerado que a história desperta cada vez mais interesse e ganham destaque nesse contexto as reportagens históricas, livros escritos por jornalistas. Esses por sua vez, se gabam de serem donos de uma escrita mais agradável e capaz de atingir a um publico maior não especializado. O fenômeno mais significativo nessa direção talvez tenha sido a coleção Terra Brasillis de Eduardo Bueno que teve suas vendas alavancadas pela comemoração dos 500 anos de “descobrimento” do Brasil. O mais recente é o livro 1808… de Laurentino Gomes [2] que utilizou o aniversário de 200 anos da vinda da família real como trampolim de vendas e na esteira do sucesso já lançou também 1821… Em meio a esses, não passa desapercebida a historiadora Mary Del Priore que, depois de ganhadora de vários prêmios com obras acadêmicas, se lança no mercado editorial com biografias históricas das quais destacamos agora a da condessa de Barral.

A primeira empreitada de Mary Del Priore direcionada a um público mais amplo foi com O Príncipe Maldito, [3] obra que precedeu o livro ora resenhado. A autora afirma ter vislumbrado a opção de escrever livros de divulgação na década de 1990.

Quando me mudei para o Rio de Janeiro descobri os arquivos do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e percebi quantos filões poderiam nascer dali. E, nesse momento, houve uma ruptura naquilo que eu considerava que poderia ser uma carreira, como historiadora, e não como professora. Nunca me senti professora de nada e nem de ninguém. Então naquele período, vislumbrei a possibilidade de fazer livros de divulgação que chamassem a atenção para a questão da história do Brasil. Escrever sobre personagens que fossem desconhecidos usando-os como janelas para o passado.[4]

Vale notar na postura da autora, entretanto, uma divisão bastante nítida entre textos direcionados para profissionais de história e livros destinados a um público amplo, como que dizendo, texto acadêmico e obras destinadas ao grande público são coisas diferentes. Podemos encontrar ideia paralela a essa na formulação de Jorge Caldeira “biografia para comprovar tese é loucura”. Um contraponto interessante a esse posicionamento é dado por Schimidt,

Penso, pelo contrário, que os estudos biográficos podem ser de grande valia para a comprovação ou para a refutação de diversas teses consagradas. Só para lembrar um exemplo, bastante conhecido, o trabalho de Ginzburg (1987) sobre o moleiro Menocchio possibilitou repensar as relações entre cultura camponesa e cultura letrada na Europa pré-industrial.[5]

No caso da condessa de Barral, Del Priore afirma ter tido a sorte de “(…) encontrar documentação inédita, embaixo do nariz de todo mundo. Os diários da Condessa de Barral (…) estavam aqui no Instituto Histórico e Geográfico.” [6] Além das cartas da condessa, o livro é embasado em vasta documentação e bibliografia nacional e internacional que dão fôlego a sete capítulos sobre as diferentes fases da vida da condessa. A opção da autora é por uma narrativa linear, evitando recursos comuns nas biografias como os flashbacks. Evidentemente cada capítulo não é estanque em si, mas a organização da obra segue a cronologia dos fatos. Ao final da obra é exposta a bibliografia utilizada em cada capítulo, sinal da preocupação em expor as fontes a leitores que possam se interessar, ainda que sem onerar o texto com notas de rodapé. As citações de fontes são apontadas diretamente no corpo do texto, incorporadas na narrativa, de uma forma elegante a não o tornar pesado.

Luísa Margarida Portugal e Barros é o nome com o qual foi batizada a futura condessa de Barral, nascida em 1816. Mary Del Priore encontra motivos variados para chamar a atenção para a vida dessa mulher,

(…) Luísa ia revirar o mundo de ponta cabeça. Não só porque teve uma relação muito especial com D. Pedro II, mas porque teve uma relação muito especial com a vida. Devorou-a com apetite. Tomou o destino nas próprias mãos. Verdadeira camaleoa, Luísa se negou a ser prisioneira dos limites de sua época. Preferiu as aventuras do dia-a-dia. Inventora de uma maneira de viver, criadora de uma imagem de si, Luísa modelou seu destino, sempre insatisfeita com o que lhe foi dado. Sua existência, como a de todos os personagens fascinantes da história, foi marcada por ambiguidades. Ela foi “maravilhosa”, coquete e amante. Quando quis, no entanto, foi esposa exemplar.” [7]

Mas o argumento que definitivamente torna sua vida interessante é a relação que a bela Luísa viria a ter com o imperador D. Pedro II. Relação essa que, certamente, não prevaleceria se essa mulher casada fosse dotada apenas de “coquetterie” e graça, considerando o apreço do monarca por conhecimento e inteligência [8]. A escolha da personagem biografada, nesse sentido, também atende a um pré-requisito do gênero biográfico, pois é a vida de uma mulher que teve um relacionamento com alguém importante, o que é capaz de aguçar a curiosidade dos leitores [9].

O pai de Luísa se chamava Domingos Borges de Barros, era filho de senhores de engenho da Bahia. Homem culto, educado na Europa, estudava em Coimbra quando Napoleão Bonaparte tomou o poder na França. Sua mãe era D. Maria do Carmo De Gouveia, antes de se casar com Domingos uma jovem e rica viúva. Sua infância fora terminada na côrte francesa, pois Domingos fora nomeado para servir como diplomata e representante do Brasil na França, serviços recompensados com o título de Marques de Pedra Branca.

Entre as fotos e imagens do livro, a de Luísa quando jovem explica bem o interesse que despertava nos homens, a moça era dotada de beleza. Para surpresa de todos em 1835, Luisa reivindicava escolher seu destino. Pior para o rico Miguel Calmon Du Pin e Almeida, o Marques de Abrantes com quem Domingos já havia arranjado um casamento para a filha. Contava contra Abrantes também o fato de ser contemporâneo do pai da moça. Bom para o jovem e pobre nobre francês Eugênio de Barral que depois de um longo cortejo se casou com Luísa. Em 1837 o casal se muda da França para a Bahia. As relações do Marquês de Pedra Branca tornaram Luísa dama de honra da princesa Francisca de Bragança e depois aia das filhas do imperador D. Pedro II.

Como evitar que o livro se torne mais interessante a partir do capítulo cinco quando a historiadora narra o convívio da condessa de Barral, na condição de responsável pela educação das princesas, com o imperador? Estaria a biografia da fascinante condessa refém de um caso extraconjugal com imperador? Seja como for, os detalhes da trama são deliciosos. Ao menos para os ávidos por segredos sórdidos de personagens importantes. Tais como a decepção de Pedro II ao conhecer a imperatriz D. Tereza Cristina e a demora do mesmo em consumar o casamento o que causava apreensão nos cochichos de corredor. Ou também da pergunta de uma das princesas à sobre o porquê de durante as aulas o pai, pensando estar protegido pelas saias da mesa, dar pequenos pisões nos pés da aia. Da correspondência entre o imperador e a condessa a historiadora monta um quebra-cabeças muito interessante da relação dos dois.

Para além de outros poucos casos que se sabe de D. Pedro II fora do casamento, sua relação com a condessa de Barral se mostrou ser bastante duradoura. Quando não estavam próximos se comunicavam por correspondência. Por vezes a condessa escrevia ao imperador da forma que somente uma amante podia fazer. Quem mais poderia chamar a atenção de um chefe de Estado pela maneira despojada que teve D. Pedro II nas suas viagens para o exterior quando esse queria ser apenas o “cidadão Pedro d’Alcântara” [10]? Certamente a autoridade da condessa advinha da intimidade e monarquista convicta que era não conseguia entender os arroubos republicanos do imperador. A afeição entre os dois não teve apenas a duração da juventude de ambos. A despeito do que ele escrevia em 1880, “Ah! Se lhe contasse tudo o que imaginei nas lindas noites dos campos do Paraná” [11], a correspondência da fase final da relação dos dois denunciava mais uma relação regida pelo afeto e pelas lembranças. Principalmente pela distância e o fato de a condessa ser de uma viúva com um filho adolescente cheio de brios.

Para aqueles que acreditam que certas minúcias só podem ser conseguidas pelo treinamento de jornalista [12], Mary Del Priore da uma lição. Sua obra, Condessa de Barral… tem os ingredientes de uma boa biografia. Tem grande apelo editorial, pois a personagem biografada tem grande papel na vida privada de D. Pedro II. A riqueza de detalhes, contextualização e descrição de cenas e costumes estão presentes. Ainda que com o apelo à vida privada de personalidades importantes, se pode dizer que a biografada tem um que de outsider, pois se trata de uma mulher, uma mulher, com um grau de autonomia talvez maior que muitas mulheres de sua época. Talvez daí decorra seu caráter inusitado. A autora também é magistral em imbricar fatos pessoais e contexto histórico, tirando qualquer sinal de tonalidade particularista da obra. Uma obra que desmente que historiadores não sabem escrever para um público mais amplo.

Notas

1 Iniciamos uma pequena reflexão em SILVA, José Alexandre. A crítica da crítica. Observatório da Imprensa. Disponível em: Acessado em: 09/12/2010.

2 Apesar da tonalidade de panegírico é interessante ver SILVA, Deonísio. A História do Brasil em grandes reportagens. Observatório da Imprensa. Acessado em: 11/12/2010. 3 Apresentamos resenha da obra em: http://www.historiaehistoria.com.br/materia.cfm?tb=resenhas&id=46 Acessado em: 09/12/2010.

4 PRIORE, Mary Del. Entrevista concedida a Rodrigo Elias e Fabiano Vilaça. Revista de História da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, 2010, p. 52. Alguns trechos da citação são bastante elucidativos a respeito da concepção da autora que segmenta as atividades de professora e de historiadora. Seguindo esse raciocínio quer dizer que professores não podem escrever livros para o grande público?

5 SCHIMIDT, Benito Bisso. Construindo Biografias… Historiadores e Jornalistas: Aproximações e Afastamentos. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n.19, 1997, p. 11.

6 PRIORE, Idem, p. 53.

7 PRIORE, Mary Del. Condessa de Barral, a paixão do imperador. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008, p. 14.

8 “O segredo da condessa estava em ter prendido inicialmente o imperador pelo desejo e pela mente.” Ver CARVALHO, José Murilo. D. Pedro II, ser ou não ser. São Paulo: Cia das Letras, 2007, p. 75.

9 A respeito das biografias vale a pena levar em conta que “(…) um certo voyeurismo, mais ou menos velado (…) impele muitos autores a investigar minuciosamente a vida privada dos outros, sobretudo dos personagens destacados, a fim de demolir mitos (transformando-os em “gente como a gente”) ou simplesmente para saciar a curiosidade dos leitores.” SCHIMIDT, Idem p. 2.

10 CARVALHO, Idem, p. 10.

11 PRIORE, Idem, p.215.

12 Opinião do escritor Fernando Morais, mais detalhes em: BALDI, Renata. Os caçadores da história. Manchete, Rio de Janeiro, 10 fev. 1996, p. 40-43.

Resenhista

José Alexandre da Silva – Professor de História da Secretaria de Estado da Educação do Paraná (SEED) e membro do Grupo de Estudos em Didática da História (GEDHI). http://alexandre-textosdeopinio.blogspot.com


Referências desta resenha

PRIORE, Mary Del. Condessa de Barral, a paixão do imperador. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008. Resenha de: SILVA, José Alexandre da. Outras formas de escrita da história. Crítica Histórica. Maceió, v.2, n.3, p.266-269, jul., 2011. Acessar publicação original [DR]

GINZBURG Carlo (Aut), Relações de força: história/ retórica/ prova (T), BATISTA NETO Jonatas (Trad), Companhia das Letras (E), MACIEL Osvaldo B. Acioly (Res), Crítica Histórica (CHr), Ciência da História, Retórica, Prova, Teoria da História, Epistemologia Histórica, Metodologia da História, Séc. 18-20, Europa, América

Fazer História (de qualquer tipo, e especialmente a história cultural) nos idos atuais sem se render às incertezas, fraquezas e ambiguidades do paradigma dito pós-moderno é uma façanha que poucos conseguem levar adiante. Optar por este caminho e, para além disto, avançar no debate e na construção de uma história com procedimentos realistas (para não dizer científicos), ancorada solidamente na pesquisa documental e na busca da verdade, é tarefa ainda mais ingrata, a qual se impôs Carlo Ginzburg, com esmero e galhardia. São poucos os que fazem esta opção, e muitíssimo poucos os que a realizam a contento, como este italiano, autor – entre outros clássicos da historiografia contemporânea –, de Os andarilhos do bem, O queijo e os vermes, História Noturna, além de importantes ensaios para se discutir um novo paradigma para a história, ciência do homem.

Num de seus últimos livros, Relações de força: história, retórica, prova – coletânea de ensaios apresentados em diversos colóquios e encontros acadêmicos – Ginzburg exercita a arte de pensar historiograficamente, indicando caminhos para se refletir sobre o “inextirpável componente artesanal do trabalho do historiador”, que é comparado às “apalpadelas” do luthier sobre o violino (Nota à edição italiana, p. 12). Este atrelamento indissociável entre teoria e história é uma das grandes contribuições de Ginzburg à historiografia contemporânea, pois é cada vez mais difícil encontrar historiadores que escrevam Teoria e História propriamente, articulando as dimensões da prática historiográfica (pesquisa em arquivos, manuseio de fontes primárias) com a da reflexão sobre o ofício (a discussão dos métodos ou das abordagens, e mesmo a construção de teorias ou filosofias da História). Frequentemente vê-se autores defendendo este intercâmbio, ocupando-se, contudo, apenas de uma das duas partes.[1] Pois esta relação não pode ficar apenas enquanto carta de intenção, mas sim como procedimento intrínseco à construção dos argumentos e idéias defendidas.

Para exemplificar tal atitude, é digna de nota a maneira como Ginzburg consegue ser minucioso em suas construções de contexto e preciso em suas argumentações – sem cair na incomensurabilidade dos estudos de caso que não servem de parâmetro para nenhuma outra comparação -, articulando o ponto de vista defendido em cada um dos estudos com um quadro teórico de envergadura, a um só tempo preciso e denso, particular e amplo. A vasta erudição que possui e que é utilizada em proveito da sólida concepção teórica alia-se a esta forma singular de argumentação, utilizando-se de conjecturas plausíveis e bem definidas, e de elaborações conceituais que sirvam para ambientes mais amplos que aqueles aonde são utilizadas originalmente. Para ele, teorizar é vasculhar evidências históricas que corroborem as hipóteses com as quais trabalha. Assim, buscando um detalhe que pode ser definidor, ele reflete na oficina do historiador.

A discussão sobre a retórica e as implicações desta discussão sobre a narrativa e a escrita historiográfica compõe o eixo central do livro, articulando aspectos em comum aos quatro primeiros ensaios (publicados em inglês em 1999). O último artigo, sobre o Demoiselles d’Avignon de Picasso, acrescentado à edição italiana em 2000, já aponta para um conjunto de questões que aparecem subsidiariamente aqui, mas que serão centrais nas preocupações posteriores do autor: a saber, as relações de força entre as culturas, num mundo globalizado.[2] Neste breve texto, abordaremos alguns tópicos da discussão contida nos referidos quatro artigos originais, deixando de lado o ensaio sobre Picasso.

Para questionar a base teórica dos que aproximam ou identificam narrativa historiográfica e ficção literária, Ginzburg refaz o percurso acidentado da retórica no ocidente, remontando a origem grega desta discussão. Desta forma, afirma que a idéia de retórica que baseia boa parte da argumentação dos que identificam história e narrativa ficcional é uma ideia estranha a dos gregos, e em boa medida se escora na interpretação não referencial (denominada também de auto-referencial ou ainda de noção ornamental) da retórica, que ganha força no Ocidente a partir do orador romano Cícero. Como “até mesmo a fuga da história se enquadra historicamente”, o italiano localiza simbolicamente tal desvio no que concerne à historiografia contemporânea a partir de um congresso realizado em Baltimore, em 1966, em que se apresentavam os últimos desenvolvimentos do estruturalismo francês (pp. 35/6). Desde lá, ganhou força a articulação entre a história e esta interpretação da retórica, particularmente através das leituras de Nietzsche que realizaram seus epígonos, na segunda metade do século XX.

No ensaio “Sobre Aristóteles e a história, mais uma vez.” (pp. 47/63) [3] desenvolve-se a idéia de que o núcleo da discussão historiográfica em Aristóteles não estaria na Poética – como pretendiam muitos – mas na Retórica. É nesta obra que o filósofo grego identifica “um núcleo racional”, que seria a prova, ou melhor, as provas: “O nexo entre a historiografia, assim como foi entendida pelos modernos, e a retórica, na acepção de Aristóteles, deve ser procurado aí.” (p. 49). Inclusive, para não deixar dúvidas do que diz, Ginzburg reconstrói o contexto da produção historiográfica grega, identificando duas posturas distintas em relação a esta atividade: de um lado os antiquários (ou arqueólogos) que se utilizavam de uma averiguação mínima para realizar induções, como Tucídides, [4] e de outro os narradores, à maneira de Heródoto (pp. 56/7). Ginzburg aponta que o vocábulo história, criticado por Aristóteles na Poética, é retirado do léxico de Heródoto, e não da tradição mais empírica, de confecção do trabalho historiográfico e de averiguação das fontes que esparsamente se iniciava entre os gregos. Assim, Aristóteles estaria criticando Heródoto e sua concepção de História, e não Tucídides, a quem considerava um historiador “diferente e menos exposto às críticas”, nas palavras de Ginzburg. Com esta análise, e percebendo-se o modo como pensadores dos anos 1960-90 se apropriam da retórica, nosso autor acusa o relativismo culturalista pela sua “irresponsável ubiquidade” (p. 39), e alfineta que a viragem linguística deveria ser chamada, na verdade, de viragem retórica (p. 68).

Não satisfeito à simplesmente seguir contestando os princípios de onde parte os estudos culturalistas, Ginzburg passa a enfrentar seus inimigos num terreno de batalha que eles elegem como um dos mais favoráveis á suas escaramuças: o da discussão sobre a narrativa. É o caso dos ensaios “As vozes do outro (uma revolta indígena nas ilhas marianas)” (pp. 80/99) e “Decifrar um espaço em branco” (pp. 100/17).[5] Num, aborda o modo como um determinado tipo de interferência literária arque-típica (modelo clássico) pode revelar-se como uma forma de introduzir a polifonia no texto historiográfico, abrindo espaço para críticas a sociedade contemporânea do historiador que, de outro modo, não poderiam ser formuladas. No outro, analisa-se um “espaço em branco” existente em Educação Sentimental, do romancista francês Gustave Flaubert, interpretando-o como uma remissão a visão de mundo que o escritor possuía da sociedade em que vivia. Obviamente, o princípio a partir do qual parte o autor – para não falar dos procedimentos seguidos para dar cabo à tarefa – é muito distinto do de seus contendores. Para ele, “uma maior consciência da dimensão literária de um texto pode reforçar as ambições referenciais que, no passado, eram compartilhadas tanto pelos historiadores quanto pelos antropólogos” (p. 80), afirma. Mais que analisar um texto pelo texto em si, Ginzburg ocupa-se em perceber todo o contexto produtivo dos autores envolvidos, as estratégias de criação do texto utilizadas e os constrangimentos que a realidade em volta impingia ao escritor.

Analisando um livro escrito pelo jesuíta francês Charles Le Gobien (1700) sobre a história das Ilhas Marianas (no Oceano Índico), Ginzburg indica que o texto possui remissões a modelos clássicos de discursos que foram incorporados à fala de personagens históricos retratados no livro. Tal maneira de construção do texto pode ser entendida facilmente como uma “prova” da descrença em relação ao texto historiográfico, que não possuiria nenhum vínculo com a realidade a qual pretende historiar, e que na verdade não passaria de um discurso sobre um outro discurso, o real sendo inatingível. Mas Ginzburg é um campeão no combate a este tipo de ceticismo. Para ele, ancorado em Mably – que dizia que um historiador pode “por na boca dos seus personagens, opiniões que, se fossem ditas por ele, produziriam um escândalo” – o historiador “pode criticar o poder legítimo até o ponto de fornecer razões para derrubá-los”, mesmo se utilizando de estratagemas sutis. Teria sido isto o que Le Gobien fizera ao colocar no índio Hurao – líder de uma das revoltas ocorrida nas Ilhas Marianas – uma crítica feroz ao processo de colonização que lhes estava sendo imposto.

A idéia de expressar o ponto de vista dos indígenas, por meio da pessoa de Hurao, pode ser vista como uma tentativa de introduzir uma dissonância deliberada, que insere uma dimensão dialógica numa narração substancialmente monológica (p. 89).

O vínculo referencial necessário na construção do texto historiográfico – mesmo em se utilizando de artifícios literários para dar verossimilhança ao estudo – pode ser capturado não apenas na remissão às fontes pesquisadas, mas inclusive às pressões políticas e ao contexto cultural do período de escrita final. Le Gobien criticava, na verdade, uma das vertentes do processo de colonização – tão dura como a dos embates da globalização envolvendo culturas e povos muito distintos ocorridos na atualidade –, que terminaria por acabar com a ordem dos jesuítas na região.

Na busca desta polifonia (heteroglossia) percebe-se também a ressonância de um dos velhos mestres de Ginzburg: Mikhail Bakhtin. Referência direta em suas primeiras obras, como é o caso de O Queijo e os Vermes (particularmente com o conceito de circulação cultural entre camadas subalternizadas e elites), cremos que este traço de sua formação revela uma relação com aspectos do marxismo que nunca foi totalmente ausente em sua produção.

No ensaio em que aborda o espaço em branco de Educação Sentimental, Ginzburg argumenta que, para além do texto, revela-se naquele lapso um tempo de maturação e consciência da sociedade francesa que acontece com Flaubert. Assim, através do discurso indireto, Flaubert se intromete enquanto autor no texto, dando opiniões sobre as coisas do mundo… Apontando elementos para se pensar o problema da narrativa literária de modo geral, Ginzburg critica os teóricos da narrativa histórica [6] não apenas em seus pressupostos, mas também em seus procedimentos:

A postura, hoje difundida, em relação às narrativas historiográficas me parece simplista porque examina, normalmente, só o produto literário final sem levar em conta as pesquisas (arquivísticas, filológicas, estatísticas etc.) que o tornaram possível. Deveríamos, pelo contrário, deslocar a atenção do produto literário final para as fases preparatórias, para investigar a interação recíproca, no interior do processo de pesquisa, dos dados empíricos com os vínculos narrativos (p. 114).

Este livro de Carlo Ginzburg, do qual destacamos apenas alguns pontos para esta resenha, é um belo exemplo do que deve ser feito para defender a história do assalto que a desrazão do mundo atual lhe impõe. Aprendamos a lição.

Notas

1 Ver o caso de José Carlos Reis, que defende tal união, mas não consegue realizar o intento em seus livros. Cf. REIS, José Carlos. A história, entre a filosofia e a ciência. São Paulo: Ática, 1999. E História & teoria: historicismo, modernidade, temporalidade e verdade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003

2 Cf. Olhos de madeira: nove reflexões sobre a distância. Tradução de Eduardo Brandão – São Paulo: Cia. das Letras, 2001., além do artigo Latitude, Slaves, and the Bible: an experiment in Microhistory. In: www.helsinki.fi/collegium/events/-urry.pdf – capturado em 09 de agosto de 2006. Talvez tais preocupações reflitam um pouco do novo ambiente acadêmico onde Ginzburg trabalha, a UCLA, nos EUA.

3 A primeira edição do texto saiu no Quaderni Istorici nº 85, em abril de 1994.

4 O próprio Aristóteles aventurou-se com seus discípulos neste campo.

5 O primeiro destes é uma das conferências realizadas em Jerusalém, na primeira metade da década de 1990, o segundo permaneceu inédito até a publicação do livro.

6 Para ele, “termo pouco feliz”. A este, o italiano prefere um outro, “narrativa historiográfica”

Referências

GINZBURG, Carlo. Olhos de madeira: nove reflexões sobre a distância. Tradução de Eduardo Brandão – São Paulo: Cia. das Letras, 2001.

______. Relações de força: história, retórica, prova. Tradução de Jonatas Batista Neto – São Paulo: Cia. das Letras, 2002.

______. Latitude, Slaves, and the Bible: an experiment in Microhistory. In: www.helsinki.fi/collegium/events/-urry.pdf – capturado em 09 de agosto de 2006.

REIS, José Carlos. A história, entre a filosofia e a ciência. São Paulo: Ática, 1999.

______. História & teoria: historicismo, modernidade, temporalidade e verdade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003.


Resenhista

Osvaldo B. Acioly Maciel – UFAL/UNEAL.


Referências desta resenha

GINZBURG, Carlo. Relações de força: história, retórica, prova. Trad. Jonatas Batista Neto. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. Resenha de: MACIEL, Osvaldo B. Acioly. Aproximações a Ginzburg: Comentários sobre Relações de Força Crítica Histórica. Maceió, v.2, n.3, p.261-265, jul., 2011. Acessar publicação original [DR]

OLIVEIRA João Pacheco de (Org), A presença indígena no Nordeste: processos de territorialização/ modos de reconhecimento e regimes de memória (T), Contra Capa (E), SILVA Edson (Res), Crítica Histórica (CHr), Povos Indígenas, Nordeste Brasleiro, Terrotirialização, Reconhecimento Étnico, Regimes de Memória, Séc. 19-20, América – Brasil.

A ideia desse texto não é fazer propriamente uma resenha do recém-publicado livro A presença indígena no Nordeste: processos de territorialização, modos de reconhecimento e regimes de memória, pois uma resenha diante da dimensão do conjunto de textos que compõe o livro é uma tarefa bastante árdua e demandaria um espaço bem maior dos limites que aqui propomos. Buscamos tão somente então situar o livro em um debate mais amplo: as pesquisas, as reflexões e os textos gerais publicados sobre os índios no Nordeste.

Com suas mobilizações os índios no Nordeste vêm ocupando cada vez mais o cenário sociopolítico regional e assim questionando as tradicionais visões e imagens que advogam a inexistência, a extinção ou ainda o gradual desaparecimento dos povos indígenas na Região. Durante muito tempo e até bem recentemente, os indígenas no Nordeste não foram desconsiderados nas reflexões históricas, antropológicas e das Ciências Humanas e Sociais em uma visão baseada nas concepções da aculturação ou mestiçagem, após a extinção oficial dos aldeamentos indígenas a partir de meados do Século XIX.

No Nordeste, sobretudo após a Lei de Terras de 1850 que determinou os registros cartoriais das propriedades, definiu as terras devolutas oficiais que poderiam ser vendidas em leilões públicos, os senhores de engenho no litoral, os fazendeiros no interior, os tradicionais invasores das terras dos antigos aldeamentos indígenas bem como as autoridades defensoras que possuíam interesses comuns, sistematicamente afirmaram que os índios estavam “confundidos com a massa da população” e por esse motivo não existiam razões para continuidade dos aldeamentos.

Com a determinação oficial para extinção dos aldeamentos e no ato de medir, demarcar e lotear com destinação de pequenas glebas de terras para umas poucas famílias, os arrendatários e invasores tiveram suas posses legitimadas. Muitos indígenas migraram para as periferias urbanas, dispersaram-se pelas regiões vizinhas aos aldeamentos, outros passaram a trabalhar “de alugado” em suas próprias terras agora nas mãos de fazendeiros, e umas poucas famílias permaneceram nos “sítios”, pressionadas ao longo do tempo por fazendeiros. Assim, a partir das últimas décadas do Século XIX, ocorreu um silêncio oficial sobre os índios no Nordeste.

Os habitantes dos lugares onde existiram antigos aldeamentos passaram a ser chamados de caboclos, condição essa muitas vezes assumida pelos indígenas para esconder a identidade étnica diante das inúmeras perseguições. A essas populações foram dedicados estudos sobre seus hábitos e costumes, considerados exóticos, suas danças e manifestações folclóricas, consideradas em vias de extinção. Como também aparecerem nas publicações de escritores regionais, cronistas e memorialistas municipais que exaltam de forma idílica a contribuição indígena nas origens e formação social de cidades do interior do Nordeste.

A imagem do caboclo aparece em obras literárias sobre fatos pitorescos, recordações, “estórias” das regiões Agreste e Sertão nordestino. Como personagens típicos e curiosos que buscavam se adaptar às novas situações de sem-terras, vagando em busca de trabalho para sobrevivência. Escritores renomados, intelectuais e pesquisadores como Gilberto Freyre, Raquel de Queiroz, Câmara Cascudo, José Lins Rego, Graciliano Ramos, Jorge Amado, só para citar alguns dentre os mais conhecidos, em seus escritos quando se referiram aos indígenas remetem a um passado idílico e omitiram a presença indígena contemporânea no Nordeste.

Os povos indígenas no Nordeste, que retomaram suas mobilizações desde as primeiras décadas do século XX, conquistaram o reconhecimento do Estado brasileiro com a instalação de postos indígenas pelo Serviço de Proteção aos Índios/SPI, ainda que a atuação deste órgão governamental na Região tenha sido muito assistencialista e não garantido as terras indígenas. Os atuais povos indígenas questionam, portanto, as reflexões sedimentadas no desaparecimento indígena na Região e se constituem em um desafio, uma demanda para compreensão dos processos históricos que resultam nas mobilizações sociopolíticas atuais pelas reivindicações, conquistas e garantias de seus direitos.

Do ponto de vista dos estudos, pesquisas e publicações com uma abordagem geral sobre os índios na Região, em 1935 o antropólogo Estevão Pinto publicou Os indígenas do Nordeste, na renomada Coleção Brasiliana da Editora Nacional. O primeiro volume tem como subtítulo “Introdução ao estudo da vida social dos indígenas do Nordeste brasileiro”. Trata-se de uma minuciosa pesquisa bibliográfica e documental ilustrada com mapas, quadros e fotografias. O segundo volume, trazendo o subtítulo “organização dos indígenas do Nordeste brasileiro”, veio a público em 1938 e, além de mapas e quadros, trouxe diversos desenhos, gravuras e estampas, reproduzidas de livros de viajantes que estiveram no Brasil. Esse volume é baseado principalmente nas informações dos cronistas coloniais e viajantes, tratando, em quase sua totalidade, dos tupis no litoral.

A obra Os indígenas do Nordeste recebeu efusivas acolhidas de estudiosos da época, dentre os quais Gilberto Freyre, Pedro Calmon, o antropólogo Herbert Baldus, que publicaram resenhas críticas, elogiosas a erudição, capacidade de interpretação e síntese do autor. Com a obra, o alagoano Estevão Pinto, mas com a trajetória profissional em Pernambuco, passou a ser conhecido no Brasil e no exterior, realizando conferências, participando de congressos, publicando artigos.

Estevão Pinto que realizava estudos sobre os índios Fulni-ô (Águas Belas/PE), seria nos próximos anos pesquisador e antropólogo da Fundação Joaquim Nabuco, dirigida por Gilberto Freyre, de quem era muito próximo, e principalmente de suas ideias a respeito da mestiçagem, foi adepto das concepções da aculturação e assimilação das populações indígenas com ênfase na progressiva caboclização. Em Os índios do Nordeste o autor expressou o que reafirmará em escritos posteriores, a exemplo do livro Etnologia brasileira: Fulniô, os últimos tapuias publicado em 1966, sua visão sobre o desaparecimento paulatino dos índios e a crença em sua total extinção.

Embora não seja específico sobre os índios no Nordeste, o livro Os índios a civilização com o subtítulo “a integração das populações indígenas no Brasil moderno”, do antropólogo Darcy Ribeiro teve a primeira edição publicada no Brasil em 1970. No capítulo “Os índios do Nordeste” o autor fez uma retomada histórica sobre os processos de esbulhos das terras indígenas na Região. Ao tratar dos indígenas que habitavam no Sertão do São Francisco o antropólogo afirmou que em função da expulsão dos seus territórios, os índios se dispersaram, vivendo, no início do século XX, “aos bandos que perambulavam pelas fazendas, à procura de comida”. E de forma pejorativa e talvez sarcástica, completou: “vários magotes desses índios desajustados eram vistos nas margens do São Francisco” (1982, p.56).

São bastante conhecidas as concepções de genocídio e etnocídio sobre a história dos povos indígenas no Brasil, defendidas por Darcy Ribeiro. O autor também advogou as “etapas da integração”, para os povos indígenas existentes nas áreas mais antigas da colonização português a exemplo do Nordeste. As categorias de índios “integrados” e de “grau de integração na sociedade nacional” foram atribuídas aos grupos indígenas que se encontravam no século XX “ilhados em meio à população nacional”, como também a ideia da aculturação e assimilação dos índios a sociedade nacional.

Em nota na Introdução de Os índios e a civilização, o autor afirmou que o livro era resultado do relatório de pesquisas realizadas desde 1952, que parcialmente publicara em 1958 e com versões de alguns dos capítulos divulgadas em revistas nacionais e internacionais, nos anos seguintes. Cabe lembrar ainda que Darcy Ribeiro foi funcionário do SPI, órgão estatal cuja concepção e atuação se fundamentava nos cânones positivistas, na proteção fraternal dos índios, atuando para integrá-los pacificamente ao mundo dos não-índios e portanto concebendo que ser índio era uma condição transitória e não respeitada. Sendo ainda Darcy Ribeiro um grande admirador das ideias e da pessoa do Marechal Rondon o fundador do SPI, a quem o antropólogo dedicou Os índios e a civilização.

Observemos que o citado livro com seu o titulo binário expressa oposições explícitas: “os índios” e a “civilização”. Ou mais sutis: os índios atrasados que se integram no “Brasil moderno”. Foi então a partir dessa perspectiva que o antropólogo pensou e escreveu sobre os povos indígenas na história do país. A ideia de um Brasil moderno formado por uma macroetnia, o povo brasileiro, que aparece em Os índios e a civilização foi retomada e defendida pelo autor em estudos posteriores. Na perspectiva de Darcy Ribeiro os povos indígenas, mesmo aqueles considerados “isolados”, enquanto microetnias em nada influenciariam a História e a configuração do país, muito menos os “integrados”!

Os méritos de Darcy Ribeiro decorrem de ter sido o primeiro autor que discutiu o “problema indígena” de uma forma ampla, e por sua explícita posição política em denunciar as opressões sobre os índios na História do Brasil, o que tornou as ideias do antropólogo bastante conhecidas. Os índios e a civilização, livro com várias edições, por sua quantidade de informações e sistematização de dados, ainda que guardada as necessárias ressalvas, continua sendo uma leitura necessária para se conhecer parte da história das populações indígenas no país. Além de ter sido traduzido para outras línguas, adotado nos diversos cursos de Ciências Sociais e Humanas no Brasil, formando uma geração de estudantes, foi também lido por profissionais de outras áreas e pelo público em geral. As ideias desse livro a respeito dos índios no Nordeste, em muito influenciaram a visão de outros estudiosos e o senso comum sobre os índios e suas expressões socioculturais na Região.

A Coleção Índios do Nordeste: temas e problemas, atualmente com 12 volumes, vêm sendo publicada desde 1999 pela Editora da Universidade Federal de Alagoas (EDUFAL). Os livros dessa série, embora boa parte dos volumes seja estudos dedicados aos índios em Alagoas, são coletâneas de textos publicados por autores que pesquisam os povos indígenas no Nordeste. Todavia não percebemos uma preocupação na discussão teórica mais aprofundada sobre o conjunto dos textos publicados em cada volume. E um estudo sobre os significados dessa Coleção para a reflexão a respeito dos índios no Nordeste ainda estar por ser realizado.

O livro A viagem da volta: etnicidade, política e reelaboração cultural no Nordeste indígena, organizado pelo antropólogo João Pacheco de Oliveira (UFRJ/Museu Nacional) e publicado em 1999 (2ª edição, 2004), marcou decisivamente as mudanças ocorridas nos atuais estudos sobre os povos indígenas no Nordeste. Em um instigante texto introdutório o organizador a partir dos conceitos situação colonial, territorialização e fluxos culturais, propôs uma etnologia sobre os chamados “índios misturados” no Nordeste, situando as discussões nos artigos que compõem a coletânea. O livro é, portanto, uma coletânea de textos que problematiza as práticas discursivas nos processos históricos de esbulhos das terras dos aldeamentos, enfatizando as mobilizações indígenas contemporâneas pelas afirmações das identidades étnicas e reivindicações de seus territórios. Os artigos desse livro são reflexões de estudos acadêmicos para o mestrado e doutorado, em sua maioria orientados pelo organizador, e resultaram na feliz conjugação de abordagens baseadas nas pesquisas antropológicas, sociológicas e históricas.

Já o livro A presença indígena no Nordeste: processos de territorialização, modos de reconhecimento e regimes de memória, consolidou definitivamente os povos indígenas na Região como um tema de estudos. A publicação desse livro com mais 10 anos após a 1ª edição da coletânea A viagem da volta, representa um esforço de reunir textos das mais recentes pesquisas e reflexões sobre o assunto. Confirmando, portanto, que os interesses pelos estudos a respeito dos índios no Nordeste não só continuaram ao longo do período, como foram ampliados e se diversificaram.

Essa alentada nova coletânea com 24 textos que retomam abordagens sobre os índios no Nordeste enquanto sujeitos históricos ao longo da História do Brasil. E como se lê na Apresentação, o livro “decorre do desconforto e mesmo indignação que gera num conjunto de pesquisadores a forma superficial e preconceituosa com que a existência indígena no Nordeste”, o que é expresso diuturnamente com muita força pelos meios de informações com consequências danosas no conhecimento sobre os povos indígenas entre estudantes, na formação da opinião pública e no senso comum em geral.

Trata-se sem dúvidas de uma significativa contribuição para compreensão da participação dos povos indígenas nos processos históricos no Nordeste, e por essa razão uma leitura imprescindível para todos aqueles/as que se empenham com seriedade em conhecer e estudar a história da Região na perspectiva das mudanças sociais que se fazem necessárias, onde os povos indígenas foram, são e serão atores sociopolíticos atuantes e importantes.

Referências

OLIVEIRA, J. P. de. (Org.). A viagem de volta: etnicidade, política e reelaboração cultural no Nordeste indígena. 2ª ed. Rio de Janeiro, Contra Capa, 2004.

PINTO, Estevão. Os indígenas do Nordeste: introdução ao estudo da vida social dos indígenas do Nordeste brasileiro. São Paulo: Nacional, 1935, v.1.

______Os indígenas do Nordeste: organização e estrutura social dos indígenas do Nordeste brasileiro. São Paulo: Nacional, 1938, v.2.

______Etnologia Brasileira: Fulniô os últimos tapuias. São Paulo, Nacional, 1956.

RIBEIRO, Darcy. Os índios e a civilização: a integração das populações indígenas no Brasil moderno. 4ª ed. Petrópolis, Vozes, 1982. (a primeira edição brasileira é de 1970).

SILVA, Edson. Xukuru: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá (Pesqueira/PE), 1959-1988. Campinas, UNICAMP, 2008. (Tese Doutorado História Social)


Resenhista

Edson Silva – Doutor em História Social pela UNICAMP. Leciona no Programa de Pós-Graduação em História/UFPE, no Programa de Pós-Graduação em História/UFCG (Campina Grande-PB) e no Curso de Licenciatura Intercultural Indígena na UFPE/Campus Caruaru, destinado a formação de professores/as indígenas. É professor de História no CENTRO DE EDUCAÇÃO/Col. de Aplicação-UFPE/Campus Recife. E-mail: edson.edsilva@gmail.com


Referências desta resenha

OLIVEIRA, João Pacheco de (Org.). A presença indígena no Nordeste: processos de territorialização, modos de reconhecimento e regimes de memória. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2011. Resenha de: SILVA, Edson. A afirmação dos índios no Nordeste!. Crítica Histórica. Maceió, v.2, n.4, p.314-319, dez., 2011. Acessar publicação original [DR]

DORATIOTO Francisco (Aut), Maldita Guerra: Nova História da Guerra do Paraguai (T), Companhia das Letras (E), SALLES André Mendes (Res), Crítica Histórica (CHr), Guerra do Paraguai, América – Brasil, América – Argentina, América – Uruguai, Séc. 19

Como já mencionamos em oportunidade anterior [2], a Guerra do Paraguai é uma temática que tem gerado celeumas na historiografia brasileira (e não somente nesta). O professor Francisco Doratioto, que atua no Departamento de História da Universidade de Brasília, é conhecido nacional e internacionalmente por pesquisar sobre a Guerra do Paraguai e as relações internacionais entre o Brasil e os países da América Meridional.

Maldita Guerra: Nova História da Guerra do Paraguai, livro publicado pela Companhia das Letras, é fruto de anos de pesquisa do autor e é considerado um referencial para o pesquisador que deseje se aventurar nas tumultuosas águas das Histórias referentes à Guerra do Paraguai. Alguns pesquisadores, contudo, chegam a utilizar irrefletidamente o texto do professor Doratioto como um porto seguro, quase que como um ponto final nas altercações produzidas sobre a historiografia do conflito.

Destacamos aqui a contribuição que o professor Doratioto prestou a historiografia da Guerra do Paraguai, mas não podemos, sob o risco de incorrermos na mais pura ingenuidade, considerá-la como a interpretação mestra que desvendou/iluminou a verdade (Como se algo desta natureza fosse possível) sobre a Guerra do Paraguai.

O próprio professor Doratioto, em momento anterior [3], chegou a afirmar, inadvertidamente, que a década de 1990 trouxe uma nova luz sobre a Guerra do Paraguai, como se fosse possível que a verdade tivesse finalmente chegado para iluminar os fatos obscuros relacionados a esta temática.

Doratioto é considerado por alguns como o historiador responsável por “desmantelar a arraigada versão marxista” [4] sobre a Guerra do Paraguai, por desmenti-la, como se a historiografia Revisionista de Pomer e Chiavenato [5] fosse um engodo, como se não passasse de uma historiografia apaixonada, tendenciosa e mesmo falaciosa. O próprio Doratioto não poupou esforços para assim apresentar a historiografia revisionista.

Doratioto, no intuito de desqualificar a historiografia revisionista, argumenta que esta segue uma perspectiva ideológica e militante. Desta forma, fazemos alguns questionamentos: será que somente a historiografia marxista possui essas características? Será que somente essa corrente historiográfica que é engajada, apaixonada e tendenciosa? Há perspectiva historiográfica que não seja ela mesma ideológica? A historiografia nacionalista de direita não é militante e ideológica? Não seria a historiografia positivista, àquela anterior a revisionista, engajada, preocupada em criar mitos e grandes personagens, em criar heróis e vilões? Não seria a historiografia dita neo-revisionista, uma volta à perspectiva nacionalista (um neonacionalismo?) e, portanto, também ela mesma engajada?

Acreditamos que Francisco Doratioto restaura/revigora, em certo sentido, a historiografia nacionalista anterior ao revisionismo histórico de Pómer e Chiavenatto. Desta forma, o epíteto de neo-nacionalista ou mesmo restauracionista, como denominou Maestri [6], talvez se enquadre melhor para caracterizá-lo do que neo-revisionista.

Em sua Maldita Guerra, Doratioto, já no primeiro parágrafo da introdução, diz:

Entre 1740 e 1974, o planeta teve 13 bilhões de habitantes e assistiu a 366 guerras de grande dimensão, ao custo de 85 milhões de mortos. O resultado dessas guerras parece ter sido um premio à agressão, pois em dois terços delas o agressor saiu-se vencedor e, quanto a duração, 67% terminaram em prazo inferior a quatro anos. A Guerra do Paraguai faz parte, portanto, da minoria, pois o agressor, o lado paraguaio, foi derrotado, e a luta se estendeu por cinco anos (p. 17) (Grifo nosso).

Desta forma, Doratioto já deixa bem clara, desde o primeiro parágrafo de sua obra, a sua concepção acerca do conflito. O agressor, quer dizer, o causador da guerra, foi o governo do Paraguai, que invadiu o Brasil, tendo este, inevitavelmente, que retaliar. Portanto, assim entendido o conflito, o governo brasileiro, aquele atingido pela agressão da República paraguaia, apenas defendeu-se do tirano megalômano que presidia aquele país. Assim, o autor continua advogando em defesa brasileira:

A geração daqueles que lutaram na guerra, quer nos países aliados, quer no Paraguai, não registrava de forma positiva o papel histórico de Solano López. Havia certeza da sua responsabilidade, quer no desencadear da guerra, ao invadir o Mato Grosso, quer na destruição de seu país, pelos erros na condução das operações militares e na decisão de sacrificar os paraguaios, mesmo quando caracterizada a derrota, em lugar de pôr fim ao conflito (p. 19) (Grifos nossos).

Além de o autor assegurar a unanimidade em relação a percepção do papel histórico exercido por Solano López entre aqueles que participaram da guerra, algo que, com toda certeza se constitui como improvável e de difícil comprovação histórica, isenta o Império brasileiro de toda a responsabilidade de guerra. Sob uma perspectiva nacionalista, Doratioto aponta López como o responsável, não apenas pelo conflito, mas também, e talvez sobretudo, pela própria destruição do Estado paraguaio e pela dizimação de sua população.

