Como as ciências sociais e humanidades veem, sentem e leem o território? / Ponta de Lança/2020

A pergunta que dá título ao dossiê representa anseios convergentes de diversas matizes que buscam não apenas sintetizar, mas todo o contrário, possibilita oferecer um exercício de análise que seja verdadeiramente abrangente.

O objetivo central deste questionamento é apresentar os diversos vieses científicos sobre os quais o território é encarado e discutido, desde sua tradição ontológica que traz o sentido de dimensão espacial que se revela através dos processos tanto de dominação concretos, quanto em termos imateriais na produção de identidades, subjetividades e simbolismos criados e recriados pelos atores / agentes responsáveis pela sua (re)produção.

Urge assim, compreender como os demais campos das ciências sociais e humanidades com suas diferentes acepções e derivações trabalham com essa categoria. Sabendo-se que ao mesmo tempo que se afastam da etimologia, assumem outros contornos e essências específicas de um termo que em si reside o âmago da localidade (com ou sem delimitações fixas), com identidade (relativa e muitas vezes absoluta), mas que representa um viés multidimensional (políticojurídico, econômico e culturalista) dos jogos de forças e poder de grupos sociais que se apropriam ou simplesmente atuam para manutenção de um estado de coisas que lhes conferem identificação, pertencimento e dominação.

Diante desse quadro geral das preocupações que marcam as reflexões epistemológicas das ciências humanas e sociais nas últimas décadas, historiadores, geógrafos, arquitetos, urbanistas, e tantos outros cientistas sociais passaram a utilizar o território não apenas como repositório físico dos domínios naturais, mas também a partir das definições categóricas relacionadas a um conjunto de elementos e campos de atuação / fruição impulsionados pela necessidade de atualização de uma visão localizadora assentada no regionalismo.

Logo, a capacidade de conferir uma explicação e um sentido amplo e coletivamente aceito em diferentes experiências acadêmicas, utilizando-se de diferentes níveis escalares e temporais, levou historiadores, arquitetos, sociólogos, ambientalistas, linguistas e até mesmo os geógrafos a retomar o papel do território como categoria analítica redefinidora dos critérios que marcam as bases de investigação das ciências sociais (HAESBAERT, 2009).

São nestes debates sobre como utilizar a categoria território de forma adequada ou adaptada as diversas áreas do conhecimento que esse dossiê busca contribuir numa perspectiva de evidenciar a necessidade de aproximar cada vez mais as ciências sociais e humanas através de temáticas que apontam para as grandes convergências, assim como, as divergências no campo das ideias. Acreditamos que a exposição dos diversos argumentos científicos e percursos metodológicos nos quais os pesquisadores apresentam suas experiências possamos contribuir para difundir interdisciplinarmente este conceito-chave ou mesmo categoria de análise intrínseca entre várias ciências.

Através das distintas vertentes epistemológicas e disciplinares que utilizam o território nas ciências sociais e humanidades, percebe-se que não há apenas conceitos preestabelecidos, mas também valores, práticas espaciais, performances e espaços que embora estejam institucionalizados, nos convidam a pensar uma epistemologia do território a partir da subjetivação, da materialização histórica e geográfica dos fluxos, das redes e dos novos arranjos possíveis. Assim, desnaturalizam-se antigas práticas e conceitos que durante muito tempo foram tomados como universais, mas que hoje se diluem quando não mais somente interessa investigar o que, onde, e, quando; mas os porquês, como e a quem interessa desvelar as (des) apropriações, (des) envolvimentos e, principalmente, os processos pelo quais as espacialidades se reinventam, refazem e se reorganizam, mesmo que temporalmente.

Dessa forma, abrimos a possibilidade para uma reflexão pluralista, apontando para uma saída que não repete as velhas cátedras cientificistas apoiadas no pretenso conceitualismo unívoco, mas que aprofunde a materialização de relações que levam em conta questões socioculturais, históricas e identitárias, sem que para isso tenha que comprometer sua importância como produção do conhecimento científico.

