Coligay: Tricolor e de todas as cores | Léo Gerchmann

Pensar hoje na existência de “torcidas gays” presentes nas arquibancadas de futebol é certamente impensável — para não dizer perigoso —, tendo em vista os inúmeros acontecimentos relacionados à homofobia e mesmo às manifestações violentas de racismo espalhadas por todos os cantos destes espaços esportivos coletivos. No entanto, o mesmo não pode ser dito dos anos 1970-1980, quando em pleno regime ditatorial no país, uma expressão criativa, divertida e polêmica se fez presente no meio das torcidas organizadas do Grêmio: a Coligay. Esta resenha é sobre essa torcida e sua trajetória histórico-afetiva.

Escrito pelo jornalista gaúcho e gremista Léo Gerchmann, o livro Coligay Tricolor e de Todas as Cores busca o resgate da história do primeiro agrupamento de gays torcedores de futebol do país, que pertencia ao Grêmio Foot Ball Porto-Alegrense (FBPA). Um dos rastros que Gerchmann procura revelar é a visibilidade do torcedor como fundamental estímulo para o seu time e a peculiaridade vibrante que a Coligay mantinha em relação às outras duas torcidas organizadas do Grêmio à época (Eurico Lara e Força Azul)3.

Em termos técnicos, o livro é divido em 15 capítulos que retratam todo um processo de viabilização da Coligay em uma época que a demonstração da homossexualidade em espaços públicos e de lazer (como os estádios de futebol) era intermitentemente contestada. Nesse sentido, a presença dos torcedores da Coligay nas arquibancadas era um desafio à norma instituída, ao jeito masculino de torcer e demonstrava uma devoção ou suporte emocional ao Grêmio por meio de uma constante vibração e manifestação diferenciada no modo de torcer. O intuito da Coligay era alavancar bons estímulos para os jogadores gremistas ao longo de todos os lances e passes, não visando apenas momentos de satisfação imediata como gols e escanteios, mas também dando boas-vindas a novos boleiros recém-chegados ao grupo, como foram os casos do goleiro uruguaio Walter Corbo, que se apresentara ao time no final dos anos 1970, e de Renato Portaluppi, que se tornou notável pelos dois gols marcados na final do Campeonato Mundial Interclubes da FIFA e que garantiu ao Grêmio FBPA o título inédito em 1983. Outro diferencial que garantia excentricidade única da Coligay era a execução de charangas4 e a confecção de cartazes e ornamentos robustos dentro do estádio.

Gerchmann lança a mão de registros fotográficos e entrevistas com ex-membros da Coligay, ex-dirigentes e ex-jogadores do Grêmio que atuavam no clube gaúcho em fins dos anos 1970. Ele procura realizar em certos momentos uma descrição que mostra os diálogos de tais pessoas para além do ambiente de torcida, pondo em evidência principalmente as dificuldades e os desafios sobre a questão central de aceitação e consideração da homossexualidade nos estádios e nas arquibancadas. Além disso, a obra se utiliza especialmente de diálogos com Volmar Santos, ex-dono da boate porto-alegrense Coliseu, além de fundador e líder da Coligay que existiu entre 1977 e 1983. Ele mesmo explica a origem do nome da torcida gay gremista:

Fiquei com uma ideia na cabeça, de fundar uma torcida mais animada e totalmente diferente das outras. Um dia, após o término do horário de funcionamento da boate, reuni vários gays frequentadores da Coliseu e lancei a ideia, que foi muito bem aceita para todos. Aí veio o nome de escolha da torcida. Pensei em ColiGrêmio, mas não gostei. Foi então que surgiu a proposta de colocar parte do nome da boate com o público que a frequentava, que era gay. Então resolvemos que a nova torcida seria Coli, de Coliseu, e gay, do público que a frequentava. Ficou, então, Coligay, o que foi aceito por todos (GERCHMANN, 2014, p. 36).

Dessa forma é interessante apontar que o impacto da Coligay foi tão relevante que os torcedores do Internacional — principal rival do Grêmio — também simpatizavam com ela e alguns, inclusive, tencionavam integrar a torcida gremista pela representatividade incorporada nas questões sexuais, apesar de não terem sido bem sucedidos. Assim, é importante observar que:

(…) muitos colorados homossexuais queriam integrar a Coligay, pelo que representava, mas não eram aceitos, o que os levou, mais tarde, a criar a efêmera Interflowers. Para entrar na Coligay havia apenas esta condição: ser gremista. Se a orientação sexual os unia, também os unia a paixão tricolor (…) (GERCHMANN, 2014, p. 114).

