Coleções e expedições vigiadas: os etnólogos no Conselho de Fiscalização das Expedições Artísticas e Científicas no Brasil | Luís Donisete Benzi Grupioni

A memória histórica, principalmente a biográfica, que se construiu acerca da década de 1930, buscou, quase sempre, apagar rastros de envolvimentos com a política repressora do governo Vargas. Diversos trabalhos realizados sobre esse período procuram apontar uma tendência do referido governo em buscar um projeto que o identificasse com os interesses da populaçãoEm alguns desses trabalhos, propõe-se a associação do projeto estadonovista aos valores do passado, como estratégia para recuperar a verdadeira origem da história do Brasil. A idéia do mito Vargas é então reforçada pela demonstração da relação íntima entre cultura e política, relação por meio da qual se tenta buscar um elo entre memória e tradição.

O projeto político e ideológico formulado nesse período passava pela formação de homens saudáveis e orgulhosos de seu país, forma do governo tentar construir uma nova imagem para o Estado brasileiro. Diversos órgãos foram, então, criados, com o intuito de auxiliar na implementação do projeto nacionalista de construção de uma unidade nacional. A articulação dos aspectos econômicos, políticos, sociais e culturais das diversas regiões do Brasil culminou num rearranjo do espaço brasileiro, marcando até hoje a vida do país.

O livro Coleções e expedições vigiadas: os etnólogos no Conselho de Fiscalização das Expedições Artísticas e Científicas no Brasil, de Luís Donisete Benzi Grupioni — originalmente, dissertação de mestrado em antropologia social, defendida na Universidade de São Paulo (USP), e publicada graças ao prêmio de melhor dissertação de mestrado conferido pela Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS) em 1997 — é mais uma excelente contribuição para a compreensão desse período, pois coloca à disposição do público mais uma faceta do governo Vargas: controlar estrangeiros e brasileiros envolvidos em expedições científicas e artísticas, revelando as disputas que marcaram a realização dessas expedições, que, de acordo com Grupioni (p. 21), se deram quer no “tocante ao Estado, ao firmar uma política de proteção dos bens da nação e de controle de estrangeiros, quer no tocante aos institutos de pesquisas nacionais, ao sedimentar o campo de ação, institucionalizando a pesquisa científica no Brasil”.

A partir de um ponto de vista antropológico, o autor apresenta uma visão dos intelectuais envolvidos com o projeto político de nação “no qual estavam reservados aos índios um lugar e um papel determinado” (p. 30).

Partindo de uma documentação inédita, localizada no Museu de Astronomia e Ciências Afins (Mast), e tendo como objetivo principal a “produção de uma etnografia histórica do Conselho de Fiscalização” (p. 24), Grupioni analisa a criação do Conselho de Fiscalização das Expedições Artísticas e Científicas no Brasil (CFEACB), órgão situado entre o campo político e o intelectual, procurando demonstrar o papel efetivo dessa instituição tanto para a configuração do campo intelectual indigenista, como para a formação das coleções científicas dos museus brasileiros. O autor busca, ainda, compreender a visão construída nesse período sobre os índios e a importância de se preservarem os objetos por eles produzidos — sua cultura material.

No trabalho que está dividido em cinco capítulos, permitindo ao leitor percorrer os principais temas abordados na definição de suas questões e na superação dos problemas surgidos durante a pesquisa, Grupioni compara a atuação desse órgão com a de outras instituições ligadas à prática da pesquisa etnológica no Brasil, recuando ao início do século XX para apontar as questões que marcaram esse período no tocante ao problema indígena, bem como as disputas e as negociações pela exclusividade ou hegemonia de uma dada forma de ação.

Assim, no primeiro capítulo, intitulado ‘O campo indigenista’, é discutida a definição desse campo a partir de uma proposta de ampliação do conceito indigenista, de modo a permitir o enquadramento do CFEACB como parte das agências e dos agentes preocupados com o controle e a produção do saber sobre os índios. Apesar de reconhecer que o Serviço de Proteção aos Índios (SPI), exercendo o papel central na configuração do campo indigenista, catalisou a maior parte das disputas envolvendo o destino das populações indígenas no Brasil, Grupioni entende que outras instituições e outros agentes ocuparam posições e qualificaram-se como interlocutores na disputa pela intervenção nos grupos indígenas e pela definição do lugar e dos direitos dos índios no Brasil. O autor afirma que “se a instalação do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) e sua atuação podem ser entendidos como o momento em que o campo indigenista se formaliza, adquirindo autonomia, ele não se reduz a este órgão” (p. 40).