Na visão deste autor, os mortos em combate se constituíram em uma minoria se comparados àqueles que pereceram “devido à fome, doenças ou exaustão decorrente da marcha forçada de civis para o interior, ordenada por Solano López” (p. 456). Para Doratioto, a apresentação deste governante como “ambicioso, tirânico e quase desequilibrado” pela historiografia tradicional “não estava longe da realidade e pode até explicar certos momentos da guerra, mas não sua origem e dinâmica”. (p. 19).

É preciso ressaltar que Doratioto, apesar de pôr em relevo os conflitos regionais relacionados ao processo de construção dos Estados platinos como principal motor da Guerra do Paraguai, retoma muitas das explicações e argumentações da historiografia tradicional, mormente àquelas relacionadas à figura de Solano López.

Outro fator a ser destacado é que Doratioto, assim como fizeram os militares da historiografia tradicional, estabelece o evento do aprisionamento do navio Marquês de Olinda e a invasão à Mato Grosso por forças paraguaias como o marco inicial do conflito. Ao assim proceder, Doratioto, automática e contraditoriamente, desconsidera todos os conflitos anteriores relacionados à Região Platina como possíveis geradores/provocadores da Guerra do Paraguai (como, por exemplo, as intervenções do Estado imperial brasileiro na Argentina e Uruguai).

Torna-se importante destacar, contudo, que Doratioto trata em sua obra das intervenções brasileiras no Uruguai e na Argentina. Contudo, ao estabelecer as investidas paraguaias ao Império brasileiro como início do conflito, desconsidera, contraditoriamente, todos os acontecimentos anteriores relacionados/contextualizados à Guerra do Paraguai.

Em relação às intervenções do Império brasileiro nos Estados platinos, Doratioto afirma:

Para viabilizar a intervenção no Uruguai, a diplomacia imperial obteve o beneplácito do governo argentino. Ao promover a entrada de tropas brasileiras no Estado oriental em setembro de 1864, o governo imperial não esperava que o ato gerasse reação contrária significativa. Contudo, Solano López reagiu invadindo o Mato Grosso, em dezembro de 1984, e Corrientes, na Argentina, em abril de 1985 (p. 474) (Grifos nossos).

Na afirmação feita, percebemos que o professor Doratioto entra em contradição com a perspectiva inicialmente exposta por ele: A de que o Paraguai teria sido o país agressor. Na citação em destaque, a ideia apresentada é a de que o país guarani apenas reagiu às atitudes imperialistas do governo imperial brasileiro. A partir de então, entendemos que assinalar como o marco inicial do conflito o evento do aprisionamento do navio brasileiro Marquês de Olinda e a invasão ao Mato Grosso por forças paraguaias é uma arbitrariedade, isso porque desconsidera toda a política imperialista do Estado imperial brasileiro da segunda metade do século XIX.

Em outro momento, Doratioto diz que “a oposição conservadora apontou como desaconselhável o aumento da extensão das fronteiras brasileiro-argentinas [no que se refere ao Tratado da Tríplice Aliança]”. Diz ainda que a mesma oposição conservadora “[…] indicou que a independência paraguaia estaria ameaçada, pois o país guarani ficaria cercado a leste e a oeste por território argentino, numa espécie de abraço apertado” (p. 474-475) (Grifos nossos).

Questionamos o seguinte: Estando a independência paraguaia ameaçada pelo Tratado da Tríplice Aliança, que fora negociado antes do conflito propriamente dito, como poderia, por exemplo, ser este o país agressor?

Doratioto, ao comentar sobre os eventos que implicaram no aprisionamento do navio Marquês de Olinda e na invasão do Mato Grosso por forças armadas paraguaias, diz “[…] o Império [brasileiro] não declarara guerra ao Paraguai, mas Solano López interpretava ou fingia crer que sim”. Esse autor afirma ainda que Solano López deu a entender “em evidente falsificação, que houvera um ataque brasileiro a alvo paraguaio”. E completa: “O governo imperial e a opinião pública brasileira consideraram a captura [do navio Marquês de Olinda] um ato traiçoeiro de Pirataria” (p. 66) (Grifos nossos).

Não obstante Doratioto assinalar que o governo paraguaio entendia como um insulto, ou mesmo um perigo iminente a visita do Marquês de Olinda em águas paraguaias, devido à invasão ao Uruguai, o mesmo considera que López teria fingido tal interpretação, em evidente falsificação. Isso porque, segundo este autor, o governo imperial brasileiro não teria declarado guerra ao Paraguai apenas por invadir o Uruguai.

Entendemos, contudo, que a aliança entre o Uruguai e o Paraguai se constituía como uma forma de equilíbrio de forças na Região do Prata. O império brasileiro, ao realizar a invasão ao Uruguai, rompeu com esse equilíbrio, deixando o Estado paraguaio em situação de vulnerabilidade. Desta forma, diferentemente de Doratioto, não entendemos que a interpretação de López ao considerar que o Estado brasileiro havia-lhe declarado guerra seja um falseamento. A geopolítica da Região platina era muito mais complexa do que a simplificação apresentada por Doratioto.

Enfim, passados exatamente dez anos da publicação de Maldita Guerra, podemos ponderar melhor as suas conclusões/resultados e perceber que existem outras possibilidades para se refletir/pesquisar sobre a Guerra do Paraguai, quer dizer, existem outros caminhos possíveis a serem trilhados que não somente aquele relacionado ao chamado neo-revisionismo.

Notas

1 Mestre em História pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e professor do Departamento de Educação da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). E-mail: andremendes.s@hotmail.com

2 SALLES, André Mendes. A Guerra Grande no ensino de História. In: SOARES Jr., Azemar dos Santos (org.). Retalhos de História: Culturas políticas e educação no Nordeste do Brasil. João Pessoa: Editora Universitária da UFPB, 2011, p. 131-146.

3 DORATIOTO, Francisco. Nova luz sobre a guerra do Paraguai. Revista Nossa História, Rio de Janeiro, n.13 Nov. de 2004, p.18-23.

4 Marthe, Marcelo. A Guerra das versões: Um historiador diz que a Guerra do Paraguai não foi bem do jeito que se tem ensinado na escola. Disponível em: http://veja.abril.com.br/030402/p_122.html. Acessado em 01 de fev. de 2012.

5 POMER, León. A Guerra do Paraguai: a grande tragédia rio-platense. Tradução Yara Peres. São Paulo: Global, 1980; CHIAVENATTO, Júlio José. Genocídio Americano: a Guerra do Paraguai. 18ª ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1983.

6 MAESTRI, Mário. A guerra contra o Paraguai: História e historiografia: da instauração à restauração historiográfica [1871-2002]. Nuevo Mundo Mundos Nuevos [en línea], colóquios, 2009, puesto en línea el 27 mars 2009. Disponível em: http://nuevomundo.org/index55579.html. Acessado em 20 jul. 2009.


Resenhista

André Mendes Salles – Mestre em História pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e professor do Departamento de Educação da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). E-mail: andremendes.s@hotmail.com


Referências desta resenha

DORATIOTO, Francisco. Maldita Guerra: Nova História da Guerra do Paraguai. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. Resenha de: SALLES, André Mendes. Historiografia da Guerra do Paraguai. Crítica Histórica. Maceió, v.3, n.6, dez., 2012. Acessar publicação original [DR]

JACOBY Russell (Aut), Os últimos intelectuais: a cultura americana na era da academia (T), LOPES Magda (Trad), Trajetória Cultural (E), Edusp (E), SILVA Rafael Pereira da (Res), Crítica Histórica (CHr), Intelectuais, Universidades, Professores, Ensino, Pesquisa, Extensão, América – Brasil, Séc. 20, América – EUA

Em meio à última greve nas Instituições Federais de ensino, a leitura de Os últimos intelectuais: a cultura americana na era da Academia, levanta um debate franco sobre o papel das universidades brasileiras, de seus professores e de sua bandeira: ensino, pesquisa, extensão. Esgotado no Brasil e pouco conhecido, o livro de Russel Jacoby, um professor exmilitante de esquerda apresenta uma crítica sobre o papel do intelectual frente aos problemas do seu tempo. Foca-se na área das ciências humanas e da literatura estendendo-se um pouco ao jornalismo e aos contextos do antes e do pós-guerra nos Estados Unidos, momento da expansão dos campi por todo o país. O autor defende a tese de que naquele país o intelectual público desapareceu completamente, não deixando ninguém no seu lugar, exceto um punhado de professores universitários tímidos, dominados por um jargão peculiar nos quais ninguém na sociedade prestava muita atenção, independentemente, se conservadores ou esquerdistas. Além desse trabalho, o único prublicado no Brasil, Jacoby é autor de Social Amnesia (1975), The dialetc of Defeat (1981) e The Repression of Psychoanalysis (1983).

O título por si só vale um comentário. “Últimos” na sua concepção apresenta um paradoxo: expõe o fim dos intelectuais públicos que buscavam espaço na imprensa e em outros veículos de informação, cuja linguagem, estilo e crítica radical pressupunha um leitor educado, amplo e sedento por debates, ao mesmo tempo em que apresenta os “últimos” como “novos”, voltados para si mesmos, para dentro dos muros universitários.

Independente da tomada de posição nos quadros do atual movimento, é importante ressaltar que o papel das universidades brasileiras sempre foi de grande relevância nas mais diversas áreas do conhecimento, e não raro foi a entrada de ex- professores nas esferas do poder político nos mais altos cargos. Em tempos não muito longínquos as universidades também se caracterizaram como um dos locais de resistência ao regime civil-militar que assolou o país por mais de duas décadas. Nesse caso, perseguições, aposentadorias compulsórias e exílio faziam parte da rotina. E do caos, muito debate, muito trabalho e muitas pautas para serem resolvidas pelas ciências humanas resultaram em ideias e livros. Obras foram publicadas, dentro do país sob o véu da censura ou no estágio do exílio. Tivemos como pano de fundo diferentes problemáticas: a revolução burguesa, o sentido da colonização, a teoria da dependência, a cultura nacional ou se as ideias estavam ou não fora do lugar. Sob os mais diversos matizes a intelectualidade universitária brasileira tentou a seu modo dar conta dessa demanda, destacando-se no cenário Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Otávio Ianni, Celso Furtado, Raimundo Faoro, Caio Prado Jr., Sérgio Buarque de Holanda, Nelson Werneck Sodré, Antonio Cândido, Roberto Schwarz, Maria Silvia de Carvalho Franco, Carlos Guilherme Mota, para citar alguns. Relevante também é mencionar que a pós-graduação dessa época adversa apenas engatinhava.

Tamanho são os problemas levantados pelo ensaio de Jacoby que antes de adentrarmos aos muros universitários dos subúrbios estadunidenses, ele nos leva a passear pelas ruas de Greenwich Village, boêmio bairro nova-iorquino das primeiras décadas do século XX, quiçá o que significou décadas depois para a Faculdade de Filosofia da USP a rua Maria Antonia, “uma rua na contramão”, como aponta o título de um livro/documento organizado por Maria Cecília L. dos Santos, cujos personagens citados acima contribuíram com depoimentos [1]. Para os padrões europeus seria o mesmo que o Quartier Latin, em Paris. No auge de Village, raramente os intelectuais eram professores universitários. No geral eram escritores, polemistas, artistas, críticos que utilizavam os espaços dos jornais e periódicos como freelancers e devido aos aluguéis baratos, por lá mesmo se estabeleciam, gerando uma ampla rede de sociabilidade e um profícuo espaço de debate público tendo a rua como campo de batalha, tanto de ideias como de sobrevivência.

Das ruas de Nova York para o prefácio Jacoby se pergunta: onde estão os intelectuais? Ele busca a resposta em um livro intitulado A América e o intelectual jovem [2], de Harold Stearns (1891-1943). Este por sua vez mirava os intelectuais americanos fugidos para a Europa. Acreditava que a hostilidade de uma civilização comercial para com a juventude em geral e para com os intelectuais em particular era o que impelia os jovens escritores à Europa. Com base nessas constatações e refletindo sobre o seu presente Jacoby aponta o seguinte: “Isto não representa a situação atual. A juventude é endeusada; os intelectuais, se percebidos, são glorificados ou subsidiados. O jovem vai para a Europa não para fugir, mas de férias, às vezes para conferências. Poucos intelectuais americanos vivem no exílio. Longe de romantizar, a questão ainda permanece. Onde estão os intelectuais mais jovens? É meu ponto de partida. Eu não encontrei muitos” [3].

O ensaio é dividido em sete capítulos e numa narrativa fluente Jacoby tece seu argumento sempre empenhado na tentativa de compreender como pôde haver uma lacuna tão grande entre uma geração e outra. Apresenta essa construção de sentidos através das modificações urbanas e da expansão dos campi no pós- II Guerra, locus para onde migrou a geração do baby boom ou a Nova Esquerda. Utiliza para tanto diversas categorias analíticas, tais como, boemia, intelectuais, geração, vida cultural e sem a pretensão de definí-las exaustivamente dispara contra os jargões conceituais: “excessivas definições e excessiva cautela sufocam o pensamento” [4].

Se no Brasil o estardalhaço não veio, talvez por motivos de preservação dos que se sentiram criticados, nos Estados Unidos ele repercutiu positivamente, ao menos é o que nos aponta o crítico Edward Said. Em uma de suas Conferências transmitidas pela rede inglesa BBC em 1993 intitulada Profissionais e Amadores, o professor de Columbia apresenta o livro de Jacoby como um trabalho que gerou grande discussão, “a maior parte dela de aprovação” [5]. Em sua fala Said reforça a apresentação da geração dos intelectuais do Village que incluíam homens e mulheres como Edmund Wilson, Jane Jacobs, Lewis Mumford e seus seguidores de um pouco mais tarde como Philip Rahv, Alfred Kazin, Susan Sontag, Daniel Bell, Lionel Trilling, pessoas que, de acordo com o autor do livro, perderam importância por causa de várias forças políticas e sociais do pós-guerra: a fuga para os subúrbios (para Jacoby o intelectual é uma criatura urbana), as irresponsabilidades da geração beat, pioneira na ideia de romper com tudo e fugir de uma posição estabelecida na vida, a expansão da universidade e a ida para o campus da primeira esquerda independente americana.

A soma desses fatores é que o intelectual hoje é muito provavelmente um professor de literatura confinado com uma renda segura, sem nenhum interesse em lidar com o mundo fora da sala de aula, indivíduos que, segundo Jacoby, “escrevem uma prosa esotérica e bizarra, dirigida principalmente para a promoção acadêmica e não para a mudança social”. E segue nas críticas: “Tudo o que nós temos agora é uma geração desaparecida que foi substituída por técnicos de sala de aula, altaneiros e impossíveis de compreender, contratados por comissões, ansiosos para agradar a vários patrocinadores e agências, eriçados com credenciais acadêmicas e com uma autoridade social que não promove debate, mas estabelece reputações e intimida os não-especialistas” [6].

Embora concorde em parte com os temas levantados por Jacoby, Said afirma que acha errado ser injusto em relação à universidade ou mesmo aos Estados Unidos, além do que, argumenta, ser um intelectual não é de jeito algum incompatível com o trabalho acadêmico, o que concordamos. Para ele o intelectual não representa um ícone do tipo estátua, mas uma vocação individual, uma energia, uma força obstinada, abordando com uma voz empenhada e reconhecível na linguagem e na sociedade uma porção de questões, todas elas relacionadas, ao fim das contas, com uma combinação de esclarecimento e emancipação ou liberdade. E conclui: “A ameaça específica ao intelectual hoje não é a academia nem os subúrbios, nem o comercialismo estarrecedor do jornalismo e das editoras, mas antes uma atitude que chama de profissionalismo. Ou seja, o trabalho intelectual como alguma coisa que se faz para ganhar a vida entre nove da manhã e cinco da tarde, com um olho no relógio e outro no que é considerado um comportamento apropriado, profissional- não entornar o caldo, não sair dos paradigmas ou limites aceitos, tornando-se, assim, comercializável e, acima de tudo, apresentável e, portanto, não controverso, apolítico e objetivo” [7].

De volta ao livro, no primeiro capítulo Estão faltando intelectuais? Jacoby apresenta ao leitor as principais diferenças entre os intelectuais públicos e os do pós-guerra, aqueles que deixaram os centros urbanos em seus automóveis em direção aos subúrbios e lá se estabeleceram como professores universitários. Segundo o autor, “nos anos 1960, as universidades praticamente monopolizaram o trabalho intelectual; uma vida intelectual fora do campus parecia quixotesca. Quando a poeira baixou, muitos intelectuais jovens jamais haviam deixado a escola; outros descobriram que não havia nenhum outro lugar para ir. Tornaram-se sociólogos radicais, historiadores marxistas, teóricos feministas, mas não exatamente intelectuais públicos” [8].

O capítulo 2, intitulado O declínio da boemia apresenta o cenário intelectual em transformação. Os bares e cafés de centros como Nova York ou Chicago deixam de existir para dar lugar a especulação imobiliária e ao processo de vida nos subúrbios, a reboque do american way of life. Com isso há a construção de autoestradas e a consequente expansão universitária. O centro da cidade é agora lugar de jovens arquitetos, consultores, especialistas, executivos. As moradias boêmias deram lugar a escritórios e apartamentos caros. Conforme aponta o autor, “pensar e sonhar requerem um tempo desregulado; os intelectuais perpetuamente postados em cafés e bares ameaçam os respeitáveis cidadãos pelo esforço que colocam- ou pela aparência- em escapar da escravidão do dinheiro e do trabalho duro” [9].

O capítulo 3 parece bastante atual, na medida em que é recente a transposição de On the road, de Jack Kerouac das páginas literárias para as telas do cinema pela lente de Walter Salles. Em A caminhos dos subúrbios: urbanistas e beats, Jacoby nos mostra os anos 1950, caracterizado pela suburbanização, pela construção das autoestradas com a participação de engenheiros e arquitetos, pelo fim do macarthismo e pelos beats, personagens não romantizados e paradoxais, pois, embora fossem o embrião da contracultura da década ulterior, foram em parte também grandes propagandistas da indústria automobilística.

Se nos capítulo anteriores é apresentado o cenário, no quarto são feitas as constatações nas quais é possível vislumbrar as metamorfoses intelectuais. Em Intelectuais nova-iorquinos: judeus e outros a narrativa deixa as ruas e passa para dentro do campus da década de 1950. É o momento em que intelectuais e professores universitários se tornaram virtualmente sinônimos. O ponto alto do capítulo é o debate entre o crítico literário Lionel Trilling e o sociólogo Charles Wright Mills, representante da geração do Vilagge. Enquanto o primeiro (modelo do intelectual judeu que venceu na academia americana) celebrava o progresso cultural, o segundo lamentava o declínio e a degeneração do discurso político em slogans e comerciais de pasta de dentes. Neste exato momento, dizia Mills em 1955, “que uma oposição convincente desapareceu e os intelectuais adotam agora uma nova atitude conservadora. Em vez de criticarem a mediocridade e a estupidez, desfrutam de sua posição social recém-adquirida. O sociólogo, conclui Jacoby, criticou Trilling como um dos muitos intelectuais que sucumbiram a esta confusão”[10]. E conclui o capítulo chamando a atenção para um problema crucial: os intelectuais nos anos 50 e 60 deixam de debater publicamente para tornarem-se uma categoria sociológica a ser problematizada.

Seguindo a narrativa do autor chegamos até a década de 1960, período do fim do macarthismo, da guerra do Vietnã e da consolidação do intelectual acadêmico, fosse ele conservador ou marxista. É a era da especialização, do jargão, da censura velada, do corporativismo e também o ponto alto da crítica de Jacoby. Assim, os capítulos 5 e 6 levam títulos complementares: A nova esquerda no campus I: a liberdade de ser acadêmico e A nova esquerda no campus II: a longa marcha nas instituições. Em ambos os capítulos, alguns pontos chamam a atenção. O autor afirma que uma revolução cultural marxista ocorreu nas universidades, porém, pacífica e democrática, realizada principalmente com livros e conferências, cujo público alvo não eram mais do que pares acadêmicos e especialistas. E as publicações pouco criticavam a guerra americana na Ásia. Tal ressalva no discurso de muitos professores, lembre-se aqui, já sinônimos de intelectuais, pode ser explicado segundo Jacoby, pelo medo do desemprego, receio de muitos profissionais e muito comum numa sociedade liberal como a americana.

A crítica não se estende apenas a postura profissional, cerceada pelo mercado e por padrões comportamentais, ela pega em cheio também na contribuição escrita dessa geração. O crescimento do jargão no campo da ciência política, mas não apenas nessa área, afirma Jacoby, indica não as necessidades da verdade, mas um imperialismo acadêmico, onde os professores podem reinar sobre os microcampus. O vocabulário, que a ciência política compartilha com a sociologia e os estudos internacionais, reduz o conflito humano e social a diagramas e gráficos computadorizados. A sociedade passou a ser um problema de engenharia.

Em Depois dos últimos intelectuais, último capítulo do livro, Jacoby chama a atenção, entre outros temas, para o levante conservador na tentativa de um debate público mais amplo. Se por um lado, o chamado pensamento crítico de esquerda encontrava-se escondido em escritos de pouca circulação e completamente passivos ao status quo universitário, por outro o discurso conservador se articulava em publicações com uma linguagem direta, acessível e sem rodeios. Os intelectuais conservadores eram, segundo Jacoby, os porta-vozes de grandes conglomerados empresariais, os mesmos que financiavam seus periódicos. Dessa constatação, o foco paira sobre o papel do jornalismo e das empresas de comunicação que tomaram para si a pauta dos debates públicos, antes realizada pela geração das ruas, dos bares e cafés do Village.

Jacoby conclui o capítulo reafirmando que a transformação do ambiente intelectual tradicional não é instantânea; ela é paralela ao declínio das cidades, ao crescimento dos subúrbios e à expansão das universidades, e nostalgicamente nos apresenta esse apagamento da malha urbana rebelde: “Não há necessidade de anunciar o colapso da civilização quando lanchonetes tomam o lugar de antigos restaurantes baratos, máquinas automáticas substituem bancas de jornais, ou campi verdejantes suplantam os parques vandalizados das cidades”[11].

Haveria muitas outras possibilidades de abordar esse ensaio. Preferi nessa breve apresentação me inserir também no hall dos criticados. O livro de Jacoby deveria ser obrigatório nos primeiros anos da vida universitária, assim quem sabe, poderia salvar do pedantismo centenas de jovens promissores ávidos pelo uso de jargões e pela produtividade acelerada e especializada de artigos ou papers que pouco serão lidos. Se limitado a uma temporalidade e a uma espacialidade que não a nossa, o ensaio pode servir, por outro lado, de provocação aos nossos intelectuais. Onde eles estão?

As pautas montadas pela academia durante os anos 60 e 70 no Brasil censura que promovia debates acalorados como afirmado no início, pelo visto agora no Brasil, um país de todos, estão dadas pelos editoriais das empresas de comunicação. Os poucos intelectuais que vejo na arena pública constituem-se porta-vozes ideológicos da chamada grande imprensa [12]. Outros encontram-se no governo. Vozes e mãos autorizadas de especialistas, consultores, jornalistas que opinam sobre tudo e sobre todos. Onde está o contraponto? Ao que tudo indica e pelas pistas apresentadas por Jacoby continuam nos campi, como deve ser: sem voz, sem espaço e sem vez. Por que? Sem generalizar, porque hoje talvez só lembrem dos embates em momentos específicos como a greve que ora mobilizam. Passada a tempestade, voltam imunes ao conforto de seus departamentos, laboratórios e publicações. Trabalharão novamente entre pares. Ou lembrarão de nós, do lado de fora, quando reivindicarem um novo reajuste.

Notas

1 SANTOS, Maria Cecília Loschiavo dos. Maria Antonia: uma rua na contramão. São Paulo: Nobel, 1988.

2 O título original da obra é America and the Young Intellectual, publicada em 1921. O título em português consta na tradução da edição do livro que apresento.

3 JACOBY, Russell. Os últimos intelectuais: a cultura americana na era da academia. Trad. Magda Lopes. São Paulo: Trajetória Cultural: Edusp, 1990. p. 9.

4Idem, p. 12.

5 SAID, Edward. Representações do Intelectual: as Conferências Reith de 1993. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 75.

6 Idem, p. 76-77.

7 Ibidem, p. 78.

8 Idem, p. 21.

9 Ibidem, p. 41.

10 Idem, p. 90.

11 Ibidem, 245.

12 Exemplo claro do que estou levantando como crítica pode ser visto no sítio do Instituto Millenium http://www.imil.org.br/. Basta uma olhada rápida para desvendar as redes de sustentação do discurso liberal de seus articulistas, compostas pelas principais empresas de comunicação do país.


Resenhista

Rafael Pereira da Silva – Doutorando em História Unicamp. Bolsista CNPq.


Referências desta resenha

JACOBY, Russell. Os últimos intelectuais: a cultura americana na era da academia. Trad. Magda Lopes. São Paulo: Trajetória Cultural: Edusp, 1990. Resenha de: SILVA, Rafael Pereira da. Os últimos intelectuais de Russell Jacoby: um convite ao debate. Crítica Histórica. Maceió, v.3, n.6, dez., 2012. Acessar publicação original [DR]

FERNGREN Gary B. (Aut), Medicine & Health Care in Early Christianity (T), The Johns Hopkins University (T), BORGONGINO Bruno Uchoa (Res), Crítica Histórica (CHr), Medicina, Saúde, Religião, Cristãos, Séc. 01-04

Em 1874, o inglês John William Draper publicou o livro The history of the conflict between religion and science. Como o próprio título denota, o autor adotava uma perspectiva segundo a qual existiria um antagonismo entre religião e ciência desde que o cristianismo ascendeu politicamente.[2] Cerca de vinte anos depois, Andrew Dickson White publicou A history of the warfare of science with theology in Christendom, em que adotava uma ótica similar à de Draper. [3]

Esses dois trabalhos experimentaram um grande sucesso comercial, influenciando na produção posterior dos historiadores da ciência. Dessa forma, tornaram-se as principais referências numa tendência historiográfica conhecida como tese do conflito. Segundo seus adeptos, a História da Ciência seria constituída de uma série de conflitos entre religião e ciência, tendo nos casos de Galileu Galilei e Charles Darwin seus exemplos mais ilustres.

No decorrer das décadas de 1980 e de 1990, surgiram pesquisas que questionavam a existência de um conflito perpétuo entre a religião, mesmo a cristã, e a ciência.[4] Gary B. Ferngren, professor de história grega e romana da Oregon State University desde 1970, realizou sua pesquisa sobre a interação entre o cristianismo dos séculos I ao IV em consonância com essa nova perspectiva. Seu livro Medicine & health care in Early Christianity, ora resenhado, expõe os resultados desse esforço investigativo.

No primeiro capítulo, intitulado Methods and approaches, apresenta um balanço crítico da produção concernente à relação dos cristãos com a medicina grega. Nele, Ferngren destaca o viés positivista da tese do conflito, avaliando-o como responsável pela hipótese inapropriada, mas muito difundida, de que os primeiros cristãos eram contra a medicina.

Ferngren aponta os três pressupostos que norteiam seu trabalho. O primeiro consiste na confiabilidade do Novo Testamento como fonte para o estudo do Jesus histórico e do cristianismo originário. O segundo concerne à metodologia: considerando o aporte das ciências sociais e do pósestruturalismo restritivo, Ferngren defende que a perspectiva histórico-filológica seria a mais apropriada. Por fim, a terceira pressuposição tem por fundamento a tese de que, na época romana, a medicina praticada em todo o mundo mediterrâneo era tributária do saber médico grego – inclusive a dos judeus e dos cristãos.

O segundo capítulo tem por objetivo comprovar que, entre os séculos II e IV, o entendimento cristão a respeito da medicina não diferia do conhecimento aceito na Roma imperial. Para tanto, Ferngren esclarece a compreensão gregas das causas e formas de tratamento das doenças e sua absorção no contexto cultural romano e judaico. Após tal exposição, o autor aborda o posicionamento dos apologistas da segunda centúria frente ao saber médico, constatando que tais escritores não o condenavam e até mesmo demonstravam ter grande conhecimento anatômico.

Ao fim do capítulo, é analisada a obra do retórico Arnóbio de Sica, que se converteu ao cristianismo no começo do quarto século. Após tal exame, Ferngren constata que esse intelectual, mesmo inclinado a denunciar as crenças pagãs que então abandonara, considerou a medicina um presente de Deus e cuja prática seria lícita ao cristão. Sua hipótese de que a adesão ao cristianismo não implicava numa negação do saber médico clássico é devidamente corroborada por essa constatação.

Partindo da crítica da tese de que o cristianismo atribuía uma origem demoníaca a todas as doenças, o objetivo do terceiro capítulo do livro é de examinar a compreensão cristã de enfermidade em seus primeiros cinco séculos. Conforme exposto, a cura promovida por Jesus geralmente não era por magia e nem por exorcismo, uma vez que não atribuía causas demoníacas às doenças, distanciando-se da perspectiva do Antigo Testamento. Entre os apologistas do século II, a influência de entidades demoníacas sobre a saúde não era clara, uma vez que ora atribuem as dolências a demônios e ora, a causas naturais.

Ferngren demonstra que foi a partir do século III, com o aumento das referências ao Diabo e às vitórias de Cristo sobre seu oponente, cresceu a reflexão e o recurso ao exorcismo – o que, entretanto, não necessariamente fez crescer o uso desse rito para fins curativos. A difusão da procura por curas milagrosas ocorreu a partir do século IV, fenômeno que não provocou o abandono da crença no poder da medicina. Ao contrário: o milagre operava junto ao tratamento médico, particularmente quando esse falhava ou estava indisponível.

Ao final do capítulo, o autor defende que os autores cristãos relacionavam os problemas de saúde ao Pecado Original e à expulsão do homem do Paraíso. Assim, nem toda a enfermidade era causada pelas forças de Satã, pois a possibilidade de adoecer era uma consequência da Queda. Nessas circunstâncias, a medicina seria um presente de Deus para curar naturalmente esse tipo de mal, sendo o restabelecimento da saúde algo proporcionado pelo desígnio divino.

No quarto capítulo do livro, Ferngren propõe a discussão da tese de Adolf Harnack de que o cristianismo originário foi uma “religião da cura” e que proporcionava um modelo curativo alternativo à medicina secular.[5] Sem negar que o milagre teve destaque na trajetória de Jesus e na literatura neotestamentária, Ferngren destaca que as narrativas apresentavam tais curas como manifestações físicas de uma nova ordem espiritual marcada pela atuação do Messias. Algumas leituras cristãs posteriores dos Evangelhos apontavam que a cura não seria apenas física, mas também espiritual, estabelecendo um vínculo entre o pecado e a enfermidade.

Entre os autores cristãos dos séculos II e III, houve uma diminuição do número de referência a curas milagrosas. Na interpretação de Ferngren, a quantidade de relatos da atuação do deus Asclépio era maior que as de Jesus, dificultando o trabalho de desacreditá-las; assim, a argumentação racional tinha um potencial de captação de fieis do que os milagres. Foi somente no século IV, com a atribuição de poderes curativos aos ascetas, que o cristianismo se tornou uma “religião da cura” – o que não significou o repúdio à atividade médica.

Ferngren, no quinto capítulo, discorre sobre o desenvolvimento do auxílio médico como atividade caritativa cristã. Conforme expõe, os autores cristãos exaltavam a figura do médico motivado pela virtude da caridade, tendo como base os conceitos greco-romanos de philanthropia e agape, tal como a ideia hebraica de imago Dei. A caracterização o próprio Cristo como médico e a difusão do saber medicinal entre o clero derivavam da valorização da assistência aos enfermos. Na esteira dessas conclusões, o sexto capítulo explica a criação e organização da estrutura eclesiástica de amparo aos doentes a partir do século III, destacando o surgimento dos hospitais. Ferngren sublinhou a atuação dos cristãos no cuidado às vítimas durante a epidemia da praga de Cipriano no século IV e sua contribuição para a consolidação do poder episcopal.

Com base nessa análise, deve-se ressaltar os méritos de Gary Ferngren em Medicine & Health Care in Early Christianity. Primeiramente, a erudição que serve de base à elaboração dos seus argumentos: seu raciocínio é conduzido pelo estudo cuidadoso de uma ampla e diversificada documentação, permitindo que o autor teça conclusões bem fundamentadas. Também é importante destacar que o trabalho de Ferngren é permeado de críticas sólidas a hipóteses aceitas pela historiografia a respeito da medicina nos primeiros séculos do cristianismo.

Notas

1 Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História Comparada (PPGHC) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e colaborador do Programa de Estudos Medievais (PEM).

2 DRAPER, John Willian. History of the conflict between religion and science. New York: D. Appleton and Company, 1874.

3 WHITE, Andrew Dickson. A history of the warfare of science with theology in Christendom. New York: D. Appleton and Company, 1898.

4 Para um balanço da historiografia a respeito das relações entre ciência e religião, conferir os capítulos de David B. Wilson e Colin A. Russell no livro: FERNGREN, Gary B. (ed.). The history of science and religion in the Western tradition. An encyclopedia. New York, London: Garland, 200.

5 A ideia foi apresentada em: HARNACK, Adolf von. The mission and expansion of Christianity in the first three centuries. London: Williams and Norgate, 1908, 2v. V. 1. p. 127-151.


Resenhista

Bruno Uchoa Borgongino – Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História Comparada (PPGHC) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e colaborador do Programa de Estudos Medievais (PEM).


Referências desta resenha

FERNGREN, Gary B. Medicine & Health Care in Early Christianity. Baltimore: The Johns Hopkins University, 2009. Resenha de: BORGONGINO, Bruno Uchoa. Crítica Histórica. Maceió, v.4, n.7, p.357-360, jul., 2013. Acessar publicação original [DR]

ANDRADE FILHO Ruy de Oliveira (Aut), Imagem e reflexo. Religiosidade e Monarquia no Reino Visigodo de Toledo (séculos VI-VIII) (T), Edusp (E), CRUZ Marcus (Res), Crítica Histórica (CHr), Religiosidade, Monarquia Reino Visigodo de Toledo, Séc. 06-08, Europa

O campo historiográfico brasileiro atravessou, nas últimas décadas, um amplo e profundo processo de consolidação e expansão. Essa dinâmica, amparada fortemente no crescimento do ensino superior no país, tanto em cursos de graduação e principalmente na pós-graduação, cria as condições para que a historiografia nacional avançasse em termos teóricos e metodológicos, mas também ultrapassasse as fronteiras temáticas que tradicionalmente limitavam os estudos históricos.

No bojo deste processo assistimos senão a emergência, mas com certeza o estabelecimento e a consolidação dos estudos históricos voltados para temáticas vinculadas a Antiguidade e o Medievo. As dissertações de mestrado, as teses de doutorado, artigos e livros se multiplicaram, ainda que aquém do desejável, abordando uma vasta gama de questões que se debruçam desde aos problemas da economia mesopotâmica até a santidade na realeza portuguesa no alvorecer da modernidade.

Ruy de Oliveira Andrade Filho, professor da Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita do campus de Assis, se insere neste processo com especial destaque uma vez que realizou sua formação acadêmica neste esforço de estabelecimento e consolidação dos estudos antigos e medievais no Brasil e posteriormente passa, ele próprio, a formar novos historiadores voltados para essas temáticas. Além de contribuir para o desenvolvimento desta historiografia com uma densa e expressiva produção bibliográfica composta de diversos artigos publicados em revistas nacionais e internacionais, capítulos de livros e livros.

Imagem e reflexo. Religiosidade e Monarquia no Reino Visigodo de Toledo (Séculos VI-VIII) é a mais recente obra lançada pelo Professor Ruy Andrade Filho. O livro publicado no ano de 2012 é fruto da tese de doutoramento do autor defendida em 1997 na Universidade de São Paulo. A larga distância temporal entre a defesa da tese e a sua publicação na forma de livro é um sintoma bastante significativo da lógica do mercado editorial brasileiro e da política de publicação das editoras universitárias nacionais.

Neste livro o Professor Ruy Andrade Filho se propõe analisar as articulações entre religiosidade e a montagem da monarquia católica visigoda, após a conversão de Recaredo, primeiro monarca visigodo a adotar o cristianismo niceciano, abandonando assim a fides gothorum, ou seja o cristianismo ariano. Nas palavras do autor: “Nossa proposta apresenta dois elementos: religiosidade e Monarquia. Nosso objeto é a análise das relações desses dois elementos entre meados do século VI e início do século VIII, ou seja: da conversão do reino de Toledo à sua destruição.” [2]

Esta proposta analítica esta assentada numa sólida base documental com uma variada tipologia, desde testemunhos de cunho legal passando pelas fontes hagiográficas, doutrinais, conciliares, literárias entre outras chamadas ao debate no intuito de discutir a problemática colocada. Ainda sobre a questão documental o autor se posiciona no debate acerca da quantidade e da qualidade das fontes para o estudo da Península Ibérica na Antiguidade Tardia. A resposta é firme e nos parece absolutamente correta: “…acreditamos que, como noutras partes do ocidente da Antiguidade Tardia, a documentação da península é muito lacunar, mas não chega a constituir uma exceção. parece-nos que o problema reside mais no método do que nos tipos de evidência disponíveis”[3]

Imagem e reflexo, por sua abordagem teórica, se constitui como um exercício de história das mentalidades dentro de uma perspectiva, que na medievalística brasileira foi praticada e teorizada por Hilário Franco Junior, em que sem abandonar a concepção de Jacques Le Goff em que a mentalidade se define como um elemento que perpassa todos os integrantes de uma sociedade, percebe tanto a existência de polos nesta mentalidade quanto de uma “cultura intermediária”, ponto de interseção entre esses polos.

O conceito de “cultura intermediária” é essencial nas discussões no primeiro capítulo em que se aborda a cristianização da Península Ibérica durante a Antiguidade Tardia. Após chamar a atenção para a diversidade existente na região, especialmente no que tange aos processos de romanização e cristianização como afirma o autor; “…deparamos, grosso modo, com pelo menos duas Hispânias: uma meridional, em que predomina o modo de vida mediterrânico; outra setentrional, na qual a sobrevivência dos modos de vida e de organização social pré-romanos parecem ter sido particularmente mais resistentes à integração com as forças romanas”[4]. O professor Ruy Andrade Filho passa, então, a discutir a questão central deste capítulo, qual seja a presença de práticas pagãs na Península Ibérica e as estratégias e ações com que a hierarquia eclesiástica buscou enfrentar e enquadrar tais práticas que se inserem numa religiosidade popular que cresce de importância numa sociedade que se ruraliza.

O enquadramento de toda e qualquer manifestação discordante da doutrina defendida pela hierarquia eclesiástica, seja as práticas pagãs ou presença judaica ou ainda a contestação herética, era de fundamental importância para a articulação entre a Igreja e a monarquia visigoda, pois era necessário o estabelecimento de um cristianismo sob a égide dos bispos para servir de fundamento e sustentáculo do poder monárquico.

É exatamente a constituição deste cristianismo episcopal que será discutido no segundo capítulo de Imagem e reflexo que se inicia com as seguintes palavras: “A partir da conversão e da elaboração da Monarquia cristã, supôs-se a composição do reino visigodo de Toledo como um corpo unitário, coeso por uma fé e regido por uma cabeça cuja autoridade provinha do próprio Deus. Desa forma, nele se teria contituído uma verdadeira societas fidelium Christi”[5]

Nesta tentativa o clero hispano-visigodo teve que enfrentar a pressão cultural advinda da emergência do mundo rural, deste enfrentamento surge um universo simbólico novo que substituiu o anterior marcado pelo realismo pagão e que é atravessado por duas clivagens essenciais clérigo/laico e poderosos/humildes.

A cristianização do campo e dos seus habitantes na sociedade em pleno processo de ruralização é o maior desafio da hierarquia eclesiástica hispano-romana entre os séculos VI e VIII. No esforço de cristianização dos espaços rurais a Igreja procurava: “…evitar confrontos por ações violentas, viabilizando-se assim a substituição ou desnaturalização, das antigas práticas. Nesses procedimentos articulavam-se diversas relações e interpretações recíprocas entre a ‘religiosidade popular’ e a oficial…Não se tratava simplesmente de aculturação de um resultado da coexistência de duas culturas diferenciadas que interagiam, mas de um sincretismo, entendido ‘como um processo contra-aculturativo implicando manipulações de mitos, empréstimos de ritos, associação de símbolos, às vezes inversão semântica e reintrepretação da mensagem crística’”

Ruy Andrade Filho interpreta, portanto, esse processo a partir de uma dinâmica de caráter sincrética entre dois polos culturais, um denominado de religiosidade popular e outro de religiosidade oficial. A complexa discussão acerca destes conceitos, especialmente ao concernente a religiosidade popular constitui o cerne o capítulo III, intitulado Religiosidade ou religiosidades?

O autor pensa o conceito de religiosidade articulado ao de mentalidade, por isso descarta a possibilidade de entender a religiosidade popular como o resultado do confronto entre cristianismo e paganismo: “A religiosidade não nasce do confronto com o cristianismo, mas emerge dele”[6]. Da mesma forma considera ser uma análise empobrecedora vincular unicamente as permanências pagãs da religiosidade popular as resistências e as condições socioeconômicas. Por outro lado, também descarta a tese de que as manifestações religiosas dos segmentos mais humildes estaria vinculado ao seu inato desejo de libertação e promoção social.

Na religiosidade popular na Hispânia visigoda as permanências de práticas pagãs não se constituíam como uma mera sobrevivência ou resistência, mas se integravam em um universo simbólico comum, pertencem a uma mentalidade. Por isso observamos a assimilação de mitos e ritos pagãos pela teoria cristã e a aquisição pelos santos de muitas das características de deuses e heróis clássicos ou mesmo pré-romanos. Nas palavras do autor: “…o paganismo foi um fato normal e habitual na península durante o reino visigodo, tal como no restante do Ocidente, sem estar restrito apenas a algumas áreas ou grupos sociais.”[7]

No entanto, com a conversão de Recaredo em 589, o catolicismo passa a ser o fundamento ideológico do reino visigodo de Toledo. A discussão da construção dos alicerces de legitimação da autoridade e do poder régio que Ruy Andrade Filho denomina de utopia monárquica acontece fundamentalmente a nos dois capítulos finais da obra.

A ideia central no tocante ao fundamento ideológico da monarquia visigoda após a conversão de Recaredo é uma concepção antropomórfica da realidade na qual a realeza supervisiona e dirige todos os aspectos da sociedade pois o rei “como cabeça de uma comunidade cristã, responsável pela salus de seus membros e com a obrigação de dar conta a Deus do bem-estar da Igreja”[8]

Esta concepção eliminava qualquer divergência entre a Igreja e a monarquia, esta aliança se consubstanciava na atividade legislativa dos reis na qual aos objetivos práticos eram acrescentadas as finalidades religiosas. Por outro lado a escolha do monarca pelo princípio da Gratia Dei garantia ao monarca não apenas uma legitimação sagrada, mas também que qualquer infidelitas dos súditos se constituía em um crime contra a própria divindade.

Na utopia da monarquia visigoda a religião assumia a função de elementos central de coesão da sociedade, a partir de uma concepção antropormófica do corpo social, cuja a sofisticada teorização encerrava uma dualidade corpo/alma – Monarquia/Igreja, além de possibilitar, na ausência do princípio hereditário no pensamento político visigodo, a invenção de uma genealogia santa dos reis. Nas palavras do autor: “A tentativa de sacralização monárquica e concepção da analogia antropormórfica buscaram criar bases teóricas, políticas e sociais mais seguras paea a estabilização monárquica por via do cristianismo.”[9] Por outro lado, ainda segundo Ruy Andrade Filho: “A utopia antropomórfica constitui uma tentativa de aproximação com essa religiosidade, estabelecendo correspondência entre o homem (microcosmo) e o mundo(macrocosmo) no qual transitava quando não pusesse em risco os dogmas da fé, procedimentos da desnaturação e obliteração eram elaborados na religiosidade partilhada, reforçando a presença do sagrado no cotidiano social”[10]

Após essa apresentação sucinta das principais discussões presente em Imagem e reflexo. Religiosidade e Monarquia no Reino Visigodo de Toledo (séculos VI-VIII) do Professor Ruy Andrade Filho só podemos concluir reafirmando a sólida erudição do autor na argumentação de suas propostas analíticas ancorada em um impressionante conjunto documental demonstrando a consolidação dos estudos antigos e medievais no campo historiográfico brasileiro. Esta é uma obra que incentiva a discussão e o debate por apresentar chaves interpretativas polemicas para questões centrais no âmbito da Antiguidade Tardia e que portanto se constitui como uma contribuição de grande porte e valor para os estudos tardo-antigos.