A obra de Léo Gerchmann enfatiza a importância da Coligay dentro do Grêmio FBPA como grande motivadora para a conquista de títulos importantes da equipe entre os anos 1977-1983, período que marca a retomada de vitórias até o ápice do título mundial nos anos 1980, sob o comando do técnico Telê Santana. Dentre outras contribuições, a performance da Coligay repercutiu para além dos limites do azul, branco e preto, tendo sido convidada, certa vez, pelos dirigentes do Sport Club Corinthians Paulista (SCCP) para representar e transmitir sua vibração nas arquibancadas do Parque Antártica, na final do Campeonato Paulista em outubro de 1977. O Corinthians, com o gol do volante Basílio e a vibrante presença dos “meninos” da Coligay na arquibancada, garantiu o título contra a Ponte Preta, simplesmente após 23 anos de jejum na competição em questão. Vicente Mateus — presidente do SCCP à época — havia entrado em contato diretamente por telefone com Volmar Santos apostando suas pretensões na Coligay. Segundo Gerchmann (2014, p. 111-112):

O folclórico Vicente Matheus, nascido na Espanha, emigrado para o Brasil aos seis anos e naturalizado brasileiro, telefonou para Volmar. Estava aflito. Pedia ajuda. Dizendo acreditar na fama de pé-quente que a Coligay adquirira ao apoiar seu Grêmio quando este rompera a hegemonia regional colorada. Volmar, no início da conversa, não entendia o conteúdo revestido naquele sotaque tipicamente paulistano de Matheus, que morreria 20 anos depois, aos 88, no Carnaval de 1997.

Estruturado o cenário em questão, o propósito desta resenha é apresentar ao leitor a obra a partir da importância das “torcidas gays” (ou atualmente chamadas de “livres” e “alternativas”, numa reatualização da nomenclatura para incluir participantes outros, além de apenas os homossexuais) na discussão do cenário futebolístico brasileiro. Entretanto, há uma série de desafios que tal consideração analítica postula, pois ainda há no Brasil um intenso debate sobre o preconceito no futebol em torno de grupos socialmente excluídos e constituídos historicamente como minorias, tais como a comunidade negra ou mesmo a LGBT (composta por lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros), que se posiciona de forma sexualmente divergente no tocante ao binarismo de gênero e mesmo ao desejo heteronormativo, em geral, reinante no esporte/futebol. 5

Uma das questões interessantes do livro gira em torno do simbolismo da participação da Coligay na condução do Grêmio à reconquista do campeonato gaúcho em 1977, após nove anos de jejum do mesmo título: segundo o autor, um “amuleto”, uma presença que contribuiu positivamente na aquisição do título — e assim também foi entendido pelo líder da torcida e seus participantes. Contudo, se tomássemos o significado embutido na prática do torcer para além do modelo que envolve o regime (então em voga) de sociabilidade masculina, consideraríamos que a Coligay acabou, com sua essência e manifestação presente, subvertendo o campo da sexualidade no espectro das relações de (homo)sociabilidade entre torcedores e jogadores. Que o autor não tenha percebido tal subversão é compreensível, pois o livro não se pretende analítico. O que não se pode simplesmente acatar é que, entre plumas e paetês, a Coligay jogou a lógica da estrutura heteronormativa do torcer, mesmo porque em vários momentos de sua narrativa, na voz de Gerchmann ou na de Volmar, se frisa que a Coligay desafiava seus críticos e, quando imbuída de sua ideologia, atacava (inclusive fisicamente) demais torcedores sem qualquer pudor.

Em outros aspectos, a aceitação e recepção da Coligay pelos jogadores, dirigentes técnicos e a diretoria do Grêmio no período em questão foi, em um primeiro momento indiferente, mas logo em seguida foi tida como contagiante e “pé quente” — de acordo com expressão do próprio autor —, mediante o título conquistado em 1977. Aliás, tal empolgação era responsável pelo respeito que o clube e outras instituições ligadas ao futebol gaúcho e o movimento LGBT tinham em relação a Coligay — e que então contribuíam com recursos financeiros para a sua manutenção (ingressos, mobilidade, alimentação, ornamentos e afins). Um caso específico refere-se à questão da mobilidade da torcida entre os jogos e a necessidade de financiamento — neste aspecto de acordo com o seu crescimento em relação ao número de participantes. Desta forma, os membros da Coligay:

(…) Chegaram a ter sua própria Kombi no início. Depois, não foi mais o suficiente. Com o crescimento da torcida, passaram a alugar o tal micro-ônibus. Investiram 20 mil cruzeiros na charanga, que também crescia, com músicos héteros e homossexuais. Havia ingressos e lanches gratuitos para os rapazes. O dinheiro vinha de contribuições, que tinham como origem o movimento gay de Porto Alegre e colaboradores que viam neles a novidade benfazeja. (…) (GERCHMANN, 2014, p. 92-93)

Se esta obra traz um registro jornalístico (mais descritivo do que analítico) é porque a intenção do autor é a de preservar a memória de uma atuação torcedora extremamente importante dentro do futebol brasileiro, até então praticamente esquecida. Mas ela marca, igualmente, um relato de um tempo passado, um revigoramento da memória acerca de “questões de gênero” no cenário esportivo brasileiro, num tempo em que o que se colocavam eram “papéis” rígidos de homens e mulheres, na vida, na sociedade e nas telenovelas da Globo, nos jornais e no rádio. Nesse sentido, estava em pauta que as práticas do torcer corroboravam com o senso comum de que o futebol constituía-se unicamente como espaço de sociabilidade masculina.