É no segundo capítulo, ‘O conselho de fiscalização’, que Grupioni apresenta essa instituição, criada em 1933, para inspecionar, controlar e fiscalizar todas as expedições científicas realizadas no Brasil, seja por iniciativas de estrangeiros seja de brasileiros. Ao aprofundar suas análises sobre o conselho, de modo a permitir o entendimento de sua proposta de ampliação da definição de campo indigenista, o autor afirma que “esse estudo nos levará ao problema da nacionalidade e do patrimônio histórico e cultural que lhe dá suporte, onde o que interessa não são os índios reais, mas a herança que eles poderiam deixar para a nacionalidade brasileira” (p. 44).

Para o autor, os índios interessavam ao conselho como patrimônio, e é por esse viés particular que o mesmo ocupa lugar e papel no campo indigenista brasileiroA partir dessa idéia e baseado principalmente na documentação desse órgão, Grupioni, ao expor as dificuldades do conselho em controlar todos os estrangeiros que vinham ao Brasil realizar pesquisas e ao descrever a atuação desse órgão na intervenção, faz um histórico da criação do conselho e de sua atuação como licenciador e fiscalizador das expedições no território brasileiro. O Conselho de Fiscalização conseguia até mesmo a interceptação de expedicionários não licenciados em diferentes fases de seus trabalhos, e a imprensa, sem intenção, acabava cumprindo papel de delação, complementando o trabalho executado pelos fiscais e delegados do conselho, que municiavam o órgão com sede no Rio de Janeiro com informações sobre estrangeiros em atividades em seus estados.

Ainda no segundo capítulo, podemos verificar a participação do conselho na incorporação, através de confisco ou partilha, das coleções de artefatos etnográficos encaminhados aos museus brasileiros, quando se tratava de expedições não licenciadas como definia o Regulamento do Conselho. Segundo Grupioni, “essa expansão dos acervos nos institutos nacionais permitia a ampliação de seu capital de trocas, uma vez que era prática corrente, no início do século, permuta e doação de artefatos entre museus, tanto dentro do Brasil como com institutos congêneres no exterior” (p. 85). Para o autor, o controle do fluxo dessas expedições, bem como das coleções científicas, configura o lugar ocupado pelo conselho na interface do campo científico e político brasileiro.

Nos três últimos capítulos, o autor busca relacionar a criação desse órgão com a formação de pesquisadores brasileiros, e o conseqüente desenvolvimento científico do país. Propõe, ainda, alguns estudos de caso para a compreensão da dinâmica de interação entre o conselho, os expedicionários e os diferentes órgãos e institutos em disputa por uma hegemonia nesses campos. Utilizando dossiês das expedições de alguns pesquisadores estrangeiros que transitaram pelo Brasil entre 1935 e 1958, como Charles Wagley, William Lipkind, Buell Quain, David Maybury-Lewis, Lévi-Strauss e Curt Nimuendajú, Grupioni aponta mais claramente a principal faceta do órgão, que era o agente burocrático de fiscalização e concessão de licenças para a realização de expedições científicas.

Ele mostra que a “ação do Conselho de Fiscalização no controle e cerceamento de alguns pesquisadores estrangeiros não foi tão efetiva como a legislação previa e nem como os relatórios anuais do órgão pareciam exprimir” (p. 87). Assim, a atuação desse órgão, em alguns casos, foi meramente formal em relação à concessão de licenças; mas, em outros, ela foi marcante em sua atuação de fiscalizar. Grupioni sustenta seu argumento com uma análise de documentos que apontam em quais circunstâncias o conselho atuava, ora como licenciador, ora como fiscalizador.

No caso dos três primeiros pesquisadores citados anteriormente, o autor identifica uma ligação formal deles com o Museu Nacional, em virtude de acordo informal existente entre essa instituição e a Univer-sidade de Columbia (EUA), para formar jovens pesquisadores brasileiros. Assim, o Museu Nacional propiciava os meios para a realização das pesquisas dos estudantes, atuando para a obtenção da licença perante o Conselho de Fiscalização. O caso da expedição de David Maybury-Lewis demonstra que a não vinculação a instituições nacionais tornava mais difícil a obtenção da licença para os trabalhos de campo. Porém, depois que a expedição preenchia os requisitos exigidos para a obtenção da licença, esses pesquisadores eram liberados para desenvolver suas pesquisas.