Notas

1 Prof. Adjunto da Universidade Federal de Mato Grosso. Fundador do VIVARIUM – Laboratório de Estudos da Antiguidade e Medievo.

2 ANDRADE FILHO, Ruy de Oliveira. Imagem e reflexo. Religiosidade e Monarquia no Reino Visigodo de Toledo (séculos VI-VIII). São Paulo: Edusp, 2012. p.30

3 ANDRADE FILHO, Ruy de Oliveira. op.cit. p.29

4 ANDRADE FILHO, Ruy de Oliveira. op.cit. p.39

5 ANDRADE FILHO, Ruy de Oliveira. op.cit. p.71

6 ANDRADE FILHO, Ruy de Oliveira. op.cit. p.107

7 ANDRADE FILHO, Ruy de Oliveira. op.cit. p.120

8 ANDRADE FILHO, Ruy de Oliveira. op.cit. p.87

9 ANDRADE FILHO, Ruy de Oliveira. op.cit. p.196

10 ANDRADE FILHO, Ruy de Oliveira. idem. ibidem


Resenhista

Marcus Cruz – Professor Adjunto da Universidade Federal de Mato Grosso. Fundador do VIVARIUM – Laboratório de Estudos da Antiguidade e Medievo.


Referências desta resenha

ANDRADE FILHO, Ruy de Oliveira. Imagem e reflexo. Religiosidade e Monarquia no Reino Visigodo de Toledo (séculos VI-VIII). São Paulo: Edusp, 2012. Resenha de: CRUZ, Marcus. O corpo sagrado da monarquia visigoda. Crítica Histórica. Maceió, v.4, n.7, p.361-365, jul., 2013. Acessar publicação original [DR]

BEINART Peter (Aut), The crisis of zionism (T), Henry Holt and Company (E), LLC (E), SAHD Fábio Bacila (Res), Crítica Histórica (CHr), Sionismo, Henry Holt, Povos Judeus, Povos Árabes, Séc. 20, Ásia – Israel

Peter Beinart é professor associado de jornalismo e ciência política na City University of New York, ex-editor do jornal estadunidense The New Republic e autor de mais dois livros: The Icarus Syndrome e The Good Fight. Suas obras são perpassadas pela defesa aberta do liberalismo e pela denúncia do abuso do poder estatal em detrimento de direitos individuais. Liberal e sionista declarado, em sua mais recente obra – eminentemente política – Beinart faz uma reflexão crítica sobre o atual governo de direita em Israel, a comunidade judaica estadunidense e sua relação com o Estado judeu e denuncia o racismo inerente ao sionismo revisionista, bem como a ocupação dos Territórios Palestinos e a política externa vacilante de Obama.

Ao longo dos nove capítulos, o autor exalta a necessidade de fortalecer o sionismo liberal tal qual defendido por Theodor Herzl face às correntes conservadoras e exclusivistas que exaltam o caráter étnico de Israel como Estado judeu, lesando as garantias democráticas presentes em sua declaração de independência e os direitos da população árabe. Tendo como eixo central essa dupla natureza do país – judaica/democrática – e as divergências das propostas sionistas, Beinart expõe as divergências em torno do conflito na Palestina envolvendo a comunidade judaica dos Estados Unidos e os agrupamentos políticos e entidades neste país e em Israel. Sua conclusão é a de que, atualmente, o sionismo liberal tal qual vislumbrado por Herzl estaria ameaçado diante da ascensão da direita em Israel e do apoio incondicional prestado por entidades judaicas estadunidenses, cada vez mais controladas por setores indiferentes ou avessos aos preceitos democráticos daquele país. Por isso a escolha do título: “A crise do sionismo”.

Aos olhos do autor, enquanto entre as entidades judaicas estadunidenses estaria em queda o engajamento entorno de um sionismo de matiz liberal, que as teria caracterizado até os anos 1970, estariam ascendendo setores de direita e outros vinculados à ortodoxia religiosa que, em linhas gerais, enfatizam o caráter judaico de Israel e negam os direitos nacionais do povo palestino. Para esses grupos o cerne da identidade coletiva judaica seria o sofrimento dos judeus ao longo da história diante de um difundido e persistente antissemitismo, que justificaria inclusive as transgressões cometidas por Israel contra a população árabe. Essa visão de que não haveria qualquer marco moral universal a partir do qual o sionismo poderia ser julgado, visto as atrocidades cometidas contra o povo judeu na história, é denominada de “monista”, sendo seus principais defensores os revisionistas, tais como Vladimir Jabotinsky, Benzion Netanyahu e seu filho, Benjamin (duas vezes primeiro-ministro de Israel).

No primeiro capítulo Beinart faz uma leitura idealizada do sionismo liberal, conforme apregoado por Herzl, destacando as possibilidades que ele contém de judeus e árabes conviverem pacificamente na Palestina/Israel, em contraponto a posicionamentos exclusivistas. O autor se vale da novela de Herzl Altneuland para embasar sua visão de que o sionismo é um movimento nacional, mas também desde o princípio liberal, e chega a fazer uma breve crítica a essa vertente que ele mesmo defende, alegando que ela não imaginava a possibilidade de um movimento nacional árabe demandando a Palestina como seu território. Ainda nesse capítulo, é trabalhada a discriminação institucional israelense dentro e fora das fronteiras anteriores a 1967 e são elencadas algumas fragilidades de seu modelo democrático, ainda que seja um Estado democrático em seu território “original”.

Os dois próximos capítulos trazem uma reflexão sobre a comunidade judaica estadunidense e suas entidades, apontando para a tendência de apoiar incondicionalmente a Israel, em detrimento dos valores liberais, o que tem contribuído para os contínuos abusos contra a população árabe, sobretudo a partir da ocupação dos Territórios Palestinos em 1967. Embora não cite Norman Finkelstein em nenhum momento, Beinart reforça a argumentação deste acerca da “Indústria do Holocausto”, ao considerar o uso da Shoah na difusão de uma cultura de vitimização como estratégia para reforçar o engajamento étnico dos jovens e justificar os atos de Israel, imunizando-o contra críticas. Dois tipos ideais de organizações estariam envolvidos nesse processo de recrudescimento étnico: aquelas que estariam perdendo sua tradição liberal ao apoiar ou se calar diante da ocupação e aquelas que sempre enfatizaram a judeidade de Israel em detrimento de sua faceta democrática. No nono capítulo o autor volta a refletir sobre a comunidade judaica estadunidense e suas entidades, apontando que mudanças consideráveis ocorrerão em um futuro próximo, tendo em vista o crescimento de uma geração alheia ao sionismo e ao judaísmo, pois cada vez mais assimilada, e a tomada das organizações por grupos ortodoxos contrários ao Estado palestino e ainda menos comprometidos com os princípios democráticos de Israel.

No quarto capítulo, evidenciando seu engajamento liberal e favorável à criação do Estado palestino, Beinart apresenta os argumentos justificadores da expansão da ocupação israelense nos Territórios Palestinos, contestando-os um a um – a exemplo da suposta contribuição da manutenção dos territórios para a segurança nacional. Ele desconstrói parcialmente o discurso oficial israelense acerca da desocupação da Faixa de Gaza, em 2005, e do Hamas como entidade terrorista, apontando ao invés para a influência do modelo de apartheid no “desengajamento unilateral” promovido por Sharon e para as evoluções políticas pelas quais passou a resistência palestina islâmica. Nos capítulos cinco, sétimo e oitavo é apresentada a trajetória do presidente estadunidense Barack Obama, atentando-se para a influência do sionismo liberal em sua visão do confronto e como, gradativamente, ele foi cedendo à pressão do lobby israelense “monista” em suas declarações e ações. As relações de força desfavoráveis em seu próprio país teriam desfeito seu discurso inicial e suas críticas a Israel. Conforme Beinart (p. 154), a partir de maio de 2011 o presidente estadunidense teria abandonado de vez seu posicionamento “sionista liberal”, sido completamente aparelhado e aderido à visão do establishment monista em todos os pontos.

No sexto capítulo é abordado o pensamento do primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu, que engrossaria o campo do sionismo revisionista, visto sua visão política e representação dos árabes e do conflito de forma geral. Ele seria um epígono de Jabotinsky, por intermédio da influência paterna em sua formação, tendo uma visão monista do sionismo e racista dos palestinos, desumanizando-os ao descrevê-los como “bárbaros” e “selvagens” que só conhecem a força e compará-los, frequentemente, aos nazistas. Beinart aponta algumas evidências de que “Bibi” poderia ser, inclusive, favorável à “transferência” da população árabe e desmistifica seu posicionamento político, apresentando-o como contrário à criação de um Estado palestino tal qual requerido pelas resoluções da ONU e negociado com as autoridades da resistência local. Sua proposta, cuja implementação se daria por meio do modelo da “muralha de ferro” de Jabotinsky, seria a da autonomia árabe em quatro cantões isolados na Cisjordânia, desconectados da Faixa de Gaza.

Apresentada a obra como um todo, cabem algumas considerações críticas. Ainda que o livro tenha uma narrativa bem articulada e traga importantes contribuições sobre a comunidade judaica estadunidense e o víeis racista do sionismo revisionista, seu valor científico é questionável devido aos paradigmas que embasam a visão do autor sobre Israel e o conflito. Seu engajamento político assumido – sionista liberal – acaba por comprometer a objetividade de sua análise, tanto pelo que afirma e da forma como o faz quanto pelo que silencia, situando a obra fora daquilo que Eric Hobsbawm chama de “discordância científica legítima”. Primeiramente, destaca-se a visão idealizada do sionismo liberal, contraposto a um sionismo “monista”, que encarnaria e seria o responsável exclusivo pelas contradições entre etnicidade e democracia em Israel – salvo o único erro do primeiro, de não ter reconhecido a possibilidade de desenvolvimento de um nacionalismo árabe que reivindicasse a Palestina como território. As formulações racistas e os projetos de transferência da população árabe (limpeza étnica), desde os primórdios do nacionalismo judaico, são assim relacionados unicamente ao campo revisionista, fundado por Jabotinsky. Ao enfatizar sobremaneira o liberalismo do projeto herzeliano, Beinart se cala completamente diante de seus elementos antiliberais – fundamentais para a compreensão da formação e atuação contemporânea dos partidos sionistas ditos liberais ou até de esquerda. Elementos que ele denuncia no pensamento monista, como o racismo e as propostas de transferência, são detectados por historiadores israelenses como Ilan Pappé [238] e Nur Masalha [239] nas formulações dos pioneiros do movimento, inclusive Herzl. Conforme Pappé e Masalha, as representações racistas dos árabes como culturalmente inferiores permearam todas as correntes, a exemplo da perspectiva colonial do território vazio de civilização (vide o slogan sionista “uma terra sem povo para um povo sem terra”), pois habitado por “selvagens” ou “bárbaros”, que deveria ser colonizado em prol do progresso. Além dessa visão colonialista/orientalista comum, assim como os “monistas” tanto Chaim Weizmann quanto David Ben-Gurion propuseram a transferência da população nativa da área futuramente designada como Estado judeu.

Em sua análise idealizada Beinart sequer menciona que para o próprio Herzl o Estado judeu seria uma “sentinela avançada da civilização em meio à barbárie asiática” e que seu romance Altneuland, para além dos elementos liberais ali presentes, evidencia essa perspectiva tipicamente racista e colonial. Ao projetar um recanto da Europa na Palestina a comunidade fantasiada por Herzl é um ode ao colonialismo (a diferença é que Jabotinsky assume abertamente esse caráter da empresa sionista). As vilas deixam de ser os “focos de sujeira” de outrora e os sionistas levam um acelerado desenvolvimento tecnológico e econômico para os nativos. Os fazendeiros que “tinham vivido em pobres casas de barro, que não estavam aptas para servir de estábulo”, cujos bebês “estavam ao ar livre, nus e descuidados, e cresciam como bestas e animais”, agora “têm uma vida respeitável, suas crianças estão saudáveis e estudando” [240]. Ademais, há uma passagem riscada em seu diário que apresenta de forma embrionária a solução de transferência dos árabes – para Beinart, patrimônio da “direita”.

Contudo, a principal fragilidade da obra não está nessa depuração silenciosa do sionismo liberal dos elementos que podem denunciar seu vínculo com parte da barbárie espraiada na Palestina – atribuída aos próprios palestinos e aos “monistas”. Seu calcanhar de Aquiles está no uso incorreto do conceito de etnocracia para pensar a atuação de Israel somente nos Territórios Palestinos, o que denota uma falta de solidez teórica. Para Oren Yiftachel, que fundamenta a análise de Israel como uma etnocracia, considerá-lo como uma democracia dentro das fronteiras pré-1967 (como faz Bernart) é um equívoco, pois a linha demarcatória não existe de fato (vide as colônias e a garantia de cidadania israelense para seus habitantes) e a lógica fundamental do Estado é justamente o processo de judaização de Israel/Palestina. O núcleo da crítica de Yiftachel, que Beinart ignora completamente, é a necessidade de pensar toda a área controlada e “etnicizada” pelo “Estado judeu” (qual seja, Israel, colinas de Golã, Gaza e Cisjordânia) como parte de um mesmo regime etnocrático. Se para Beinart o cerne do projeto sionista é como conciliar democracia e etnicidade, para Yiftachel é como proceder a judaização do território palestino/israelense. Na visão deste, a maior evidência do caráter não democrático de Israel seria o descolamento de cidadania e geografia, deficiência que impede a criação de um demos estável (“corpo inclusivo de cidadãos com poderes em um dado território”). Em Israel e nos Territórios Palestinos Ocupados, ao invés do demos, o princípio organizativo central é o ethnos, que determina a pertença pela origem comum e não pelo território [241]. Em suma, se Beinart tivesse considerado o conceito de etnocracia de fato, teria possivelmente reformulado sua interpretação de Israel como uma democracia e uma etnocracia ao mesmo tempo. Também teria avaliado melhor as discriminações cometidas dentro de Israel, ao invés de considerar o tratamento diferenciado da população árabe como fato isolado dentro de uma suposta democracia liberal.

Há ainda outros pontos que reforçam a constatação de que a obra não tem valor científico, como a não problematização e aceitação da existência de um “terrorismo palestino” como fim em si e a consideração tendenciosa ou ingênua da ampla destruição e das vítimas civis durante a operação Chumbo Fundido em Gaza como meros efeitos colaterais, apesar dos diversos relatórios que apontam em sentido oposto. A obra apresenta ainda uma visão caricaturada daqueles chamados de “críticos de esquerda” do Estado de Israel, cujos argumentos não são debatidos, mas simplificados erroneamente como equivocados por interpretarem o Estado judeu como uma ponta-de-lança do imperialismo na região. Dessa forma, Beinart desconsidera as alegações bem fundamentadas – que inclusive ele próprio chega a tangenciar, mas não as aprofunda – de que a afirmação legal da judeidade de Israel gera a discriminação nas políticas públicas, conforme a pertença étnica dos grupos.

Por fim, cabe destacar que, embora o autor contemple de forma ampla os argumentos dos palestinos utilizados no processo de paz, em nenhum momento ele faz uma análise partindo do direito internacional e da assimetria do conflito. Isso reforça pelo menos duas falsas percepções. Primeiro, é salientada a imagem de uma liderança árabe intransigente, em contraposição ao fato de que, à luz do direito internacional, desde Oslo é sempre esta que abre mão de direitos nas negociações de paz. Segundo, trata-se na perspectiva de Beinart de um conflito simétrico, ao invés de um Estado que suprime uma população colonizada que reivindica sua autodeterminação, negando seus direitos por meio do emprego de diferentes técnicas de gerenciamento populacional e manobras discursivas orwellianas. A título de exemplo, o direito de retorno dos palestinos refugiados de 1948 – internacionalmente reconhecido desde a própria gênese do problema – é apresentado como mero estratagema da Autoridade Palestina secretamente adversa à solução de dois Estados. A iniciativa desta de procurar o reconhecimento de seu Estado na ONU é descrita como uma “revanche diplomática”, ao invés de uma atitude tomada contra um “processo de paz” tendencioso que só tem contribuído para o enraizamento e expansão da colonização, que sustenta a lógica de “fatos criam direitos” na mesa de negociação [242].

Portanto, o livro passa um ar de criticidade e seriedade, dando a impressão de ser uma análise refinada de Israel, o que é temerário visto que as contradições entre democracia e etnicidade – percebidas pelo autor, mas não desdobradas – têm consequências muito maiores do que aquelas que ele elenca. Ou seja, a aparência de engajamento crítico anuvia o fato de que o autor não compreende o problema em seu núcleo (as tensões geradas pela afirmação de um Estado étnico), e acaba por legitimá-lo.

Notas

237 Mestre em História pela Universidade Estadual de Maringá, linha: Política e Movimentos Sociais.

238 PAPPE, Ilan. The ethnic cleansing of Palestine. Oxford: Oneworld Publications Limited, 2006.

239 MASALHA, Nur. Expulsión de los palestinos. El concepto de “transferencia” en el pensamiento político sionista, 1882-1948. Buenos Aires: Editorial Canaán, 2008.

240 GORNY, YOSEF. Zionism and the arabs, 1882-1948. A study of ideology. Oxford: Clarendon Press, 1987. p. 26.

241 YIFTACHEL, Oren. Ethnocracy. Land and identity politics in Israel/Palestine. Philadelphia: University of Philadelphia Press, 2006.

242 ARURI, Nasser H. El mediador deshonesto. El rol de EE.UU. en Israel y Palestina. Buenos Aires: Editorial Canaán, 2006.


Resenhista

Fábio Bacila Sahd – Mestre em História pela Universidade Estadual de Maringá, linha: Política e Movimentos Sociais.


Referências desta resenha

BEINART, Peter. The crisis of zionism. New York: Henry Holt and Company; LLC, 2012. Resenha de: SAHD, Fábio Bacila. Crítica Histórica. Maceió, v.4, n.8, p.116-121, dez., 2013. Acessar publicação original [DR]

TENÓRIO Douglas Apratto (Aut), LESSA Golbery Luiz (Aut), O ciclo do algodão e as vilas operárias (T), Sebrae (E), MELO Hélder Silva de (Res), Crítica Histórica (CHr), Ciclo do Algodão, Vilas Operárias, Província de Alagoas, Séc. 19

O ciclo do algodão e as vilas operárias é um livro bastante singular. Escrita por Douglas Apratto Tenório e Golbery Luiz Lessa, dois grandes historiadores, a obra resultou de um projeto de pesquisa financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa de Alagoas – FAPEAL. Apenas ao folheá-la, o leitor já dá de cara com dois índices, o primeiro fruto do texto escrito por Tenório e o outro por Lessa, este último até mesmo com subtítulo (ou seria na verdade um título?) diverso: Trama da memória, urdidura do tempo: ethos e lugar dos operários têxteis alagoanos (p. 97). Ao ler o escrito mais detidamente, percebemos que, na verdade, são dois livros lançados numa única edição que, apesar de tratarem do mesmo tema, cujo(s) título(s) já enuncia(m), abordam-no de perspectivas completamente distintas, inclusive com críticas diretas feitas de um autor ao outro.

O(s) livro(s) objetiva(m) preencher uma lacuna (das muitas) na historiografia de Alagoas, levantando documentos, textos, entrevistas com moradores remanescentes das antigas vilas dos operários das fábricas têxteis que se instalaram na província, depois estado, ao longo do final do século XIX e das seis primeiras décadas do século próximo passado (p. 9). Os autores criticam e tentam derrubar a tese segundo a qual a formação social, econômica, política, histórica de Alagoas explica-se exclusivamente pela história canavieira. Argumento que foi inaugurado, segundo Lessa, por Humberto Bastos, com Assúcar e Algodão, e Manuel Diégues Júnior, com O Banguê nas Alagoas, cujos textos foram escritos em 1938 e 1949, respectivamente (pp. 11; 101). Aqui apontamos uma das diferenças nos textos: para Lessa, a tese “exclusivista canavieira” legou mais uma restrição de temas abordados do que tentativas de prová-la (p. 102), Tenório acredita, no entanto, que são “poucos os analistas [que] têm passado incólumes” deste discurso (p. 11). Ele os chama, sem nomeá-los, de “apressados estudiosos contemporâneos” (p. 12) sobre a importância do açúcar e do algodão. Este último parece cair na própria armadilha por ele combatida quando, por exemplo, chama de “lavouras menores”, tudo que não é cana (p. 11). Além disso, ao tentar demonstrar que, no século XIX, os destinos do açúcar e do algodão “estavam unidos ‘na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza’”, o autor cita apenas um relatório de presidente de província que ressalta a importância destas lavouras para as rendas do governo, o que torna o seu argumento inerme (p. 12). Ao enumerar uma série de obras de escritores locais que ressaltam a importância de produções que não a canavieira para a história de suas respectivas cidades, Tenório contradiz-se ao concluir que existe um “monopólio contemporâneo dos estudos históricos” que só veem a cana como objeto de análise (pp. 31-5). Se existe monopólio canavieiro dos estudos históricos, como o autor foi capaz de levantar diversas obras que destacam o valor de outras produções para a história de Alagoas?

No seu conjunto, o livro cumpre o desígnio proposto, qual seja, o de “dar visibilidade ao esquecido universo têxtil na história e na cultura alagoana” (p. 9). Para fazê-lo, Tenório e Lessa utilizam-se, cada um a seu modo, ressaltamos, de depoimentos de operários têxteis e seus descendentes, de dados estatísticos, de atas de reuniões de acionistas e de entidades sindicais, de periódicos, de relatórios anuais das fábricas, de relatórios de presidentes de província, da literatura da época concernente. Um corpo de fontes significativo, tanto do ponto qualitativo, pois são tipologias documentais diversas, quanto quantitativo. Lançando uma percepção mais acurada sobre como as fontes são utilizadas pelos autores podemos levantar algumas questões.

Analisando depoimentos dos ex-operários têxteis, principalmente das mulheres, Douglas A. Tenório ressalta o papel positivo que as fábricas de tecidos tiveram no processo de emancipação da mulher ao garantir que esta pudesse começar “a sentir o gosto saboroso da igualdade, da independência” (p. 78). Para fazer isso, no entanto, o autor toma os depoimentos dos operários como prova do que ele procura demonstrar. Não há, neste caso, crítica às fontes. Sendo assim, o autor conclui: “A mulheres operárias, mesmo com a barreira cultural e a predominância masculina, gozavam de um grau de autonomia [grifos meus] que as do campo ou as da cidade jamais sonharam.” (p. 81) Conclusão bem diversa do que chegou Sheila de Castro Faria, quando da sua análise do papel feminino na fronteira rural fluminense durante o século XVIII. Para esta, a “mulher presidia unidades domésticas e tinha certa liberdade de movimentos [grifos meus] no espaço público, teoricamente [grifo meu] reservados aos homens” (FARIA, 1998, p. 47). Fica a impressão, neste ponto e ao longo de todo o texto de Tenório, de que o autor parece não atentar para os possíveis aspectos negativos trazidos pela industrialização e que, falando da função desempenhada pelas mulheres em formações sociais não industrializadas, o mesmo parte para um exercício de história do “ideal” (IBIDEM, p. 48), quando o que merece atenção é o que deveria acontecer e não o que realmente se passa. Em O ciclo do algodão e as vilas operárias, cabe a Golbery L. Lessa contrabalancear o papel “progressista” das fábricas têxteis em Alagoas. Segundo ele, até a Revolução de 1930, o lucro capitalista teve como contrapartida a miséria do operariado têxtil, sua não participação política e a intervenção da Igreja Católica como justificadora da ordem estabelecida (p. 132).

Aqui os dois autores travam uma batalha intensa sobre o papel desempenhado pelas indústria têxtil em Alagoas. O exercício de leitura do livro torna-se bastante interessante, sendo a crítica recíproca entre ambos uma constante. Para Tenório, a “inovação no horizonte tradicional da terra das muitas lagoas” trazida pela indústria foi “altamente positiva” (p. 42). Inclusive, mais uma vez sem nomear, chama de “céticos” os que argumentam em contrário. Para ele, não importa que o fato de que o “patronato têxtil manipulava e fez assistencialismo com o trabalhador” (p. 42), pois, mesmo com isso, a positividade daquela indústria não tinha sido maculada, pois ela conseguiu colocar o operário num “patamar elevado, ao lado do capital” (p. 42), quase um socialismo. Sendo assim, para este

É de um simplismo que beira o ridículo a colocação que o patronato têxtil é igual ao do açúcar e que nunca houve uma situação de bem-estar social entre os operários das fábricas surgidas após 1864 e até o seu ocaso, nos anos setenta do século passado, que seus salários eram reduzidos até abaixo do mínimo. (p. 52)

Como mostrado mais a frente, a passagem anterior é uma avaliação que pode ser lida como uma crítica direta, mesmo que não assumida, a Golbery L. Lessa. Num exercício que tem ares de competição para decidir quem explora menos ou mais, Tenório, sem base e carecendo de maiores esclarecimentos, conclui que “Quem acompanhou essa época, a intimidade desse universo fabril, sabe que a situação desses trabalhadores era bem melhor do que a dos trabalhadores do setor canavieiro.” (p. 52) Para ele, os industriais têxteis “de longe ganhavam de seus colegas da atividade canavieira”, os do período colonial e os hodiernos (p. 52). Assim como já mostrado no parágrafo anterior, Lessa não comunga com Tenório do progresso trazido pela industrialização têxtil.

Num sugestivo capítulo intitulado Mito [grifo meu] do bem-estar social nas fábricas têxteis 1940/60, o argumento anterior de Tenório é veementemente combatido por seu parceiro de pena. Indagando-se da “existência ou não de um sistema de bem-estar social no cinturão têxtil alagoano”, Lessa conclui “que na verdade nunca houve uma situação de bem-estar social entre os trabalhadores têxteis alagoanos [grifos meus].” (p. 160) Utilizando-se dos mesmos depoimentos sobre os quais Tenório lançou seu olhar, o presente capítulo mostra que os operários realmente ressaltam os aspectos positivos, principalmente em relação ao nível de empregos e à qualidade das festas nas vilas operárias, porém o bem-estar social naquelas vilas não poderia existir, pois, nos mesmos depoimentos a precariedade da assistência médica, os salários baixos, a extrema pobreza dos trabalhadores e a insuficiente infraestrutura são aspectos observados (pp. 155-8). Para Lessa, no que, numa evidente crítica a Tenório, é “ilusão” considerar que os “operários têxteis viviam com o mínimo de segurança social” (p. 160).

Num aspecto os autores concordam, os operários têxteis participaram decisivamente da política em Alagoas, principalmente a partir de 1930 (não descartando a participação anterior com greves). Analisando estatísticas eleitorais, tanto Tenório quanto Lessa concluem que foram determinantes os votos dos operários têxteis nas “vitórias eleitorais de Silvestre Péricles, Arnon de Mello e Muniz Falcão” (p. 163). Tenório ultima, mais uma vez sem basear sua assertiva, que o eleitorado dos municípios que sediavam as vilas operárias era mais alforriado do que o eleitorado rural (p. 88), ligando este ao coronelismo (p. 85) e Lessa assevera que ocorreu uma diminuição da venda de voto e arrefeceu a subordinação pelo favor nas vilas operárias. Sua conclusão se baseia no fato de inexistir, no caso do algodão, entressafra e pelo de viger uma legislação trabalhista para os operários têxteis, sem levantar dados maiores (p. 165). A harmonia interpretativa cessa por aí.

Consultando dados estatísticos do final do século XIX e início do XX, Lessa demonstra que metade do capital disponível em Alagoas estava aplicada nas indústrias têxteis (p. 116), sendo que o mundo criado pelas indústrias têxteis era significativamente distinto do universo da produção canavieira, tendo aquele um papel modernizador. Neste período, inclusive, não “se sabia qual delas iria vingar e tornar-se o caminho essencial do desenvolvimento capitalista; era uma época de experimentação e risco.” (p. 117) Apesar desta diferenciação, a pesquisa desenvolvida pelo autor não encontrou indícios de conflitos significativos entre os dois polos (p. 117). Mesmo produzindo “metade do valor econômico do Estado”, os empresários industriais têxteis tinham problemas com mão-de-obra e energia, além disso, sua presença política não era forte o suficiente para resolver tais demandas (p.152). Para Lessa, nem estes nem os usineiros “estavam interessados em uma modernização coerente do sistema” capitalista de Alagoas (p. 177).

Enxerga-se melhor o papel desempenhado por Lessa de balancear o progresso trazido pelos industriais têxteis quando analisamos o capítulo Os novos capitães da indústria, escrito por Douglas A. Tenório. Todo o capítulo lembra mais um manual de administração e liderança do que um relato histórico. O papel de “homens persistentes e particularmente determinados” (p. 51) é ressaltado pelo autor, sempre comparando-os com seus “colegas” atrasados da indústria açucareira. Neste capítulo, o autor chega a um dos pontos mais problemáticos do livro. Ao enumerar uma série de medidas tomadas pelos donos das fábricas têxteis para controlar o comportamento de seus operários, como por exemplo, as multas por descumprimento de horários, Tenório desfecha:

Há um componente modernizador ao introduzir novos hábitos que fariam o país e o estado acertar o passo com a história [sic] [grifos meus] e ter a sua unidade industrial como um artífice desses novos tempos – ter lucratividade associada à produtividade e esta agregada ao conforto do empregado.” (p. 52)

Não explicitando o que entende por “acertar o passo com a história” (sic), o autor deixa margem a interpretações. Significa “acertar o passo com a história” (sic) da Europa? Com a teoria da eugenia? Com o fascismo? Com as duas guerras mundiais? Ou significa “acertar o passo com a história” (sic) dos Estados Unidos? Com a crise de 1929? Com a grande depressão? Com a segregação dos negros? Com as bombas atômicas? O que transparece da afirmação acima é que a história tem uma única direção e todos devem caminhar nela. Quem ficar para traz ou pegar desvios será considerado a-histórico [2].

Concluindo nossa resenha, falemos um pouco dos problemas que levaram, segundo os autores, ao ocaso do setor industrial têxtil de Alagoas. Para Golbery L. Lessa sua desagregação foi resultado de problemas estruturais do setor no Estado, estre estes problemas estavam: o fato de seus concorrentes no Sudeste passarem a receber grandes benefícios; São Paulo passa a produzir algodão de ótima qualidade e em grande quantidade; a limitação da jornada de trabalho e uma série de outros mecanismos legais que diminuíram a margem de mais-valia absoluta trazidos pela Revolução de 1930; problemas relacionados à energia elétrica; e, finalmente, a maior distância do mercado consumidor em relação a São Paulo (p. 179). Tais problemas foram sopesados com “um verdadeiro boom nas fábricas de tecidos” entre 1941 e 1945, quando a “produção aumentou significativamente” devido ao impacto da Segunda Guerra Mundial, que se estendeu até o final da década seguinte, “quando começa a decadência do setor” (p. 154). Lessa cai, porém, no campo da especulação quando tenta enumerar uma série de medidas que deveriam ser tomados para salvar o sistema industrial têxtil de Alagoas. Todos os verbos dessa passagem dão a ideia de possibilidade, de sugestão: “seria necessário”; “era preciso”; “beneficiariam”; “tivessem”; “precisavam”; “requeria”; “podia”. Não podendo cumprir o que o autor considera que seria a resolução dos problemas das fábricas têxteis, a burguesia industrial têxtil alagoana encontrou saída: “sua irresolução histórica congênita lhe foi fatal” (p. 179).

Diversos outros temas poderiam ser discutidos, pois a obra em análise dá margem a isto. Porém, cremos ser o exposto suficiente para dar uma ideia do papel por ela desempenhado na escrita da história. É praxe introduzir qualquer texto sobre historiografia de Alagoas ressaltando seu caráter lacunar [3]. Apesar de algumas observações críticas acima apontadas, cremos, no entanto, que, O ciclo do algodão e as vilas operárias, de Douglas Apratto Tenório e Golbery Luiz Lessa, preenche uma destas lacunas.

Notas

2 Para uma crítica da teoria eurocêntrica, ver: BLAUT, James Morris. The colonizer’s model of the world: geografical diffusionismo and eurocentric history. New York: The Guiford Press, 1993. Especialmente o capítulo 1, History Inside Out, onde o autor faz um balanço do argumento eurocentrista; e LANDER, Edgardo (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO), 2005. Nesta publicação, conferir também a apresentação da edição em português do geografo Carlos Walter Porto-Gonçalves.

3 Sobre os problemas referentes à produção de estudos históricos em Alagoas, ver a apresentação de Osvaldo Maciel ao seu: MACIEL, Osvaldo (org.). Pesquisando (n)a província: economia, trabalho e cultura numa sociedade escravista (Alagoas, século XIX). Maceió: Q Gráfica, 2011.

Referências

BLAUT, James Morris. The colonizer’s model of the world: geografical diffusionismo and eurocentric history. New York: The Guiford Press, 1993.

FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.

LANDER, Edgardo (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO), 2005.

MACIEL, Osvaldo. Pesquisando (n)a província: economia, trabalho e cultura numa sociedade escravista (Alagoas, século XIX). Maceió: Q Gráfica, 2011.


Resenhista

Hélder Silva de Melo – Formado em História pela Universidade Estadual de Alagoas. Atualmente é mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco. Trabalha como professor da Educação Básica na Secretária Municipal de Educação de Arapiraca desde 2010.


Referências desta resenha

TENÓRIO, Douglas Apratto; LESSA, Golbery Luiz. O ciclo do algodão e as vilas operárias. Maceió: Sebrae, 2013. Resenha de: MELO, Hélder Silva de. Crítica Histórica. Maceió, v.5, n.9, p.271-277, jul., 2014. Acessar publicação original [DR]

MARX KARL (Aut), O 18 de Brumário de Luís Bonaparte (T), Boitempo (E), PEREIRA Flávio (Res), Crítica Histórica (CHr), Europa – França, Luís Bonapart, Séc. 19, Revolução de 1848

O marxismo é geralmente associado e descrito, por muitos críticos, como determinismo econômico. Em que pese o assento dado por Marx à análise econômica da sociedade, tal interpretação não é capaz de apreender a relação dialética entre as bases materiais de existência, diretamente ligadas à atividade econômica, e o exercício do poder politico, bem como a dinâmica do desenvolvimento da luta de classes. Neste sentido, O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, publicado em 1852, é uma demonstração da aplicação do método dialético materialista à análise e síntese dos acontecimentos que se desenrolaram no decorrer de quase quatro anos. O dinamismo da luta de classes e a relação dialética entre base e superestrutura, evidenciados no destaque dado aos aspectos políticos e às disputas decorrentes deles vão de encontro às acusações de determinismo econômico.

A onda revolucionária que tomou a Europa em 1848, teve início, na França, em 24 de fevereiro e desfecho final com o golpe dado por Luís Bonaparte, o Napoleão III, sobrinho de Napoleão Bonaparte, em 2 de dezembro de 1851. Diferenciando sua análise das interpretações de Proudhon e Vitor Hugo, Marx afirma: “[…] demonstro como a luta de classes na França, criou as circunstâncias e condições que possibilitaram a um personagem medíocre desempenhar o papel de herói.” (MARX, p. 18).

Partindo do enfoque na luta de classes, nesta obra de sete capítulos, os acontecimentos foram divididos em três períodos. O primeiro período foi de 24 de fevereiro a 4 de maio de 1848, denominado período de fevereiro, e teve como marca a atividade do proletariado como força política predominante. O segundo período, de 4 de maio de 1848 até 28 de maio de 1849, é o período da constituição da república ou da Assembleia Nacional Constituinte. O terceiro período de 28 de maio de 1849 até 2 de dezembro de 1851, período da república constitucional ou da Assembleia Nacional Legislativa.

Em relação ao primeiro período, o autor retrata uma polarização na disputa entre o proletariado e a burguesia nas suas diferentes frações, que se unem em bloco para combatê-lo. Quanto ao segundo e terceiro períodos, além da luta entre a burguesia e o proletariado, as disputas entre as frações da burguesia ganham contornos claros definindo a existência de fases distintas dentro de cada período.

Durante o mês junho de 1848, todas as classes e todos os partidos se uniram contra o proletariado, já desalojado do aparato estatal, considerado o partido da anarquia, do socialismo, do comunismo. Com esta derrota, o proletariado foi relegado ao segundo plano da cena revolucionária, chegando-se ao fim o primeiro período da revolução, classificado por Marx com prólogo da revolução.

A república burguesa triunfou. Ela teve o apoio da aristocracia financeira, da burguesia industrial, da classe média, dos pequeno-burgueses, do exército, do lupemproletariado […]. Do lado do proletariado parisiense não havia ninguém além dele mesmo. Mais de 3 mil insurgentes foram trucidados após a vitória, 15 mil foram deportados. (MARX, 2011, p. 34/35)

O segundo período, classificado como a história do domínio e da dissolução do poder da facção burguesa republicana, teria duas fases, a primeira que representou de fato o exercício do poder pelo referido grupo político, compreendida entre 4 de maio de e 20 dezembro de 1848, neste interim foi elaborada a constituição republicana e estabelecido o estado de sítio em Paris.

Para Marx, essa fração da burguesia era formada principalmente por profissionais liberais, cuja mentalidade republicana se baseava nas antipatias que nutriam contra Luís Felipe e na exaltação do nacionalismo francês. Combatia a aristocracia financeira e defendia o sistema alfandegário protecionista francês, agradando a burguesia industrial. Fazia denúncias raivosas contra o socialismo e o comunismo, agradando a burguesia em geral. Reivindicava a forma republicana do domínio burguês, exigindo a parte do leão na divisão do Poder. Tinha maioria na Assembleia Constituinte e excluiu imediatamente os socialistas do governo provisório. Valeu-se da insurreição de junho para destituir a comissão executiva.

A segunda fase, deste segundo período, de 20 de dezembro de 1848 – quando Bonaparte foi proclamado presidente da república – até a dissolução da constituinte em maio de 1849, nela estaria compreendido, o ocaso da burguesia republicana.

Depois de ter fundado uma república para a burguesia, escorraçado o proletariado revolucionário do campo e calado momentaneamente a pequena-burguesia democrata, eles próprios foram postos de lado pela massa da burguesia que com razão, confiscou esta república como sua propriedade. (MARX, 2011, p. 48).

O terceiro período, de 28 de maio de 1849 até 2 de dezembro de 1851, corresponde à vida da república constitucional ou parlamentar. Com a formação da Assembleia Nacional, o partido da ordem conquistou a maioria, os bonapartistas não foram capazes de formar um partido autônomo e, acabaram por se incorporar ao partido da ordem.

O partido da ordem reunia altos signatários das forças armadas, da academia e da imprensa, que se dividiam entre as facções legitimistas e orleanistas. Para Marx, as diferenças entre os legitimistas e orleanistas se davam em função de que cada um representa os interesses de uma facção da burguesia, a primeira facção representava os interesses da grande propriedade fundiária e a segunda o capital financeiro.

A reação à insurreição de junho unificou, no partido da ordem, legitimistas e orleanistas que teriam encontrado na república burguesa uma forma de governar conjuntamente. Como representantes da ordem burguesa contra as demais classes, eles executaram sua atividade na condição de partido da ordem. Somente na forma parlamentarista os dois segmentos da burguesia francesa puderam se unir. Ao mesmo tempo, isto elevou o nível da confrontação de classe sem o refúgio da mediação da coroa, o que os fez recuar no sentido da restauração.

Este período se subdivide em três fases. A primeira caracterizada pela disputa entre o partido da ordem contra uma coalizão formada por pequenos burgueses e trabalhadores (Partido Social democrata); a segunda teve como marca a luta que se abre entre Bonaparte e a burguesia unificada no partido da ordem, que é interrompida, devido a alguns acontecimentos que serão abordados adiante; e a terceira, quando a disputa entre o partido da ordem e Bonaparte assume contornos de uma disputa entre a Assembleia Nacional e o poder executivo.

Em relação à primeira fase, as manifestações de rua contra o bombardeio à cidade de Roma, por alegada inconstitucionalidade, e os levantes armados que se seguiram foram utilizados como justificativa para a decretação de um novo Estado de Sitio e, consequentemente, à derrota da pequena burguesia.

A segunda fase inicia-se com a destituição, por Bonaparte, de seu ministério composto por membros do partido da ordem, com o intuito de retirar seus postos no poder executivo e assim enfraquece-los, mas que é interrompida em função do resultado das eleições para preencher os cargos que haviam ficado vagos em consequência das prisões e exílios decorrentes da disputa da primeira fase deste período. Paris elegeu somente candidatos socialdemocratas. O medo fez com que Bonaparte recuasse.

Para Marx “[…] o sufrágio universal se declarou frontalmente contrário ao domínio da burguesia e esta respondeu com a proscrição do sufrágio universal”. (2011, p.86). O parlamento recorreu a medidas para esvaziar o processo eleitoral, destacadamente, a redução do número de eleitores de dez milhões para sete milhões, excluindo grande parte do povo da votação.

A terceira fase é marcada pelas ações de Bonaparte com o objetivo de promover a decomposição do partido da ordem. Inicialmente se utiliza de chantagem ameaçando denunciar o ato de violação da soberania popular cometido pela assembleia com as alterações promovidas na lei eleitoral. A briga constante entre o poder executivo e o parlamento, em episódios como a intriga entre o ministro da guerra e o chefe das forças armadas e da Guarda Nacional, promoveu o desgaste do partido da ordem, além da redução de seu poder que o levou a se aproximar de representantes da pequena burguesia radical – a Montanha – para manter seu poder em relação ao parlamento.

A aproximação com a Montanha, sua proposta de Anistia aos presos políticos e, novamente, a evocação do perigo da ameaça vermelha fizeram acirrar as divergências internas no partido da Ordem, principalmente, opondo seus membros de fora contra os de dentro do parlamento. Desde então, Bonaparte passou a estimular disputas entre as facções do partido da ordem, com sucessivas trocas ministeriais foi criando a instabilidade da qual necessitava para decretar o ato final do golpe de Estado.

No capítulo dedicado à conclusão, Marx, centralmente, analisa a influência decisiva que o campesinato teve nas eleições de 10 de dezembro de 1848, quando Luís Bonaparte se sagrou presidente. O autor procura identificar os motivos que teriam determinado a adesão do campesinato a Luís Bonaparte. A força política do campesinato foi retratada como o fiel da balança, pois foi nela que Luís Bonaparte se apoiou para chegar ao posto do presidente da França em meio a intrincada disputa entre as diversas classes e grupos que se confrontavam pela supremacia na estrutura do Aparato Estatal.

Como presidente, Luís Bonaparte pode explorar as contradições entre as forças políticas, bem como as limitações e debilidades decorrentes da composição de classes destas forças e dos respectivos interesses que representavam, no quadro da luta de classes que se apresentava na França. Quando nenhuma força política era capaz de aglutinar as demais e centralizar o poder político criaram-se as condições para o golpe final, tão anunciado por Luís Bonaparte, em suas ‘orgias e bebedeiras’, põe fim a Segunda República Francesa. Em referência ao primeiro Napoleão, o tio, que, no dia 9 de novembro 1799, ou, 18 de Brumário no calendário instituído pela Revolução Francesa, se autoproclamou Imperador, Marx denominou o golpe de Estado, dado pelo sobrinho, de 18 de Brumário de Luís Bonaparte.

Neste trabalho, evidencia-se como a concepção de Marx a respeito da luta de classes era dinâmica e dialética. Ao retratar a burguesia francesa, demonstra como uma mesma classe pode dividir-se em facções – proprietários de terra e burguesia financeira – que possuem convergências e divergências de interesses e que, condicionadas pelos acontecimentos, poderiam tomar caminhos diversos. A própria estrutura de Estado, ao centralizar a organização da atividade produtiva da sociedade pode dar origem a setores de classes e grupos que desempenhem papeis específicos – a imprensa, o funcionalismo público, a intelectualidade e os militares. Demonstra ainda como a composição destas últimas forças políticas pode provocar a interpenetração de interesses de diversas classes, o que se retrata no Partido da ordem.

A importância dada pelo autor ao papel que o campesinato teve na ascensão de Luís Bonaparte é elemento que merece destaque. O campesinato é analisado em detalhes, enfocando-o como classe social específica, cujos anseios e reivindicações teriam caráter anticapitalista. Marx recupera seu processo de formação desde a primeira república até o tratamento que este recebera por parte da segunda república, buscando as razões que pudessem explicar seu comportamento e estabelecer vinculações entre a luta camponesa e a luta proletária. Tais considerações não correspondem ao reducionismo de considerar em sua análise da sociedade capitalista apenas as classes burguesia e proletariado, por vezes atribuído ao autor, por alguns críticos.