Para compreender de forma mais ampla tal temática faz-se necessário compreender que as práticas esportivas que condicionam a formação do futebol – especialmente no Brasil – foram historicamente constituídas no intuito de preservar certo locus que se baseava na figura dos atores envolvidos diretamente (jogadores, comissão técnica, diretoria de clube, etc.) e indiretamente (torcedores, simpatizantes e afins) na concepção do futebol como uma prática hegemonicamente masculina. Desse modo, qualquer outro tipo de manifestação da sexualidade neste espaço de sociabilidade seria incoerente e fortaleceria estereótipos de que futebol é “coisa de macho”.

Em linhas gerais, o fenômeno das torcidas organizadas surge no Brasil a partir dos anos 1970 quando ocorre o processo de “nacionalização” do futebol e sua popularização como um todo, a partir do tricampeonato mundial da seleção brasileira e de um conjunto de esforços ideológicos do regime militar vigente de promover o controle das massas através do uso de equipamentos culturais de lazer. Especialmente, nota-se uma transição da constituição do torcedor-símbolo para o torcedor-organizado que marca o fortalecimento e investimento das agremiações e clubes de futebol (TOLEDO, 1996). Na constituição deste empreendimento, o propósito é oficializar as relações de torcer dentro do clube favorito e de paixão construindo então uma espécie de identidade de autoafirmação com a associação do time e seus jogadores. Foi isso que também fez a Coligay. Nesse sentido, o esforço simbólico de marcar uma representação sexual compreende todo a edificação de um mito sobre as estruturas do armário da sexualidade e sua abertura de modo a tornar instáveis atitudes heteronormativas hostis (SEDGWICK, 2007).

Portanto, o impacto da Coligay dentro do Grêmio foi vanguardista porque evidenciou um novo tipo de sociabilidade torcedora, que põe em xeque a neutralidade masculina do ambiente esportivo no futebol de maneira sutil e que, de certa forma, inspirou tantos outros torcedores dos dias de hoje a se organizarem de maneira a protagonizar a sexualidade homossexual como ocorre nas torcidas virtuais de clubes na internet, como o Corinthians (Gaivotas da Fiel), Atlético Mineiro (Galo Queer), São Paulo (Bambis do Tricolor) dentre outros.

Pode-se dizer que a Coligay não é apenas a primeira torcida gay organizada, mas talvez uma das únicas abertas à diversidade (sexual, inclusive), existindo, paradoxalmente, num momento em que o país encontrava-se politicamente fechado (ditadura militar). Em tempos de releitura do passado e de discussão sobre ataques homofóbicos e de ódio ao diferente, Gerchmann nos oferece um importante exemplo de como fórmulas antigas poderiam ser antídotos essenciais para a ação prática na atualidade!

Notas

3 O Departamento de Torcidas Eurico Lara foi criado pelos próprios dirigentes do Grêmio FBPA no intuito de promover pela primeira vez uma organização formal dos torcedores e evitar conflitos. A Força Azul foi a primeira torcida organizada do Grêmio a ser independente da organização oficial Eurico Lara, que surge em 1974.

4 Charanga refere-se a uma banda musical normalmente formada apenas por instrumentos de sopro. No caso da Coligay, membros se organizavam para conduzi-la dentro das partidas de futebol, mas que também era acompanhada por percussões (aliás, quem conduziu e realizou boa parte das perfomances musicais foi o famoso percussionista Neri Soares Gonçalves, também conhecido por “Mestre Neri Caveira”).

5 Heteronormatividade toma como referência a matriz heterossexual que é validada como norma (e nesse cenário apenas o desejo de sexos opostos entre si são aceitos). Judith Butler (2003) deslinda essa questão quanto problematiza o gênero.

Referências

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

GERCHMANN, Léo. Coligay: Tricolor e de todas as cores. Porto Alegre: Libretos, 2014. 192 p.

SEDGWICK, E. K. A Epistemologia do Armário. Cadernos Pagu, Campinas, n.28, p. 19-54, junho 2007.

TOLEDO, L. H. Torcidas Organizadas de Futebol. Campinas: Editora de Autores Associados/Anpocs, 1996.


Resenhistas

Vinicius Gomes de Sousa – Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Graduando em Ciências Sociais (UFSCar). E-mail: [email protected]

Wagner Xavier de Camargo – Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Pós- doutorando da FAPESP em Antropologia Social na UFSCar. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

GERCHMANN, Léo. Coligay: Tricolor e de todas as cores. Porto Alegre: Libretos, 2014. Resenha de: SOUSA, Vinicius Gomes de; CAMARGO, Wagner Xavier de. ‘COLIGAY’ e a diversidade sexual no campo esportivo. Recorde: Revista de História do Esporte, v.8, n.1, j jan./jun. 2015. Acessar publicação original [DR]

Deixe um Comentário

Você precisa fazer login para publicar um comentário.