Ainda com a intenção de compreender as ações do Conselho de Fiscalização, Grupioni analisa os dossiês de Lévi-Strauss e Curt Nimuendajú a fim de acompanhar algumas das formas de atuação e das práticas implementadas por esse órgão na tarefa de fiscalizar e acompanhar, ou seja, de interferir em todas as fases da expedição, sobretudo em seus resultados. Ele aponta que

a fiscalização se sobrepõe ao licenciamento, na medida em que, além de exigir do expedicionário o fornecimento de informações sobre as intenções de sua pesquisa e a prestação de contas de seu resultado, implica um gerenciamento maior de seu trabalho, mediante imposições que alteram os planos iniciais desses pesquisadores, estabelecendo exigências ou limitações à sua realização (p. 114).

Ao analisar a documentação relativa à expedição Claude Lévi-Strauss, o autor propõe-se a recuperar, com o apoio de uma bibliografia, a contribuição etnográfica desse pesquisador para o conhecimento dos índios brasileiros, discutindo o impacto do campo indigenista em sua obra.

Finalmente, no capítulo intitulado ‘O dossiê Curt Nimuendajú’, Grupioni verifica, a partir da documentação, a forma pela qual esse conhecido colecionador particular evoluiu para uma nova posição: a de pesquisador associado a institutos nacionais. Grupioni aprofunda, ainda, o estudo desses personagens que marcaram o desenvolvimento da etnologia no Brasil, para que o leitor perceba com mais clareza a contribuição desses pesquisadores para o conhecimento produzido sobre os índios, bem como para a formação das coleções etnográficas depositadas nos museus brasileiros.

Assim, a leitura de Coleções e expedições vigiadas: os etnólogos no Conselho de Fiscalização das Expedições Artísticas e Científicas no Brasil nos leva a concluir que as expedições científicas empreendidas no início do século, com o intuito de coletar material etnográfico destinado à formação de coleções, caracterizaram-se pelo espírito de aventura daqueles que buscavam desbravar territórios ainda virgens ou pouco explorados e pela busca de populações nativas desconhecidas. Tais expedições revestiam-se, ainda, de um caráter humanista, pois era preciso preservar a cultura dos povos indígenas, que fatalmente iriam extinguir-se, representada pela memória da cultura material desses povos.

Ao conselho não interessavam os índios em si, mas o que eles simbolizavam numa época em que se tratou de afirmar um caráter nacional a partir da integração do território e da unificação da gestão do Estado. Segundo essa visão, os índios, juntamente com a fauna e a flora, representavam o que de mais genuíno havia em termos de origem nacional, e por isso deveriam ser preservados. O que estava em pauta era a contribuição simbólica à nacionalidade brasileira, bem como uma contribuição que era vista como parte do passado. Essas duas ações — a de pôr em prática uma política leiga de proteção aos grupos indígenas, bem como uma política de controle de pesquisadores estrangeiros além da preservação de artefatos e bens considerados patrimônio do país — ocorrem movidas e alimentadas pelo mesmo ideal nacionalista e centralizador que levava o Estado a criar novos órgãos e novas políticas.

A institucionalização das universidades obscureceu os museus e os institutos históricos, criando um novo padrão no conhecimento e na pesquisa científica no Brasil, que levou a pesquisa antropológica a se transferir dos museus para as universidades, resultando na proliferação de estudos monográficos.

A extinção do Conselho de Fiscalização, no final da década de 1960, ocorreu no momento em que a pesquisa antropológica se institucionalizou na universidade brasileira, mediante a criação dos programas de pós-graduação e num momento de proliferação de trabalhos sobre grupos indígenas, centrados em temas como mudança cultural, parentesco, mitologia e organização social. Em contrapartida, passou-se a registrar nesse período um ingresso reduzido de novas coleções etnográficas nos museus brasileiros, bem como uma estagnação nos estudos de cultura material, marcando uma nova fase na antropologia brasileira, na qual a formação de coleções torna-se secundária e seu estudo sucumbe às influências do estruturalismo e do estudo dos fenômenos sociais do ponto de vista simbólico.


Resenhista

Araci Gomes Lisboa – Arquivista do Museu de Astronomia e Ciências Afins (Mast-RJ).


Referências desta Resenha

GRUPIONI, Luís Donisete Benzi. Coleções e expedições vigiadas: os etnólogos no Conselho de Fiscalização das Expedições Artísticas e Científicas no Brasil. São Paulo: Hucitec, 1998. Resenha de: LISBOA, Araci Gomes. O Conselho de Fiscalização das Expedições Artísticas e Científicas no Brasil e o projeto nacionalista de Vargas. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.7, n.3, nov. 2000/fev. 2001. Acessar publicação original [DR]

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