Sobre o Estado, Marx o apresenta não como um comitê da burguesia, mas demonstra que o mesmo constitui um instrumento de dominação de classe, apontando sua inserção, sua ‘capilaridade’ no conjunto da sociedade e destacando também seu aspecto militar, que constitui o aparato central de dominação. A importância de Cavaignac na derrota do proletariado em junho de 1848 e o poder assumido por ele na Comissão executiva, o papel de Changarnier no cerco que forçou a destituição da Assembleia Constitucional e as manobras de Bonaparte para provocar fissuras nas forças armadas e submetê-las ao seu comando estão relacionados ao aspecto militar desta dominação. O autor apresenta a seguinte síntese sobre as características do aparato de estado francês:

o interesse material da burguesia está entretecido da maneira mais íntima possível com a manutenção da máquina estatal extensa e muito capilarizada. […] o seu interesse político obrigou-a a aumentar diariamente a repressão, ou seja, os recursos e o pessoal do poder estatal, enquanto era forçada a travar simultaneamente uma guerra ininterrupta contra a opinião pública e a desconfiadamente mutilar e paralisar os órgãos autônomos de movimento da sociedade, quando não a amputá-los completamente. (p. 77)

As relações entre base e superestrutura, tal como na análise apresentada por Marx, em nada se assemelha ao modelo segundo o qual a base econômica determina sempre a superestrutura, no qual a segunda consiste apenas num reflexo da primeira. Muito ao contrário, os aspectos políticos, bem como alguns acontecimentos imprevistos determinaram o curso dos acontecimentos, a superestrutura é dinâmica e age sobre a base, o que corresponde ao entendimento de uma relação dialética entre as duas, sem a qual a luta de classes se apresenta como um jogo previsível.

Os caminhos tomados pela luta de classes na França criaram as condições que possibilitaram o golpe de Bonaparte, entretanto, isto não se constituía a priori como algo inevitável. As ações dos sujeitos sociais, individuais e coletivos, concorreram para que a história tenha se concretizado numa determinada forma específica, resultado da concatenação de uma série de eventos nos quais os homens interviram de forma consciente ou não, condicionados por uma gama de fatores. “Os homens fazem sua própria história, contudo não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles que escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram” (p. 27).


Resenhista

Flávio Pereira – Mestrando no Programa de Pós-Graduação em História UFAL- Universidade Federal de Alagoas/ Bolsista CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento Profissional do Ensino Superior.


Referências desta resenha

MARX, KARL. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo. Boitempo, 2011. Resenha de: PEREIRA, Flávio. A dinâmica-dialética da luta de classes em o 18 de Brumário de Luís Bonaparte. Crítica Histórica. Maceió, v.5, n.10, p.327-332, dez., 2014. Acessar publicação original [DR]

BARBEITOS Arlindo (Aut), Angola-Portugal: Representações de Si e de Outrem ou o Jogo Equívoco das Identidades (T), Kilombelombe (E), LIBERATO Ermelinda (Res), Crítica Histórica (CHr), África – Angola, Europa – Portugal, Identidades, Séc. 19-20

Resenhar um livro com essa densidade e pormenorização é tão difícil quanto traçar o perfil do autor pois este assume diversas facetas: o intelectual, o professor, o investigador, o nacionalista, o politico, o cidadão, que se resume numa única característica: o profissional. E é com profissionalismo, mas igualmente com muito empenho, dedicação e persistência que Arlindo Barbeitos escreveu a presente obra, pois de outro modo não seria possível empreender essa tarefa com tal densidade de pormenorização. Abordar temas ainda muito sensíveis para a sociedade angolana e portuguesa, como a raça, a miscigenação e todas as conotações daí resultantes, analisar obras essencialmente portuguesas, mas que representam os angolanos da altura (período colonial), parece-nos à partida, uma missão inglória, na medida em que se torna fundamental ter um excelente domínio da história dos dois países, assim como da relação entre os diferentes acontecimentos ocorridos nos dois lados do Atlântico.

Para melhor organização não só das suas ideias, mas sobretudo, para melhor compreensão do tema por parte do leitor, o autor dividiu a obra em 5 capítulos, todos eles extensos e muito descritivos. Cada um dos capítulos aborda especificamente determinado período da colonização e, é a transição de uma fase para a outra que desperta a atenção do autor, na medida em que são estas alterações que conduzem a uma mudança de direção da política colonial em si e que consequentemente afetam a vida dos angolanos no geral. Deste modo, e tomando como ponto de partida figuras emblemáticas representativas dessa política, o autor caracteriza toda a época colonial, com destaque para o período de intensificação da política colonial portuguesa, ou seja, de meados do século XIX até ao término da ditadura salazarista no dia 25 de abril de 1974. Centrado em temáticas como colonização, política colonial, darwinismo social, raça, etnia, identidade, pátria, povo, nação, entre outras, a obra não procura ser acusatória ou mesmo justificar os diferentes acontecimentos, mas sim ser mais um contributo para o conhecimento não só da história dos dois países, mas sobretudo do relacionamento entre africanos e europeus, bem como do surgimento dos mestiços.

O ponto de partida do autor é explicado logo na introdução “vou tratar das representações que os portugueses, quer na Europa, quer em Angola, produziam acerca dos negros e depois dos mestiços, ao longo de 4 séculos… bem como as representações que os portugueses produziam de si próprios” (p. 29). Para alcançar os seus objetivos o autor assenta toda a sua investigação numa extensa bibliografia constituída por fontes arquivísticas, impressas, relatórios, documentos, crónicas, testemunhos, relatos de viagem, correspondência, textos literários, estudos relativos ao espaço colonial, estudos de natureza metodológica e teórica, bem como documentação fotográfica. Tão vasto campo de fontes de informação só poderia resultar em mais de 100 páginas de bibliografia. Por outro lado, e como o próprio assume “como sujeito vivo, aleatório, insuficiente, vacilante, modesto, que introduz a sua própria finitude numa investigação que muito deve à sua biografia e experiência” (p. 32), o autor recorre a sua experiência enquanto testemunha para dar voz a alguns acontecimentos.

Barbeitos dá assim início ao seu trabalho, apresentando António de Oliveira Cadornega, autor da obra História das Guerras Coloniais Angolanas, e que se dedicou a conhecer “quer os começos da intervenção portuguesa em Angola, quer os povos africanos que habitavam a região e as suas respostas a esta presença estrangeira” (p. 39). Assim, a partir da sua obra, ficamos a conhecer melhor os acontecimentos que marcaram os séculos XVI e XVII, que corresponde precisamente ao período da criação e intensificação das redes do tráfico de escravos e consequentemente, do relacionamento que se estabeleceu entre africanos e europeus, tendo como resultado o surgimento dos mestiços. Esse relacionamento reveste-se de suma importância dado que, é a partir do mesmo que surgirão, anos mais tarde, os denominados “filhos do país”. Ainda neste primeiro capítulo, o autor apresenta as primeiras conotações produzidas na época em relação ao africano: “bárbaros, gentios, feitos para trabalhar, pura força de trabalho, pele negra” (p. 55), e que, de certa forma, irão orientar, em períodos distintos, e umas vezes mais do que outras, não só o relacionamento entre africanos e europeus e posteriormente também os mestiços, como igualmente toda a política colonial.

E é em torno de toda essa dinâmica e da evolução dos acontecimentos que o autor nos apresenta, no segundo capítulo, as ideias em relação ao assunto, daquele que é considerado o “divulgador mais sofisticado do pensamento naturalista em Portugal” (p. 151), – Oliveira Martins – realçando sobretudo o seu papel na sociedade e política portuguesa e a sua defesa pelas teses do darwinismo social, que, de acordo com o mesmo, deveria ser a base para a construção do tão ansiado Terceiro Império. Através dos discursos patrióticos e nacionalistas de Oliveira Martins, sobretudo no que toca à ideia de inferiorização do negro, entendido apenas como pura fonte de “força de trabalho” (p. 224), Barbeitos dá-nos a conhecer o lado menos popular daquele “vencido da vida” como o próprio denominou à toda a Geração de 70 da qual também fazia parte, acostumados que estamos a ler as suas obras sobre História de Portugal ou da Civilização Ibérica, entre outros. A sua posição contra a mistura de raças e contra os mestiços, vistos como “seres intermédios ou abastardados, às vezes monstros” (p. 240), contribuem para o processo de hierarquização dos seres humanos que, de uma maneira ou de outra, definirão não só os desígnios dos dois países, bem como a relação entre os dois povos, tendo reflexos ainda no presente.

Com uma posição diferente daquela adotada pela política colonial e pelos seus defensores mais fervorosos e entusiastas, o autor apresenta-nos Héli Chatelain, “uma das personalidades cristãs mais marcantes, senão a mais extraordinária, dos últimos anos de oitocentos e princípios do século XX” (p. 282). Defensor firme dos idiomas locais e crítico da política colonial portuguesa, este missionário protestante suíço é recordado como uma das figuras mais emblemáticas da história de Angola. A ele devemos um dos mais importantes e conhecidos estudos etnográficos sobre Angola, bem como a identificação e classificação dos grupos etnolinguísticos daquele país. Assim, enquanto o autor nos vai apresentando a sua biografia, vai igualmente traçando um paralelo com acontecimentos ocorridos em Angola, de modo que ficamos a conhecer o contexto encontrado pelo missionário aquando da sua chegada e instalação, bem como a evolução dos mesmos, o que nos permite não só conhecer melhor a pessoa que era, mas sobretudo o papel desempenhado pelas igrejas cristãs, com destaque para a Igreja protestante, na transformação sociocultural dos indígenas, que se tornaram mais eficazes que as ações do estado na produção e fixação de representações de si e de outrem.

E na produção destas representações o corpo assume uma importância primordial, ou seja, a tonalidade da cor da pele, bem como o processo anterior que deu origem a essa mesma cor. As diferentes conotações atribuídas à cor da pele constituem o tema principal deste quarto capítulo. O autor desenvolve assim um excelente debate teórico sobre a descoberta das raças, despertando um outro olhar sobre o corpo, na relação com o próprio corpo, ou seja, todo um discurso sobre a construção do conceito de raça e as diferentes conotações assumidas durante o período colonial – cafuso, cafrealizado, mulato – utilizadas para caracterizar todos os seres resultantes da mistura entre brancos e negros ao longo dos séculos. A análise desse capítulo permite-nos entender sobretudo a origem do protonacionalismo, do nacionalismo e posteriormente da criação dos movimentos nacionalistas e da sua luta pela independência, mas sobretudo, trata-se de entender como todo o pensamento e toda essa hierarquização se transformou igualmente em pressupostos sociais, como é o caso do “qualificativo cafuz (que) tinha entretanto obtido um valor muito mais social que racial” (p. 416).

O debate continua no quinto e último capítulo, que o autor inicia com uma contextualização histórica que nos permite entender a sociedade da época e consequentemente, a adoção de certas políticas. A ideia de construção de um novo Brasil em África, a consolidação do darwinismo social, e o assentamento de famílias portuguesas em Angola fazem do final do século XIX e da primeira metade do século XX o período por excelência da confirmação do espaço e da cultura angolana marcado pela violência física, moral e cultural do colonizador para com os colonizados, no caso, os africanos, e de certa forma, os mestiços. Neste capítulo o autor explora assim as diferentes facetas da exploração colonial, nomeadamente, o trabalho forçado, as roças de São Tomé, os serviçais, o consumo de álcool, até ao despertar dos primeiros nacionalistas, sem deixar de mencionar o papel preponderante dos mestiços na génese e formação destes nacionalistas uma vez que estes adquiriram uma “importância simbólica inestimável, pois por si passavam os múltiplos e complexos laços entre colonizadores e colonizados” (p. 559). E é precisamente nesta fase de consolidação da política colonial que as mestiçagens culturais mais se destacam, ao se unirem e se identificarem com uma cultura angolana, fruto da assimilação entre europeus e africanos, que reclamam pelo reconhecimento da sua identidade bem como o seu lugar na sociedade, empreendendo, para o efeito, diferentes manifestações de luta, que terminam somente com a independência daquele país, em 1975.

De destacar ainda a mensagem que a capa do livro nos transmite: duas máscaras que se diferenciam apenas pela cor: uma branca e uma preta. Porém, não vemos nenhuma máscara que representa a mistura das duas, precisamente porque essa mistura é mais do que simplesmente cromática. Há toda uma dinâmica resultante desse processo que deve e tem que ser entendida, ou seja, o “jogo equívoco das identidades” passa precisamente pela compreensão do resultado dessa mistura de dois mundos completamente diferentes, e que vão para além da existência dos mestiços, ou seja, há todo um processo de mestiçagem cultural que deve ser cuidadosamente analisado e compreendido.

Um dos grandes trunfos desta obra é sem dúvida a condensação de um período longo e complexo da história de Angola e de Portugal num único manual, onde os acontecimentos são descritos de forma ordenada, clara e simples, utilizando para o efeito uma linguagem descritiva e acessível. A complexidade do tema em si, aliada à fundamentação do autor impedem a sua leitura de um “sopro”. Trata-se sim de uma obra académica, uma bíblia para os investigadores sobre a temática, um dos manuais mais importantes sobre a história de Angola e de Portugal, e que nos permite conhecer e melhor interpretar o presente, uma enciclopédia que deve estar sempre à mão para que se possa consultar quando necessário, mas sobretudo, trata-se de mais um contributo para a compreensão da temática em si e do relacionamento entre os dois povos, fornecendo igualmente pistas para a compreensão da realidade atual.

O manuseio da abundante informação e a solidez da argumentação apenas comprovam aquilo a que o autor já nos habituou – trabalho sério e bem fundamentado, revelador da sua competência e isso fica comprovado com o a vontade com que cruza diferentes escalas de análise, a interdisciplinaridade que transcende as fronteiras académicas, o seu distanciamento em relação ao objeto de estudo mesmo se tratando de um dos protagonistas da história de Angola, o que demonstra o domínio do corpus epistemológico e metodológico de cada disciplina, o manuseio brilhante de diferentes contextos, bem como a sua organização. Obviamente que a obra traz a público apenas uma pequena parte daquilo que Arlindo Barbeitos nos pode transmitir e ensinar. Ficamos a aguardar que nos continue a brindar com o seu excelente trabalho de qualidade, sobre esta ou outra temática.


Resenha

Ermelinda Liberato – Professora auxiliar da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Agostinho Neto (FCS-UAN) LuandaAngola, doutora em Estudos Africanos, em 2013, pelo Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), em Portugal, e pesquisadora do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE (CEI-IUL) em Lisboa.


Referências desta resenha

BARBEITOS, Arlindo. Angola-Portugal: Representações de Si e de Outrem ou o Jogo Equívoco das Identidades. Luanda: Kilombelombe, 2011. Resenha de: LIBERATO, Ermelinda. Crítica Histórica. Maceió, v.7, n.13, junho, 2016. Acessar publicação original [DR]

TOLOVI Carlos Alberto (Aut), Padre Cícero do Juazeiro do Norte: a construção do mito e seu alcance social e religioso (T), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (E), BRITO Ênio José da Costa (Res), Crítica Histórica (CHr), Padre Cícero, Cidade de Juazeiro do Norte, Séc. 19, Biografia, Mito

A proposta da tese é ampla, desafiadora, trabalhosa e de perfil interdisciplinar e transdisciplinar. Diz seu autor:

Tomando a figura de Padre Cícero como referência é possível perceber um processo de santificação que coincide com a construção do mito. Porém este santo mitificado tem algo de específico: ele foi construído pela religiosidade popular e ainda hoje pertence a ela. Afinal, o patriarca do Juazeiro do Norte, carinhosamente chamado como “meu padim”, é um santo que “vive no sol” pelo fato de ter morrido afastado das Ordens sacerdotais (TOLOVI, 2015, p. 5).

Algumas ideias, verdadeiros mantras textuais, são trabalhadas longa e minuciosamente nos seis capítulos que estruturam a tese: a relação entre mito, religião e organização social; a influência do mito e da religião nas estruturas de poder e o deslocamento da força mítico-religiosa do “milagre da Hóstia” para o padre. Percorrerei a tese tecendo comentários, observações e destacando tópicos importantes, ciente de que tais pontuações não dão conta da riqueza da pesquisa.

Os capítulos

Na introdução lemos: “o fenômeno do Padre Cícero não pode ser compreendido de forma isolada, como um acontecimento histórico independente das influências sociais, políticas e econômicas” (TOLOVI, 2015, p.15). É importante acrescentar “influências religiosas”, pois, epistemologicamente falando, a dimensão religiosa encontra-se no mesmo nível que as outras.

No capítulo I, intitulado “Um cenário propício” (TOLOVI, 2015, p. 24-64), Tolovi parte dos acontecimentos em nível nacional para chegar a uma compreensão matizada e rica do cenário onde se deram fenômenos da maior importância: transformação da hóstia em sangue e transformação de um pequeno vilarejo em um município que influenciou a política regional, estadual e nacional. Situa o leitor ante um fenômeno religioso que desembocou numa forte transformação social e religiosa de um pequeno povoado nordestino.

Ele fala de “gênesis” do movimento religioso. Numa perspectiva pós-colonial – a que o autor se refere em vários momentos –, é melhor dizer “emergência”. Justifico com Stuart Hall (2006): ele nos lembra que a origem é contingente, é e não é, sua retórica exclui elementos que explicam seu ser-e-não ser, sua indeterminação. Sua fala incorre numa ambivalência, fala do passado no presente e na enunciação junta passado e presente.

Ainda temos algumas referências ao livro de Rui Facó, Cangaceiros e fanáticos. Lembro o comentário de Pedro Vasconcellos sobre ele, pioneiro na abordagem de movimentos rurais, não operários, “mostrando o vínculo deles com a luta contra o latifúndio, embora para muitos de seus participantes essa meta fosse inconsciente, já que obscurecida pelo ideal religioso”. Mas,

o problema maior […] surge quando [Facó] passa a considerar a religião na constituição de Belo Monte. Ai seu olhar de marxista “ortodoxo”, incapaz de ver na religião algo além do “ópio do povo”, se manifesta fortemente, levandoo a desqualificar a brava gente sertaneja cuja resistência admira. A caracterização depreciativa das práticas religiosas dos sertanejos denuncia os preconceitos do autor (VASCONCELLOS, 2015, p. 54-55).

Tolovi oferece uma ótima referência dos “modelos de administração” dos espaços construídos pelo Pe. Mestre Ibiapina. Um texto recente oferece informações significativas sobre este tema: Ibiapina tinha preparado o solo por meio das missões populares que incentivavam o protagonismo e o empoderamento dos leigos/beatos/as (CARVALHO, 2008, p.208). Sobre os aldeamentos (TOLOVI, 2015, p. 53) dá uma explicação que pode ser ainda mais explorada, pois, desde o início da época colonial, a missão cristã junto aos nativos se faz principalmente através dos aldeamentos, das reduções: “Converter os indígenas pressupunha reduzi-los do ser e do seu modo de vida e civilizá-los conforme os padrões europeus. Sua humanização era reduzida à medida em que se iam humanizando nos moldes dos colonizadores” (DOMEZI, 2015, p.126).

Tolovi enfrenta duas questões ao longo do capítulo: como entender a ambivalência da fé dos romeiros e romeiras, no caso de Pe. Cícero (TOLOVI, 2015, p.36)? Como apresentar a religiosidade popular na perspectiva de uma “epistemologia do sofrimento” (ESPÍN, 2000)? Ao considerar a oclusão da seca pelos políticos nordestinos, ilumina a questão citando Celso Furtado (p. 34):

A seca é uma coisa terrível. Muita gente morre, outros têm sua vida encurtada pela fome. Nunca se faz um estudo para medir o custo humano real de uma seca. Geralmente, isso é ignorado, ocultado. A classe política nordestina tem um complexo muito grande com respeito a certas coisas, oculta tudo, não gosta que se estude isso. Porque tem consciência de culpa. Sabe que há tanta coisa que podia ter evitado, mas tem medo que tudo também desmorone, que o mundo deles venha abaixo (FURTADO,1988, p. 24)

“As características estruturais do Mito” (TOLOVIA, 2015, p. 65-105) é o título do capítulo II, que deixa transparecer uma conaturalidade do autor com o tema. Assume-se o desafio de entender o mito pela compreensão de sua estrutura e na perspectiva da busca de sentido, buscando: (a) definir as categorias que fundamentam a concepção do mito; (b) decodificar a sua estrutura; (c) aplicar a estrutura à figura do Pe. Cícero.

O perfil do capítulo é bem filosófico, de matriz feuerbachiana, corajoso e afoito em algumas inferências. Uma ideia é básica: Mito não é apenas narrativa, mas esta é uma das bases principais da sua estrutura: ele

não é simplesmente traduzido por uma narrativa, pois ele diz simplesmente como as coisas se deram. Neste sentido, a vida do mito corresponde à latência dos desejos e necessidades da coletividade. Portanto, mito não é o narrado, mas, especialmente, o vivido (TOLOVI, 2015, p.75).

Deparamo-nos com uma afirmação significativa na p. 100: “Se a figura do padre Cícero foi mitificada é porque esta foi enquadrada em uma estrutura que já anteriormente estava pronta”. O capítulo III mostrará o que corrobora o processo de mitificação.

Ponto alto deste fundamentado capítulo é ter deixado clara a relação entre “necessidade de transcendência” e “necessidade de conservação”, presentes no mito. Vejam-se algumas afirmações: “O ser humano através do mito representa o poder de transcendência, de criar e recriar (TOLOVI, 2015, p. 87); “O mito é dependente de uma necessidade de transcendência, que é uma das características humanas essenciais, que por sua vez está ligada aos limites de sua imanência” (Idem, p. 104). Mas também “conserva através da cultura, conserva através dos valores morais, conserva através da repetição – nos ritos; enfim, conserva através da própria estrutura” (Idem, p. 104). Vale lembrar que tal estrutura, universal, não elimina as peculiaridades culturais e históricas (Idem, p. 95).

Uma das finalidades do capítulo é explicar a íntima relação entre o ser humano, o mito e a religião:

O mito, mais especificamente, depende de uma necessidade de transcendência. E esta necessidade faz parte de uma das características humanas essenciais que, por sua vez, está diretamente ligada aos limites de sua imanência. Imanência e transcendência, corporeidade e consciência, razão e emoção, são binômicos que compõem a dialética da existência humana que será sempre desafiada pela busca de sentido. Sando assim, buscar o conhecimento dos mitos significa a busca da autocompreensão humana (TOLOVI, 2015, p.104).

O capítulo III tem como título “A estrutura do mito em torno da figura de Padre Cícero do Juazeiro do Norte” (TOLOVI, 2015, p. 106-125) e apresenta as condições para entender Pe. Cícero em seu processo de santificação e mitificação. São duas as questões basilares: porque o “Milagre da Hóstia” foi atribuído ao Padre Cícero e a Beata foi ignorada, esquecida? [1] E o que leva os fiéis a acreditarem em Pe. Cícero e na Beata Maria de Araújo? O próprio autor explica a intencionalidade do capítulo:

[…] desvelar a íntima relação entre mito e religião. Nascem de um mesmo “lugar” (desejo e necessidade da coletividade), precisam de narradores que se utilizam de uma linguagem simbólica, ganha a vida a partir de uma aceitação coletiva, pressupõem a existência e intervenção de um ser sobrenatural (Deus), exigem sacrifício (mesmo que de forma sutil e velada) e possuem a necessidade de rituais para manterem a existência. Por tudo isso é possível compreender o processo de santificação do Padre Cícero pela religiosidade popular, ao mesmo tempo em que se dá a sua mitificação. A diferença mais explicita entre mito e religião está no fato de que o mito não depende de uma institucionalização burocrática e nem de uma racionalização – como teologia, por exemplo. É por isso também que Padre Cícero foi proclamado santo mesmo estando afastado das Ordens Sacerdotais e mesmo sem ser reconhecido pela hierarquia da Igreja Católica (TOLOVI, 2015, p.125).

Uma observação: hoje, quando trabalhamos as relações devoção/promessa no âmbito da religiosidade popular, não as temos circunscrito ao do ut des, pois só esta dimensão jurídica não explica a dinâmica nelas presente. O devoto sente-se também acolhido pelo santo. E não deixa de ser impressionante a capacidade da Religiosidade Popular, em geral olhada como algo superficial, de produzir espaços de libertação:

mesmo não propondo revolução política, social ou econômica ela encontra brechas para construir espaços de autonomia dentro das estruturas de poder. E o mais interessante: se utilizando de símbolos religiosos destas estruturas a partir de uma interpretação autônoma e criativa (TOLOVI, 2015, p. 114).

O capítulo IV intitula-se “A construção do santo mitificado: Padim Ciço” (TOLOVI, 2015, p.126-161). Tendo em mãos os elementos que explicam a construção do mito, Tolovi realiza um zoom na figura do “Padim Ciço”, para compreendê-lo a partir da perspectiva dos romeiros (Idem, p.126) e responder à questão: o que teria ele feito para se tornar referência de santidade e esperança para os desesperançados? O resultado é uma narrativa ágil na qual cruza elementos políticos, religiosos e populares de forma criativa, confirmando a indissolúvel relação entre mito e religião (Idem, p.159) e a força e o carisma do Pe. Cícero (Idem, p.162). O fato de ter abordado no capítulo anterior o processo de construção do mito “possibilitou uma percepção mais ampliada a respeito do carisma e da força de liderança do Patriarca junto aos seus romeiros e romeiras” (Idem, p.162). Penso que exacerba um pouco a preocupação com a autonomia da religiosidade popular, por parte da Igreja hierárquica do Ceará. E ficou devendo para o seu leitor uma foto da “Sala do Santo” (Idem, p.161):

No Nordeste e, principalmente em Juazeiro do Norte, a “sala do santo” se encontra presente em quase todos os lares. Um pequeno altar é organizado na sala onde se faz o ritual tradicional da entronização do Coração de Jesus. Um ritual implantado e incentivado por Padre Cícero essa entronização geralmente é feita marcando uma data especial na família. De preferência a data do casamento. Todos os anos, na mesma data, ocorre o ritual denominado como “Renovação”. É o momento de renovar e fortalecer a devoção ao Coração de Jesus. Simbolicamente, a presença do Coração de Jesus na família representa uma forma de proteção e presença constante do divino. E neste espaço há um lugar reservado de forma especial para a imagem de Padre Cícero – chamado carinhosamente por “meu padim” (TOLOVI, 2015, p.161).

O leitor, pensando ainda na construção do Mito, fica curioso para saber dele antes do “Milagre da Hóstia” (1889), pois Pe. Cícero já morava em Juazeiro há 16 anos.

“Noção de Política a partir de uma determinada estrutura” (Idem, p.162-184) é o título do capítulo V. Sugestivo o mote que tomou como ponto de partida para discutir política, tomado de Ralph dela Cava, um dos mais importantes estudiosos do Pe. Cícero. [2] Capítulo teórico, que trabalha no sentido de extrapolar/ir além da noção tradicional de política, como fez ao refletir sobre o mito. Eis o resultado deste esforço analítico: “toda ação coletiva, norteada por uma ideologia, que gera uma forma de organização, colocada em uma relação de poder, dentro de uma correlação de forças na perspectiva de uma finalidade última, pode ser definida como política” (TOLOVI, 2015, p. 183). Munido desta compreensão sente-se apto para compreender a interface entre política e religião, tomando como referência a figura do Pe. Cícero. Ao final pode perguntar: o que salvou Juazeiro da destruição foi a política?

O principal objetivo do capítulo é “explicitar a fundamentação teórica que possibilitará melhor compreensão da figura do Padre Cícero em meio aos conflitos que o colocaram em destaque no cenário nacional” (Idem, p.164). Abre um diálogo com Gramsci com relação à ideologia, e apresenta uma de suas definições: “unidade de fé entre uma concepção de mundo e uma norma de conduta adequada a essa concepção” (Idem, p.171). A intenção é a de oferecer elementos para uma análise mais densa da “política eclesiástica”, responsável pela negação do milagre e pela condenação do Pe. Cícero. Circunscrevendo a questão afirma: “o poder se constitui como um ato de fé” (Idem, p.171) e “é na política que a individualidade se encontra com a universalidade” (Idem, p.181). Duas afirmações fortes a serem mais exploradas.

O capítulo VI, “Mito, Religião e Política em torno da figura do Padre Cícero” (Idem, p. 185-220), volta à relação política e religião envolvendo a Igreja hierárquica, o Estado e a religiosidade popular em torno da figura de Pe. Cícero, tendo sempre presente que a relação de poder é o coração da política (Idem, p.207) e olhando o conceito de política na perspectiva da interindividualidade. Procura responder às seguintes questões: (a) O que estaria por trás da decisão do bispo da época (Diocese do Ceará) ao definir a negação do milagre de forma antecipada – mesmo antes do término das investigações propostas por ele mesmo? (b) O que levou o Pe. Cícero a entrar no cenário conflitante da política partidária sendo ele um sacerdote? (c) O que justificaria a condenação do Pe. Cícero por parte da igreja oficial e a santificação do mesmo por parte do povo nordestino? (d) Pelo seu envolvimento com a política partidária e por sua relação de poder, pela grande quantidade de bens materiais e pela sua ascendência junto ao povo, Pe. Cícero poderia ser comparado a um “coronel de batina”?

Entre as inúmeras informações destaco a apresentação do documento de 14/02/1926, que abre a possibilidade do Pe. Cícero retomar as Ordens Sacerdotais se deixasse Juazeiro e entrasse para a vida religiosa (Idem, p. 217).

Duas palavras marcam o texto; a primeira indica uma ação, a segunda uma situação: relação e ambiguidade ou ambivalência. Sob o aspecto analítico procura sempre estabelecer relações entre mito/religião/política e aponta a ambiguidade presente nos fatos que envolveram Pe. Cícero, a beata Maria Araújo e os romeiros, bem como na política civil e eclesiástica.

Conclusão

Carlos Alberto Tolovi, ao assumir como objeto de estudo o fenômeno do Pe. Cícero e Juazeiro do Norte, buscando compreender a construção de seu mito através do processo de santificação, com consequências práticas na realidade sociorreligiosa, política e econômica do município, na região do Cariri, no estado do Ceará e no Brasil, tinha consciência do risco que corria. Pesquisar uma figura tão estudada e trazer algo de novo se apresentava como uma tarefa nada fácil. Na sua análise, acolheu complexos desafios: compreender o mito, além de sua narrativa, isto é, nos seus elementos essenciais, independentemente de sua época e da sua inserção cultural; compreender o mito do “Padim Ciço” a partir da construção do santo, no âmbito do universo da religiosidade popular, tendo os romeiros como protagonistas e compreender a figura do “Patriarca” em meio aos conflitos entre Igreja hierárquica, Estado e a população pobre em luta pela sobrevivência. Admitir a santidade de Cícero significa assumir as narrativas dos beatos/as e todo o processo de empoderamento da religiosidade popular (TOLOVI, 2015, p.211). Dados estes passos, pode concluir pela ocorrência de um processo de santificação/mitificação que realçou não só o carisma, mas a liderança do Pe. Cícero.

O autor nos lembra, ainda, ser necessário ter presentes: a contribuição dada a todo o processo de santificação/mitificação do Pe. Cícero pelas narrativas gestadas no âmbito da religiosidade popular; a participação política no âmbito local, regional e nacional da figura ambivalente, que foi “padre, coronel, político, libertador e santo”; e as constantes relações entre política e religião em torno da figura deste padre.

Para Tolovi, os conflitos envolvendo a Igreja hierárquica, a política partidária e a religiosidade popular frente ao fenômeno do milagre ilustram bem a tensão entre religião e política. Ler esta tese é conhecer um pouco mais as entranhas das relações sempre ambíguas entre poder religioso e político. Para o autor, “Padre Cícero não continua vivo apenas no coração dos romeiros e romeiras, mas continua vivo também no campo da política, na latência dos conflitos que ainda permanecem em torno de sua figura dentro e fora da Igreja” (Idem, p. 224).

Nota

1 Não temos muitos estudos sobre a beata (ver FORTI, 1999).

2 O livro de Cava (1976) é um clássico. Ver também o primoroso trabalho de Barbosa (2007).

Referências

BARBOSA, Francisco Salatiel de Alencar. O Joaseiro celeste: Tempo e paisagem na devoção ao Padre Cícero. São Paulo: Attar, 2007.

CARVALHO, Ernando Luiz Teixeira. A missão Ibiapina. A crônica do século XIX escrita por colaboradores e amigos do Padre Mestre atualizada com notas e comentários. Passo Fundo: Berthier, 2008.

CAVA, Ralph della. Milagre em Juazeiro. 2 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1976.

FACÓ, Rui. Cangaceiros e fanáticos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972.

DOMEZI, Maria Cecília. Deuses em guerra e pactos na América Latina Colonial. São Paulo: Ideias & Letras, 2015.

ESPIN, Orlando. A fé do povo. Reflexões teológicas sobre o catolicismo popular. São Paulo: Paulinas, 2000.

FORTI, Maria do Carmo P. Maria Araújo: a beata do milagre. São Paulo: Annablume, 1999.

FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Editora Nacional, 1965.

HALL, Stuart. Quando foi o Pós-Colonial? In: SOVIK, Liv (Ed.). Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2006.

VASCONCELLOS, Pedro Lima. O Belo Monte de Antonio Conselheiro. Uma invenção “biblada”. Maceió: EDUFAL, 2015.


Resenhista

Ênio José da Costa Brito – Professor Titular do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciência da Religião da PUC-SP, coordenador do Grupo de Pesquisa “Imaginário Religioso Brasileiro (Veredas)”.


Referências desta resenha

TOLOVI, Carlos Alberto. Padre Cícero do Juazeiro do Norte: a construção do mito e seu alcance social e religioso. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2015. Doutorado em Ciências da Religião. Resenha de: BRITO, Ênio José da Costa. O santo que vive no sol: Padre Cícero. Crítica Histórica. Maceió, v.7, n.14, dez., 2016. Acessar publicação original [DR]

MONTEIRO Ana Maria (Aut), Professores de história: entre saberes e práticas (T), Mauad X (E), CUNHA André Luiz Lírio (Res), LIMA Cibele de Camargo (Res), Crítica Histórica (CHr), Professores, Ensino de História, Saberes, Práticas, Séc. 20, América – Brasil

Entre diversos livros que abordam a temática do ensino de História, por que o livro da professora Ana Maria Monteiro continua tendo muito a nos dizer mesmo dez anos depois de sua publicação? Esta é a pergunta que move o desafio de escrever sobre este trabalho que foi apresentado inicialmente como tese de doutoramento em 2002 e publicado em forma de livro em 2007.

Dentre os seus interesses de pesquisa estão os temas do currículo, conhecimento escolar e disciplinas escolares, identidade profissional, saberes ensinados.

A autora é Doutora em Educação pela PUC/ Rio e uma importante pesquisadora do campo de ensino de História. Atualmente é professora do Programa de Pós-Graduação em Educação e do Mestrado Profissional em Ensino de História (ProfHistória) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

O livro tem como questão central a construção dos saberes e práticas dos professores de História no contexto escolar. Entre as perguntas centrais, destacamos: como professores de História mobilizam os saberes que dominam para ensiná-los? A trajetória da pesquisa leva a conclusões arejadas e aponta perspectivas ainda pouco estudadas neste campo do ensino de história, reconhecido pela autora como uma “região de fronteira entre a História e a Educação e, dentro deste último, na confluência das áreas de didática, currículo e formação de professores” (MONTEIRO, 2007: 227).

Os caminhos da pesquisa levaram a aprofundar os conceitos de saber escolar, transposição didática, saber ensinado, saber docente e conteúdos pedagogizados. Monteiro desenvolve seu trabalho com olhar orientado pela perspectiva do currículo em ação. Destaca-se a preocupação em trabalhar o currículo vivido sem objetivo de intervir na prática observada, na busca pela compreensão desses saberes e como se articulam.

O livro mostra-se uma referência a quem deseja se aprofundar nestes campos de estudo que, como várias vezes é enfatizado pela autora, ainda são incipientes e necessitam de mais atenção, especialmente na busca de referenciais metodológicos que possibilitem dar conta do desafio de compreender os saberes docentes em seus múltiplos aspectos.

Monteiro combate a ideia de que o professor atua tecnicamente na aplicação de métodos e saberes produzidos externamente à escola. A figura de um “professor transmissor” colide com a concepção da autora de que os docentes são produtores de saberes necessários para dar conta das demandas impostas no cotidiano escolar e que o espaço escolar também possui necessidades próprias e potencial criativo na produção de saberes.

Dentro dos marcos da racionalidade técnica, os saberes selecionados para composição dos currículos, até poucas décadas, não eram questionados. Ao discorrer sobre a trajetória dos estudos referentes ao campo educacional, desde a década de 50 do século passado, a autora aponta pesquisas direcionadas para o desempenho do professor, considerado nestas abordagens um mero gestor de saberes.

Monteiro identifica que o movimento que se iniciou a partir dos anos 90 abriu novos ares ao campo educacional e possibilitou a “ressignificação do conceito de cultura que fundamenta a ação educativa” (2007: 82), na medida em que transpõe a concepção prescritiva de um currículo tido como universal, e que, por isso mesmo, era visto como suficiente para responder aos conflitos escolares, desde que aplicado os métodos adequados por profissionais tecnicamente qualificados. Antes visto como universal, o currículo passa a ser considerado um campo em constante construção e intensas disputas, opinião compartilhada pela autora.

A partir dessa perspectiva recente no campo da pesquisa educacional, a escola passa a ser identificada como um espaço onde se constroem saberes próprios e que possui uma cultura escolar ao mesmo tempo em que esta cultura também faz da escola um ambiente vivo. Os sujeitos do processo educativo – estudantes e, no caso específico deste trabalho, docentes – não são apenas reprodutores, mas também criadores.

Para discutir a relação entre saber a ensinar e saber ensinado, a autora recorre ao conceito de transposição didática. Nesta concepção, os saberes a ensinar partem do saber acadêmico, contudo, de forma crítica, considerando a dinâmica de fluxos (saber acadêmico e escolar) descendentes e ascendentes, incorporando outras mediações e saberes como: as práticas sociais de referência, saberes dos discentes e docentes, independentemente do espaço escolar. Com isso, Monteiro utiliza o conceito de forma revisitada e questiona a hierarquização do saber acadêmico no contexto escolar.

Nesse sentido, o diálogo com Chevallard é fundamental, especialmente em relação à ideia da transposição didática. Para a autora, no entanto, a tese de que há uma hegemonia do saber acadêmico em relação ao saber escolar não se materializa no decorrer da pesquisa. Em suas conclusões Monteiro aponta que a ideia de hegemonia do saber acadêmico proposta por Chevallard não se confirma (2007: 228), e inspirada em autores como Nicole Allieu e Michel Develay, acredita que as concepções teóricas que concebem uma relação de diálogo em “redes de comunicação” são mais aceitáveis ao invés de uma comunicação hierarquizada.

Na conclusão, Monteiro consegue delimitar que “os saberes emergem como eixo que articula as várias instâncias e sujeitos envolvidos”. Consegue, enfim, caracterizar os saberes, objetos de sua pesquisa, como “saberes ensinados, que implica em considerar o contexto escolar como instância de produção de saberes próprios” e “saberes mobilizados, o que implica considerar a dimensão da prática, da ação e, portanto, reconhecer diferentes apropriações” (2007: 227).

Para ensinar o que ensinam, professores produzem, dominam e mobilizam saberes plurais heterogêneos. Muito mais do que reprodutores técnicos, são criadores e produtores, tanto no que diz respeito à forma quanto aos saberes necessários para a prática docente, reconhecendo na cultura escolar características próprias construídas com a sociedade onde está inserida e “com saberes que nela são produzidos e circulam, e onde os professores desempenham um papel estratégico” (2007: 227).

A importância de pesquisas que trabalhem nessa perspectiva é evidente, pois apesar dos avanços no campo do ensino de História e do reconhecimento dos saberes docentes, ainda nos deparamos com formadores de professores que pensam a partir de uma hierarquização de saberes entre a academia e a escola. Nessa leitura, o saber escolar ainda é entendido como uma mera simplificação dos saberes acadêmicos visando uma apresentação compreensível e didática a um público ampliado.

Quando tratam da formação universitária que tiveram, os docentes participantes da pesquisa que resultou no livro aqui resenhado afirmam que os cursos de graduação que os formaram tinham enfoque maior na formação de pesquisadores acadêmicos, ignorando muitas vezes o fato de que um número significativo de estudantes de História iria seguir carreira na educação básica.

Outra conclusão importante da autora diz respeito à “qualidade” do saber. Monteiro a caracteriza como uma articulação entre conteúdo e método, articulando conteúdos, valores e objetivos em uma forma de trabalho que não se mostra em nenhum momento “doutrinária.”.

Por fim, destacamos o papel pioneiro da obra de Ana Maria Monteiro. Ao estudar os professores de história como agentes criativos na construção dos saberes escolares em suas especificidades, além de “expandir fronteiras” em um campo de estudo tão necessário, porém incipiente, ela também valoriza e ressignifica o ofício do professor, o que em tempos como o que vivemos de ataque à profissão docente, agrega ao livro outra importante contribuição.


Resenhistas

André Luiz Lírio Cunha – Pós-graduando no Programa de Mestrado Profissional em Ensino de História (ProfHistória) da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), sob orientação do Prof. Dr. João do Prado Ferraz de Carvalho.

Cibele de Camargo Lima – Pós-graduanda no Programa de Mestrado Profissional em Ensino de História (ProfHistória) da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), sob orientação do Prof. Dr. João do Prado Ferraz de Carvalho.


Referências desta resenha

MONTEIRO, Ana Maria. Professores de história: entre saberes e práticas. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007. Resenha de: CUNHA, André Luiz Lírio; LIMA, Cibele de Camargo. O ensino de história, professores como sujeitos e a produção de saberes e práticas no contexto escolar. Crítica Histórica. Maceió, v.8, n.15, p.232-235, jul., 2017. Acessar publicação original [DR]

ABUD Kátia (Aut), SILVA André (Aut), ALVES Ronaldo (Aut), Ensino de História (T), Cengage Learning (E), MACHADO Julio Cesar dos Santos (Res), Crítica Histórica (CHr), Ensino de História, Séc. 20-21, América – Brasil

Este livro faz parte de uma coleção intitulada “Ideias em Ação”, cuja coordenadora é autora de uma de suas obras, esta, intitulada Formação Continuada de Professores. Logo, sequências didáticas pormenorizadas são uma das coisas que se encontra a cada um de seus capítulos (dez no total). Fundado, portanto, num princípio organizacional de metodologia aplicada, seu leitor pode tanto aproveitá-las na íntegra, aplicando-as com seus educandos, quanto tomá-las como referencial para elaboração de suas próprias. Sendo aplicada, indica-se como meio de aprimoramento do senso didático de docência em História, haja vista que, tendo cada sequência um objeto diferente, cada uma delas é precedida por uma breve exposição teórica acerca de sua construção como documento e fonte de problematização. Destarte, nele, algo como a literatura ficcional tem seus níveis discursivos, enquanto obra, expostos, assim como suas estruturas estruturantes, enquanto mananciais de visões de mundo, operacionalizadas; procedimento análogo feito também para o uso de fotografias, mapas, músicas, filmes, jornais, artefatos museológicos e objetos de cultura material. Por conseguinte, cada introdução teórica é acompanhada da sequência didática de que é objeto, expostas esquematicamente como se parte de um plano de aula fossem. Alicerçado numa proposta prática de exercício de contextualização, se tivermos como finalidade um ensino pelo qual o sujeito possa aprender a problematizar os objetos do mundo, ao mesmo tempo em que torne-se capaz de os situar no interior de temporalidades distintas, seu leitor, caso docente, pode aprimorar-se como sujeito que reflete sua prática por ser instado, por ele, a especular sobre como problematizar sua ação didática tanto quanto como aprimorar sua intervenção pedagógica.

As noções de tempo histórico usadas pelos autores desdobram-se, lato sensu, da teoria braudeliana, pela qual a sincronia entrecruza-se por âmbitos de interação e mudança diferenciados. Há aqueles nos quais as interações ocorrem em maior profusão e aqueles em que as interações estendem-se numa cadeia de eventos repetitivos e duradouros. Assim, assumem que em cada objeto deva-se buscar identificar mudanças e permanências para que sua intelecção transcenda o aparente. Neste pormenor, as premissas de seus autores interligam-se aos parâmetros curriculares para o ensino de História produto da LDB de 1996 (PCNEM, 1999 & PCN+, 2002), o que dá a elas caráter didático coevo. Trabalhando com uma noção não explicitamente definida de processo histórico, consideram, ainda, este ser o ponto chave de uma ação intelectiva na aprendizagem de História, por vezes reiterando que o objeto é um locus no qual sua funcionalidade e sentido advém da interdependência de suas exterioridades (uma composição fotográfica se entrelaça com os hábitos, estes com a estrutura material de intercambiamento dos bens; esta, com os sistemas de crenças que dão suporte a sua funcionalidade, etc). Em tempo, a capacidade de operacionalizar tais noções de simbiose e exterioridade é proposta como o que deva ser, segundo o que é posto, o que torna o docente capaz de uma ação pedagógica muito mais plena e diversa.