Assim, os artigos presentes neste dossiê, por mais que alguns não tenham respondido diretamente as questões colocadas, as contribuições que chegaram sob a forma de investigações sobre o território, abrem as possibilidades para que possamos compreender os desafios impostos pela interdisciplinaridade que temos a nossa frente, uma vez que sair do campo da ortodoxia nem sempre se constitui numa tarefa fácil. Nestes termos, felizmente contamos com as valiosas contribuições de importantes autores Ibero-americanos e Ibero-americanas que nos orgulham pelas distintas percepções e críticas engendradas a partir de seus próprios campos de atuação, mas que vislumbram o diálogo com epistemologias, fundamentações e práticas sociais de caráter mais amplo.

Entre os temas relacionados, destacamos o artigo de María Alejandra Zurlo intitulado história, identidad y cultura en un anclaje espacial: el paisaje y el territorio en el discurso de intelectuales Chaqueños, que através de um olhar historiográfico, com aportes da geografia regional busca contribuir para ressignificação dos debates sobre a relação identidade-região.

O artigo dos Professores Vítor Murtinho e João Paulo Cardielos, o território dos arquitetos, é um dos exemplos mais claros da aproximação proposta pelos organizadores deste dossiê, pois trata mais especificamente sobre a percepção que os arquitetos têm ou deveriam ter sobre o território, uma vez que os autores o colocam sempre como uma questão em aberto, passível de várias ponderações.

Na contribuição da geógrafa e professora Cristiane Alcântara de Jesus Santos e da historiadora Roseane Rezende de Feitas, as reflexões sobre os usos dos espaços patrimoniais de alguns países da América Latina traz as preocupações acerca dos processos de turistificação dos territórios, bem como suas capacidades reais de manutenção como patrimônio dos povos Incas, Maias e Astecas dentro do atual espectro de consumo de lugares frente ao período pós pandemia do Covid-19. Numa leitura atual destes territórios turísticos, as autoras advertem que estes destinos deverão se preparar para o futuro, buscando alternativas para mitigar todos os impactos gerados pela pandemia que tem assolado todo o mundo.

Ainda entre as contribuições mais gerais, o arquiteto e doutorando em Sociologia da Universidade de Coimbra Cristiano Pacheco ensaia sobre a problemática da diferença e da alteridade a partir da observação da racionalização das cidades e consequente imposição da cultura de consumo, imbrincada no uso e ocupação de espaços urbanos por arquiteturas que ensejam fortificações. Já no artigo da professora Fabrícia de Oliveira Santos, a autora tece um olhar balizado por fontes e categorias que desvelam ideias e materialidades sobre a produção social do espaço geográfico de Itabaiana, sob o manto do pensamento geográfico da formação territorial.

O artigo dos geógrafos gaúchos Daniel Godoy e Paulo Roberto Rodrigues Soares traz uma visão objetiva sobre o território a partir de uma análise do ordenamento territorial no Brasil promovido a partir do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Nesta pesquisa, os autores explanam sobre a lógica técnica e política da construção simbólica do espaço geográfico e as configurações dos circuitos de mediação da ação política territorializada pela produção, uso e apropriação do indicador no território brasileiro.

Longe de pretendermos respostas definitivas à pergunta que formulamos no dossiê, entregamos aos leitores da Revista Ponta de Lança experiências e reflexões que apontam alguns caminhos a respeito do estudo interdisciplinar sobre o território, assim como as múltiplas articulações que estes textos podem ensejar em futuras contribuições.

Nosso agradecimento aos autores, avaliadores, conselho e corpo editorial que contribuíram com esse projeto.

Referência

HAESBAERT, R. Dilema de conceitos: espaço-território e contenção territorial. In: SAQUET, M. A.; SPOSITO, E. S. Território e territorialidades: teoria, processos e conflitos. São Paulo: Expressão Popular, 2009, p. 95-120.

Antonio Carlos Campos – Doutor em Geografia pela Universitat de Barcelona, Espanha Professor Associado do Departamento de Geografia / UFS E-mail: [email protected]

Norberto Nuno Pinto Santos – Doutor em Geografia Humana – Universidade de Coimbra, Portugal Professor Catedrático da FLUC – Departamento de Geografia e Turismo Universidade de Coimbra E-mail: [email protected]


CAMPOS, Antonio Carlos; SANTOS, Norberto Nuno Pinto. [Como as ciências sociais e humanidades veem, sentem e leem o território? ]. Ponta de Lança, São Cristóvão, v.14, n. 26, 2020. Acessar publicação original [DR]

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