Da mesma forma, seguindo uma matriz blochiana, propõem como ação de interpretação dos objetos não aquilo que estes encerram em si mesmos – “o documento sempre se define em relação a um terceiro” (Meneses, 1998: apud, p. 115) – mas a partir de problemas que o sujeito que conhece interpõe sobre eles – “não é o real, mas o inteligível” (Leite, 1997: apud, p. 44). Logo, como ação pedagógica, empregam o paradigma dos eixos temáticos, pelo qual define-se um tema, preferencialmente relacionado com o ordenamento presente do educando, do qual derivam-se as perguntas que serão feitas para objetos situados historicamente – “o sistema de probabilidade torna-se organizado [na mente durante a adolescência] e ocorre uma síntese entre acaso e operações” (Barca, 2000: apud: p. 64). Consideram, portanto, que existam diferentes processos envolvidos nas mudanças históricas e, ao propor uma didática pela qual suas atividades de aprendizagem visem a mobilização de operações cognitivas para interpretação de documentos e fontes, concluem que estas são exatamente o modo pelo qual tais processos se possam desvelar. Feito isto, o ensino-aprendizagem de História terá atingido seu ponto mais pleno, qual seja, o desenvolvimento da consciência histórica do educando, isto é, capacitá-lo a “refletir criticamente sobre a forma contemporânea de conceber e vivenciar o mundo e em que medida há o encontro e desencontro dessa mentalidade com o passado” (Abud: 2010, p. 48).

Todas as discussões teóricas que precedem a exposição das sequências didáticas de cada capítulo têm, portanto, como objetivo tanto elevar seus objetos a um estado inteligível quanto explicitar a diversidade de seus modos de apropriação. Os modos de se conceber os domínios da vida no interior de uma narrativa cinematográfica são relacionados a processos mais amplos como o fenômeno da urbanização industrial, por exemplo. Articulados a estes processos, tais modos ganham sentido – entendido o termo como ato de conhecimento, menos que como finalidade teleológica. Este efeito de sentido permitiria suprimir o estranhamento por modos de conduta e crenças que a princípio padecem indivíduos em idade escolar. Pedagogicamente, a superação do estranhamento permitiria a formação de uma conduta de alteridade. Atingido este nível, o docente teria tido êxito como facilitador de aprendizagem situando-se na zona de desenvolvimento proximal do educando, uma vez que o senso de alteridade consolida-se senão por meio de aparatos psico-cognitivos com densidade abstracional mais complexa. Contextualizar e examinar uma práxis por meio de um ou mais objetos de cultura material, segundo o método empregado pelos autores (outro de muitos exemplos), permite também que a ação pedagógica no ensino-aprendizagem de História atinja um nível ainda mais capacitante, conquanto revestida pelo protagonismo instrumentalizado que o docente previamente deve elaborar; seja este o de, ao desenvolver o senso de alteridade em relação a um domínio de temporalidade passado, excitar o domínio das operações cognitivas dos educandos para que reconheçam e compreendam que os domínios que envolvem sua condição no mundo em que vivem também estão articulados a condicionantes cuja origem e normas de funcionamento independem da trajetória ontogenética do indivíduo. Conseguido este estágio de desenvolvimento, o educando poderá se tornar, por suposto, apto a duas coisas, ambas caracteres da noção de consciência histórica pretendida: 1º) Examinar suas crenças, suas condutas, ou o modo como é situado e se situa na sociedade e avaliar tanto o sentido que elas têm para a funcionalidade da estrutura social na qual se movimenta quanto os sentidos que ele próprio pode protagonizar. 2º) Compreender esta funcionalidade ao tornar-se capaz de examinar os fatores genéticos conjunturais que as condicionam, assim como ser capaz de perceber que tais fatores podem não ser conjunturais, mas terem genealogia em estruturas passadas; atualizadas por novas intersecções processuais, como subproduto, suponho, de movimentos dialéticos cuja ordem seja preciso desvendar (não obstante isto exceder o propósito do livro). Assim, a competência atitudinal vinculada à proposta didático-pedagógica demonstrada pelos autores centra-se mais em ações de produção de conhecimento que na absorção de conclusões verbalizadas em forma de narrativas cuja lógica e procedimento escapam ao educando.

Por fim, historicamente, este livro possui ainda uma relevância que ultrapassa suas linhas, na medida em que, como outros, situa-se numa encruzilhada histórica. Tal qual o movimento da Escola Nova e o sócio-interacionismo freireano (1932-1964) foram solapados pelo currículo que suprimiu o ensino de História pelo de Educação Moral e Cívica e OSPB, implantado pelos estrategistas da Ditadura Civil-Militar perpetrada pelo Golpe de Estado de 1964, ele também insere-se num processo de debates e conferências vindo desde a Constituinte de 1988 (XI ANPED e Fórum Nacional de Defesa da Escola Pública) que – a despeito de redundar num ante-projeto proveniente da sociedade civil organizada, assim como outro, já este aprovado com emendas no Congresso e encaminhado pelo Executivo daquele período – tem em voga seus pressupostos teórico-metodológicos também em vias de serem igualmente defenestrados. Consumados na LDB de 1996 e em seus documentos congêneres (PCNs de 1998 e as Orientações Curriculares aos PCNs de 2002 e 2006), seus paradigmas acabam de ser gravemente aviltados. A Lei 13.415/2017, intitulada como lei do Novo Ensino Médio e instituída pelo governo federal empossado pelo golpe parlamentar de 2016, passa a estabelecer que o educando escolha já ao início do ensino médio um itinerário formativo entre cinco áreas do saber. Desse modo, apenas 60% da carga horária será constituída por uma base nacional curricular comum (BNCC), cujas componentes curriculares serão definidas futuramente pelo Conselho Nacional de Educação. Não há menção à História como disciplina obrigatória, apenas que a BNCC será objeto de regulamentação e que a estruturação do currículo por disciplinas é considerada um modo arcaico a ser substituído por áreas de conhecimento, nas quais, pode-se deduzir, os objetos e saberes das disciplinas tradicionais serão forçosamente diluídos.

Sendo o que é posto, a finalidade do saber historiográfico concebida tanto pelos autores do livro quanto dos PCNs terá que ser abandonada. Não há solução de continuidade entre uma ação pedagógica que se materialize por situações de aprendizagem que tenham como base “eixos [que] se organizam em torno da problematização de aspectos da existência social, envolvendo conceitos estruturadores” (PCN+: 2002, p. 83, vol. III) e outra que as problematizem por meio de meras assertivas conceituais. Mesmo porque, a primeira visa a extrapolar o ato de problematização pela singularização de sua própria episteme. O que significa dizer que através de atividades didáticas sequenciais, procura formar, procedimental e atitudinalmente, o domínio de competências capazes de consolidar um savoir-faire com o qual o educando possa “sintetizar as relações entre as durações e a constituição da memória e da identidade sociais (PCNEM: 1999, p. 306). Uma vez que estas relações não desvelam-se a menos que postas a luz de “diferentes temporalidades, especialmente da conjuntura e da longa duração” (Idem), o propósito todo é castrado. Em algum momento, para parcela significativa dos estudantes, já que institui-se a existência de cinco áreas curriculares e uma delas é a de formação técnica e profissional, seu itinerário formativo deverá excluir a área de “Ciências Humanas e Sociais Aplicadas”. Portanto, não há dedução que exclua o fato de que sua formação escolar tenha que ser limitada. Ainda mais que, mesmo na base comum, os conceitos, procedimentos e saberes próprios do ensino de História terão que ser sintetizados aos de outras 03 disciplinas (Geografia, Filosofia e Sociologia). O tempo é curto e as idiossincrasias um oceano. Logo, o aprendizado necessário para decodificar memórias, identidades e sistemas inseridos na diacronia da curta e da longa duração não deve ser a meta objetualizada. Nas palavras do MEC: o Novo Ensino Médio “… aproximará ainda mais a escola da realidade dos estudantes à luz das novas demandas profissionais do mercado de trabalho”[1]. Sendo esta uma de suas duas principais justificativas para a reorganização curricular posta em marcha, logo vê-se que a mesma não tem muito a ver com pedagogia.

Nota

1 PORTAL DO MEC, disponível em < http://portal.mec.gov.br/component/content/article?id=40361>, acessado em 19/05/2017.


Resenhista

Julio Cesar dos Santos Machado – Mestre em História Social pela FFLCH-USP.


Referências desta resenha

ABUD, Kátia; SILVA, André; ALVES, Ronaldo. Ensino de História. São Paulo: Cengage Learning, 2013. Resenha de: MACHADO, Julio Cesar dos Santos. A fonte da consciência ou a consciência da fonte: didática de História por documentos. Crítica Histórica. Maceió, v.8, n.15, p.236-240, jul., 2017. Acessar publicação original [DR]

MARQUES Danilo Luiz (Aut), Os caminhos para a Liberdade de Escravizadas e Africanas livres em Maceió (1849-1888) (T), Nova Letra (E), SILVA Marcos Antonio Batista da (Res), Crítica Histórica (CHr), Liberdade, Escravizadas, Africanas Livres, Província de Alagoas, Séc. 19, América – Brasil

Danilo Luiz Marques é graduado em História pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL), mestre em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), e doutor em História Social (PUC/SP), com período sanduíche na Michigan State University, nos Estados Unidos. Professor da rede pública estadual de São Paulo, com experiência na área de Arquivologia e História, e tem se dedicado a pesquisas, a saber: História do Brasil no século XIX, Resistência Escrava, Gênero e Escravidão, História e Historiografia Alagoana.

O livro do autor é produzido originalmente como dissertação de mestrado em História Social, pela PUC/SP, com o título de “Sobreviver e Resistir: os caminhos para liberdade de africanas livres e escravas em Maceió (1849-1888)”, defendida no ano de 2013. A obra do jovem historiador apresenta um caprichado mergulho na realidade das experiências de vida de mulheres africanas livres e escravizadas na cidade de Maceió, Alagoas, Brasil, na metade do século XIX, bem como descreve acertadamente a luta destas mulheres por sobrevivência e resistência no período de escravidão no país. O resultado é uma leitura aprazível e um texto que contribui para o debate sobre gênero e escravidão no Brasil do século XIX.

A temporalidade do trabalho durante o período investigado (1849 a 1888) cobre fatos históricos importantes da época: 1849, ano em que ocorreram vários desembarques ilegais de navios negreiros na costa alagoana, ocasionando a chegada de muitas mulheres africana livres; a Lei Eusébio Queiróz que foi sancionada em 1850 e proibia o tráfico de escravizados para o Brasil; a Lei do ventre livre (1871); a Lei dos Sexagenários (1885), bem como o ano 1888, quando da abolição da escravidão no Brasil, além do período em que Maceió foi recém tornada capital da Província de Alagoas. Neste contexto, Danilo Marques apresenta como se configurava a cidade de Maceió na época em que se consolidava como novo núcleo demográfico-econômico da região alagoana.

Ao retratar o cotidiano de mulheres africanas livres e escravizadas na cidade de Maceió, o autor assinala que estas desempenharam trabalhos como os de lavadeiras, quituteiras, doceiras, amas de leite, mucamas, bem como frisa, que estas lutavam diariamente contra a hegemonia escravista. A mão-de-obra feminina era muito presente em Maceió para os serviços domésticos, em residência de senhores de engenho, políticos, comerciantes e autoridades.

No capítulo 1 da obra é abordado como a cidade de Maceió se consolidou como o principal polo urbano da Província de Alagoas, o processo de socialização, isto é, as sociabilidades negras, bem como a presença das mulheres africanas escravizadas e livres no espaço urbano. Em síntese, o autor através de uma revisão de documentação histórica, dá ênfase à cidade de Maceió; ao cotidiano e resistência da população negra em Maceió do século XIX, retratando as atividades das mulheres africanas livres e escravizadas.

Ao analisar o Relatório Provincial de Alagoas do ano de 1869, localizamos em anexo os Apontamentos sobre diversos assumptos geográficos-administrativos da Província de Alagoas, escrito por José Alexandrino Dias de Moura. Este documento – que descreve Maceió …expõe o desenvolvimento urbano da cidade entre as décadas de 1840 e 1860: “Maceió tem augmentado e progredido consideravelmente nestes últimos 20 annos e é hoje uma linda cidade ornada de bons prédios particulares e elegantes edifícios públicos” (sic.) 5, como a Casa de Detenção, o Hospital da Caridade, o Palácio do Presidente da Província, a Assembleia Legislativa Provincial, a Câmara Municipal e o Mercado Público (MARQUES,2013, p.73).

Além de construções de várias igrejas (1840-1850), a saber: Nossa Senhora do Rosário, Nossa Senhora do Livramento, Nosso Senhor Bom Jesus dos Martírios e a Matriz de Nossa Senhora dos Prazeres. Vale ressaltar que o desenvolvimento urbano que perpassou a cidade de Maceió ao longo do século XIX, especialmente após o ano de 1839, quando foi alçada a capital da Província, foi acompanhado também de um crescimento demográfico. Em 1847 a população de Maceió contava com 16.064 pessoas, (11. 902 livres e 4.162 escravizados). Em 1855, dos 25.135 habitantes, 6.230 eram escravizados. No ano de 1870 computava uma população de 28.630 pessoas, desta, 4.822 continuavam escravizados. Ou seja, a população escravizada era em média 25% entre as décadas de 1840 e 1850, porém no ano1870 caiu para 16%.

O contexto sócio-histórico da obra mostra que a historiografia brasileira tem se dedicado com ênfase ao estudo da escravidão e da presença africana nas cidades durante o século XIX, desse modo, contribuindo para o preenchimento de lacunas na história da escravidão, e retratando particularidades das vivências urbanas. As cidades eram um centro para onde confluíam homens livres, escravizados e libertos em busca de serviços de ganho no comércio, ou fugidos das fazendas em busca de esconderijos.

Danilo Marques entende que a proximidade entre a zona rural e urbana é fator importante para a compreensão das cidades brasileiras no século XIX, inclusive a de Maceió, com sua urbanização a partir de 1839. Mas não podemos esquecer-nos da dura luta em busca de liberdade que os escravizados travavam diariamente contra a hegemonia senhorial.

Ao retratar o cotidiano da Maceió do século XIX, no que tange as tensões sociais inerentes ao período após a promulgação da lei Eusébio de Queiroz, o autor da ênfase aos quilombos que existiam nos arredores da cidade, reduto de escravizados fugidos. A população escravizada desenvolvia estratégias e necessitava de espaços (esconderijos e quilombos) para se camuflar, ou seja, uma forma encontrada para resistir ao controle dos senhores.

Segundo a literatura, a região de Alagoas foi marcada por constantes movimentações de navios negreiros vindos do continente africano e/ou de outras Províncias, por exemplo, Bahia e Pernambuco. O autor destaca ainda, o fato que “na cidade de Maceió, ao longo do século XIX, existia a presença das chamadas figuras intermediárias da escravidão, como os africanos livres”(MARQUES, 2013,p.48). Desse modo, o autor volta seu olhar sobre eles, tirando-os do silêncio, evidenciando as desconhecidas experiências de vida dessa população que não era considerada escravizada, mas que viveu em estreita relação com a escravidão.

Maceió foi marcada pela intensa movimentação da população negra na cidade com presença dos escravizados e dos africanos livres que ocuparam as ruas, praças, becos e locais desertos dos arredores da capital alagoana para resistir à escravidão, mas também para buscar seus meios para garantir sobrevivência. Em Maceió os escravizados estavam inseridos em trabalhos domésticos, e outras funções, a saber: pedreiro, ferreiro, canoeiro, vendedores de frutas, aves, peixes, jornaleiros, etc. Mas antes disto, no cotidiano os negros escravizados e libertos tiveram que se defrontar com os encargos de sobreviver, com as exigências impostas e criar estratégias à resistência contra a escravidão.

Entende-se que na socieade brasileira, as desigualdades sociais vêm de longa data, e são atribuídas à herança do passado escravista, à política de branqueamento da passagem do século XIX para o XX, à histórica condescendência das elites brasileiras com desigualdades sociais e ao racismo estrutural e simbólico contemporâneo. Na conemporaneidade, estudos quantitativos e qualitativos sobre a desigualdade racial no Brasil continuam sendo produzidos, e são um constante lembrete das injustiças raciais do Brasil. Um exemplo é o “Relatório Anual de Desigualdades Raciais no Brasil 2009-2010”, organizado por Paixão (2010). Tais estudos reforçam a necessidade de políticas de ação afirmativa para a população negra, em epecial, educação e mercado de trabalho. Políticas essas que, em médio prazo, possam garantir uma maior equidade de oportunidades e de padrão de vida, alterando a situação de desigualdade, e possibilitando a inclusão da população negra nos segmentos mais dinâmicos do sistema educacional e de maior renda no mercado de trabalho (SILVA, 2016).

O Capítulo 2 discute as categorias dos africanos “livres” no Brasil e seu papel na manutenção da escravidão. Assim, Danilo Marques assinala que na cidade de Maceió, ao longo do século XIX, existia a presença dos africanos livres. Para o autor , na contemporaneidade, “a historiografia da escravidão no Brasil tem voltado seus olhares sobre eles, tirando do silêncio as desconhecidas experiências de vida desta população que não era considerada escrava, entretanto, viveu em estreita relação com a escravidão”(MARQUES,2013,p.85).Danilo Marques, ao efetuar análise sobre a documentação da Curadoria dos Africanos Livres de Alagoas, localizada no Arquivo Público do Estado de Alagoas, percebeu uma forte presença desta categoria no quotidiano da Maceió do século XIX, isto é, o autor frisa que foi de grande valia, compreender a sociabilidade negra na cidade. “… a curadoria expediu e recebeu ofícios e demais papéis sobre esta população durante trinta anos, de 1836 a 1866. Esta documentação nos permite detectar aspectos da vida cotidiana desta população como a formação de famílias, trabalho, resistência e transgressões (MARQUES, 2013, p. 85).

Danilo Marques perpassa a luta diária da busca de emancipação das africanas, a saber: Benedita, Roza, Henriqueta, Margarida, Luisa, Luiza. Mulheres que habitaram a cidade de Maceió após serem apreendidas como contrabando no litoral norte de Alagoas. Vale dizer que:

O quotidiano das escravas e africanas livres na Maceió do século XIX foi marcado pelo trabalho doméstico e pelos serviços de ganho realizados nas ruas da cidade, principalmente o comércio ambulante. Com isto, elas desenvolviam seus arranjos de sobrevivência e buscavam os caminhos para a liberdade, estes serviços poderiam estar ligados à questão da subsistência, mas também era uma forma de constituir pecúlio para quem sonhava em conquistar a emancipação(…).Foram ansiosas e desinquietas pela postergação da solução emancipacionista e manifestaram seus descontentamentos, sejam com movimentos de rebeldia ou buscando os meios legais possíveis entre as brechas da legislação da época. (MARQUES, 2013, p.93-94).

Isto é, estas mulheres ainda enfrentavam um típico problema do estado imperial ou dos latifundiário, patrões e empresários da época.

O capitulo 3 apresenta particularidades das vidas das escravizadas Feliciana, Cristina, Ana, Joana, Fé e Alma. Estas mulheres recorreram às táticas de resistência e sobrevivência para serem alforriadas, afirmando-se como protagonistas de suas histórias. De um lado, a conjuntura do Brasil do século XIX apresentava vários debates acerca da escravidão, de outro, mostrava que foram criados mecanismos para sua manutenção, discutia-se também as condições em que a população cativa poderia, de forma “legítima”, mudar seu status jurídico e conquistar a liberdade.

Por fim, o autor mostra que seria ingenuidade por parte dos historiadores acreditarem que os cativos não tinham conhecimentos dos conflitos políticos que marcaram a conjuntura do século XIX, além de frisar que é de vital importância para se compreender a abolição da escravidão no Brasil, sob a ótica da participação dos escravizados, forros e homens livres pobres, e não apenas como um evento produzido pelas elites e para as elites no Brasil. Danilo Marques assinala ainda, que as mulheres africanas livres e escravizadas, apesar de toda uma situação adversa, eram sabedoras das possibilidades que existiam na conjuntura histórica que viveram, desse modo experimentaram projetos de liberdade desenvolvendo estratégias de sobrevivência e buscando os caminhos para a liberdade.

Diante destas e de outras questões apresentadas no livro “Os caminhos para a Liberdade de Escravizadas e Africanas livres em Maceió (1849-1888)”, Danilo Luiz Marques, ao reconhecer a importância e a contribuição da população negra no processo de formação da sociedade brasileira, contribui para o debate sobre esta população, e se associa ao coro que questiona as desigualdades sociais e colabora com essa luta.

Referências

MARQUES, Danilo Luiz. Escravidão, Quotidiano e Gênero na Emergente Capital Alagoana (1849-1888). Sankofa (São Paulo), São Paulo, v.6, n.11, p. 71-95, ago. 2013. Acesso em: 26 abr. 2018. doi: http:// dx.doi.org/10.11606/issn.1983-6023.sank.2013.88912.

MARQUES, Danilo Luiz. Sobreviver e resistir: os caminhos para liberdade de africanas livres e escravas em Maceió (1849-1888). 2013. 145 f. Dissertação (Mestrado em História Social) – Programa de Pós-graduados em Históira Social , Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo ,2013. Disponível em: < https://tede2.pucsp.br/bitstream/handle/12792/1/Danilo%20Luiz%20Marques.pdf > https://repositorio. unesp.br/handle/11449/86647>. Acesso em: 26 mai. 2018.

SILVA, M.A.B. Discursos étnico-raciais de pesquisdores (as) negros(as) na pós-graduação: acesso, permanência, apoios e barreiras. Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v.22, n.2, p. 537-540, ago. 2016.

PAIXÃO, Marcelo. (Org.). Relatório anual das desigualdades raciais no Brasil: 2009-2010. Rio de Janeiro, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.Disponível em:< https://www.geledes.org.br/wp-content/uploads/2014/05/Relat%C3%B3rio_2009- 2010.pdf>.Acesso em: 10 abr.2018.


Resenhista

Marcos Antonio Batista da Silva – Doutor em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Investigador em pós-doutoramento no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.


Referências desta resenha

MARQUES, Danilo Luiz. Os caminhos para a Liberdade de Escravizadas e Africanas livres em Maceió (1849-1888). Blumenau: Nova Letra, 2016. Resenha de: SILVA, Marcos Antonio Batista da. Experiências de luta, sobrevivência e resistência de mulheres negras. Crítica Histórica. Maceió, v.9, n.17, p.301-306, junho, 2018. Acessar publicação original [DR]

DICKEL Simone Lopes (Aut), Terras da Annoni: entre a propriedade e a função social (T) Prismas (E), SILVA Caroline da (Res), Crítica Histórica (CHr), Propriedade da Terra, Função Social da Terra, Fazenda Annoni, Séc. 20, Estado do Rio Grande do Sul, América – Brasil

Simone Lopes Dickel é doutoranda em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo (PPGH/UPF), é mestre em História, também, pelo PPGH/UPF. Sua graduação foi em História – Licenciatura Plena, pela UPF no ano de 2009 e atualmente é professora de História da Rede Pública Estadual do Rio Grande do Sul, na Escola Estadual de Ensino Médio Zumbi dos Palmares e Escola Estadual de Ensino Fundamental 29 de Outubro, ambas localizadas no município de Pontão/RS, berço da desapropriação da Fazenda Annoni.

O livro “Terras da Annoni”, foi produzido a partir de sua dissertação de mestrado na linha de pesquisa Espaço, Economia e Sociedade do PPGH/UPF, tendo por título “A função social da propriedade da terra no processo de desapropriação da Fazenda Annoni (1972-1993)”, da qual defendeu no ano de 2016. A obra adentra no ceio da relevância histórica e jurídica, que significou e ainda significa a desapropriação de um grande latifúndio improdutivo no norte do estado do Rio Grande do Sul, que recebeu na data de 29 de outubro de 1985, dia de sua ocupação, mais de 1.500 famílias vindas de diferentes regiões do estado sul-rio-grandense. Entre os tantos motivos da ocupação,

[…] destaca-se o fato desta fazenda estar em litígio judicial há cerca de treze anos. Desde 1972, família proprietária e União brigavam na justiça pela propriedade da fazenda, e enquanto a situação não se resolvia, pois ambas as partes interpelavam recursos a cada decisão dos tribunais, a fazenda permaneceu praticamente ociosa. (DICKEL, 2017, p. 18)

Dessa forma, o expressivo número de informações e discussões que a autora traz em seu livro, faz um excelente diálogo entre a História e o Direito, trazendo com profundidade a questão fundiária e social da terra, numa construção histórica de luta. Para o desenvolvimento da obra, a autora teve por fontes primárias (e principais) processos judiciais (4ªRegião) que envolviam tal imóvel. Além dos processos, a autora adentrou na investigação de decretos-lei, leis, legislações, Estatuto da Terra e o acervo da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e diversas bibliografias da História, Direito e Ciências Sociais, para embasar e contextualizar na história tal problema fundiário O processo de desapropriação da fazenda nos remete à década de 1970 quando a família Annoni e a União disputavam na justiça a propriedade de mais de 9.000 hectares, alegando o problema da função social da propriedade.

No primeiro capítulo do livro intitulado “A história da fazenda Annoni e o processo de desapropriação no cenário regional”, a autora versa a contextualização histórica da fazenda e o cenário político no qual estava inserido: Ditadura Militar. Dando ênfase à criação, em meio à ditatura, do Estatuto da Terra devido a insatisfação do meio rural quanto às políticas que o envolviam. Porém, o estatuto não trouxe mudanças. Ainda no primeiro capítulo, a autora, apresenta juridicamente o decreto de desapropriação da fazenda que ocorreu no ano de 1970 e sua ocupação na década de 1980, concretizando o processo de desapropriação. Logo:

Na Annoni, o assentamento definitivo vai começar em 1986 e só vai terminar em 1993, e os critérios de escolha das famílias que iriam receber os lotes gerou bastante conflitos entre os acampados. Na primeira fase do assentamento, 57 famílias dos chamados “afogados do Passo Real” foram contempladas com lotes de terra na Annoni. Outras 177 famílias organizadas em torno do MST foram assentadas em outras regiões do estado. Na segunda fase, 35 famílias organizadas em torno do MST foram assentadas na Annoni, no chamado Assentamento Holandês. A terceira fase contemplou aqueles que residiam anteriormente no interior da Annoni, na condição de ex-empregados, filhos de “parceleiros” parceiros e arrendatários. (DICKEL, 2017, 90-91)

O segundo capítulo, envolve o aparato jurídico da desapropriação: “O processo judicial de desapropriação da fazenda Annoni”. Nele a autora trabalha, muito bem, o processo jurídico que pairou sobre o imóvel desde o decreto de desapropriação até as discussões que versavam quanto ao pagamento das indenizações; ou seja, “o que seria indenizado, o que não seria indenizado, e quais os valores da indenização” (DICKEL, 2017, p. 139. Além disso, discute o imóvel ser ou não uma empresa rural, já que a família entrava no judiciário com uma ação alegando que o imóvel apresentava características de uma empresa rural; assim, o Estatuto da Terra os protegeria da desapropriação, já que imóveis caracterizados como empresa rural estariam protegidos de uma possível desapropriação de terra. Deste modo,

Concluído o pertencimento da Fazenda Annoni à categoria Empresa Rural, a decisão foi muito atacada pelo Incra e União, através da interposição de recursos, onde eles discordavam das decisões dos tribunais, afirmando ter sido o ato desapropriatório um ato fundado na legalidade, e insistindo sempre no grave problema social à espera de resolução (DICKEL, 2017, p. 130).

Essa discussão, quanto a classificação do imóvel, pairou no judiciário entre os anos de 1972 e 1980, e só tomou conclusões específicas a partir da ocupação das mais de 1.000 famílias sem-terra, em outubro de 1985. No terceiro e último capítulo do livro, “Função social da propriedade da terra e reforma agrária na fazenda Annoni” apresenta, a partir de Caio Prado Jr, a questão agrária no país e a construção constitucional do conceito de função social da propriedade da terra, definindo-o:

A terra tem, sim, o papel de produzir alimentos, e dela depende o futuro dos alimentos, o que, de certa forma, interfere na vida de todo o mundo. Portanto, ela não pode ser apropriada de qualquer forma, a qualquer custo, como queira seu proprietário (DICKEL, 2017, p. 173).

O capítulo, ainda, abarca a posse e propriedade da terra na fazenda Annoni e a discussão do conceito de reforma agrária feita na fazenda; pois, “para os sem-terra, a terra tem um grande valor simbólico, excedendo o valor econômico que ela representa” (DICKEL, 2017, p. 194). O grande latifúndio encontrado por estes, era próprio para a “prática da agricultura mecanizada em função de sua localização geográfica e do modelo de desenvolvimento econômico vigente na época da desapropriação” (DICKEL, 2017, p. 198), porém o que ali foi encontrado era completamente diferente, pois a terra do imóvel necessitava de “correções que demandavam recursos dos quais os acampados não dispunham” (DICKEL, 2017, p. 198).

Assim, “Terras da Annoni” é uma referência fundamental aos estudos voltados para a questão da propriedade da terra, movimentos sociais e política agrária, devido à ampla discussão trazida pela autora. De um latifúndio improdutivo do estado do Rio Grande do Sul, desapropriado em plena Ditatura Militar, recebeu mais de 1.500 famílias, o que mais tarde foi fundamental para o desenvolvimento e criação de um município do estado, denominado Pontão/RS. A desapropriação de tal imóvel gerou, a partir dele, muitas outras ações, que ainda permeiam o judiciário sul-rio-grandense. Sem dúvidas, para os que estudam o judiciário e a propriedade da terra fica nítido que no estado este é o processo que há mais tempo encontra-se em tramitação. Não se pode adentrar as questões fundiárias sem antes ler sobre este litígio. A autora nos presenteia com essa obra e com a forma metodológica do texto, mostrando e questionando o tema: “a Annoni é um mosaico de experiências derivadas da reforma agrária, que mostram desde a sua legitimidade até as suas falhas quase insanáveis” (DICKEL, 2017, p. 207). Finalizando, a desapropriação da fazenda Annoni foi uma das poucas feitas com base no Estatuto da Terra criado durante a Ditadura Militar e que recebeu inúmeras críticas quanto sua eficiência perante a realidade do campo.


Resenhista

Caroline da Silva – Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo (PPGH/UPF). Linha de pesquisa: Espaço, Economia e sociedade. Pesquisadora do Núcleo de Estudos Históricos do Mundo Rural (NEHMuR).


Referências desta resenha

DICKEL, Simone Lopes. Terras da Annoni: entre a propriedade e a função social. Curitiba: Prismas, 2017. Resenha de: SILVA, Caroline da. O símbolo histórico de um movimento pela terra: A desapropriação da Fazenda Annoni no Rio Grande do Sul. Crítica Histórica. Maceió, v.9, n.18, p.258-261, dez., 2018. Acessar publicação original [DR]

VERAS Elias Ferreira (Aut), Travestis: carne/ tinta e papel (T), Editora Appris (E), OLIVEIRA Augusta da Silveira de (Res), Crítica Histórica (CHr), Travestis, Cidade de Fortaleza, América – Brasil, Séc. 20

Em sua segunda edição, o livro “Travestis: carne, tinta e papel” de Elias Ferreira Veras, nos aproxima do “universo trans” sob a ótica do pesquisador/ator/sujeito. Essa aproximação é feita por meio das narrativas das travestis entrevistadas, das revistas Manchete e Playboy e de periódicos cearenses. O objetivo de Veras é problematizar as condições de emergência do sujeito travesti na capital do Ceará, Fortaleza. De forma admirável, o autor cita a passagem do tempo das perucas para o tempo dos hormônios-farmacopornográficos (evocando Paul B. Preciado), o que demanda um processo de subjetivação, quando ser travesti passa a significar ser um novo sujeito, e não apenas uma prática clandestina e privada.

Para chegar a esse resultado, há uma travessia: o autor inicia sua jornada no curso de História da Universidade Federal do Ceará (UFC), torna-se mestre pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e doutor em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). É a tese de doutoramento de Elias que faz esse retorno às origens, temporal e geograficamente, saindo do Sul para voltar ao Nordeste e incidindo sobre a temática para então culminar no livro.

A obra conta com prefácios de Durval Muniz de Albuquerque Júnior (UFRN) e Helena Vieira, que enfatizam o poder trangressor do trabalho, ao dedicar-se a história das sexualidades dissidentes da matriz heterossexual. Logo após, a introdução nos guia pelos meandros de Veras. O autor cita os deslocamentos teóricos de Michel Foucault e a teoria queer, como discutida por Guacira Lopes Louro, Judith Butler e o já mencionado Preciado para partir de um ponto que se torna evidente ao longo da obra: é na performatividade de gênero e na materialidade que se produzem os corpos, e a emergência do sujeito travesti é exemplo disso.

Porém, não é apenas de carne que se constituem os sujeitos. Veras sinaliza a importância da divulgação de eventos como o carnaval e repercussões da mídia a respeito do “fenômeno Roberta Close” para criação de discursos de fascínio a respeito das travestis. Por outro lado, os jornais cearenses da mesma época estampam as travestis nas colunas policiais e associadas à criminalidade. Nos dois casos, esses discursos contrastantes foram responsáveis por dar sentido às experiências de subjetivação das travestis nas décadas de 1970 e 1980. Com isso, o autor afirma que “as travestis não se constituíram apenas de hormônios, silicones, roupas e adereços associados ao feminino, mas, também, de tinta e papel”.

O livro é dividido em três capítulos que sustentam o percurso sinuoso da constituição da travesti enquanto sujeito, processo mediado pelas referências externas e individuais do que é ser/estar travesti, marcado pela inflexão da passagem do tempo das perucas para o tempo dos hormônios-farmacopornográfico. O primeiro capítulo trata justamente dessa passagem que, para Veras, é a inauguração de uma nova temporalidade e subjetividade. Desse processo, emerge o sujeito travesti, fruto das condições da “crescente visibilidade das homossexualidades […], o surgimento de novas tecnologias corporais, as novas maneiras de vivenciar os espaços da cidade e a crescente presença dos meios de comunicação no cotidiano das pessoas”. Veras nos convida a acompanhar a genealogia desse processo histórico, a qual conduz com sagacidade ao dialogar com as fontes orais e documentais, situando-se enquanto pesquisador e ouvinte na complexa tarefa de examinar trajetórias de vida.

Do que Veras chama de tempo das perucas, ou “quando não existia o sujeito travesti”, conhecemos Amorim-Samorim-Ilca e seu romance homônimo. A obra discorre sobre o encontro de dois jovens, numa época quando “bichas e bonecas” encontravam “bofes” e reproduziam dinâmicas de passivo-ativo que eram regra dominante à vivência homossexual do início dos anos 1970. César/Ilca encarna a “boneca”, transformada para concursos de beleza, também comuns nesse período. Para esses concursos e festas, antes clandestinos mas cada vez mais difundidos, as bonecas fazem uso de artefatos femininos, que Elias chama de “tecnologias de gênero”, a exemplo de maquiagem, perucas e roupas idealmente femininos. As referências evocam as artistas estadunidenses: sua estética e seus maneirismos representam, para as travestis que as emulam, um conjunto de signos de identificação.

Outra interlocutora é Bianca, introduzida também no primeiro capítulo, e cuja trajetória evidencia a “complexidade e o caráter provisório, processual, múltiplo e histórico presentes nas performances de gênero”. Bianca travestiu-se sem assumir uma identidade travesti como conhecemos contemporaneamente, afirmando ter sido “veado que gostava de usar roupa de mulher”, em contraste com a “travesti de peito” que ela associa ao trabalho sexual nas ruas.

O autor analisa, então, a passagem das perucas para os hormônios a partir de eventos como o carnaval, de forma a analisar a emergência de uma nova “identidade sexual”, na qual o “virar travesti” substitui o “ir de travesti” das bonecas descritas anteriormente. A ampla gama de sociabilidades do carnaval, bem como as possibilidades de inversão de gênero que ele propiciava era espaço vital para as vivências homossexuais do período. Veras recorre à revista Manchete para evidenciar o papel central do carnaval e os discursos produzidos a respeito das “bonecas, enxutos e ‘alegres rapazes’”. O autor enfatiza o quanto a visibilidade dada pela mídia nesse período contribui para que o “uso do travesti” ganhe dimensão pública, o que certamente influencia no trato do caso de Roberta Close nos anos 1980.

A mídia aparece não só como testemunha desse processo de subjetivação e constituição do sujeito travesti, mas atua de forma a também participar desse processo, visto que passa a tratar mais abertamente e documentar com imagens os novos corpos produzidos com silicones e hormônios. Cria-se, nesse contexto, o “ser travesti” também nos meios de comunicação, que têm a travesti Rogéria, oriunda dos espetáculos teatrais com travestis e transformistas, como símbolo paradigmático. O discurso da mídia ainda evidencia a ambiguidade desse sujeitos, Rogéria estava sempre em oposição a Astolfo, suas características femininas sempre em contraste com o que seria a “essência” masculina dentro do espectro sexo-gênero.

A partir daí, o autor introduz outra duas interlocutoras, Rogéria (uma clara homenagem à “travesti mais talentosa do Brasil”) e Thina, que narram suas trajetórias e o projeto de “virar travesti”, que assume um novo significado com o surgimento de novas tecnologias de gênero. Nesse sentido, ganha destaque a modificação dos corpos por meio da ingestão de hormônios, uso do silicone para criar seios, entre outras intervenções responsáveis pela construção da corporalidade feminina e de uma performatividade de gênero particular, que passa a diferenciar gays, transformistas e bonecas das travestis. A narrativa de Thina é quem nos guia por esse intricado processo de “virar travesti”, sinalizando para a importância das bombadeiras que esculpiam os corpos com silicone. Veras aponta que “esse novo sujeito, invenção da mídia e da ciência, constituído por atos de repetição estilizada […], será definindo como sujeito fascinante-desejável […]. Mas, também, como sujeito anormal […] e monstruosidade, ambiguidade de gênero e excesso de sexualidade”.

No segundo capítulo, Veras analisa extensamente o “fenômeno Roberta Close” como paradigmático do novo tempo dos hormônios e da sociedade que a ele se adapta. Paul B. Preciado retorna à discussão empreendida por Veras para compreendermos a dimensão ocupada pela sexualidade nesse novo tempo. A era farmacopornográfica, como Preciado preconiza, abarca tecnologias responsáveis por (des)construir as sexualidades impostas. O autor transpõe o debate de Preciado para o contexto brasileiro, ao associar o início do regime farmacopornográfico com o período da redemocratização, no qual abundavam questionamentos, incertezas e cresciam os movimentos feminista, negro e homossexual. Veras concatena essas questões à maior presença e visibilidade dos discursos a respeito das sexualidades nos veículos midiáticos. Como Foucault, o que o autor percebe é que se proliferam toda a sorte de discursos, sejam de censura ou incitação à uma nova sexualidade espetacularizada, na qual Roberta Close aparece como símbolo dessa- ambiguidade.

O fenômeno La Close é o “grande enigma” que permeia os discursos das revistas Playboy que Veras analisa, e que, enquanto buscam aproximá-la da representação de “mulher de verdade”, também buscam afastá-la da travesti nos moldes da famosa Rogéria. O “mito” Roberta Close confunde e desafia a associação direta entre gênero e sexo, “assim como o destino da masculinidade e da feminilidade orientado pela genitália passou a ser criticado”. A feminilidade, portanto, deixa de ser produto óbvio da natureza e da biologia, mas passa a ser legitimada através dos dispositivos tecnológicos de construção de gênero que possibilitam acessar esse terreno antes apenas tangenciado pelas bonecas e enxutos.

O “enigma” de Roberta Close, porém, também produz discursos estigmatizantes. Esse é um dos pontos altos da obra de Elias Veras. Enquanto podemos, num primeiro olhar, pensar o universo de Roberta Close como radicalmente contrário ao discurso do estigma da violência e da criminalidade que assolava as “sexualidade periféricas”, Veras relaciona-os como parte de um mesmo dispositivo. Também La Close foi acusada de “usurpação da feminilidade” um ponto de inflexão na obra, onde o autor nos guia pelo caminho que vai das capas da Playboy às páginas policiais que reforçam o discursos de estigmatização das travestis.

O capítulo 3, “Dispositivo do estigma e os contra-discursos travestis”, nos leva a um mundo menos idílico do que o do glamour dos carnavais e o da projeção nacional de Roberta Close. O autor compreende o dispositivo do estigma como “estratégia normativa que constitui a economia dos mecanismos de poder, saber e produção de subjetividades no tempo farmacopornográfico”. Veras aponta como esses discursos e práticas encontram maneiras de enunciar antigas associações entre homossexualidade-patologia e travesti-disfarce-criminalidade, sendo o próprio estigma inseparável da emergência do sujeito travesti.

Assim, procede às fontes da grande imprensa de Fortaleza para evidenciar os discursos produzidos sobre a população travesti. Impossibilitadas de falar, sempre referidas no masculino, ser travesti torna-se sinônimo de ser marginal. Em contraste com as imagens enaltecedoras de Roberta Close e das travestis nos bailes e shows, Veras analisa a fotografia policial como tecnologia de regulação que contribui para estigmatizar a população travesti.

Com dificuldade de inserirem-se no mercado de trabalho, muitas travestis recorrem ao trabalho sexual como forma de sobrevivência. A movimentação na rua atrai os olhares da mídia e da polícia, reforçando a ideia de criminalidade e verdadeira ameaça das travestis e sua presença pública à sociedade fortalezense. A Aids termina de compor o dispositivo estigmatizante, noticiada como “câncer gay”. O depoimento de Thina também dá suporte ao evidenciado por Veras, com seus testemunhos de violência policial e de como a epidemia aprofundou o preconceito e marginalização da população travesti.

Ao invés de permanecer nesse lugar obscuro da narrativa, porém, Veras avança ao ver além do estigma. Os “contra-discursos travestis” abrem espaço para o outro lado da prostituição: os ganhos financeiros e o “glamour” narrado por Thina e Rogéria. Também a visibilidade tem seus benefícios, com a denúncia público-midiática das violências que sofriam e da construção de uma militância travesti, da qual Thina participa ativamente. As resistências culminam na organização de um movimento institucional, ponte para o acesso à cidadania das travestis, que é fruto inclusive do estigma perpetuado ao longo dos anos, visto que os dois produzem discursos de subjetivação, como o autor observa atentamente

A obra de Veras percorre os caminhos da construção do sujeito travesti do tempo das perucas ao tempo farmacopornográfico no Ceará, por meio das fontes de imprensa e dos testemunhos orais. A narrativa permite que o “universo trans” cearense apareça não somente como adendo ao cenário nacional, visto que o destaque dado pelo autor aos discursos produzidos sobre esse universo e as práticas e tecnologias de gênero evidenciam como essa subjetivação acontece de forma complexa e mediada por diferentes referências. O autor também jamais se distancia de sua posição enquanto ator/pesquisador, e nos fornece acesso quase ilimitado a reflexões e experiências de pesquisa, principalmente no que tange às suas relações com as interlocutoras/colaboradoras que aparecem nas entrevistas. “

Travestis: carne, tinta e papel”, nesse sentido, é uma contribuição valiosa para os estudos de história das sexualidades, da produção dos corpos dissidentes e da emergência de novos sujeitos políticos. A segunda edição da obra evidencia sua importância para o campo dos estudos de gênero, e nos dá mais uma chance de olhar o “universo trans” sob a perspectiva de Elias Veras, que nos conduz por essa rico e singular percurso.


Resenhista

Augusta da Silveira de Oliveira – Graduada (2015) em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e mestra (2017) em História pelo Programa de Pós-Graduação em História (PPGH) da mesma instituição, onde defendeu a dissertação “Tenho o direito de ser quem eu sou”: o movimento de travestis e transexuais em Porto Alegre (1989-2010).


Referências desta resenha

VERAS, Elias Ferreira. Travestis: carne, tinta e papel. 2 ed. Curitiba: Editora Appris, 2019. Resenha de: OLIVEIRA, Augusta da Silveira de. Das perucas aos hormônios: a emergência do sujeito travesti no Ceará. Crítica Histórica. Maceió, v.10, n.19, p.254-259, junho, 2019. Acessar publicação original [DR]

CUBAS Caroline Jaques (Aut), Do hábito à resistência: freiras em tempos de ditadura militar no Brasil (T), Arquivo Nacional (E), SANTOS JUNIOR José Edson da Silva (Res), Crítica Histórica (CHr), Freiras, Ditadura Militar, América – Brasil, Séc. 20, Resistência

Caroline Jaques Cubas é Doutora em História, pela Universidade Federal de Santa Catarina, UFSC, com estágio sanduíche na Université de Rennes II, e Mestre em História, também pela UFSC. É Especialista em História Social do Ensino Fundamental e Médio, pela Universidade do Estado de Santa Catarina, UDESC, e graduada em História, pela Universidade do Vale do Itajaí, UNIVALI.

A autora é Docente Adjunta no Departamento de História da Universidade do Estado de Santa Catarina, UDESC, onde também leciona no Programa de Pós-graduação em História e no Mestrado Profissional em Ensino de História. É pesquisadora nos grupos: “Memória e Identidade” e “ Ensino, Memória e Cultura”, nesta mesma instituição.

O livro “Do hábito à resistência: freiras em tempos de ditadura militar no Brasil” é resultado de sua tese de doutoramento, com o título “Do hábito ao ato: vida religiosa feminina ativa no Brasil (1960 – 1985), defendida no ano de 2014. Este trabalho foi um dos agraciados com o Prêmio de Pesquisa Memórias Reveladas, 2015, em sua sétima edição, promovido pelo Arquivo Nacional, sendo o texto publicado no ano de 2016.

A obra está cartografada em quatro capítulos, com as seguintes divisões, “Mudanças de Hábitos: transformações visíveis e novos sentidos para a vida religiosa feminina”; “O Social, O Político, O Religioso: enfrentamentos”; “Freiras e a Ditadura Civil-Militar: recrudescimento e lutas democráticas”; e “A Exacerbação da Violência”.

A partir de uma ampla pesquisa em documentos eclesiásticos do Vaticano e de conferências realizadas em cidades da América Latina, documentos de arquivos no Brasil e na França, fontes bibliográficas, matérias veiculadas em órgãos de imprensa (jornais e revistas), leis e decretos, inquéritos e investigações policiais, (sobretudo do Projeto Memórias Reveladas e do Brasil Nunca Mais) e na interpretação de depoimentos/memórias orais, Cubas propõe:

[…] a realização de uma análise da vida religiosa feminina no Brasil, durante os anos de ditadura militar, a partir das transformações institucionais e às possibilidades de participação em movimentos organizados ou ações isoladas de resistência ao regime estabelecido a partir de 1964. (CUBAS, 2016, p. 24).

No primeiro capítulo, Caroline tece suas discussões problematizando as modificações institucionais que ocorreram na Igreja Católica Apostólica Romana, através das decisões tomadas no XXI Concílio Ecumênico da Igreja Católica – ou Concílio Vaticano II – iniciado em 1962 e encerrado em 1965.

Tais mudanças incidiram diretamente na vida religiosa feminina, a qual passou por um processo de redefinição (abandono gradual do uso do hábito– costumes e vestes – religioso, novas possibilidades de trabalho profissionalizado fora do claustro, vida em inserção social junto ao “povo de Deus”), e se deram para adequar a Igreja aos “tempos modernos”, como, por exemplo, o aggiornamento (atualização), que consistiu em adaptar o catolicismo às transformações vigentes no mundo daquele contexto e aproximar cada vez mais religiosas/os e leigas/os.

Essa dinâmica ocorreu de forma concomitante à emancipação feminina (neste aspecto Cubas identifica unidades/noções de discurso, conceituados por Michel Foucault, nas declarações pontifícias oficiais, em relação as mulheres) e concordou com o advento da segunda onda do movimento feminista, na década de 1960. Não obstante, a adesão das irmãs não foi homogênea, o que gerou crise de identidade e abandono da vida religiosa em alguns casos. Ainda assim, o texto demonstra que a saída do convento, para morar em pequenas comunidades, fez com que muitas adotassem uma atitude de engajamento político-social e se aproximassem de movimentos com características de resistência ao regime autoritário imposto.

No segundo capítulo, a autora detém atenção em tratar das relações, marcadas por tensões e alterações institucionais, entre Igreja Católica e o Estado brasileiro, devido, para citar, o posicionamento da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) ao destoar do regime. É enfatizada, ainda, a atuação de freiras em movimentos coletivos de rua (protestos, manifestações, marchas, passeatas) o que gerou descontentamento por parte do governo golpista, e que levou a ameaças às religiosas, sob a acusação do que chamavam majoritariamente de subversão.

Neste aspecto, é dado destaque às práticas pedagógicas progressistas, de conscientização, ensinadas por irmãs em colégios, que também serviam como locais de resistência – esta apresentada na obra como categoria de análise teorizada por Jacques Semelin (que destaca que uma resistência não precisa ser necessariamente armada) e ligada, no caso, às representações e relações de gênero – com atitudes como: acobertamento de foragidos e de pessoas presas injustamente, alojamento de estudantes, denúncias de abusos, torturas e pessoas desaparecidas; como ocorreu em Maceió, com o caso emblemático da Madre Zelly Perdigão Lopes, das Missionárias de Jesus Crucificado, a qual foi diretora da Escola de Serviço Social Padre Anchieta, e se opôs à ditadura; ação que contraria a ideia de que as feiras em geral seriam apolíticas e alienadas, pois várias outras também se fizeram presentes e atuaram em militâncias democráticas. Por isso, Cubas destaca:

[…] ser possível afirmar que houve, durante os anos de ditadura militar, uma participação efetiva de freiras na resistência ou em movimentos de oposição a determinadas situações ocasionadas pelo governo instituído. Mesmo que esta resistência não ocorra, na maioria das vezes, de uma forma declaradamente contrária ao governo […]. (CUBAS, 2016, p. 119)

No terceiro capítulo, a autora deixa bem clara a sua intenção de não escrever um trabalho biográfico, muito menos de generalizar a atuação de freiras no embate ao governo, ou mesmo mitificá-las. Todavia, reconhece a importância de narrativas de histórias pessoais de irmãs, como Derlei Catarina de Luca, que foi presa e torturada no período. Assim como apresenta aos leitores/as um “símbolo de resistência ao arbítrio”, na pessoa de Madre Cristina Maria, também chamada de “freira comunista”; entre vários outros casos como os de Maria Valéria, que fez denúncias de casos de tortura – então institucionalizada – e Rafaela Bimbi, que lutou contra o desrespeito aos direitos humanos. Vale salientar, ainda, o uso de declarações de Dom Paulo Evaristo Arns e Frei Betto para compor a análise proposta.

Cubas prossegue seus argumentos colocando um aspecto interessante em foco que é a questão da invisibilidade imposta às irmãs, que eram submetidas a uma forte hierarquia masculina e não tinham acesso ao púlpito; ficando, portanto, a cargo de feitos voltados ao âmbito privado, e agindo, numa perspectiva demonstrada por Judith Butler, com características que são remetidas culturalmente ao feminino. Neste sentido, não foram poucas as ações de resistência naqueles tempos: esconder procurados pela polícia, guardar material considerado subversivo, facilitar fugas de perseguidos, transportar bilhetes e cartas de opositores, dar assistência psicanalítica aos militantes, curar feridos de ações revolucionárias, prestar solidariedade a pessoas reprimidas (atitude que foi criminalizada pela Lei de Segurança Nacional – LSN), acolher presos políticos, atuar em lutas sociais (como na questão agrária, em relação à posse da terra) e principalmente no envolvimento direto com as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), o qual fundamenta nos textos de Maria José Rosado Nunes.

No quarto e último capítulo, são apresentados casos peculiaridades de extrema violência, como o que ocorreu com Maurina Borges da Silveira, a única freira que foi oficialmente torturada e exilada (no México) pela ditadura brasileira. Esta passou por abusos físicos, como choques elétricos, e psicológicos, além de sofrer abuso sexual. Foi presa acusada de fazer parte de um grupo “terrorista” e de “aquiescência”, tendo, inclusive, sua prisão legitimada pela imprensa da época.

Prosseguindo na leitura, Caroline faz referência a freiras perseguidas, como ocorreu na Bolívia e no Chile. Isso coincide também na eclosão de ditaduras no contexto latino americano, bem como nas semelhantes transformações culturais, sociais e políticas pelas quais passavam as religiosas sul-americanas através das ressignificações trazidas pela oficialidade católica. Assim, apresenta dois casos de freiras francesas: Alice Domon, que demonstrou intenso posicionamento político contrário ao regime militar argentino, e Léonie Duquet, que atuou em grupos campesinos e indígenas, as quais foram sequestradas, espancadas, estupradas e assassinadas, de uma forma covarde chamada de “voo da morte”, pela ditadura na Argentina.

Por conseguinte, a autora argumenta: Este trabalho partiu de um questionamento bastante objetivo: houve participação de freiras em movimentos de resistência e oposição à ditadura civil-militar instaurada no Brasil a partir de 1964? (CUBAS, 2016, p. 193). E conclui que sim! Mesmo que as ações de resistência – no sentido francês do termo – bem como ações sociais e políticas, não tenham sido adotadas por todas as religiosas, as fontes consultadas pela autora demonstram que em diversas situações as irmãs não ficaram alheias ao momento opressivo. Caroline Jaques Cubas, portanto, ao elaborar sua narrativa aponta para reflexões que vão além dos muros das congregações e dos conventos, e pensa a vida religiosa feminina de forma ativa, protagonista e não silenciosa.


Resenhista

José Edson da Silva Santos Junior – Mestrando pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Alagoas (PPGH/UFAL). Área de Concentração: Poder, Cultura e Sociedade. Linha de Pesquisa: Culturas Políticas, Representações, Discursos e Narrativas.


Referências desta resenha

CUBAS, Caroline Jaques. Do hábito à resistência: freiras em tempos de ditadura militar no Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2016. Resenha de: SANTOS JUNIOR, José Edson da Silva. “Para além dos muros”: freiras contra o regime militar no Brasil. Crítica Histórica. Maceió, v.10, n.19, p.260-264, junho, 2019. Acessar publicação original [DR]

POMBO Nívia (Aut), Dom Rodrigo de Sousa Coutinho: pensamento e Ação político-administrativa no Império Ultramarino Português (1778-1812) (T), Hucitec (E), SILVA Felipe dos Santos (Res), Crítica Histórica (CHr), Dom Rodrigo de Souza Coutinho, Pensamento, Ação Política, Ação Administrativa, Império Ultramarino Português, Séc. 18-19, Europa – Portugal, América – Brasil

Para o início dessa narrativa tomemos como ponto inicial o título da obra em questão, Dom Rodrigo de Sousa Coutinho: pensamento e Ação político-administrativa no Império Ultramarino Português (1778-1812), da historiadora Nívia Pombo, publicado em 2015, fruto da pesquisa de mestrado. Retirando por um momento todo conteúdo escriturário, de outro modo, todo fazer historiográfico que ordena o caos, o nome Dom Rodrigo de Sousa Coutinho marca um tempo. Para historiografia colonial, sobretudo a que se debruça sobre a virada do século XVIII para o XIX, o nome Dom Rodrigo remete a uma série de acontecimentos. Os códigos alfabéticos, amontoados uns aos outros formando o nome de um sujeito, uma sonoridade ímpar, transfere sorrateiramente quem o ler a um tempo histórico acelerado; de rupturas e continuidades de uma determinada ordem.

O livro “é, nesse sentido, uma biografia política de D. Rodrigo de Sousa Coutinho, e seguiu no intuito de efetuar a escolha das superfícies e relações sociais que poderiam informar a principal questão norteadora da pesquisa: quais os fundamentos de seu pensamento e de suas ações políticas sobre o Império português?” (Pombo, 2015, p. 27). A reflexão da autora é atravessada pela ação política de Dom Rodrigo. Num jogo dialético entre sujeito (Dom Rodrigo) e tecido social, Nívia Pombo reconstrói o cenário da política e da administração do império ultramarino português, sobremodo pensando Portugal e Brasil. O recorte temporal incorporado no título, 1778-1812, são os anos que marcam a passagem de Dom Rodrigo por cargos na estrutura administrativa lusitana até sua morte.

Iniciou sua carreira como embaixador plenipotenciário em Turim, 1779. Entre 1796 e 1801 assumiu o posto de secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarino. Em 1801 a 1803 foi sua passagem como presidente do Erário Régio. Por fim, após quatro anos de exílio forçado, Dom Rodrigo assumiu o Ministério da Guerra e Negócio Estrangeiros, entre 1808-1812. No entanto, a autora não seguiu, ou melhor dizendo, criou e (re)criou os passos do doutor embrulhada a partir de 1778 de modo restrito; desligado das múltiplas experiências que pôde ter sido experimentada.

A autora leva o leitor aos corredores do tempo. Os corredores, por exemplo, do Real Colégio de Nobres e da Universidade de Coimbra, espaço “comum à formação dos homens de Estados portugueses” (Pombo, 2015, p. 25) e que fez parte de um dos circuitos frequentados por Dom Rodrigo. A autora destaca que com o início das reformas na universidade de Coimbra, propostas pelo Marquês do Pombal, os novos estudantes tiveram contato com uma nova literatura. Conhecido como século das “Luzes”, o setecentos na Europa foi marcado pelo movimento iluminista, que impactou as mentes letradas. Pensadores de vários matizes como Newton, Rousseau, D’Alambert, Laplace, Voltaire, Raynal e Adam Smith [1], promoveram um novo modus operandi na forma de pensar dos estudantes. Dom Rodrigo, por exemplo, teve contato “com o que havia de moderno nos estudos do século XVIII, como os cálculos matemáticos e a física newtoniana” (Pombo, 2015, p. 39). No entanto, mesmo abandonando todas “afirmações teleológicas do tipo ‘Dom Rodrigo de Sousa Coutinho foi desde cedo preparado, pelo Marquês do Pombal [2], para assumir funções de agente do governo português’” (Pombo, 2015, p. 28), a autora não deixa de perfilar sua juventude; de destacar sua educação cortesã, onde várias vezes fora chamado para falar ao príncipe, filho do monarca D. José I.

Em seu primeiro capítulo Pombo, desembarca em 1808, ano que a família real chegou ao Brasil fugindo das tropas napoleônicas que ameaçavam invadir Portugal. (re)configurando todo contexto, pontuando as instabilidades diplomáticas que rodeou a Europa nesse período, a autora insere as políticas e soluções que foram adotadas por estadistas portugueses, inclusive D Rodrigo. O insere nas intrigas palacianas, por exemplo, na escolha entre franceses e ingleses, polos opostos nas disputas bélicas europeias.

O segundo capítulo recua no tempo, onde parece que tudo começou. Tendo como ponto de partida as reformas na educação propostas pelo Marquês do Pombal, 1776, a historiadora busca a gênese do modo de pensar dos agentes administrativos do império português no fim do século XVIII e início do XIX. Busca incansavelmente as influências de Dom Rodrigo, reinventa o intelecto do ministro, agita seus neurônios e demonstra suas inclinações iluministas; rompendo com a ciência especulativa, investindo ativamente nas expedições científicas no além-mar, com base empirista nas investigações de cunho científico. Dito tudo isso, ao que parece, Dom Rodrigo se assustava com os desfechos iluministas na França e, anteriormente, na independência das treze colônias da Inglaterra. Em Portugal, os ilustrados que participavam de cargos administrativos, como é o caso de Dom Rodrigo, buscaram a todo momento reforçar o poder monárquico utilizando todo arsenal teórico liberal que fora apreendido nos espaços educacionais; isso para melhorar o funcionamento da metrópole e das colônias, especialmente o Brasil.

Na última parte, Nívia Pombo buscou esmiuçar a questão colonial por três vieses. A historiografia contemporânea, os pensadores do século XVIII e, não menos importante, a empresa colonial pensada por Dom Rodrigo de Sousa Coutinho. Uma vez alocado nos altos postos da estrutura administrativa, Dom Rodrigo não poupou esforços para melhorar o negócio de sua majestade. No final do setecentos financiou uma gama de pensadores, sobretudo naturalistas, que tinham por objetivo reconhecer, estudar, catalogar e enviar ao reino, as novas potencialidades que ofereciam os espaços coloniais. O mundo da fauna e da flora se tornaram, para os políticos “ilustrados-absolutistas”, uma nova modalidade de capitação de recursos comerciais, inclusive, chegando ao debate sobre a ideia de um império Luso-brasileiro.

Nesse sentido, desde a segunda metade do século XVIII com o terremoto de Lisboa (1753), a Guerra dos Sete Anos (1762-63) e o declínio das remessas de ouro, Portugal mergulhou numa crise que se arrastou até o século XIX [3]. Somando esses fatores aos tratados de dependência com a Inglaterra no início do dito século e as instabilidades diplomáticas que marcaram seu fim, a trajetória de Dom Rodrigo orbitou esse mundo podendo experimentá-lo. Um mundo que não marcou apenas o seu intelecto; marcou igualmente o seu corpo, no qual foi um espaço de posturas cortesãs. Dito isso, o livro de Nívia Pombo transpassa os escritos institucionais da personagem. A autora, como num quebra-cabeças, constrói o que Dom Rodrigo passeou. Deixa emergir e se apresentar por si só o sujeito; desde seu olhar fixo, seu corpo ereto como regra diária, até suas ideias que buscavam a recuperação da estabilidade política e econômica do reino e seus territórios. Construindo, (des)construindo e (re)construindo uma coalisão entre iluminismo e tradição, Nívia Pombo nos conta a história de um homem num império em processo de esfacelamento.

Notas

1 As mudanças na subjetividade dos súditos não foi uma exclusividade metropolitana. No Brasil, em fins do século XVIII, Kenneth Maxwell identificou uma vasta gama de autores que eram lidos por brasileiros, sobretudo a nata letrada de Vila Rica, na Capitania de Minas Gerais. Segundo Maxwell, a “cosmopolita coleção de livros do cônego Vieira, que totalizava seiscentos volumes, continha a Histoire de l’Amerique, de Robertson, e a Encyclopédie, bem como as obras de Bielfreld, Voltaire e Condillac”. (Maxwell, 1999, p.161); ver A geração de 1790 e a ideia do império luso-brasileiro. In: Maxwell, Kenneth. Chocolate, piratas e outros malandros: ensaios tropicais. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

2 Marquês do Pombal, primeiro ministro de D. José I entre 1750-1777, foi padrinho de D. Rodrigo de Sousa Coutinho.

3 MONTEIRO, Nuno Gonçalo. As reformas na monarquia pluricontinental portuguesa: de Pombal a dom Rodrigo de Sousa Coutinho. In: O Brasil colonial 1720-1821 (vol.3). FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs). Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2019.


Resenhista

Felipe dos Santos Silva


Referências desta resenha

POMBO, Nívia. Dom Rodrigo de Sousa Coutinho: pensamento e Ação político-administrativa no Império Ultramarino Português (1778-1812). São Paulo: Hucitec, 2015. Resenha de: SILVA, Felipe dos Santos. Dom Rodrigo de Sousa Coutinho e a crise do antigo sistema colonial. Crítica Histórica. Maceió, v.10, n.20, p.298-301, dez., 2019. Acessar publicação original [DR]

ALMEIDA Anderson da Silva (T), …como se fosse um deles: Almirante Aragão. Memórias/ silêncios e ressentimentos em tempos de ditadura e democracia (T), Eduff (E), SERNA Felipe Garzón (Res), Crítica Histórica (CHr), Anderson da Silva, Almirante Cândido da Costa Aragão, Biografia, América – Brasil, Séc. 20

En el año de 1996 Ánderson da Silva Almeida ingresó en régimen de internado al Cuerpo de Fusileros Navales de Brasil, donde posteriormente pasaría a componer el cuadro de músicos en la misma institución como intérprete de Bombardino.

Paralelo a su carrera como marinero y músico, Ánderson da Silva Almeida hizo su graduación en Historia con la Universidad Católica de Salvador, Bahía; y posteriormente adelantó su especialización, maestría y doctorado en Historia en la Universidad Federal Fluminense UFF donde se destacó en el año 2012, con el premio Memorias Reveladas del Archivo Nacional por su disertación de maestría que daría origen al libro “Todo o leme a bombordo: marinheiros e ditadura civil – militar no Brasil: da rebelião de 1964 à anistia” [1] .

En el año 2010, Anderson da Silva dejaría la marina luego de conseguir una beca de estudios para cursar el doctorado en la UFF, y el presente libro reseñado es fruto de ese proceso. “…como se fosse um deles: Almirante Aragão. Memórias, silêncios e ressentimentos em tempos de ditadura e democracia”, magnífica biografía histórica donde el autor deja bien claras las motivaciones generadas en la intersección de sus carreras como marinero y como historiador.

El tema central de la investigación, que dio origen al presente libro, se centra en la vida de uno de los personajes caídos en el anonimato histórico por cuenta de la turbulenta dinámica política y social experimentadas en Brasil en la segunda mitad del siglo XX, específicamente los acontecimientos que llevaron al Golpe civil militar del año 1964 que derrocó el gobierno democráticamente constituido de João Goulart, consolidándose así una dictadura que se extendería hasta el año 1985.

En el libro, el autor contextualiza al lector (sea éste nacional o extranjero, sociólogo o historiador) no solamente en la coyuntura particular de la vida del comandante del Cuerpo de Fusileros Navales en aquellos días del golpe, sino también el contexto territorial, histórico, social y político de Brasil e, incluso de la región de América Latina, durante gran parte del siglo XX.

La historia del almirante Cándido da Costa Aragão es la historia de un hombre protagonista de una época marcada por las desoladoras sequías en el sertón nordestino y posteriores migraciones de sus habitantes para las ciudades importantes del país como São Paulo y Rio de Janeiro: así mismo como testigo de las consecuencias de la Guerra Fría en el escenario político y social de América Latina, el estigma y la persecución de todo aquello que fuera relacionado con el cada vez más indeterminado peligro comunista; también experimentó el racismo y las desigualdades dentro de la estructura jerárquica de instituciones tradicionales de la nación brasileña.

Aragão llegó a la marina e a Río de Janeiro en la década de 1920 dentro de esas circunstancias: nordestino de Paraíba, pobre, negro, probablemente descendiente de africanos esclavizados, había salido del sertón huyendo del hambre junto a su familia. Ingresa bastante joven a las filas de la marina como soldado raso en la posición más baja de la jerarquía institucional, y con perseverancia, disciplina y décadas de servicio alcanzó a ser nombrado Comandante del Cuerpo de Fusileros Navales de Brasil, en 1963, durante el gobierno del presidente João Goulart. Es la única vez en la historia de esa institución que un soldado hace carrera pasando por todos los niveles desde el más bajo hasta el más superior, desde aprendiz hasta Almirante, comandante de todo el cuerpo de fusileros navales.

Llevaría para siempre las marcas de su origen tanto en su piel como en su memoria. En el camino hasta comandante, Aragão hizo amigos y enemigos dentro de una coyuntura cada vez más influenciada por la Guerra Fría y, por el involucramiento cada vez más grande de los militares en la dimensión política nacional e internacional.

Según Almeida:

La simpatía de Aragão por algunos políticos ubicados a babor durante la década de 1950 lo colocaba, también, en el discurso de sus adversarios, como un peligroso comunista, de ahí el apodo de “almirante rojo” divulgado por sus opositores. (ALMEIDA, 2017, p. 105)

De esa manera, su nombre fue tornándose incómodo entre el círculo de altos oficiales de la marina y fueron varias las veces en que intentaron removerlo de su cargo bajo acusaciones de insubordinación, mal comportamiento, incapacidad moral y otras difamaciones como mujeriego, no religioso y enviciado por los juegos de azar.

Con la crisis de los misiles en Cuba, en el año de 1961, las posturas políticas a nivel regional, nacional e internacional se fueron tornando cada vez más radicalizadas y así mismo la consciencia de Aragão se fue manifestando cada vez con más claridad. La prueba de oro aconteció en Marzo de 1964 cuando éste se negó a cumplir la orden de reprimir una revuelta de marineros que tuvo lugar en el Sindicato de los Metalúrgicos de Guanabara, en Río de Janeiro, luego de la detención arbitraria de algunos miembros de la Asociación de Marineros y Fusileros Navales, un agrupación que buscaba el mejoramiento en las condiciones de vida de los marineros.

En lugar de reprimir a los revoltosos tal como le fue ordenado, Aragão decidió escucharlos. Y la confianza del presidente Goulart en Aragão era tan grande, que terminó asumiendo personalmente las negociaciones con la Asociación de Marineros y Fusileros Navales, decretando la liberación de los miembros de ésta que habían sido presos.

Por aquel gesto, Aragão fue levantado en hombros por los marineros huelguistas en señal de triunfo, con lo cual despertó un sentimiento de indignación y escándalo entre la aristocracia naval. El acto de Aragão y del presidente Goulart fue considerado intolerable para aquellos sectores de la sociedad y de las instituciones estatales que se tornaron entusiastas del golpe militar del día 01 de Abril de 1964.

Pocos saben que en ese momento Aragão y el cuerpo de fusileros navales fieles a éste y al presidente “Jango” estaban listos para tomar las armas y resistir a muerte el golpe para proteger la nación, tal como está estipulado dentro de los juramentos que los marineros y militares asumen. Pero la máquina del autoritarismo no tendría marcha atrás. El mundo entero estaba sumergido en una guerra transcontinental contra el comunismo soviético y Brasil pagó el precio. Aragão pasó a ser uno más de los exiliados junto a muchos otros militares, políticos, periodistas, sindicalistas y líderes estudiantiles procurados por la máquina de represión militar.

En ese momento comenzaría un largo exilio para Aragão que se prolongó por 14 años, tiempo en el cual pasó por diferentes países, experimentando en cada uno de ellos acontecimientos marcantes de trascendencia política en el Uruguay, en Chile durante la muerte de Salvador Allende, la caída del Peronismo en Argentina, la revolución de los claveles en Portugal, la lucha de Vietnam del norte en guerra contra los Estados Unidos, Argelia y sus esfuerzos de sacudirse del dominio colonial francés, y pasando también por Suiza, Francia y Venezuela.

En esos lugares que Cândido da Costa Aragão visitó durante su exilio, conoció diversas experiencias de organización y lucha socialista, al mismo tiempo que sufría la persecución orquestada por la máquina represiva de la dictadura militar en Brasil contra los exiliados y que iba dejando muertos en el camino por él recorrido.

En ese proceso estuvo buscando aliados adonde llegaba, trabajando de la mano con los partidos socialistas y comunistas en los países que recorrió, lidiando con espías e infiltrados dentro de los grupos de exiliados, planeando la lucha armada en el Brasil en el marco de una revolución socialista a escala global, diseñando planes para una eventual reforma agraria en el Brasil, así como la nacionalización de las riquezas y de los bancos, abogando desde el exterior por una amnistía general para los presos políticos en su país, aprendiendo sobre la guerra de guerrillas y sobre subversión en Vietnam del norte y Argelia, y adelantando gestiones para intentar unir a todos los militares de izquierda de América latina en un mismo bloque bélico para luchar contra el imperialismo norteamericano.

Sin embargo, ninguno de esos planes se haría realidad. Aragão era requerido por las autoridades en cada estación que hacía durante su exilio, y los espías y la vigilancia permanentes provocaron la discontinuidad de sus acciones y las condiciones históricas no fueron dadas para alcanzar esos propósitos.

Aragão regresaría al Brasil en el año 1979 sin glorias ni recepciones, sin ser esperado ni siquiera por la izquierda política brasileña, y además de ello siendo preso casi al instante de haber pisado nuevamente territorio nacional, a pesar de la amnistía que acababa de ser concedida a los presos políticos y exiliados. Aragão no gozaría de libertad plena hasta el año 1981, y estaría lidiando en los últimos años de su vida con la frustración de la lucha armada que no fue posible hacer, y con la orden presidencial que nunca llegó para tomar las armas y resistir el golpe hasta las últimas consecuencias. Aragão moriría invisibilizado totalmente en 1998, olvidado por la marina, sin los honores protocolarios. Su cuadro fue removido del álbum histórico donde figuran todos los comandantes del Cuerpo de Fusileros Navales de Brasil, y el rol que ejerció durante los días previos y posteriores al golpe de 1964 sigue siendo silenciado por la institucionalidad.

La presente obra es una muestra de las luchas por las memorias del pasado que están inmersas en las disputas por el poder del presente. También está rompiendo el preconcepto que tiende a calificar a los militares como incapaces de conciencia histórica y revelando que dentro de las instituciones armadas también tuvo lugar una lucha interna de soldados, marineros y oficiales sumidos en el anonimato y que permanecieron fieles al presidente João Goulart en la coyuntura del golpe militar de 1964 en Brasil.

El almirante Cândido da Costa Aragão tiene su lugar en la historia al margen de los lugares de la memoria oficial, en los no-lugares de los perseguidos, de los que fueron forzados a quedar en el olvido de las memorias institucionales, excluidos del álbum de fotos, difamados como parias que incomodan la realidad histórica.

Nota

1 ALMEIDA, Anderson da Silva. Todo o leme a bombordo: marinheiros e ditadura civil – militar no Brasil: da rebelião de 1964 à anistia. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2012.

Resenhista

Felipe Garzón Serna – Mestrando pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Alagoas (PPGH/UFAL). Área de Concentração: Poder, Cultura e Sociedade. Linha de Pesquisa: Culturas Políticas, Representações, Discursos e Narrativas.

Referências desta resenha

ALMEIDA, Anderson da Silva …como se fosse um deles: Almirante Aragão. Memórias, silêncios e ressentimentos em tempos de ditadura e democracia. Rio de Janeiro: Eduff, 2017. Resenha de: SERNA, Felipe Garzón. Crítica Histórica. Maceió, v.10, n.20, p.302-306, dez., 2019. Acessar publicação original [DR]

BEZERRA Antonio Alves (Aut), Trabalhadores e trabalhadoras rurais boias frias: exclusão/ imprensa e poder (T), Appris (E), SILVA Aline Oliveira da (Res), Crítica Histórica (CHr), Trabalhadores Rurais, Trabalhadoras Rurais, Boias Frias, Exclusão, Imprensa, Poder, Estado de Alagoas, Estado de Pernambuco, América – Brasil, Séc. 20

Antonio Alves Bezerra é graduado em História pela UNESP, mestrado pela PUC/SP e doutorado em História pela mesma universidade. É professor do curso de graduação e pós-graduação em História pela UFAL, como também, coordenador do laboratório de Ensino de História e líder do Grupo de Estudos: História, Ensino de História e Docência.

A obra intitulada Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Boias Frias: exclusão, imprensa e poder é um estudo sobre o avanço do processo de modernização do setor sucroalcooleiro com o resultante aumento da exclusão social e econômica dos trabalhadores rurais. O prof. Rodrigo Costa escreve um breve prefácio sobre a obra e observa que ela “oferece uma visão sob um grupo social cuja presença se faz notar e sentir no cotidiano das grandes áreas rurais do país, os trabalhadores rurais boias-frias”, que também, estão presentes no agreste alagoano e no sertão pernambucano. Existência historicamente negada nos discursos do poder público, da mídia e do poder econômico.

A obra está organizada em quatro seções, Tramas de poder: território e usina; Trabalhadores Rurais: lutas, perdas e conquistas; Trabalhadores(as) rurais: tramando experiências e Tensões no canavial do oeste paulista: imprensa e poder.

No primeiro capítulo do livro o autor apresenta o território onde se encontram os complexos agroindustriais denominados de Usina Nova América e Usina Maracaí, na cidade de Assis localizada no oeste paulista. Discorre sobre as transformações ocorridas após o período da Segunda Guerra Mundial, quando o cenário brasileiro ganha outras configurações, destinando-se para um processo de industrialização mais acentuado. As máquinas passam a ocupar os espaços da cultura canavieira no oeste de São Paulo, acarretando tensões e conflitos entre trabalhadores rurais e usineiros. As transformações ocorridas no campo modificou o espaço geográfico, como também a vida das pessoas que ali vivem, excluindo os trabalhadores rurais da cana do mercado de trabalho.

Bezerra destaca que é possível relacionar as ações e a organização dos trabalhadores rurais em Sindicatos e Associações, com a implantação do Estatuto Rural, em 1963, sob a Lei n.º 4.214/63. As ações movidas pelos trabalhadores resultaram em greves, que reivindicavam direitos garantidos pela lei, esses fatos resultaram no aceleramento da mecanização e na demissão de vários trabalhadores. Os conflitos que marcaram o início das lutas dos trabalhadores rurais na região de Assis, revelaram a complexidade das tramas do poder que caracteriza o setor açucareiro, que tem o Estado como um parceiro que contempla os interesses econômicos na industrialização e para reprimir as ações organizativas dos trabalhadores.

No segundo capítulo, o autor analisa como a imprensa local não mediu esforços para elogiar as empresas açucareiras da região, vistas como potencializadoras do progresso regional com inserção de novas tecnologias para a agricultura. Destaca as contradições nos discursos produzidos pelas empresas e divulgados pela imprensa, no tocante aos investimentos sociais e na qualificação da mão de obra dos trabalhadores. Quando confrontados sobre os investimentos em novas tecnologias, os trabalhadores relatam que não tem lugar para eles nas empresas e sentem as incertezas da permanência no campo. Evidenciando-se “uma tensão entre o discurso da empresa e do trabalhador” (p. 54).

A obra ressalta o protagonismo dos trabalhadores na reinvindicação de direitos, dentre as lutas traçadas por eles, corresponde ao transporte dos boias-frias tradicionalmente carregados por caminhões pau-de-arara. Esse tipo de transporte causou vários tipos de acidentes, mortes de trabalhadores e se tornou manchete de denúncia dos jornais por conta da precariedade das condições do transporte.

Apesar das perdas e incertezas enfrentadas pelos trabalhadores rurais no oeste paulista, é possível visualizar conquistas, dentre elas o ônibus e o contrato de trabalho coletivo que marca a história dos salários rurais. Essas indagações estão no campo da exploração e das conquista dos trabalhadores rurais, “no aspecto do (des)emprego e acúmulos capitalistas, figuram a presença e a participação dos trabalhadores rurais numa outra perspectiva, trata-se da não passividade diante das condições opressoras de trabalho” (p.62).

As leis ambientais que proíbem a queima da cana acarretaram tensões no cotidiano dos trabalhadores e a sua exclusão. Os usineiros aliaram-se com o discurso ambiental para intensificar a inserção das máquinas. O desenvolvimento das usinas de açúcar modificou os hábitos, as relações de trabalho, os comportamentos, transformando o campo paulatinamente em uma empresa com as relações moldadas pelo capitalismo.

A questão da segurança nas atividades canavieiras é permeada por paradoxos. Os procedimentos utilizados no ato de contratação de um trabalhador para o corte de cana são feitos a partir de testes, que exigem uma certa quantidade de toneladas de cana cortadas, não se sabe ao certo a quantia. A contratação das mulheres é feita a partir do vínculo de amizade com o agenciador, e quando conseguem cortar a média da cana exigida. As pesquisas realizadas pelo autor demonstraram que existem poucas mulheres nas turmas, e em algumas, inexistente.

Outro aspecto das condições de segurança no campo corresponde às vestimentas e equipamentos. As empresas não fornecem vestimentas adequadas, para prevenir acidentes de trabalho, em algumas usinas apenas a lima de amolar e o facão são fornecidos e, em outras, as perneiras. Em alguns casos as vestimentas e equipamentos são cobrados pelas usinas.

No terceiro capítulo da obra Antonio Bezerra detém atenção à mulher boia- fria e descreve a sua dupla jornada de trabalho, a trabalhadora rural que é mãe, dona de casa e em alguns casos estudante. Essas trabalhadoras enfrentam os obstáculos que se configuram no espaço que compõe a agroindústria dos canaviais, permeados por tensões e poderes, que se nutrem a -cerca delas.

As mulheres boias-frias compartilham semelhanças. Em muitos casos são oriundas de famílias pobres, as responsáveis pelo sustento familiar. Após o término do casamento, quando jovens não tiveram a oportunidade do acesso à escola, e tentam reparar a não alfabetização com incentivo dos filhos.

Ainda que houvesse a participação das mulheres boias- frias em conflitos em diversas áreas rurais do país, não foi possível observar a participação durante a investigação, nas falas das entrevistadas do oeste paulista. Porém as entrevistas revelaram outras lutas e enfrentamentos que elas experimentam, como “os preconceitos, estigmas e representações sociais construídas em sua volta, em virtude da função que ocupam no âmbito das usinas, deixando-as muitas vezes invisíveis pelos valores pautados por interesses masculinos” (p. 91). A industrialização da cultura canavieira também proporcionará a exclusão da trabalhadora rural, não só pelo desempenho das máquinas, mas também porque os empresários das agroindústrias se esquivam em investir na mão de obra qualificada feminina, destinada para as atividades do agronegócio.

O gato é um dos sujeitos encontrados na cultura canavieira. Ele é designado para fiscalizar e organizar as frentes de trabalhadores no início da colheita. É remunerado por trabalhador e, dessa forma, acaba usufruindo da abundância de mão de obra para cobrar taxas por cada trabalhador conseguido; por essa razão, ele é mal visto pelos trabalhadores boias-frias.

Outro personagem surge e ocupa a posição do gato, o agenciador e/ou turmeiro, são vistos como pessoas sérias, com valores pautados pela legislação, diferentemente dos gatos. No entanto, como o campo passou por transformações, com o desenvolvimento da agroindústria, nota-se que alguns atores ainda são os mesmos, modificou-se apenas as roupagens. O agenciador assume-se como o “pai” dos trabalhadores, como um sujeito que conhece cada trabalhador, os que possivelmente podem acarretar conflitos, no que corresponde a insatisfação no trabalho. Ele organiza os trabalhos, as relações de possíveis conflitos no campo assegurando, assim, os interesses do agronegócio.

O trabalhador vê o processo de mecanização como uma forma de exclusão de mão de obra. Mas, eles enxergam que o fator responsável por essa exclusão é a “máquina”, não observam os fatores ocultos que desencadeiam a mecanização no campo. Uma observação importante, pois sob ameaça de perder o trabalho os trabalhadores ficam à mercê dos usineiros e agenciadores. Os temas dos baixos salários no campo e a exclusão dos trabalhadores passaram a ser “associados ao processo de automação da agroindústria, o que possibilita pensar na consciência do trabalhador enquanto sujeito do processo” (p.118).

No último capítulo Bezerra discorre sobre as representações nos periódicos: Folha de São Paulo e A Voz da Terra, frente as interpretações das problemáticas: boias-frias e industrialização do setor canavieiro paulista. O jornal A Voz da Terra– imprensa local, nos primeiros anos de publicação propagandeou as informações vinculadas a ideia de progresso e desenvolvimento para a cidade de Assis e região, atrelada aos investimentos tecnológicos do setor sucroalcooleiro, não direcionando o olhar para a exclusão dos trabalhadores do universo canavieiro local, “o que possibilita pensar na omissão das informações de conflitos envolvendo cortadores de cana em toda a região do Estado de São Paulo e, de forma mais precisa, próximos à cidade de Assis- SP” (p. 121).

A omissão por parte do periódico na circulação desses conflitos, pode estar ligada ao possível interesse do periódico aos dos usineiros em não mencionar os conflitos existentes na região, ou supondo uma possível entendimento entre o trabalhador e a máquina. O jornal A Voz da Terra passa a adquirir outro perfil acerca das discussões do desemprego na área rural, por volta de 1976, “quando os trabalhadores rurais não conseguem manter uma “posição passiva” (na visão divulgada anteriormente por esse órgão de imprensa) frente ás condições cada vez mais opressoras” (p.130).

O autor mapeou as edições do jornal A Folha de São Paulo durante o período de 1960 a 2000 sobre a problemática dos boias-frias. O jornal assume uma postura de um veículo comprometido com as necessidades e anseios de setores médios paulistas, mas também um compromisso com as péssimas condições de vida dos trabalhadores rurais, especificamente os “boias-frias” no interior do estado, bem como de outras regiões. Noticia em suas reportagens as tensões no campo, de forma menos tendenciosa, confrontando com os conteúdos de outros jornais. O que se percebe é que o jornal A Folha de São Paulo “envolveu-se de forma mais direta com os conflitos no campo” (p. 138). A partir das análises observou-se a ênfase atribuída pelo jornal aos acontecimentos no campo, o que possibilita visualizar as tensões existentes na época nas mais diferentes regiões do país.

Embora o jornal tenha noticiado os conflitos no campo e, as ações movidas pelos trabalhadores rurais, em algumas reportagens o noticiário deixa explícito a defesa das esferas públicas e privadas. Mas, é importante destacar que a divulgação das informações pela imprensa escrita contribuiu para o conhecimento dos conflitos no campo e na cidade, como também, na circulação dos desdobramentos da organização dos trabalhadores denunciando, a exploração e a miséria que os cercavam e, os resultados das ações favoráveis aos trabalhadores rurais.

O autor encaminha-se para as considerações finais argumentando que “não há desenvolvimento se milhares de trabalhadores se encontram excluídos desse processo” (p. 155). A obra buscou denunciar as condições de vida e trabalho desumano que homens e mulheres vem se sujeitando. Como também, dialeticamente, anunciar que o homem, a partir da figura do trabalhador boia-fria move ações de resistência, na busca de uma vida digna. Conquistas foram alcançadas, mas perdas tornaram-se concretas, o desemprego é uma delas e alerta que “governos e usineiros devem pensar medidas para que outros conflitos não se concretizem e que promovam o trabalhador e não os excluam cada vez mais” (p. 158).


Resenhista

Aline Oliveira da Silva – Mestranda pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Alagoas (PPGH/UFAL).


Referências desta resenha

BEZERRA, Antonio Alves. Trabalhadores e trabalhadoras rurais boias frias: exclusão, imprensa e poder. Curitiba: Appris, 2018. Resenha de: SILVA, Aline Oliveira da. Crítica Histórica. Maceió, v.11, n.21, p.463-468, jul., 2020. Acessar publicação original [DR]

SANTOS Kauan Willian dos (Org), SILVA Rafael Viana da (Org), História do anarquismo e do sindicalismo de intenção revolucionária no Brasil: novas perspectivas (T), Editora Prismas (E) SANTOS Igor Ribeiro dos (Res), Crítica Histórica (CHr), História do Anarquismo, História do Sindicalismo, Revolução, América – Brasil, Séc. 20-21

Não raro o anarquismo fora apresentado como uma planta exótica importada para o Brasil; como um movimento pré-político fadado ao fracasso, caótico, essencialmente individualista e pequeno burguês; e de modo mais pejorativo, seus adeptos foram descritos como terroristas e assassinos insanos. De alguma maneira esses pontos, somados a diversos outros, foram compartilhados entre a academia e o senso comum forjando um conhecimento sobre o anarquismo, tomando como verdade narrativas que confirmam visões depreciativas, fazendo vista grossa às evidências empíricas, e contribuindo para mantê-lo no limbo da história, enclausurando a possibilidade de um conhecimento histórico construído sobre bases sólidas.

No entanto, esforços contrários (o qual o livro que apresento aqui é um exemplo) veem contribuindo para romper esse cerco, fazendo, a partir de novas perspectivas, a sua história e de suas estratégias, ou vetores sociais, como o sindicalismo de intenção revolucionária. O livro, uma coletânea, foi organizado pelos historiadores Rafael Viana da Silva, doutor pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e Kauan Willian dos Santos, doutorando pela Universidade de São Paulo (USP), membros do Instituto de Teoria e História Anarquista (ITHA) [1]. Além do prefácio, a obra conta com quinze capítulos de pesquisadores e pesquisadoras de diferentes lugares e universidades do país. Os artigos, em sua maioria, são parte de resultados de teses e dissertações recentes, “pesquisas que abordam a história do anarquismo e do sindicalismo revolucionário no país e suas conexões com outras regiões” (SANTOS; SILVA, prefácio, p. 9) e abarca um largo período histórico. Para além de uma contribuição acadêmica, a obra é também um esforço político de responsabilidade com o que representa o anarquismo.

Destacamos, a priori, aquilo que propõe o seu título, trazer uma História do anarquismo e do sindicalismo de intenção revolucionária no Brasil. Tornou-se comum reduzir as experiências anarquismo brasileiro às cidades do Rio de Janeiro e São Paulo. Nesse sentido, a obra começa [2] a romper com essa lógica e apresenta as experiências de outras partes do país, a exemplo dos estados do Ceará e da Bahia. Além da ampliação geográfica, as pesquisas tratam também de momentos em que a historiografia considerou o anarquismo ausente. Elas se distendem para além do principal marco temporal dos estudos sobre o anarquismo no Brasil, a Primeira República, e descreve sua existência posterior ao golpe de trinta, no período Vargas, no Pós-Segunda Guerra Mundial, na Ditadura Militar (1964-1985), na reabertura política até dias atuais (2016). Avança no entendimento de como se deu a militância em alguns momentos, possibilitando perceber que não esteve restrita à propaganda e às atividades culturais.

Novas abordagens e fontes são apresentadas, como os documentos do DEOPS, sem corroborar a visão dos que produziram esses documentos e com o cuidado de fazer uma história dos de baixo, buscando “questionar de outra forma os documentos e fazer coisas diferentes com eles”; (SHARPE, 2011, p. 59) [3] e o uso de ilustrações e gravuras de jornais anarquistas e anticlericais. Temas importantes e ainda ausentes da história, como a militância das mulheres anarquistas, são abordados. O debate acerca do anarquismo e sua relação com a organização, estratégia, luta de classe, raça, anti-imperialismo, revolução, partido, participação nos sindicatos, por exemplo, é posto e se contrapõe às versões que obscurecem essas relações.

Trata-se de uma obra coesa pela leitura que os autores fazem do tema. Isto ocorreu exatamente porque “A escolha dos autores condiz com estudos que tentaram descaracterizar e enfrentar equívocos anteriores e ainda apresentar novos parâmetros e visões para entendermos tais fenômenos no Brasil,” esses parâmetros e visões se referem “às teorias e procedimentos metodológicos, mas também no tocante aos recortes temporais e geográficos bem como na atenção nas ações dos personagens anarquistas”. (SANTOS; SILVA, prefácio, p. 9)

No primeiro capítulo, “O anarquismo e o sindicalismo de intenção revolucionária: da Associação Internacional dos Trabalhadores à emergência na América Latina”, Felipe Corrêa faz um estudo conceitual e teórico para definir o anarquismo, suas principais ideias e seus debates. Estabelece o processo de surgimento do mesmo, colocando-o como um fenômeno histórico, ao contrário de alguns autores que o tratam como a-histórico (CORRÊA, 2015, p. 69) [4]. Demonstra que a Aliança da Democracia Socialista (ADS), primeira organização anarquista da história, fundada em 1868, e a atuação dos seus membros na Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), que existiu entre 1864 e 1877, está relacionada com o surgimento, difusão e a consolidação do anarquismo em muitos continentes do globo. Apresenta ainda que a difusão do anarquismo na América Latina está vinculada à atividade da AIT, e a análise deste processo contribui para entender o que ocorreu no Brasil, o que é feito também no capítulo. Dentre outras questões, o tema da difusão do anarquismo volta a ser discutido em “’I Senza Patria’: padrões de difusão transnacional do movimento anarquista e sua recepção em São Paulo”, de Clayton Peron Franco de Godoy. O autor apresenta uma rede de interligações em São Paulo, Paterson (EUA) e Buenos Aires, sendo protagonizados pelos italianos, pelo menos a princípio, no transnacionalismo linguístico, contribuindo com a difusão do anarquismo. Ao tratar do caso de São Paulo, o autor desfaz o mito da síntese sociológica sobre a origem eurocêntrica do anarquismo no Brasil (BATALHA, 2012, p. 145) [5]. Para ele “A identificação desse circuito e de suas redes constituintes remove a ideia da Europa como centro irradiador único do movimento anarquista […]”. Assim, “[…] iluminando aspectos das relações internas do anarquismo transnacional como um movimento menos eurocêntrico e mais policêntrico”. (p. 93)

Nos marcos da Primeira República, Anderson Romário Pereira Corrêa, em “Sindicalismo revolucionário e anarcossindicalismo nos Congressos Operários do Rio Grande do Sul (1898–1928)”, analisa os meandros das disputas nestes congressos e a participação dos anarquistas daquele estado nos Congressos Operários Brasileiros. Revela que além da estratégia do sindicalismo revolucionário, que é a principal estratégia para o período de 1906 a 1920, os operários gaúchos optaram, em um momento dos anos 20, pelo anarcossindicalismo. Atestando a atividade anarquista e do sindicalismo revolucionário no hoje Nordeste, Victor Pereira, em “Militância anarquista e verbo de fogo: Pedro Augusto Motta, sindicalismo revolucionário e imprensa libertária no Ceará dos anos 1920”, demonstra como se desenvolveu o anarquismo e o sindicalismo revolucionário no Ceará, abordando a circulação de ideias no interior daquele Estado e a conexão do militante Pedro Motta com outras cidades do Brasil e outros países, em suas múltiplas atividades como a palavra impressa e o seu “verbo de fogo”, a atuação nos sindicatos e formação de organizações. Por sua vez, Kauan Willian dos Santos, em “‘Guerra à guerra’: raça, antimilitarismo e organização política anarquista durante a primeira guerra mundial”, apresenta a experiência de grupos anarquistas de São Paulo, enfatizando seus posicionamentos frente à Primeira Guerra Mundial, ressalta os debates acerca do antiimperialismo, as questões étnicas e as experiências transnacionais. Trata da atuação desses grupos em eventos como os de 1917 e as iniciativas de formação de uma organização política anarquista.

Acrescentando à discussão do anarquismo a ação feminina, Samanta Colhado Mendes, em “Anarquismo e feminismo: as mulheres libertárias no Brasil (1900 – 1930)”, traz o importante papel das mulheres anarquistas. Estas participaram ativamente das lutas da classe operária, tanto ao lado dos homens como em organizações de classe composta apenas por mulheres. A autora mostra ainda que estas mulheres problematizaram internamente a opressão de gênero, suas divergências com o feminismo liberal e suas iniciativas de educação, essenciais para superar a condição a que estavam sujeitas.

Em “‘Anarquismo e Revolução’: militância anarquista e a estratégia do sindicalismo revolucionário no Brasil da Primeira República”, Tiago Bernardon Oliveira, traz um panorama geral da trajetória anarquista, apresentando como eles conseguiram aprovar o sindicalismo revolucionário como insígnia da COB no Primeiro Congresso Operário Brasileiro e a atuação para inserção desta estratégia junto aos operários do país; apresenta as avaliações das suas estratégias, buscando um meio que fosse além da atuação econômica, ou estritamente sindical, e pudesse alavancar a revolução social, como a tentativa de articulação das vanguardas, a formação das organizações (Partido Comunista de 1919) e as insurreições desse período. Aponta problemas internos e conjunturais que conduziram ao enfraquecimento em fins da Primeira República, e a permanência do sindicalismo revolucionário como proposta para o movimento.

No trânsito entre períodos e espaços, Caroline Poletto em “Imaginação subversiva em circulação: imagens anarquistas como instrumento político e o transnacionalismo imagético na imprensa anarquista e anticlerical brasileira, argentina e espanhola (1897 – 1936)”, traz um estudo do transnacionalismo e da circulação das ideias do anarquismo, através da iconografia dos jornais anarquistas e anticlericais, demonstrando que a partir das utilizações das “imagens políticas” contribuiu para que o anarquismo fosse, em diferentes períodos e locais, alimentado e (re)-significado por meio da circulação transnacional.

No pós-golpe de 1930, Rodrigo Rosa da Silva, em “Anarquistas e sindicalistas em São Paulo: repressão política e resistência nos anos 1930”, mostra a resistência dos anarquistas frente aos problemas do novo contexto, como a repressão do Estado e o novo modelo de sindicato, prosseguindo com o sindicalismo revolucionário. Assinala que a atuação anarquista não esteve ligada apenas aos círculos culturais e demonstra o vigor deste em organizações como a Federação Operária de São Paulo (FOSP). Por sua vez, “Sindicalismo e militância anarquista no Rio de janeiro e São Paulo (1945 – 1964)”, de Rafael Viana da Silva, analisa a experiência anarquista no pós-guerra ao ano do Golpe Militar e fortalece também a visão de uma atuação anarquista para além da propaganda e do culturalismo, ainda que ressalte a importância de ambos. O anarquismo nesse período foi muito ativo, como demonstra o autor, com a atividade da sua imprensa, a tentativa de reorganização da sua luta sindical, as iniciativas de realização de congressos e formação de organizações.

Sobre o anarquismo na ditadura militar brasileira, o historiador João Henrique de Castro Oliveira, no artigo “Anarquismo, movimento estudantil e imprensa alternativa: a trajetória do jornal o inimigo do rei (1977–1988)”, analisa a atuação dos anarquistas por meio do jornal o Inimigo do Rei (1977-1988) no processo de transição democrática, demonstrando uma articulação dos anarquistas de várias partes do país, como Bahia, Rio de Janeiro, entre outras. A atuação dos anarquistas no período fica evidente também em “Ideias, crítica e combate: o anarquismo na ditadura militar brasileira (1964 – 1985)”, no qual Rafael Viana da Silva demonstra que, mesmo com sua capacidade de ação reduzida, o anarquismo esteve presente nesse período com publicação de jornais, atuando em centros de cultura, mas também presente nas lutas do Movimento Estudantil Libertário e teve, em alguns momentos, sua resistência silenciosa.

Avançando, João Henrique de Castro Oliveira, em “Libera… Amore Mio: imprensa anarquista em tempos de consenso neoliberal (1991 – 2011)”, analisa a nova empreitada comunicativa dos anarquistas do Rio de Janeiro a partir do periódico Libera… Amore Mio. Destaca as discussões sobre teorias e as práticas anarquistas, assim como a luta contra o neoliberalismo e a busca de inserção junto aos trabalhadores em condições de precarização. No penúltimo capítulo, o artigo desenvolvido por Bruno Lima Rocha, Mariana Affonso Pena e os organizadores da obra, intitulado “‘Ou se vota com os de cima ou se luta com os de baixo’: presença e a (re) organização do anarquismo em tempos neoliberais no Brasil (1980-2013)”, os autores e a autora, tratam do momento de reorganização do anarquismo brasileiro após a dura experiência da ditadura. Apresentam a importância de inúmeros grupos, como a Ação Global dos Povos, as lutas contra globalização e anticapitalista e a aproximação de militantes anarquistas do Brasil com a Federação Anarquista Uruguaia (FAU) para o processo de reorganização.

Finalizando, Rogério de Castro, em “Autogestão e mutualismo: as escolas dos movimentos sociais numa fricção entre tempos (1906-2016)”, analisa as experiências das ocupações das escolas pelos estudantes secundaristas de São Paulo na luta contra o seu fechamento arbitrário divulgado pela Secretaria de Educação, aproximando-as àquilo que preconizava as escolas Modernas do início do século XX e a educação do sindicalismo revolucionário na Primeira República.

Deste modo, o livro desponta como uma das principais obras sobre o anarquismo no Brasil. Importante leitura para os que se interessam pelo tema, é indispensável para as/os pesquisadoras/es daquela ideologia e de suas estratégias. É dever destas/es, analisar o amplo contexto, de maneira detida e séria, sobretudo, outros componentes do movimento operário; assim, é indicado também para os estudiosos de outras vertentes do movimento operário ou de objetos que se aproximam do que o livro aborda, incluir nas suas análises, sérias e aprofundadas, o anarquismo. Neste sentido, a obra é uma boa sugestão.

Por fim, por tratar de um tema discutido ainda sem muito rigor, destaco a importância da obra, ao disponibilizar elementos para uma discussão rigorosa e fazer a crítica necessária à historiografia hegemônica que coloca o anarquismo preso no passado. Possibilita, assim, romper cada vez mais o cerco.

Nota

1 https://ithanarquista.wordpress.com/

2 A maioria dos artigos do livro abordam as experiências de São Paulo e Rio de Janeiro, por isso consideramos essa empreitada ainda no começo.

3 SHARPE, Jim. A história vista de baixo. In. BURKE, P. (Org.). A escrita da história: novas perspectivas. – São Paulo: Editora Unesp, 2011.

4 CORRÊA, Felipe. Bandeira Negra: rediscutindo o anarquismo. – Curitiba: Editora Prismas, 2015.

5 BATALHA, Claudio H. M.. A História da Classe Operária no Brasil: trajetórias e tendências. In: FREITAS, Marcos Cezar (org.). Historiografia Brasileira em Perspectiva. São Paulo: Contexto, 2012.


Resenhista

Igor Ribeiro dos Santos – Professor da rede pública de ensino, mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Alagoas.


Referências desta resenha

SANTOS, Kauan Willian dos; SILVA, Rafael Viana da (org.). História do anarquismo e do sindicalismo de intenção revolucionária no Brasil: novas perspectivas. Curitiba: Editora Prismas, 2018. Resenha de: SANTOS, Igor Ribeiro dos. O anarquismo rompendo o cerco. Crítica Histórica. Maceió, v.11, n.21, p.469-474, jul., 2020. Acessar publicação original [DR]

MARTINS Ana Claudia (Aut), VERAS Elias Ferreira (Aut), Corpos em Aliança: Diálogos Interdisciplinares sobre gênero/ raça e sexualidade (T), Appris (E), SANTOS Crislanne Maria dos (Res), Crítica Histórica (CHr), Gênero, Raça, Sexualidade, Interdisciplinaridade, Séc. 20-21,

Nas últimas décadas, temos testemunhados constantes transformações sociais, históricas, políticas e culturais, que abalaram as estruturas cishetonormativas dos antigos padrões de gênero, raça e sexualidade. As lutas feministas, as conquistas LGBTQIA+, os movimentos trabalhistas e a descolonização dos países africanos, por exemplo, que perpassaram o século passado, desdobrando-se até os dias atuais, culminam em novas formas contemporâneas de fazer política e ciência.

A obra Corpos em Aliança: Diálogos Interdisciplinares sobre gênero, raça e sexualidade, organizada por Elias Ferreira Veras e Ana Claudia Aymoré Martins, professor/a da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), aparece nesse contexto teórico-metodológico-político de transformações, sendo oriundo dos debates realizados durante o II Colóquio diálogos interdisciplinares sobre gênero, raça e sexualidade: corpos em aliança, organizado pelo Grupo de Estudos e Pesquisas em História, Gênero e Sexualidade (GEPHGS/CNPq), do Curso de História da UFAL – com apoio do CNPq -, em Maceió (AL), no mês de maio de 2019.

O livro propõe um diálogo interdisciplinar e interseccional, tornando-se necessário para todos/as aqueles/as que tem como objeto de preocupação acadêmico-política, o gênero, a raça e a sexualidade. Já em seu título, os/as organizadores/as explicitam a aliança com o pensamento da filósofa norte-americana Judith Butler, particularmente, seu livro Corpos em Aliança e a política das ruas (Civilização Brasileira, 2018), no qual Butler debate sobre a construção de alianças coletivas. Levantando questões sobre feminismo, classe, raça e sexualidade, os textos da coletânea atualizam o debate, interseccionando teorias de maneira a melhor compreender as atuais dinâmicas sociais que resultam, por exemplo, na violência de gênero, transfobia, homofobia, racismo, exploração de classe, precariedade neoliberal etc.

Dividida em onze capítulos, a obra contempla textos de pesquisadoras/es de diversas áreas do conhecimento, como História, Direito, Filosofia, Serviço Social, Letras, entre outros. É composta ainda, pelo poema “Sobrevivência”, de autoria da atriz e escritora transfeminista Ísis Florescer, o que confere ao livro um toque literário singular. Mais que do que poesia, “Sobrevivência” é um grito de alguém que insiste em (re) existir em um mundo transfóbico.

A tradução Mapeando as Margens: Interseccionalidade, políticas identitários e violências contra mulheres de cor, de Kimberlé Crenshaw abre a coletânea. Neste texto clássico, somente agora traduzido para o português do Brasil, Crenshaw mostra como “a intersecção de raça e gênero moldam, de maneira estrutural, política e representacional, os aspectos da violência contra as mulheres de cor” (Crenshaw, 2020, p. 27). De acordo com a autora, as mulheres de cor estão situadas de maneira desigual nas esferas econômicas, sociais e políticas, ocupando uma posição interseccional entre os homens de cor e as mulheres brancas. Crenshaw explicita como as mulheres de cor estão à margem dos discursos que permeiam os debates sobre racismo e feminismo, uma vez que, o primeiro foi urdido contra a exploração de raça sofrida por homens de cor, enquanto o segundo, a subordinação e exploração de gênero sofrida por mulheres brancas. Desta forma, a autora mostra como as teorias de raça e gênero convergiram, até então, para a marginalização das mulheres de cor na sociedade e sua posição de tripla subordinação: aos homens brancos, negros e às mulheres brancas. Vemos ainda, nesse texto fundante dos estudos interseccionais, como as mulheres de cor são mais intensamente afetadas pela dominação de raça e gênero, pela violência sexual e doméstica. E ainda, pelas problemáticas socioeconômicas, sendo elas as mais vulneráveis às situações de desemprego e subemprego.

O lugar da raça em tempos de ação afirmativa, de Jeferson Santos da Silva, Leandro da Silva Rosa e Sérgio da Silva Santos, integrantes do Instituto do Negro de Alagoas/INEG, aborda as raízes do racismo estrutural no Brasil. Os autores discutem como o processo de colonização e escravidão moldou nossa sociedade neoliberal, branca e meritocrata, afetando a existência e efetivação de políticas públicas voltadas para as populações negras no Brasil.

No capítulo seguinte, Novas relações de poder e resistências: Corpos em aliança como resistência à precariedade neoliberal, Cristiane Marinho articula as ideias de Michel Foucault, Pierre Dardot, Christian Laval e Judith Butler para problematizar a precariedade e a resistência na sociedade neoliberal. Utilizando-se da análise foucaultiana sobre o poder, Marinho analisa o advento e consolidação do neoliberalismo, bem como, as novas formas de resistência nesse contexto. Em diálogo com Butler, a autora traz o conceito de precariedade, para mostrar como nessas novas formas de poder neoliberais, precários são todos/as aqueles/as cuja humanidade é apagada e negada, em todas as suas modalidades (raça, gênero, classe, sexualidade).

No quarto capítulo da obra, Elaine Pimentel discorre sobre A violência sexual compreendida pelas lentes da interseccionalidade. Pimentel dialoga com Kimberlé Crenshaw, Carla Akotirene e Patrícia Hill Collins, para analisar a realidade multifacetada da violência de gênero, que oprime mulheres e todos aqueles/as que não se enquadram no padrão cisheteronormativo. A autora demostra, desse modo, as diferentes faces da violência de gênero, permeadas também pela classe e raça.

No capítulo seguinte, Capitalismo, patriarcado e denominação masculina e a subjugação feminina, Andreia Pacheco de Mesquita e Gildete Ferreira da Silva, problematizam a apropriação do corpo feminino pelo poder patriarcal capitalista, explicitando como a modernização conservadora subalterniza as mulheres, sobrecarregando-as com as funções domésticas, o que as autoras denominam de “fenômeno da mulher caracol”, ou seja, mulheres que trabalham fora de casa, mas cujas responsabilidades do lar continuam sob sua responsabilidade. Conforme Mesquita e Silva, essas mulheres foram autorizadas a adentrar no mercado de trabalho sem, contudo, serem donas de seu corpo e de sua vida.

No sétimo capítulo, (Re)inventando o corpo do sodomita no Medievo Ibérico, Marcelo Pereira Lima realiza um acurado estudo sobre a sodomia medieval. Lima constrói seu texto procurado esclarecer as formas histórico-político-institucionais da sodomia medieva, que além de crime, também é pecado, “um ato repugnante ao homem honesto”. Trabalhando a partir de textos jurídicos que foram produzidos no território Ibero-português, o historiador analisa, a partir da perspectiva de gênero, como a sexualidade e as dimensões homoeróticas foram representadas nas obras jurídicas medievais, analisando, desse modo, as modalidades de violência que permeavam a práticas sexuais masculinas.

Maria Aparecida de Oliveira Lopes, por sua vez, em Expressões de Gênero e Corpo na Arte Africana, utiliza o conceito de Interseccionalidade, situando seu debate na perspectiva da arte negra no mundo pós colonial, articulando os conceitos de raça e classe, bem como, o de gênero, centrando sua análise sobre as trajetórias de artistas africanas para debater questões que permeiam corpo, gênero, trabalho e identidade na produção artística negra.

No capítulo Mutação genética e agência feminista em THE EVENING AND TTHE MORNING AND THE NICHT de Octavia Butler, Joan Haran e Ildney Cavalcanti, refletem sobre gênero, genética e eugenia no conto da escritora americana Octavia Butler. As autoras centram sua análise na construção distópica literária de Butler e no modo como a escritora negra norte-americana articula gênero e ciência em uma sociedade separada por uma mutação genética. Ciência, mutação, genética e feminismo são centrais na análise literária construída por Cavalcanti e Haran.

Os dois últimos capítulos do livro foram reservados a seus organizadores, Elias Ferreira Veras e Ana Claudia Aymoré Martins. Em Foucault, Butler, Preciado e Davis na oficina da história, Veras discorre sobre como a teoria queer, as reflexões de Foucault e a teoria feminista negra, possibilitaram a construção de sua análise das experiencias trans no Brasil. Ao revistar sua tese, publicada com o título Travestis: carne, tinta e papel (2020), o autor mostra a importância de compreender, não apenas a dimensão do gênero e da sexualidade no estudo sobre as experiencias das trans, mas, também como raça e classe se interseccionam na produção das subjetividades trans.

Já Ana Claudia Aymoré Martins em Câmara Obscura: Abjeção e transgressão dos corpos nas obras de José Danoso e Nilton Resende, último texto da coletânea, analisa duas obras nas quais as personagens principais são mulheres trans: Manuela, personagem principal da obra de José Danoso, O lugar sem limites (1966); e a personagem inominada de Nilton Resende, de um dos contos de Diabolô (2011). Assim, tomando como aporte teórico Julia Kristeva, Judith Butler e Judith Halberstam, Martins discute os temas da transgressão e objeção dos corpos trans na literatura contemporânea, problematizando a construção das identidades da pessoa trans e, ainda, a marginalidade e objetificação que estes sujeitos e seus corpos estão submetidos.

Em Corpos em Aliança e a política das ruas, obra que inspirou a obra resenhada, Butler debate sobre o direito de aparecer, como algo negado às vidas precárias, ou seja, as minorias sexuais, de gênero e raça. Estas minorias, cuja precariedade se materializa em seus corpos, são relegadas às margens, criminalizadas pelo Estado e coisificadas pelo capitalismo, precisam atuar em conjunto no espaço das ruas, dando voz às suas demandas e construindo a democracia. Desse modo, os corpos em aliança emergem da necessidade das diferentes vozes se unirem e construírem uma nova democracia.

Assim sendo, gostaria de salientar a importância desses corpos em alianças em diálogos interseccionais, especialmente, nesse contexto de crescimento da extrema direita e sua produção de discursos racistas, machistas, misóginos, LGBTfóbicos, endossados por uma pauta neoliberal, cuja centralidade se estabelece na coisificação e capitalização dos sujeitos. A obra resenhada nos ajuda a analisar as dimensões atuais políticas, sociais, culturais do nosso país e a problematizar os discursos que emergem do embate político-ideológico brasileiro e ainda a pensar estratégias de união e politização de nossas ações como forma de promover uma democracia radicalmente democrática. Democracia esta em que as diferenças sejam respeitadas e todas as vidas sejam valorizadas, não pelo valor monetário empregado pelo neoliberalismo cisheteronormativo, mas das vidas dignas de serem vividas em igualdade e liberdade.


Resenhista

Crislanne Maria dos Santos – Mestranda em História pelo Programa de Pós-Graduação em História (PPGH), da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), onde desenvolve pesquisa sobre prostituição feminina em Maceió, nas décadas de 1970-1980. É integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas em História, Gênero e Sexualidade (GEPHGS/CNPq). E-mail: crislanne.santos@outlook.com


Referências desta resenha

MARTINS, Ana Claudia; VERAS, Elias Ferreira. Corpos em Aliança: Diálogos Interdisciplinares sobre gênero, raça e sexualidade. Curitiba: Appris, 2020. Resenha de: SANTOS, Crislanne Maria dos. Corpos em aliança: Diálogos interseccionais. Crítica Histórica. Maceió, v.11, n.22, p.457-461, dez., 2020. Acessar publicação original [DR]

SCHMIDT Benito B. (Aut), Flávio Koutzii: Biografia de um militante revolucionário. De 1943 a 1984 (T), Editora Libretos (E), LEMOS Daniel de Souza (Res), Crítica Histórica (CHr), Flávio Koutzii, Biografia, Revolução, Cidade de Porto Alegre, América – Brasil, Séc. 20

Com o estudo a respeito da trajetória do militante revolucionário gaúcho Flávio Koutzii, o historiador e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Benito Schmidt consagra-se como uma referência importante na historiografia especializada no campo biográfico. Após 10 anos de pesquisas com consultas a sete arquivos, (além do acervo pessoal do biografado), a 20 periódicos e cerca de 60 entrevistas, Schmidt constrói a história de vida do seu personagem, até o seu quadragésimo primeiro ano de vida, quando Koutzii retornou definitivamente para o Brasil e reconstruiu sua vida pessoal e política na sua terra natal, Porto Alegre. Em 20 de março de 2020 Flávio Koutzii completou 77 anos e eventualmente opina sobre os grandes temas nacionais, a partir de um ponto de vista marxista que consolidou ao longo de sua vida.

O texto de Schmidt é dividido em cinco partes, contando ainda com uma introdução – onde faz uma discussão teórica sobre o gênero biográfico – uma conclusão e um posfácio escrito pelo próprio Koutzii. O livro traz, ainda, uma contribuição de Guilherme Cassel (ministro do Governo Lula e companheiro de partido de Koutzii) e uma lista das fontes consultadas e entrevistas realizadas, bem como a bibliografia. Todo o projeto de pesquisa foi financiado pela CNPQ-CAPES, FAPERGS e foi desenvolvido com apoio de bolsistas ligados à graduação e à pós-graduação do Departamento de história da UFRGS.

O estudo biográfico sobre Flávio Koutzii aborda apenas a primeira metade de sua vida, em razão do medo de não conseguir concluir uma pesquisa sobre a totalidade da vida do militante internacionalista. Inclusive o próprio biografado não se agradou desse recorte, “recordo que ele não ficou satisfeito com a proposta de interromper a narrativa biográfica em 1984″ (Schmidt, p.15), pois havia participado de eventos importantes depois desse ano. Porém, o autor delimita da seguinte maneira o período analisado na biografia:

acredito que o período abordado nas páginas que seguem tem unidade suficiente para ser tratado em separado. Ele abrange os anos de formação de Flávio, seu ingresso na esquerda e, sobretudo, sua atuação no Brasil e na Argentina em prol da implementação do socialismo em um contexto marcado pela emergência no subcontinente de violentas ditaduras de segurança nacional, seguida pela prisão e pelo exílio” (p. 14)

O autor da biografia e o biografado tinham propósitos distintos em relação à pesquisa. O primeiro “querendo fazer uma pesquisa acadêmica sobre um personagem cujos percursos muito pode nos contar a respeito da história latino-americana” (p.18) o segundo “buscando garantir a inscrição de sua vida e dos valores nos quais acredita em uma narrativa capaz de fazer jus (…) à densidade e complexidade de sua história e de sua geração”(p. 18). Além disso, “Flavio queria registrar o importante legado da participação do PT no parlamento e no governo do RS, de modo a transmiti-lo às gerações futuras como uma experiência a ser avaliada” (p. 16). Nota-se pelas citações a disputa pela História e pelas Memórias a serem contadas e seu objetivo.

Sobre o papel da biografia no campo historiográfico Schmidt investiu um número de páginas ponderando com os grandes teóricos que se debruçaram sobre o assunto e, tratando também da questão da Memória. Nomes como Pierre Bourdieu – o crítico do gênero que classifica como a “ilusão biográfica” – Michael Frisch, Walter Benjamin, Michael Pollak, Maurice Halbwachs, Anne McClintock e vários outros se destacam na justificativa teórica que Schmidt dá à pesquisa que desenvolveu.

Ainda, refletindo sobre o seu papel como biógrafo, Schmidt pondera “religuei Flávio a pessoas que ele não via há muito tempo (…) Fui mediador para a troca de lembranças, mensagens de afeto, (…) participei do enquadramento das lembranças dessas pessoas e (…) pude ouvir algumas de suas memórias subterrâneas” (p. 24). Benito Schmidt também informa, na introdução as fontes pesquisadas: notícias de jornal, prontuários policiais, cartas, registros escolares, fotografias e, principalmente, depoimentos orais, que são a base do seu trabalho.

O primeiro capítulo da biografia de Koutzii denominado “Meu DNA político e ideológico” caracteriza as origens do protagonista da história. Filho de pais judeus – Jacob e Clara – habitantes do tradicional bairro da comunidade judaica porto alegrense, o Bonfim, Koutzii foi um menino tímido. Seu pai havia nascido na Rússia e emigrado ainda criança para o Brasil. Quando moço vinculou-se ao Partido Comunista Brasileiro, PCB, militou na juventude comunista e distribuiu o jornal do partidão, A Classe Operária. Jacob foi o primeiro crítico de cinema de Porto Alegre e participou da fundação da Associação Riograndense de Imprensa em 1935. A mãe de Koutzii, Clara, aparece com destaque no quarto capítulo, quando articula e protagoniza a campanha de libertação de Flávio, da prisão argentina.

Jacob Koutzii, que trabalhava numa loja de calçados (Casa Princesa, na avenida Voluntários da Pátria), gostava mesmo era de escrever crítica dos filmes veiculados nos cinemas da capital gaúcha. Inclusive Jacob foi um dos fundadores do Clube de Cinema de Porto Alegre em 1948. Mas, as mais importantes lembranças que Flávio tem do pai são as histórias que lhe contava:

A epopéia do Gueto de Varsóvia era uma das histórias – “meio românticas e meio épicas” – que Flávio ouvia repetidamente de seu pai (“cem vezes”, afirma hoje, hiperbolicamente) quando criança. A outra diz respeito à Batalha de Stalingrado. Ambas tratam da resistência ao nazismo: uma por parte de judeus, outra por parte de comunistas. (pp. 43-44)

Um aspecto muito importante na formação de Flávio Koutzii foi a sua ascendência judaica. Não judaísmo religioso, afinal o próprio Jacob já era ateu, mas a questão étnico-cultural. Pertenciam à comunidade de “judeus vermelhos”, ou seja, com tendências esquerdistas. Ainda no primeiro capítulo é mencionada a irmã de Flávio, Marília Koutzii, que segundo os depoimentos era “avançada” para a sua época. Ela, assim como o irmão, foi militante de organizações clandestinas de esquerda, viveu exilada na Argentina e faleceu em 1996 de câncer.

Essa parte da biografia termina abordando o período em que Koutzii estudou no Colégio de Aplicação, fundado em março de 1954, ligado ao Instituto de Filosofia da UFRGS e voltado à formação de professores. Dessa época Flávio recorda do professor de literatura Carlos Appel, embora sua matéria preferida fosse História: “Na literatura, o nosso mestre ali por muitos anos foi o Carlos Appel, que era um grande provocador, positivamente” (p. 83) O gosto e a facilidade com a História devem-se à boa influência do pai Jacob, de acordo com Koutzii. É dessa época, ainda, o contato e a paixão por Sonia Pilla, sua companheira.

O segundo capítulo “A potência dos anos 60” trata do período em que Koutzii esteve cursando Filosofia e Economia na UFRGS, a partir de 1963. Nesse mesmo ano foi recrutado por Marco Aurélio Garcia para o PCB. O gosto pelo estudo e pelas leituras leva Koutzii a se aprofundar nas obras de Caio Prado Jr, Celso Furtado, Rui Mauro Marini, Emir Sader e outros teóricos marxistas.

Ainda em 1963 Koutzii foi eleito presidente do Centro Acadêmico Franklin Roosevelt, da Faculdade de Filosofia e, em 1966, entra para a direção estadual do PCB. Este, inclusive, foi importante na eleição de Koutzii em virtude de seu enraizamento na UFRGS. Além de Marco Aurélio Garcia, Flávio inicia sua longa amizade, e militância socialista, com Maria Regina Pilla, Luiz Paulo de Pilla Vares e Raul Pont, que em 1968 foi eleito presidente do DCE Livre da UFRGS.

Foi com estes companheiros que Flávio se afastou do PCB, criando a Dissidência Leninista do Rio Grande do Sul, que mais adiante será o núcleo fundador do POC, Partido Operário Comunista. Organização que o levará à França, à Argentina e o ingresso nos quadros da IV Internacional. Antes de sair do país, em razão do AI 5, Flávio ainda teve uma experiência como livreiro ao inaugurar na Avenida João Pessoa, em frente a Faculdade de Direito da UFRGS, a Livraria Universitária.

Nas palavras do biógrafo Schmidt,

O estabelecimento foi uma maneira encontrada por ele (Koutzii) para garantir proventos financeiros; contudo, para além de servir a essa função prática, teve também um papel político importante, tanto como lugar de sociabilidade de partidários ou no mínimo simpatizantes de ideias de esquerda (p. 159)

Apesar de Koutzii caracterizar como “atividade comercial insensata”, a Livraria Universitária permitiu que ele tivesse uma espécie deliberação para militar no POC, uma vez que este não possuía estrutura para profissionalizar seus quadros. Além disso, serviu como um ponto de referência para jovens leitores que não encontravam certas bibliografias na academia, por exemplo as obras de Lênin e Althusser, que Flávio buscava periodicamente no centro do país, São Paulo e Rio de Janeiro. Ocasiões estas que também serviam para fazer contatos com companheiros de fora do RS.

A partir de dezembro de 1968 quando foi publicado o Ato Institucional nº5 a coisa “engrossou” e, Flávio era uma liderança estudantil e partidária relativamente conhecida. Em razão de ser presidente do centro acadêmico havia aparecido nos jornais de Porto Alegre, portanto estava na mira do DOPS. Em dezembro de 1970 Koutzii decide, com alguns companheiros, migrar para São Paulo, porém, lá a situação estava pior. É quando aparece uma interessante oportunidade: a proposta de adesão à IV Internacional, organização fundada por Leon Trotsky em 1938. Flávio então sai do Brasil para retornar apenas em 1979, quando foi sancionada a Lei da Anistia.

O Capítulo Argentino – é como se chama a terceira parte do livro – trata dos dramas existenciais e políticos vivenciados por Koutzii na Argentina. Ao sair do Brasil Flávio fez o seguinte percurso: foi para Montevidéu de onde rumou de barca para Buenos Aires, daí partiu de ônibus ruma a Santiago, no Chile, finalmente seguindo para Paris onde permanece por seis meses, quando começa o processo de efetivo alinhamento à Quarta Internacional.

Este capítulo de 116 páginas, certamente, é o que a leitura flui mais lentamente. Com cerca de 105 citações de trechos das entrevistas realizadas com Koutzii e com seus contemporâneos, amigos e familiares. Aquelas são justificadas por Schmidt da seguinte maneira “em alguns momentos, optei por transcrever longos trechos das entrevistas (obviamente adaptadas por mim à linguagem escrita) que considerei citáveis, pois neles, por sua força estética, os acontecimentos no tempo se imobilizaram em imagens” (pp. 24-25).

Quando ainda estava na França (antes de se fixar na Argentina em 1972) Koutzii ingressa na IV Internacional dirigida pelo economista belga Ernest Mandel e, da qual também faziam parte outros nomes de expressão como Lívio Maitan, Daniel Bensaïd, Michael Löwy e Tariq Ali. “Por meio da IV Internacional, os militantes da Tendência acreditavam estar “descobrindo o mundo”; como resultado, para eles, era hora de agir no mundo”. (p.213) Com esse propósito Flávio, Maria Regina Pilla, Paulo Paranaguá e Luiz Eduardo Merlino arrumam as malas rumo à América Latina, sendo que o Brasil seria o destino final.

Uma série de reviravoltas impede que o plano seja efetivado. A morte de Luiz Eduardo Merlino, o primeiro do grupo a retornar ao Brasil, que caiu nas garras do major Carlos Brilhante Ustra, impactou Flávio e seus amigos que já estavam no Chile. Koutzii chega na Argentina em 1972, que também estava sob a vigência de uma ditadura militar iniciada em 1966.

Naquele país Flávio ingressa no PRT, Partido Revolucionário dos Trabalhadores, ligado à IV Internacional, e dirigido pela fração do trotskista Nahuel Moreno. Em razão de divergências sobre a luta armada, Koutzii torna-se líder da Fração Vermelha do PRT, cujos conflitos daí decorrentes são apresentados detalhadamente ao longo do capítulo. É também nesse momento, que inicia o relacionamento com Norma Espíndola, que vai durar por muitos anos.

Além de se dedicar ao estudo e à formulação política, Flávio participa de várias ações práticas promovidas pela sua fração na Argentina com intuito de enfrentar via luta armada o governo do país. Ações como apropriação de armas de policiais e seguranças, expropriações de máquinas de escrever, mimeógrafos e fotocopiadoras e, também, materiais cirúrgicos, foram as mais praticadas pelos membros da Fração Vermelha.

Entre 1973 e 1976 há uma curta abertura política na Argentina, a ditadura é temporariamente abolida e é restaurada a democracia. Volta do exílio Juan Domingo Peron, que é eleito presidente da República, tendo como vice sua esposa Isabelita Peron. Nesse breve período o peronismo se divide entre esquerda e direita, e após a morte de Peron, grupos conservadores ligados ao exército passam a atuar sistematicamente assassinando e sequestrando militantes de esquerda e sindicalistas. É nesse contexto que Flávio Koutzii será sequestrado em maio de 1975 em pleno governo “democrático” de Isabelita Peron.

É no capítulo 4 que biógrafo e biografado chegam “no coração das trevas”, de acordo com a figura de linguagem utilizada por Koutzii para sintetizar o que foram seus anos nos cárceres argentinos. A dor física e psicológica chega ao extremo, quando “a morte passa a ser uma possibilidade próxima como nunca antes o fora” (p.311).

De acordo com Schmidt “a análise histórica precisa reconhecer seus limites para representar determinados eventos traumáticos e aceitar que seus instrumentos conceituais e metodológicos são insuficientes para explicar a monstruosidade de certos fatos” (p. 312). Com isso ele está expressando a dificuldade de transpor em palavras o sofrimento daqueles que passaram pela tortura, experiências brutais que foram além do limite humano. Mesmo para o historiador que não sofreu pessoalmente tais agressões e distante quarenta anos dos fatos narrados a carga de sentimentos é difícil de agüentar: “certas vezes, depois de realizar as entrevistas, tive que caminhar pelo parque, tomar um sorvete, ver um filme alegre a fim de recuperar certa confiança na humanidade.” (p. 312)

Schmidt reconstrói a trajetória prisional de Koutzii desde o começo em La Plata, nome da cidade e do presídio, que fica a 60 quilômetros de Buenos Aires, onde permaneceu por pouco mais de três anos. Depois Flávio foi transferido para a prisão de Rawson, localizada na província de Chubut, a 1500 quilômetros da capital do país, na distante e gelada Patagônia. Nesta prisão, considerada a mais dura e violenta, Koutzii chegou já tendo cumprido 40 meses no cárcere. Em função da campanha internacional pela sua libertação, que já havia iniciado a essa altura, Flávio foi transferido para a prisão de Coronda, localizada entre Rosário e Santa Fé, a quatro horas de Buenos Aires. Por fim, em maio de 1979 Koutzii é removido para Caseros, na capital, para seu último paradeiro entes de ganhar a liberdade e ser expulso para a França.

Além da análise que Benito Schmidt faz, a partir das entrevistas que realizou, das experiências vivenciadas e sofridas por Flávio nos cárceres argentinos, o próprio biografado elaborou um trabalho acadêmico a respeito dessa fase de sua vida. “Pedaços de Morte no Coração” foi escrito enquanto estudava sociologia na École de Hautes Études en Sciences Sociales, de Paris, para onde emigrou após sua libertação. O estudo foi publicado no Brasil em 1984 e, também foi amplamente utilizado na elaboração da biografia feita por Schmidt. Ao analisar o sistema e o contra sistema carcerário que conheceu, Koutzii se ampara na teoria de Michel Foucault sobre as instituições disciplinares.

O autor apresenta amplamente a campanha internacional movida por Clara Koutzii, a mãe de Flávio, pela libertação do filho. Esta ação contou com a ajuda da companheira argentina de Flávio, Norma Espíndola, que havia sido libertada e mudou para o Brasil, com o objetivo de viver em maior segurança do que tinha em seu país. Juntas elas promoveram inúmeras articulações e movimentos pela liberdade do biografado.

O advogado e deputado federal Airton Soares fora recrutado para fazer a defesa de Koutzii, que foi efetivada com brilhantismo. Além disso, agitaram inúmeros abaixo-assinados que foram assinados por ilustres intelectuais europeus do nível de Simone de Beauvoir, Michel Foucault, Nicos Poulantzas, Cornélius Castoriadis, Jacques Ranciére, entre outros. Infelizmente o pai de Flávio não participou de tais movimentações, pois havia falecido pouco depois da prisão do filho, em agosto de 1975. Todos estes dramas apresentados no capítulo quatro fazem com que o próprio autor o considere o mais dramático, concluído com a libertação de Koutzii em junho de 1979, ou seja, poucos meses antes da entrada em vigor da Lei da Anistia no Brasil, ocorrida em agosto daquele ano.

O quinto e último capítulo da biografia, aborda o período que Koutzii viveu exilado na França, cujo título resume seu sentimento a respeito da cidade das luzes: “Para mim Paris não foi uma festa”. Koutzii poderia ter voltado ao Brasil em função da Anistia, do qual se beneficiou, porém optou por ficar na Europa “decidi permanecer na França para terminar o curso de Sociologia e trabalhar psiquicamente minha experiência nas prisões argentinas” (p.433).

O encerramento da biografia é a parte cuja leitura flui mais rapidamente. Schmidt aborda três aspectos da vida do seu biografado: os primeiros tempos na França – a vida pessoal e profissional de Koutzii – a escrita da tese que foi orientada por Claude Lefort e, a volta ao Brasil. Em relação ao estudo que Flávio realizou, Schmidt descreve detalhadamente o seu teor, o papel do orientador e a influência da obra de Michel Foucault, especialmente o livro Vigiar e Punir.

Embora Benito Schimdt negue a intenção de realizar uma análise psicológica do seu biografado, o texto como um todo adentra recorrentemente nessa seara. As citações de longos trechos das entrevistas, muitas vezes são comentadas com perspectiva psicológica, e isso pode ser um dos aspectos negativos do trabalho, que torna a leitura cansativa por vezes. Porém, o autor fez jus aos dez anos de pesquisa e ambos os propósitos, do biógrafo e do biografado foram atingidos. Mas, é preciso que o leitor confirme, ou conteste essas impressões, fazendo a leitura do livro.


Resenhista

Daniel de Souza Lemos – Doutorando em História, Mestre em Ciência Política, graduado em Direito e História, todos pela UFPel. Especialista em Sociologia pela UFRGS.


Referências desta resenha

SCHMIDT, Benito B. Flávio Koutzii: Biografia de um militante revolucionário. De 1943 a 1984. Porto Alegre: Editora Libretos, 2017. Resenha de: LEMOS, Daniel de Souza. Uma vida por uma causa: Flávio Koutzii e a luta pelo socialismo. Crítica Histórica. Maceió, v.11, n.22, p.462-470, dez., 2020. Acessar publicação original [DR]

COSTA João Paulo Peixoto (Aut), Na lei e na guerra: políticas indígenas e indigenistas no Ceará (1798-1845) (T), EdUFPI (E), ROCHA Adauto Santos da (Res), Crítica Histórica (CHr), Políticas Públicas, Mobilizações Indígenas, Legislações Indigenistas, Ceará, Séc. 18-19, América – Brasil

O minado campo de disputas envolvendo o protagonismo da escrita e, consequentemente, as escolhas assumidas ao longo do percurso acadêmico, continua a colocar em “prova de fogo” a relevância histórica de diversas obras produzidas sobre os povos indígenas no Brasil, e, essencialmente, na Região Nordeste. O exotismo buscado por vários pesquisadores coloca em questão a legitimidade das mobilizações em busca de direitos, amparadas em legislações e vultosos eventos militares ocorridos entre os séculos XVIII e XIX, definidores do Estado nacional brasileiro.

Não faria sentido, pois, escrever uma história indígena ou tratar os índios na História, desvencilhando-a do presente, mesmo sendo remetida aos últimos dois séculos, diante da ausência de imparcialidade na escrita, em grande medida, utilizada como instrumento de denúncia às injustiças sociais ocorridas com os “silenciados” e “soterrados” pelas narrativas hegemônicas. A partir de “novas lentes”, o texto ora resenhado, procurou evidenciar a participação dos indígenas como protagonistas da/na história, através de um fecundo e frondoso caminho fragmentado, micro-histórico.

O livro do professor João Paulo Peixoto Costa trata do envolvimento de indígenas da então Província do Ceará em importantes conflitos ocorridos no Brasil entre fins do século XVIII e meados do XIX. A questão que transcende o texto é a de como os indígenas agiram a partir de interesses próprios, aliando-se a outros povos e ao poder estatal, em momentos oportunos, para colocar em prática a capacidade de socialmente construir a autonomia, inclusive territorial, mobilizados pelos diferentes usos em cargos políticos e militares no Ceará Setecentista/Oitocentista.

Com ampla pesquisa documental em distintos e importantes acervos históricos do Brasil e do exterior, como o Arquivo Histórico Ultramarino (AHU); o Arquivo Nacional (AN); o Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC); o Arquivo Público do Estado do Piauí (APEPI) e a Biblioteca Nacional (BN), o livro, ora publicado pela Editora da Universidade Federal do Piauí (EdUFPI), foi, originalmente, uma Tese de doutorado em História Social defendida na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), em 2016.

Acertadamente, a obra foi dividida em duas partes. A primeira delas, “Na Lei”, composta por quatro capítulos, discutiu as relações entre os indígenas na Província do Ceará e a legislação vigente nos citados períodos históricos. No primeiro capítulo, o autor tratou sobre a permanência do Diretório dos Índios em território cearense, desconstruindo a consolidada tese do “vazio legislativo”, demonstrando cabalmente que, na ausência de uma legislação atualizada, os parâmetros anteriores serviriam como atenuantes para regular os aldeamentos indígenas, no caso específico, o “vazio legislativo” foi “preenchido” pela continuidade do Diretório, abolido oficialmente em 1830, reestabelecido no Ceará em 1843.

No segundo capítulo, foram discutidas as vinculações entre a atuação extraoficial do Diretório dos Índios no Ceará e a formação do Estado nacional brasileiro, com a extinção dos cargos militares indígenas e o gradativo desamparo estatal com a independência do Brasil, colocando em suspeição anteriores “garantias” de liberdade, autonomia e cidadania a grupos marginalizados. Os indígenas, alinhavados aos anseios do antigo monarca português seriam súditos do novo reinado? Que lugar ocupavam no desenvolvimento da nação? Seriam eles cidadãos brasileiros? Distante do espectro da nacionalidade unificada, o autor tentou evidenciar os interesses particulares a cada província, ou, pelo menos, às elites provinciais com relação às populações indígenas.

No terceiro capítulo, o autor discorreu sobre a participação legislativa indígena no conjunto normativo e o “espaço social imaginado” para os índios no Império recém instituído nas Américas, limitando a autonomia, liberdade e cidadania dos indígenas, fornecedores de mão de obra e aumentativos do poderio exercidos pelos potentados, cujo interesse principal, além da exploração do trabalho, fora a usurpação territorial.

No capítulo quatro, foi analisado o jogo de interesses entre os diversos atores políticos e sociais no cotidiano da Província do Ceará, como os fazendeiros, integrantes do governo e os indígenas. Tornava-se evidente a tentativa de tutelar os povos indígenas a partir de alterações legislativas associadas aos transitórios períodos no estrato social do império. Os “vassalos” da Coroa portuguesa, foram transformados em “súditos” após a independência do Brasil, categoria ilegítima para os indígenas, devido ao auto reconhecimento como “cidadãos” brasileiros, camada que previa a ilegalidade da tutela e legítima posse territorial, embora estivessem despossuídos de garantias fidedignas judicialmente, ao tempo em que eram notórias as invasões de fazendeiros nos territórios indígenas, face a arena de disputas montada com a negligência e/ou omissão do Estado.

A segunda parte do livro, “Na guerra”, também composta por quatro capítulos, analisou as estratégias utilizadas para o efetivo recrutamento militar dos índios entre o Antigo Regime português e o recém-formado Estado nacional brasileiro. Foi interesse do autor, evidenciar as relações estabelecidas entre os indígenas, a Província do Ceará e as conexões militares com unidades provinciais adjacentes.

O quinto capítulo centrou-se nas discussões sobre o recrutamento dos indígenas no Ceará em “Corpos de Ordenança”, onde, pelo caráter ambíguo do exercício militar, o soldado indígena assumia atribuições militares e atuava como mão de obra, devido a inviabilidade de combater em localidades distantes dos aldeamentos. A proeminente participação indígena como força militar e de trabalho resultou na concessão de mercês e honrarias, inclusive, hereditariamente, pelo reconhecimento dos serviços bélicos prestados à monarquia ibérica, continuados com a presença de vilas de índios que deveriam representar a legislação portuguesa nos sertões da colônia.

No sexto capítulo, foi tratada a participação indígena em diversos e notáveis cargos militares. Reiteradamente foram suscitados debates, a partir das fontes consultadas, sobre as destacadas patentes ocupadas por cumprirem os desígnios da Coroa e atenderem, até certo ponto, às façanhas e interesses particulares dos subordinados aldeados. A formação de “uma elite indígena” pôs em oposição os interesses pessoais de prestígio militar e equidade social nos aldeamentos. Na prática, a atuação indígena nas Revoltas oitocentistas e em tantos outros eventos bélicos pode ser entendida como a formação de grupos produtivos e subordinados à “sua majestade”. Além do comando militar, cabia aos oficiais indígenas organizar socialmente as vilas, estimular e fiscalizar frentes de trabalho, para incentivar a produção econômica.

O capítulo sétimo, analisou o envolvimento indígena nos críticos momentos políticos brasileiros, ocorridos entre 1821 e 1825, tratados pelo autor como “guerras de independência”. Tratara-se de redefinir a autonomia e liberdade dos chamados “grupos subalternos”, atribuindo, pois, um novo significado a autonomia e liberdade, conceitos tão caros aos aldeamentos cearenses, sobretudo, pela indefinida posse territorial. Uma aliança com a vizinha Província do Piauí para expulsar os apoiadores das Cortes portuguesas e defender a Independência, pôs em operacionalidade o recrutamento de “voluntários”. Embora tenham sido negligenciados por uma vasta produção bibliográfica sobre o tema, alguns grupos de recrutados indígenas combateram os opositores apoiadores dos portugueses, com precários armamentos e ausência de preparo militar em decisivas batalhas pela independência, como a de Jenipapo, por exemplo. A participação indígena no processo da Independência não resultou de manipulações por agentes externos, a dimensão social os colocava em meio a uma “guerra” que também era deles.

O oitavo e último capítulo discorreu sobre o envolvimento dos indígenas na Província do Ceará em insurreições liberais oitocentistas: a Revolução Pernambucana de 1817, a Confederação do Equador de 1824 e a Balaiada, entre 1839 e 1841. Chamados de “valorosos vassalos”, foram convocados pelo poder provincial para debelar o insuflado movimento liberal pernambucano contra a crescente cobrança tributária exercida pela Coroa para a manutenção dos gastos exorbitantes praticados no Rio de Janeiro, então Capital do Império. Em oposição às garantias territoriais indígenas, as elites de Fortaleza e o recém coroado Dom Pedro II, propunham o acúmulo agrário e ameaçavam a autonomia dos aldeamentos cearenses.

As desagradáveis ambições foram agravantes para a formação de alianças entre os indígenas na Província do Ceará com os revoltosos pernambucanos, líderes da Confederação do Equador, movimento revolucionário contestatório que propôs a instauração de um governo republicano em Pernambuco, que seria fortalecido com o enfraquecimento do absolutismo imperial.

Após alguns meses, a Confederação foi sucumbida pelo contra-ataque imperial, deixando os indígenas da Província do Ceará sem escolhas. A aliança com o governo imperial foi atenuada com a promessa de “moderação” nas ações anti-indígenas, embora o fim da Confederação do Equador tenha fortalecido as invasões aos territórios indígenas no Ceará, marcadas por expulsões e limitações no pleno direito da cidadania.

No caso da Balaiada, ocorrida na Província do Maranhão, os revoltosos, compostos por grupos socialmente desprestigiados, reivindicavam justiça para os desmandos políticos e abusos de poder na região. Por serem o elo mais fraco, a precarização trabalhista e as difíceis condições de vida encorparam o movimento revoltoso. Insatisfeitos com as injustiças sociais e avanço dos latifundiários, os indígenas na Província do Ceará apoiaram os insurgentes maranhenses, cujos grupos de agricultores, de acordo com a documentação analisada pelo autor, poderia ter considerável quantidade de “índios da Ibiapaba” que haviam migrado para o Maranhão em períodos de longas estiagens. Sufocado entre 1840 e 1841, o movimento revolucionário reverteu os indígenas revoltosos em “recrutados” compulsórios para a Armada Imperial. A categoria de cidadãos não atendeu aos anseios dos índios que, viram a formação do Estado nacional receosamente como uma maneira de excluí-los do processo da cidadania, e, portanto, negando-lhes legítimos direitos.

Nesse livro, do jovem e promissor pesquisador João Paulo, os índios na Província do Ceará não foram vistos como “meros fantoches” a mercê e aos desígnios das autoridades provinciais e imperiais. Os distintos interesses no processo legislativo e as façanhas militares indígenas, a partir de uma minuciosa revisão bibliográfica e análise documental, atribuíram novos sentidos para antigos conceitos historiográficos, como o “vazio institucional” pós Diretório Pombalino, que, como bem evidenciou o autor, manteve-se em vigor na Província do Ceará até meados do século XIX.

Distanciado do “congelamento” historiográfico, o autor demonstrou que os eventos históricos ocorridos no século XIX pelas diversas províncias do Nordeste, não ocorreram dissociados de negociações, legislações e conflitos. A proposta de um estudo pormenorizado analisou as entranhas e a rede de conexões entre a Província do Ceará, as circunvizinhas e o Império do Brasil, considerando os indígenas como importante engrenagem nos rumos e funcionamento da nação.

Nos últimos 30 anos, vários pesquisadores em História, Antropologia e ciências afins, passaram a estudar os índios como protagonistas, e, portanto, partícipes dos processos históricos nacionais e internacionais. A ampliação nas dimensões historiográficas e as abordagens conectadas com outros campos do conhecimento contribuíram para a formação da Antropologia Histórica, perspectiva metodológica muito bem desempenhada pelo autor.

Para além de uma produção historiográfica vertida na compilação de informações, as análises realizadas pelo autor demonstraram a profundidade em escrever operando a partir de diferentes escalas. O livro publicado perpassa a produção doutoral, assumindo um caráter inovador do ponto de vista metodológico, desconstruindo espaçadas e malversadas situações históricas e decisões estatais que colocavam sob suspeição o lugar ocupado pelos indígenas nas guerras do Oitocentos e nas discussões políticas do Império do Brasil.


Adauto Santos da Rocha – Mestre em História na Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), vinculado a linha de pesquisas: Cultura, poder e identidades. Tem se dedicado a pesquisar as mobilizações dos indígenas Xukuru-Kariri e os processos sócio-históricos de migrações para trabalho no século XX. Integra o Grupo de Pesquisas em História Indígena de Alagoas (GPHIAL) e realiza pesquisas sobre os povos indígenas em Alagoas desde 2015.


Referências desta resenha

COSTA, João Paulo Peixoto. Na lei e na guerra: políticas indígenas e indigenistas no Ceará (1798-1845). Teresina: EdUFPI, 2018. Resenha de: ROCHA, Adauto Santos da. Mobilizações indígenas e legislações indigenistas no Ceará Setecentista/Oitocentista. Crítica Histórica. Maceió, v.11, n.22, p.471-475, des., 2020. Acessar publicação original [DR]

URWAND Ben (Aut), O pacto entre Hollywood e o nazismo: como o cinema americano colaborou com a Alemanha de Hitler (T), GIL Luis Reyes (Trad), LeYa (E), MENEZES NETO Geraldo Magella (Res), Crítica Histórica (CHr), Hollywood, Nazismo, Europa – Alemanha, Adolph Hitler, Séc. 20, América – EUA

É bem conhecida a produção de filmes antinazistas pelos estúdios de Hollywood no período da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Marc Ferro identifica que enquanto no cinema da França ainda não havia um inimigo definido, se era o nazismo ou o comunismo, nos Estados Unidos a escolha já havia sido feita pelo combate ao nazismo antes mesmo de 1939, sendo este fenômeno mais claro no cinema do que no mundo da palavra escrita, no jornalismo ou na pesquisa.1 Assim, construiu-se uma memória da “resistência” do cinema norte-americano contra o totalitarismo, amplamente aceita e difundida ao longo do tempo.

Indo em uma direção contrária, o livro O pacto entre Hollywood e o nazismo: como o cinema americano colaborou com a Alemanha de Hitler, de Ben Urwand, originalmente de 2013, procura desmistificar a memória da “resistência” de Hollywood na chamada “Era de Ouro” do cinema, contra o nazismo. Urwand é doutor em História dos Estados Unidos pela Universidade da Califórnia, mestre em Cinema e Estudos de Comunicação pela Universidade de Chicago e junior fellow2 da Society of Fellows, da Universidade de Harvard. A ideia para o livro foi a partir de um comentário do roteirista e romancista Budd Schulberg sobre Louis B. Mayer, o chefe da MGM, de que este, na década de 1930, projetava filmes para o cônsul alemão em Los Angeles e cortava tudo aquilo que o cônsul objetasse. (p. 14).

O autor dedicou 9 anos de pesquisa para investigar o tema, utilizando fontes de arquivos dos EUA e da Alemanha, tais como: jornais, cartas, roteiros de filmes, registros de copyright, materiais de departamentos e órgãos de governo dos EUA; cartas das filiais alemãs das produtoras de Hollywood; relatos do cônsul alemão em Los Angeles; e entrevistas. O livro é dividido em 6 capítulos, mais Prólogo e Epílogo.

Urwand identifica uma preocupação dos alemães com os filmes de Hollywood já na década de 1920, momento em que o país tentava se reconstruir após a derrota na Primeira Guerra Mundial: o governo questionava como os filmes retratavam os alemães, seja por meio de estereótipos de vilões brutais com sotaque carregado ou os que depreciavam o exército alemão durante a guerra. Os nazistas também se preocupavam: em dezembro de 1930, fizeram manifestações contra a exibição de Sem novidade no front, sobre a Alemanha no conflito mundial. Já em 1932, o governo estabeleceu no “Artigo Quinze” da “Lei de cotas” que poderia recusar a autorização para exibição de filmes de Hollywood se estes veiculassem “no mercado mundial filmes cuja tendência ou efeito seja pernicioso ao prestígio da Alemanha.” (p. 58). Além disso, enviou um agente para os EUA que tinha contato com as produtoras para investigar e avaliar os filmes que estavam sendo produzidos. Hitler também era um admirador dos filmes norte-americanos: tinha o hábito de toda noite, antes de dormir, assistir a um filme. (p. 17).

A ascensão de Hitler ao poder em 1933 colocou uma nova exigência às produtoras: o afastamento dos judeus que revendiam os filmes na Alemanha. Após várias negociações, as empresas aceitaram essas exigências para manter seus negócios no país, o que o autor denomina de “colaboração”. Urwand aponta o paradoxo de que estas mesmas empresas que negociaram com “o regime mais antissemita da história” foram criadas justamente por imigrantes judeus descendentes do Leste Europeu, como William Fox, fundador da Fox; Louis B. Mayer, diretor da MGM; Adolph Zukor, diretor da Paramount; Harry Cohn, diretor da Columbia Pictures; Carl Laemmle, diretor da Universal Pictures; e Jack e Harry Warner, que dirigiam a Warner Brothers. (p. 75).

O primeiro momento crucial apontado pelo autor na colaboração dos estúdios de Hollywood foi o boicote da produção do filme antinazista The Mad Dog of Europe, que tinha um roteiro sobre uma família judia perseguida na Alemanha. Os produtores não conseguiram o apoio necessário para a sua realização. A partir daí, há uma ausência de personagens nazistas e judeus nos filmes da década de 1930, para preservar os interesses comerciais dos estúdios na Alemanha. (pp. 108-109). Nesse contexto, Urwand observa que os nazistas examinaram mais de 400 filmes, separando-os em categorias, como “bom”, “ruim” e “desligado”, as mesmas que Hitler estabelecera desde o início. (p. 109).

Os filmes “bons” eram aqueles que transmitiam ideias que coadunassem com a ideologia do nazismo, como O despertar de uma nação, Lanceiros da Índia e O pão nosso. Os três abordavam histórias sobre liderança: o primeiro, sobre Jud Hammond, um presidente dos Estados Unidos que decretava o recesso do Congresso dos EUA; o segundo, sobre o coronel Stone, chefe de um regimento inglês na Índia colonial; o terceiro, trata da trajetória de John Simms, um homem que administra uma fazenda. Estes filmes receberam críticas positivas nos jornais alemães, e também pelas lideranças nazistas, como o Ministro da Propaganda, Joseph Goebbels. Urwand destaca que ao longo dos anos os estúdios de Hollywood supriram a Alemanha com muitos outros filmes similares, pois “haviam descoberto um mercado especial para seus filmes sobre liderança”. (pp. 143-144).

Já os filmes considerados “ruins” eram proibidos ou censurados pelos nazistas por fatores como a questão moral e racial: Tarzan, o filho das selvas, foi proibido um ano após o seu lançamento, pois mostrava “uma mulher civilizada cortejando, amando e protegendo um homem da selva”; Scarface: a vergonha de uma nação, não foi exibido porque “glorificava a vida criminosa e fazia o crime parecer uma profissão legítima”; os filmes de horror eram vetados porque “tinham um efeito imoral, ameaçador”. (pp. 148-149).

Logo após a chamada “Noite dos Cristais”, em novembro de 1938, com a destruição de lares e lojas dos judeus e a onda crescente de medidas antissemitas na Alemanha, o Ministério da Propaganda emitiu uma “lista negra”, contendo os nomes de cerca de 60 personalidades de Hollywood, que eram judeus ou antinazistas. Filmes que tivessem em seus elencos pessoas da lista eram logo descartados para exibição na Alemanha, o que fez com que apenas vinte filmes de Hollywood fossem exibidos no país em 1939. (p. 164).

Mesmo com o aumento da censura, alguns filmes que traziam questões raciais em desacordo com a ideologia nazista foram exibidos: Ramona e Idílio cigano, que tomavam partido de indígenas e ciganos nos conflitos contra os brancos; e Shangai, cujo personagem principal era filho de um pai branco e a mãe era uma princesa da Manchúria. Como se explica tal situação? Urwand levanta a hipótese de que desde que os censores haviam começado a checar as origens raciais do elenco e da equipe técnica, eles passaram a prestar menos atenção ao filme em si, às vezes esquecendo de levar em conta o conteúdo real, por isso “alguns títulos haviam escapado pelos seus dedos.” (pp. 170-171). Já em O trovador da liberdade, em que havia uma referência crítica velada ao fascismo, os resenhistas do filme fizeram uma interpretação diferente, imaginando que o vilão do filme fosse um judeu. Acerca disto, Urwand aponta a ineficácia dos filmes de Hollywood, pois mesmo com críticas ao totalitarismo, as plateias na Alemanha podiam assisti-los e fazer interpretações que se adequassem aos seus propósitos. (p. 175).

No capítulo “Desligado”, o autor detalha a atuação de Georg Gyssling, membro do Partido Nazista e cônsul alemão nos EUA, na intervenção sobre filmes que pudessem conter uma mensagem antinazista. A narrativa de Urwand surpreende ao revelar a influência de Gyssling nos meios de Hollywood: ele conversava diretamente com produtores e diretores, dizendo quais cenas e falas deveriam ser cortadas por, no seu entender, ofenderem os alemães. A ousadia do cônsul alemão era tamanha que no processo da produção do filme The Road Back ele mandou cartas para cerca de 60 pessoas envolvidas no filme – o diretor, o elenco inteiro até o chefe de guarda-roupa – e advertiu-os que quaisquer filmes dos quais participassem no futuro poderiam ser proibidos na Alemanha. (p. 205).

Outros filmes que foram afetados por Gyssling: em A vida de Emile Zola houve o corte nas referências ao personagem Dreyfus ser um judeu; em O lanceiro espião, o cônsul achou que os oficiais alemães não eram retratados de forma positiva; em Três camaradas, a versão final não atacava os nazistas e nem mencionava os judeus; Personal History, que tratava da perseguição de Hitler ao judeus, foi adiado em 1938, e quando lançado em 1940 com o título Correspondente estrangeiro, teve seu roteiro alterado para um típico filme de aventura ambientado em Londres. (pp. 201-219). Além da atuação de Gyssling, um fato que destacava a proximidade dos grandes estúdios, como a MGM, com o regime de Hitler, foi a visita de dez editores de jornais nazistas aos estúdios da empresa em 1939. (pp. 222-223).

1939 também representou um início do distanciamento com os nazistas, com o anúncio da produção da sátira de Hitler feita por Charles Chaplin, o filme O grande ditador; e o lançamento em maio de Confissões de um espião nazista, pela Warner Brothers, que era baseado em um caso real de espionagem nazista nos Estados Unidos. O filme foi alvo de reações violentas, com cinemas vandalizados, críticos foram pressionados a escrever resenhas negativas e Hollywood foi denunciada como uma conspiração judaica. O Ministério do Exterior alemão conseguiu proibir o filme em mais de vinte países (pp. 231-233).

O cenário se altera de vez com em setembro de 1939, com o início da Segunda Guerra Mundial, que afeta drasticamente as rendas dos estúdios de Hollywood. Apesar disso, Urwand ressalta que a guerra “pelo menos era promissora num aspecto: constituía um assunto fabuloso para futuras produções.” (p. 236).

Em junho de 1940 foi lançado pela MGM Tempestades d’Alma, “o primeiro filme antinazista verdadeiramente significativo” (p. 243), sobre uma família de judeus na Alemanha. Mas, mesmo rompendo um padrão ao mostrar os nazistas, o filme teve várias cenas cortadas nas quais os personagens faziam referências ao orgulho de serem judeus. Tal procedimento criava um precedente perigoso: o de que Hollywood deveria atacar os nazistas sem se envolver em nenhuma defesa especial dos judeus. (p. 244). A produção deste filme foi o bastante para o rompimento das relações: em julho de 1940, o governo alemão, baseado no Artigo Quinze, ao considerar que Tempestades d’Alma depreciava a imagem do país, proibiu a distribuição dos filmes de Hollywood, não só na Alemanha, mas nos territórios dominados, como Noruega, Dinamarca e Bélgica.

Na nova conjuntura, entre 1942 e 1945, período da participação dos EUA na guerra, mais de 800 filmes produzidos diziam respeito de algum modo ao conflito mundial. (p. 252). Urwand destaca a influência de um órgão criado pelo governo Roosevelt, o Office of War Information – OWI (Escritório de Informação de Guerra), que continha uma divisão de cinema e examinava os roteiros de Hollywood.3 Nesse contexto, o autor destaca filmes como Casablanca e Rosa de Esperança, que transmitiam mensagens contra o nazismo. Porém, embora antinazistas, Urwand ressalta que os filmes não expuseram o sofrimento dos judeus nos campos de concentração, resquício de anos de colaboração dos estúdios com os nazistas. Mesmo a visita dos executivos de Hollywood à Alemanha derrotada e aos campos de extermínio em julho de 1945, não foi o suficiente para sensibilizar os estúdios para esta questão, que ainda foi ausente dos filmes no pós-guerra. Somente em 1959, com O Diário de Anne Frank, o holocausto judeu surge como tema nos filmes de Hollywood.

A opção do autor em escrever com suas próprias palavras as informações contidas nas fontes do que apenas transcrevê-las, e a escolha da editora em utilizar “notas de fim” torna a linguagem da obra bastante atraente e acessível, visando um público amplo, sem perder o rigor acadêmico. O texto de Urwand transporta o leitor para o terreno das ações humanas, mostrando personagens com seus interesses e suas ambiguidades num período delicado da história mundial, oferecendo ao leitor um sentimento de expectativa a cada capítulo para conhecer a continuidade dos acontecimentos relatados.

Ao longo de todo o livro, Ben Urwand demonstra uma militância em defesa dos judeus, se posicionando de forma bastante crítica em relação às ações dos estúdios de Hollywood na década de 1930 em colaborar com o regime nazista. O autor questiona que, mesmo tendo executivos judeus e mesmo sabendo das perseguições e massacres que os nazistas faziam ao seu povo, amplamente divulgados na imprensa norteamericana, os donos dos estúdios aceitaram as imposições do regime de Hitler em troca de preservar seus lucros e interesses no mercado cinematográfico alemão, investindo até mesmo em noticiários nazistas e na produção de armamentos no país. Nesse contexto, baseado em farta documentação, o termo “colaboração” utilizado pelo autor faz todo o sentido, pois Urwand consegue demonstrar a estreita ligação entre os interesses financeiros de Hollywood e a importância que o regime de Hitler dava à propaganda e ao cinema, como forma de transmitir uma imagem positiva do nazismo para o mundo.

Para um país como os Estados Unidos, que se orgulha de seu patriotismo, sua democracia e sua liberdade – expressos em muitos dos filmes de Hollywood que propagam o american way of life – o livro de Ben Urwand se apresenta como uma obra ousada e incômoda a uma memória constituída há décadas, a da “resistência” da indústria do cinema do país contra o totalitarismo.

Notas

1 FERRO, Marc. Sobre o antinazismo americano (1939-1943). In: Cinema e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

2 Nomeação dada a acadêmicos de grande destaque e com excepcional habilidade intelectual. (URWAND, 2019).

3 Podemos mencionar também em 1940 a criação de outro órgão, o Office of the Coordinator of InterAmerican Affairs (OCIAA), coordenado pelo multimilionário do petróleo Nelson Rockefeller (1908-1979), voltado para as relações com a América Latina, como forma de afastar a influência do Eixo nesta região, na chamada “Política de Boa Vizinhança”. A OCIAA, que tinha uma Divisão de Cinema, investiu fortemente em propaganda. Rockefeller acreditava que o sucesso dos empreendimentos americanos na América Latina dependia da venda não só de produtos americanos, mas também do “modo de vida americano” (american way of life). O sucesso no campo econômico tornava necessária uma base sólida no campo ideológico. Ver TOTA, Antonio Pedro. O imperialismo sedutor: a americanização do Brasil na época da Segunda Guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. Para uma análise das animações da Disney neste período, a criação do personagem brasileiro Zé Carioca, e suas potencialidades para o ensino de História, ver MENEZES NETO, Geraldo Magella de. Disney, Segunda Guerra e “Boa Vizinhança”: filmes animados nas aulas de História. In: BUENO, André et al. (orgs.). Aprendizagens Históricas: mídias, fontes e transversais. União da Vitória/Rio de Janeiro: LAPHIS/Edições especiais Sobre Ontens, 2018.


Resenhista

Geraldo Magella Menezes Neto –  Professor de História da Secretaria Municipal de Educação de Belém (SEMEC). Professor de História e Estudos Amazônicos da Secretaria de Estado de Educação do Pará (SEDUC). Atualmente é doutorando em História Social da Amazônia na UFPA.


Referências desta Resenha

URWAND, Ben. O pacto entre Hollywood e o nazismo: como o cinema americano colaborou com a Alemanha de Hitler. Trad. Luis Reyes Gil. São Paulo: LeYa, 2019. Resenha de: MENEZES NETO, Geraldo Magella. Desmistificando a “resistência” do cinema de Hollywood contra o nazismo na década de 1930. Crítica Histórica. Maceió, v. 12, n. 23, p. 484- 490, julho, 2021.

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PINTO Ana Flávia Magalhães (Aut), Escritos de Liberdade: literatos negros/racismo e cidadania no Brasil oitocentista (T), Editora UNICAMP (E), MIRANDA Janira Sodré (Res), Crítica Histórica (CHr), Liberdade, Literatura, Negros, Racismo, Cidadania, Séc. 19, América – Brasil

A narrativa sobre a circulação e experiências de homens negros livres, letrados, pensadores ativos na vida social no Rio de Janeiro e em São Paulo nas últimas décadas de vigência da escravidão é o tema predominante nessa obra, que teve sua origem no trabalho de pesquisa para o doutorado da autora, defendido na Universidade de Campinas em 2014. Agora vertida em livro e compondo o 46º volume da coleção Várias Histórias.

Marcada por um trabalho procedimental baseado na micro-história, a pesquisa é fartamente ancorada em um trabalho diligente e preciso sobre a documentação escolhida, explorada sob a autoridade de quem oportuniza ao leitor superar a visão, dominante em certa historiografia, de que se tratava de homens únicos e/ou isolados em sua geração e sociedade. Oferece-nos a autora desse livro a oportunidade de acessar, em sua proposta narrativa, uma prosopografia de negros brasileiros em atividade política e conexões urbanas, nas últimas décadas do século XIX, marcada pela “politização da raça a partir de escritos de liberdade (p.24).

Uma geração de negros livres ou libertos que promoveu debates estabelecidos em jornais diários, literatos, negros, emancipacionistas que lideraram a constituição de meios e condições de diálogo, crítica, confrontação e resistência na luta por liberdade. Essa abordagem escolhida para tratar suas trajetórias demonstra confluências e dissonâncias na ação, mas uma marca em comum: a experiência de racialização em contexto de transição de regime político (da monarquia à república) e social (da escravidão à abolição).

Dividido em três partes o livro oferece nos quatro primeiros capítulos um olhar sobre as trajetórias de José Ferreira de Menezes (1841-1881), Luiz Gama (1830-1882), José do Patrocínio (1853-1905), Machado de Assis (1839-1908) evidenciando as experiências biográficas e atuação, bem como os embates em torno da abolição, raça, ciência. Destaca-se da narrativa de A. F. M. Pinto (2018) o protagonismo dado à desenvoltura do grupo nos combates decorridos na imprensa, fonte por excelência da pesquisa, a revelar os óbices à participação social de homens negros livres, mas sobretudo as estratégias escolhidas por cada um deles – com suas peculiaridades – para participar“(…) dos movimentos da sociedade em que vive e de que depende” (p.146), como postulou Machado de Assis. Outros nomes se estacarão na narrativa, tais como Apulco de Castro, Vicente de Souza, Arthur Carlos, Ignacio de Araújo Lima e Theophilo Dias de Castro, entre outros, como parte de uma geração que “travou combate de ideias com muita gente em defesa da causa da liberdade (p. 74).

Na segunda parte da obra, os capítulos cinco e seis tem a narrativa urdida com uma tessitura que une a Revolta do Vintém (1879) como ápice de um clima de descontentamento político que vinha crescendo na capital do império, onde os protestos contra o aumento de impostos e os destratos à cidadania pelos agentes do estado, sobretudo da força pública, se ligam à presença reconhecida e mesmo publicamente ovacionada de emancipacionistas negros, que travavam combates de ideias em nome da liberdade e da cidadania (p. 206), confluindo para uma ação coletiva em torno das agremiações abolicionistas. Dentre as ações desse grupo de homens se destaca a relevância que a autora dá à denúncia pública que oferecem na imprensa à sociedade da injustiça e ilegalidade inerente a processos de reescravização, apelando ao constrangimento público e à condenação pública do escravismo. E colocando no centro do debate o problema, a querela ou a questão da liberdade.

Na terceira parte, composta pelos capítulos sete e oito é, particularmente significativo o trabalho da autora em evidenciar empiricamente o esforço envidado por homens negros em se inserir na vida política em São Paulo, seja na qualidade de eleitores ou de membros de partidos políticos em evidente movimento de busca por ampliação de espaços na participação política. Bem como restam nítidos os limites, as perdas e as diferentes posições entre o fim do período monárquico e o início da república. No oitavo e último capítulo dedicado às organizações negras e às dissonâncias políticas no pós abolição, a autora destaca as vulnerabilidades políticas, as diferenças entre republicanos e monarquistas e – sobretudo – as pautas em comum: manutenção do trabalhador negro no mundo do trabalho livre, acesso à educação e a ocupação de outros espaços sociais.

Já na primeira parte do livro, a historiadora Ana Flavia Magalhães Pinto (2018) demonstra a correlação da efervescência da vida cultural intrinsecamente relacionada à atividade de uma geração de negros livres, que podia “encontrar Callado dando aulas de flauta no Conservatório de Música e no Liceu de Artes e Ofícios do Rio Janeiro, bem como vê-lo executar suas aclamadas composições e tantas outras de autoria diversa em audições restritas ou destinadas a um público mais amplo” (2018, p. 09). Concertos para a família imperial, batizado de príncipe, evento no salão do conservatório, missa cantada por ocasião da festa do Senhor Bom Jesus dos Perdões no morro do Castelo, serenatas, bailes, festas. Em todos os espaços era possível dar com a presença de figuras respeitadas do universo musical. Além da Callado, o maestro Henrique Alves de Mesquita, mestres do Choro, de Chiquinha Gonzaga a Anacleto de Medeiros, o flautista e saxofonista Viriato Figueira da Silva. Enfim, a Companhia de Teatro Fênix Dramática em suas apresentações no Teatro de São José, a principal casa de São Paulo, que em 1876 tinha no renomado ator e dramaturgo Francisco Corrêa Vasques um nome de sucesso com seus personagens cômicos. Numa relação entre música e teatro se articulava o trabalho conjunto entre artistas negros. Ao narrar esse protagonismo a autora torna verossímil ao seu leitor a intensa e pública presença negra na cena cultural na capital do império.

A autora destaca que envolvidos nessa cena, disputando com outros grupos, estavam empenhados em oferecer feições delineadoras no nascedouro do Brasil. Essa geração desejava influenciar os progressos que se anunciavam então. Prescrutar pelos motivos e obstáculos que atrasavam a nação que se formava era uma questão fundamental. E nela se imiscuía a questão do sistema escravista, tipo de governo, composição demográfica e populacional. O século XIX aparece, sob as letras da autora, como o tempo que assistiu à emergência de assistiu a inúmeros projetos direta ou indiretamente apresentados na arena político-cultural brasileira.

Esse livro demonstra o modo pelo qual nessa dinâmica diferentes pensadores e literatos negros “forjaram suas trajetórias, vivenciaram incertezas, estabeleceram suas estratégias e alianças e, sobretudo, construíram seus entendimentos sobre o país do qual se consideravam parte e participantes” (p. 23), ainda que em virtude de sua identidade racial fosse, não raro, deslegitimados.

Ferreira de Menezes, Luiz Gama, Machado de Assis, José do Patrocínio, Ignácio de Araújo Lima, Arthur Carlos e Theophilo Dias de Castro, são alguns dos nomes que desfilam nessa obra, dentre os muitos outros “homens livres de cor”, que atuaram para de multiformes aspectos estabelecer e garantir seus espaços na cena pública, buscando influenciar os rumos do país.

Seus feitos eram constantemente focalizados na aproximação com plataformas políticas nas quais vislumbravam eventuais garantias de participação, fosse para os recém-libertos ou para as demais parcelas da população naquele país que se reorganizava. Sem dúvida a imprensa – e sua maquinaria tecnológica e social – assumia para aqueles homens um lugar central e uma arena para o lançarem-se no desenvolvimento de suas ideias e em busca de realizar seus anseios. Lançando-se ao debate alargaram no tempo a inscrição de suas palavras e trajetórias, legando ao país e fixando na memória as lutas de sua geração, ao tempo em que contribuíam para evidenciar o quão estreitos podiam ser os caminhos criados para os futuros passos do país. Num percurso tão bem recuperado pela historiografia produzida nesse livro.

Desse minucioso trabalho de pesquisa emerge uma análise acurada, que tanto demonstra que esse grupo de homens contribuiu com os debates na transição entre a monarquia a república, do trabalho escravo ao braço livre, quanto constituíram redes, estratégias, processos e grupos de confronto, resistência e produção de matéria política e social que visibilizou a presença política de negros livres letrados e fez incidir sobre a vida social a produção de suas ideias.

Uma sofisticada análise, que põe em tela as redes e as dinâmicas da “politização da raça” no Brasil do século XIX, a partir da experiências de homens negros letrados, literatos e pensadores.

Recomenda-se fortemente sua leitura, sobretudo às pessoas interessadas na história negro-brasileira, nas transformações recentes da historiografia nacional, na história social e das ideias, na história do Brasil no século XIX, na história política e na história urbana. Essa obra é atravessadas pelo interesse historiográfico nas narrativas que enunciam a presença e atividade de pensadores e literatos negros “Livres e pela liberdade em tempos de incerteza” (PINTO, 2018, p. 181).


Resenhista

Janira Sodré Miranda – Professora de história no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás e doutoranda em história pela Universidade de Brasília.


Referências desta Resenha

PINTO, Ana Flávia Magalhães. Escritos de Liberdade: literatos negros, racismo e cidadania no Brasil oitocentista. Campinas/SP: Editora UNICAMP, 2018. Resenha de: MIRANDA, Janira Sodré. Em defesa da causa da liberdade. Crítica Histórica. Maceió, v. 12, n. 23, p. 491-494, julho, 2021.

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DOMINGUES Petrônio (Aut), Estilo Avatar: Nestor Macedo e o populismo no meio afro-brasileiro (T), Alameda (E), PINTO Natália Garcia (Res), Crítica Histórica (CH), Nestor Macedo, Populismo, Séc. 20, América – Brasil, Pós-Abolição, Frente Negra Brasileira – FNB

A pesquisa em história social do pós-abolição ampliou-se consideravelmente no país nos últimos anos. Expoente dessa historiografia são os trabalhos do autor resenhado. Petrônio Domingues aborda diversos temas ligados ao estudo do pós-abolição, como o associativismo e a imprensa negra, os projetos educacionais da Frente Negra brasileira, além de diversas biografias e trajetórias (coletivas e individuais) de sujeitos que lutaram, resistiram e escreveram a história negra desse Brasil. Apesar do país continuar racista, os sujeitos revelados pela escrita do historiador Domingues ganham vida ao saírem dos documentos investigados e trazem à tona a pluralidade de personagens históricos: homens e mulheres negros que participaram de diversos e distintos movimentos políticos na sociedade brasileira. Este é o ponto auge da obra de Petrônio Domingues em Estilo Avatar, na qual aborda de maneira relevante a trajetória do ativista afro-brasileiro Nestor Macedo, conhecido como o “Rei do Baile” e fundador da Ala Negra Progressista. Também atuante como cabo eleitoral de Adhemar de Barros, um populista da nossa República democrática nos anos 50 e 60. É crível que Domingues aborde de maneira muito competente e articulada a história dos afro-brasileiros na sociedade pós treze de maio com o tema sobre o populismo. Pode soar estranho aos leitores essa simbiose, mas não o é, pois Petrônio Domingues tem um trabalho expressivo de cruzamento de fontes, tais como: documentos policiais, jornais e atas do clube negro, evocando a participação dos negros na construção da democracia brasileira no período político marcado pela tônica populista.

A história do negro neste país emerge não só pelo biografado Nestor Macedo, mas por uma polifonia de participação de afro-brasileiros disputando pleitos políticos amalgamados pela ideologia populista. Afinal, era necessário analisar como esses sujeitos jogavam com os recursos disponíveis para sobreviverem em uma sociedade marcada pelo racismo e pela desigualdade social para além de uma massa de manobras. A obra de Petrônio evoca a singularidade de projetos de políticos negros que almejavam, com a bandeira do populismo, angariar propósitos de cidadania para si e para a comunidade negra. Se o partido populista de Adhemar de Barros oportunizava a concretude desses anseios, esse então era o caminho para participar da democracia e escrever a história com a luta do povo negro.

É por intermédio da trajetória política de Nestor Macedo e da agremiação Ala Negra Progressista que o historiador Petrônio Domingues resgata a história social do negro, a qual teria ficado inviabilizada por muito tempo. A obra do historiador coloca em voga para a História social do pós-emancipação a luta do movimento desses políticos negros em prol da discussão sobre educação, construção de uma identidade coletiva para a comunidade negra brasileira, por justiça social e cidadania para os seus, que tanto eram (e são) alijados dos direitos políticos e sociais da sociedade republicana brasileira. O autor não critica o seu biografado Nestor Macedo e a agremiação da Ala Negra Progressista ao ter se aliado ao populismo em várias campanhas eleitorais. Pelo contrário, Domingues procura investigar e apontar a versatilidade de Nestor Macedo e da própria organização no campo das possíveis negociações políticas e os vários projetos defendidos por tais sujeitos. Mas o historiador não pontua isso de uma maneira maquiavélica ou de dicotomia dos indivíduos estudados. Analisa essa aliança política para compreender as reinvindicações da comunidade negra, destacando que a mesma lutava por pautas em benefício de sua comunidade racial. A construção de coalizões e de um partido político para os afro-brasileiros se dá na linha tênue de tentar angariar maiores direitos sociais e políticos para a comunidade negra sem jamais deixar de questionar a democracia racial que os excluía da vida orgânica política do país.

Por intermédio da criação da agremiação política da Aliança Negra Progressista e da figura de Nestor Macedo, nos anos de 1940 a 1960, retrata a importância da atuação coletiva tanto do ativista ligado à figura populista de Adhemar de Barros quanto do coletivo de seus aliados (que frequentavam os aclamados bailes de Macedo na agremiação) para discutirem sobre os problemas que atingiam em cheio a comunidade negra no cenário nacional naquele passado de outrora. É notório salientar que a Aliança Negra Progressista não faz um discurso veemente sobre a questão latente do racismo brasileiro; no entanto, os bailes em comemoração alusiva à data do treze de maio, da proclamação do advento da República nacional e da própria independência do Estado brasileiro no espaço da agremiação negra dava alusão de que o coletivo tinha ideia sim do processo de exclusão da população negra dentro do cenário político da república populista. Os bailes e os festejos não eram meros divertimentos da comunidade afro-brasileira. Eram muito além disso. As festas dançantes promovidas pelo “Rei dos bailes”, Nestor Macedo, elucidavam a agenda coletiva da agremiação negra de que era necessário construir políticas sociais que melhorassem a vida de homens e mulheres negros do país. Indubitavelmente, que os festejos aliados com a participação notória de políticos populistas tinham no âmago da questão uma estratégia de mobilizar uma identidade política para os afro-brasileiros para lutarem por conquistas políticas e sociais para a comunidade negra que se via excluída de todos os seus direitos de cidadãos desde que o cativeiro acabara.

Ao menos se todas as reinvindicações da população negra não eram atendidas, algumas conquistas eram arrancadas pela luta dessa agremiação e desse personagem ambíguo que fora tão bem pesquisado pelo autor: a figura de Nestor Macedo, o qual dá nome e vida à obra resenhada. Nestor Macedo era ativista da agremiação Aliança Negra Progressista em São Paulo. A trajetória dele é marcada por muitas intrigas, conflitos e denúncias políticas. Muitos desses imbróglios eram pautados por interesses pessoais, mas esse sujeito foi um protagonista político no mundo populista e negro que agenciava com sua perspicácia projetos e coligações variadas durante a participação política que teve na experiência democrática dos anos 1940 a 1960.

O biografado Nestor Macedo também era conhecido como o “Rei dos bailes” que promovia para a Aliança Negra Progressista. Uma organização que não se resumia a festejos comemorativos; muito pelo contrário, era um espaço que tinha um recorte de luta racial com a tônica da aliança em torno do movimento populista encabeçado por Adhemar de Barros. O leitor não pense ou não se engane que a experiência democrática com lampejos de ordem populista pretendia angariar apoio da comunidade negra paulista de maneira simplista. Obviamente, o partido de Barros queria a dominação plena desse segmento populacional para ganhar os pleitos eleitorais. Mas a história desse capítulo da história social do negro na sociedade brasileira não é uma via única de possibilidade de construção. Se por ora foram vistos como massa de manobra e como sujeitos a serem dominados pela subordinação política, é indelével asseverar que os negros paulistas também tiveram suas pautas atendidas através de muita negociação. Mesmo em um campo de forças desiguais, souberam jogar com os recursos possíveis para conquistarem direitos importantes à comunidade negra. A história dessa aliança não foi apenas pela representação da dominação pura e simples, mas de resistência e conquistas para os seus irmãos de cor.

Nestor Macedo era um populista e foi fundador do Partido da Aliança Negra Progressista. Foi um político e personagem histórico negro que misturou a luta do coletivo afro-paulistano com as nuances da política populista. Uma das facetas da história social da população negra no país foi trazida à tona pela escrita de Petrônio Domingues, explorando um conjunto de fontes diferentes, dialogando com um arcabouço teórico sólido no campo do pós-emancipação e que elucida mais uma página de como a comunidade afro-brasileira explorava as possibilidades (ou se apropriava do jogo das relações) na democracia republicana e populista para alcançar melhores condições de sobrevivência e cidadania para o coletivo negro. Tudo isso feito em jogo de relações (mesmo que desiguais) para negociar por direitos concretos ou não para a luta do povo negro. O livro é ímpar em desvelar tanto Nestor Macedo e a agremiação a que estava afiliado, como o surgimento de tantos outros políticos negros que tentavam barrar a igualdade racial que atingia os seus irmãos. É a história vista de baixo para cima com seus nuances e com todas as controvérsias possíveis. É uma página da história do país sendo contada pelo lado dos vencidos e não dos vencedores, com Nestor Macedo e a agremiação da Ala Negra Progressista na política do Brasil construída pelos negros.

Resenhista

Natália Garcia Pinto – Doutora em História pela UFRGS. Docente do Curso de História em Licenciatura em EAD da UFPEL (2021).


Referências desta Resenha

DOMINGUES, Petrônio. Estilo Avatar: Nestor Macedo e o populismo no meio afro-brasileiro. São Paulo: Alameda, 2018. Resenha de: PINTO, Natália Garcia. O movimento populista e a participação dos afro-brasileiros. Crítica Histórica. Maceió, v. 12, n. 23, p. 495-498, julho, 2021. Acessar publicação original [DR]

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